Capítulo 47: A chuva batia no chão
A chuva batia no chão, espalhando-se em um esguicho nebuloso. Poças se formavam aqui e ali, e aqueles infelizes forçados a sair com este tempo moviam-se com pés apressados. Um menino ruivo esperava que a chuva passasse sob o beiral saliente de uma loja, com uma cesta cheia de ervas recém-colhidas em uma das mãos. A chuva repentina havia encharcado seu cabelo e, de vez em quando, tinha que afastar a franja caída. Por sorte, ainda era verão, embora o calor que permeava suas roupas encharcadas fosse estranhamente desconcertante.
O menino olhou ao redor antes de soltar um suspiro preocupado. Sua outra mão segurou uma bengala.
Por ventura, o aguaceiro cedeu. Não havia parado por completo, mas não era mais o suficiente para encharcá-lo, então o menino saiu com cautela. Seu corpo tremia cada vez que seu pé protético desconhecido tocava o chão, e mesmo isso estaria além dele sem o bastão. Quando passou por um grupo de aventureiros de sua idade, eles apontaram para suas costas e riram.
“Olha, é o eterno coletor de ervas.”
“Patético. Não gostaria de acabar assim.”
O menino mordeu o lábio e acelerou o passo. Para seu azar, sua perna falsa o impedia de ir muito mais rápido. De repente, ouviu uma voz familiar chamar seu nome — se virando para ver um garoto de cabelos castanhos correndo em sua direção. O garoto ruivo pareceu surpreso a princípio, porém logo retribuiu com um sorriso amigável.
“Já faz algum tempo. Você parece bem.”
“Sim, você...” o garoto de cabelos castanhos começou a dizer, contudo parou na metade enquanto seus olhos se fixavam na perna de madeira.
O garoto ruivo riu. “Como vai o trabalho? Tenho certeza de que está indo muito bem.”
“E você?”
“Eu? Bem, como pode ver, estou fazendo... O que posso.” o menino mastigou suas palavras e baixou a cabeça.
“Fi-Ficaria muito feliz se voltasse, sabe... tenho certeza que todos ficariam felizes também.”
“Hey, não quero ser um fardo para ninguém.” disse o ruivo com um sorriso amargo, batendo o pé falso no chão. “Não dá nem para atrair o inimigo assim... Seu Rank agora é B, certo? Apenas mais um empurrão para o topo. Não gostaria de te atrasar.”
“Mas... Mas isso é...” o garoto de cabelos castanhos parecia prestes a chorar, então o garoto ruivo gentilmente acariciou seu cabelo.
“Não faça essa cara. Nós dois estamos vivos e avançando — não é o bastante?”
“Mas... Se você não estiver por perto, eu...”
O garoto ruivo deu uma risada preocupada e exibiu a cesta na mão. “Estou no meio de algo. Tenho que levar isso para a guilda.” disse, batendo no ombro do garoto de cabelos castanhos.
“Urgh...”
“Bem, então, boa sorte lá fora. Diga aos outros que mandei um oi.”
O garoto ruivo se virou e saiu antes que pudesse ouvir uma resposta. Cada vez que as vibrações passavam por sua prótese de madeira, sentia dor em partes que nem existiam mais. Sabia que o garoto de cabelos castanhos ainda estava parado ali, observando-o, fazendo-o agarrar sua bengala com mais força.
“Qual é o sentido de ficar com ciúmes?” disse a si mesmo. “Aprendi meus próprios limites.”
Quando viu o garoto de cabelos castanhos — quando trocou palavras com ele e lembrou-se dos rostos de seus antigos membros do grupo — sentiu um desconforto latejante e negro no fundo do peito. Estava farto de si mesmo — farto de como se mantinha quieto e engessado em um sorriso falso. Talvez fosse hora de deixar tudo para trás. O garoto ruivo partiu para a guilda, nem mesmo percebendo que a chuva havia aumentado outra vez.
○
Quando respirou fundo e exalou devagar, saiu uma névoa branca e densa, derretendo aos poucos no céu como se relutasse em partir.
As manhãs já estavam esfriando. A maior parte do trabalho agrícola havia sido concluída, restando apenas algumas tarefas menores para atender. Assim que a geada começou a cair durante a noite, era sinal de que o inverno havia lançado sua primeira pedra em Turnera. Com os ventos tão frios, não seria estranho se começasse a nevar também.
No topo de uma colina antes do nascer do sol, Belgrieve sentou-se em uma pedra, acalmando seu coração. Seus olhos entreabertos olhavam fixos para longe enquanto sua mente se concentrava em sua própria respiração. O ar fresco perfurou sua pele, porém gradualmente parou de se importar. Cada respiração começou a parecer bastante longa e prolongada.
Logo, pode sentir com clareza algo quente girando em seu corpo. A fronteira entre sua carne e o ar ao redor tornou-se ambígua, e parecia que poderia mudar sua forma para ser o que quisesse.
De acordo com Graham, a qualidade e a quantidade de mana aumentariam durante os períodos de transição. Entre eles estava o momento em que a noite se transformava em dia. A mana no ar, que se tornava mais densa ao entardecer, se desvanecia com a luz do sol nascente. Por um tempo, Belgrieve treinou levando essa mana para os pulmões por meio do controle da respiração. Um mestre podia fazer uma única respiração parecer uma eternidade, embora Belgrieve ainda não tivesse chegado a esse ponto.
Ele sempre esteve em um estado meio meditativo quando praticava seus movimentos, então captou a sensação bem rápido. Agora, estava em processo de expansão, todavia não era algo que pudesse ser dominado em um dia. Estava apenas parado na linha de partida.
Marguerite e Duncan sentaram-se a uma curta distância, no entanto parecia que não estavam tão concentrados e às vezes ficavam inquietos. Graham estava se afastando dos três, carregando Mit nas costas. Quando gentilmente abraçou o menino, Mit murmurou algo em troca.
Eventualmente, o sol surgiu e fez com que a geada nas folhas e na grama brilhasse de maneira intensa. Belgrieve se levantou e se espreguiçou. A fronteira entre ele e o mundo voltou em um piscar de olhos, fazendo-o estremecer com o frio da manhã.
“Está bem frio. Devemos ir?”
Marguerite disparou, esperando ansiosa por este momento. “Aw... Isso é difícil. Hey, Bell, existe algum truque para a meditação?”
“Vamos ver... Tente não pensar em querer sair mais cedo.”
“Ugh...” Marguerite franziu os lábios.
Belgrieve riu e então conduziu o grupo colina abaixo de volta para a vila. Os campos de trigo dourado da primavera foram colhidos e arados, deixando para trás nada mais do que solo marrom. Batatas e feijões seriam plantados ali no ano novo, enquanto o trigo da primavera havia sido semeado em outro vasto campo.
Cada família já estava acordada e ocupada se movimentando. O ar estava cheio de sons de água corrente e facas contra tábuas de cortar. Hoje era o dia do festival de outono e, na praça da cidade, comerciantes e mascates montaram barracas para expor seus produtos. A chuva repentina atrasou o trabalho em vários dias, deixando os mascates esperando até o dia do festival — mas eles pareciam bastante alegres, no entanto. Os aldeões mal haviam terminado seu próprio trabalho e sentiam que o festival havia chegado um pouco mais cedo, embora os jovens estivessem mais entusiasmados. Enquanto Belgrieve caminhava com o olhar vagando sem rumo, Duncan aproximou-se dele.
“O tempo voa, hein.”
“Sim, o inverno está... Quase chegando.”
As nuvens viriam do norte cerca de meio mês após o festival, dando início ao inverno de Turnera com um pouco de neve. Estranhamente, era uma constante ano após ano e por essa razão que o povo de Turnera estava tão desesperado em terminar seu trabalho antes do festival de outono.
“É difícil para eu dizer, então adiei por tanto tempo, porém...”
“Hmm?”
“Eu estou... Planejando deixar a vila também.”
Belgrieve inclinou a cabeça para o lado. “Isso é muito repentino.” comentou.
“Sim... É muito confortável aqui, sabe. Estive tendo problemas para decidir a hora certa de ir... Contudo ainda há várias pessoas que quero enfrentar.”
“E não pode partir depois que a neve cair.”
“Correto. Estava na minha cabeça quando Maggie disse que iria embora, no entanto não o consegui dizer.”
“Haha, bem, não vou te impedir... Está tudo bem com Hannah?”
“Nós conversamos... Acho que vou fazer da minha próxima aventura a minha última.”
“Hmm... Você disse a ela para te esperar?” vendo Duncan timidamente coçar a cabeça, Belgrieve deu um tapinha no ombro do homem. “Não a deixe esperando muito tempo.”
“Haha, terei cuidado.” Duncan respondeu com um sorriso estranho.
Vai ficar solitário por aqui, pensou Belgrieve.
Ele voltou para casa e preparou o café da manhã. Primeiro esquentou o ensopado que sobrara da noite anterior, depois estendeu a massa que havia amassado antes de sair mais cedo e dourou em uma frigideira.
Belgrieve olhou ao redor da casa, pensando que havia se acostumado a viver com seus indisciplinados aproveitadores, Marguerite e Duncan. A casa ficaria quase silenciosa sem aquela dupla turbulenta por perto. Os residentes restantes — Graham, Mit e ele — ficariam quietos demais.
Mit pulou em suas costas e começou a subir. O garoto era mais leve que uma cesta de batatas e seus pés descalços eram frios ao toque.
“Papai...”
“Oh, seus pés estão tão frios, Mit.” Belgrieve sorriu, segurando Mit com um braço em volta de seus tornozelos enquanto o menino enterrava o rosto no seu cabelo e o acariciava.
“Cheiro do papai...”
“O que está tentando fazer...? Hey, é hora do café da manhã.”
Era a mesma mesa de sempre, no entanto bastante sombria, sabendo que dois de seus membros estavam saindo. Marguerite mergulhou seu pão frito no ensopado, seus olhos se estreitaram em reflexão.
“Então vou me despedir desse sabor por um tempo... Ahh, por algum motivo, parece que estou aqui há muito tempo.”
“Hahaha, é como um piscar de olhos agora que acabou, Maggie.”
“Verdade. Isso parece mais um lar para mim do que a Floresta Ocidental... Hey, Belgrieve?”
“Sim?” Belgrieve ergueu o rosto, estava limpando a boca de Mit.
“Como devo dizer... Obrigado por isso e por aquilo. Acho que estaria passando por muitos problemas se não tivesse vindo para cá...”
“Haha, tenho certeza que você teria conseguido, certo?”
“V-Você acha...? No entanto é sobre esse tipo de conhecimento de aventureiro, sim. Eu não sabia nada a respeito. Talvez alguém tivesse me enganado.”
“Ainda teria sido uma boa experiência de aprendizado. Mas, pelo menos, direi que foi divertido tê-la por perto, Maggie.”
“Heh... Hehehe...” Marguerite coçou a bochecha desajeitadamente. Então ela deu um tapa no joelho. “Tudo bem! Se eu encontrar aquela garota Satie, vou trazê-la de volta para Turnera!”
“Hey, vamos... Não se preocupe com essa história.”
“Não seja tímido!” Marguerite cutucou alegremente Belgrieve, que esboçava um sorriso irônico em troca.
“Não se meta demais...” Graham disse com um suspiro. “O sul é um mundo diferente desta vila. Se o fizer com essa atitude ingênua, terá o seu tapete puxado por outro.”
“E-Estou ciente. Meu Deus, como pode ser tão teimoso...”
Belgrieve e Duncan riram alto ao ver o biquinho de bochechas rosadas de Marguerite. Após a refeição, cada um foi para a praça. As pessoas já estavam se reunindo e, enquanto o povo viajante dedilhava suas alegres melodias, os jovens da vila carregavam a estátua de Viena para fora da igreja. Padre Maurice os dirigia uma e outra vez, às vezes explodindo em gritos histéricos. A cada vez, aqueles que testemunhavam essas travessuras caíam na gargalhada. Era a mesma cena todos os anos.
Marguerite conduziu Mit pela mão, com os olhos arregalados enquanto olhava para as fileiras de mercadorias.
Parecia que havia muitas coisas à venda que ela nunca tinha visto em território élfico. Os vendedores pareceram igualmente surpresos ao ver a jovem elfa.
Belgrieve vagou em busca de um viajante disposto a dar uma carona a Marguerite para fora da vila. Não havia nenhum perverso que parasse em Turnera, porém Marguerite ainda era uma elfa, e os humanos instintivamente se afastariam dela. Seria melhor se pudesse encontrar sua passagem com alguém que conhecesse bem, contudo talvez tivesse que se contentar com um viajante que mal conhecia.
Pensando bem, Angeline estava clamando por voltar no outono, entretanto no final das contas não apareceu. Se não estivesse aqui nessa época do ano, talvez não viesse. Angeline disse que queria comer amoras, porém era possível que seu trabalho a tivesse prejudicado de novo.
Enquanto esses pensamentos ocupavam a mente de Belgrieve, alguém o chamou.
“Senhor Belgrieve!”
Voltando-se para ver, encontrou a mascate de cabelos azuis que conhecera no ano anterior. A mulher se aproximou com um sorriso amigável e um educado arco de cabeça.
“Ainda se lembra de mim? Do último outono...”
“Sim, estou lembrado. Pelo que me lembro, você ajudou minha filha... Fico feliz que esteja bem.”
“Sim! Oh, e a senhorita Angeline me ajudou também... Hehe, que ótimo! Fico feliz que tenha se lembrado de mim! Ouvi dizer que você desempenhou um papel importante em Bordeaux! A mascate de cabelos azuis agarrou-o energicamente pela mão.”
Apesar do sorriso tenso em seu rosto, Belgrieve devolveu o aperto sua mão de forma amigável.
“Não esperava que essa notícia se espalhasse... Mal posso dizer que fiz algo de bom. Contudo, de qualquer maneira, teria ouvido algum boato sobre minha filha? Ela disse que voltaria neste outono...”
“Oh, é assim? Não, não a encontro desde o ano passado... Me desculpe.”
“Oh, não, não se preocupe.” disse Belgrieve. Então o pensamento de repente o atingiu. “Onde pretende ir depois do festival?”
“Passarei por Bordeaux a caminho de Orphen. Eles gostam das conservas feitas aqui.”
“Hmm... Perdoe-me por perguntar, no entanto sua carroça teria espaço para outra pessoa?”
“Minha? Sim, está tudo bem. Muitas vezes tenho que contratar guardas para viagens longas, então me certifico de economizar espaço para eles. Cheguei em uma caravana desta vez, então economizei no custo.” riu a mascaste. “Está planejando uma viagem, senhor Belgrieve? Ficaria feliz em ser acompanhada por alguém tão forte quanto você.” ela testemunhou Belgrieve enfrentando os guardas de elite da Helvetica.
Belgrieve coçou a barba. “Não, não é para mim. Há alguém que espero que possa levar junto. E é ainda mais forte do que eu.”
“En... Entendo.” ela respondeu, com os olhos arregalados. “Que incrível... Que tipo de pessoa é?”
“Hmm... Hey, Maggie?” Belgrieve procurou em volta, mas a multidão era muito densa para vê-la.
Ele coçou a cabeça. “Sinto muito. Ela deve estar por perto...”
A mascate de cabelo azul sorriu com simpatia. “É uma grande multidão.”
“Maggie?” Belgrieve deu alguns passos e chamou outra vez. A mascate o seguiu logo atrás.
Depois de vagar um pouco, Belgrieve percebeu uma agitação vindo de uma das baias. Na sua frente, Marguerite se abaixou ao lado de Mit. Parecia uma loteria com vários prêmios.
“Este... Não, este aqui.”
Era uma caixa com um grande número de fios saindo de um buraco. Marguerite cuidadosamente puxou uma das cordas. Puxando o fio para fora, foi revelado que a ponta havia sido tingida de vermelho. O vendedor tocou um pequeno sino.
“Parabéns, senhorita Elfa!”
“Wow! Está realmente me dando isso? Bem, obrigado!”
Os olhos de Marguerite brilhavam quando pegou o colar de estanho de aparência barata. Mesmo algo tão insignificante parecia um tesouro inestimável para a alheia princesa elfa. Mit observava ao lado, mastigava a carne espetada em suas mãos.
Marguerite colocou seu prêmio em volta do pescoço, sorrindo de orelha a orelha.
“Hehe, que tal, Mit? Não é legal?”
“Legal?”
“Espere, essa é a minha carne... Está gostoso?”
“Gostoso!”
“Hey, Maggie.” Belgrieve chamou-a, acenando.
Maggie levou Mit junto. A jovem elfa parecia estar se divertindo muito; suas bochechas estavam rosadas e experimentando todas as festividades. Ela estava até cuidando de Mit, uma visão reconfortante nos olhos de Belgrieve.
“Ah, Bell. Precisa de algo?”
“Diria que é você quem precisa de alguma coisa. Entendo que está se divertindo, mas deveria começar encontrando alguém que a leve até Orphen.”
“Ah, certo... Desculpe.”
“Haha, pelo que está se desculpando? Vai deixar Graham com raiva.”
“Ugh...”
A mascate de cabelo azul olhou de Belgrieve para Marguerite, e depois de volta. Parecia estar confusa. “U-Uma elfa...? Hã? Esta pessoa?”
“Hã? Quem diabos essa mulher deveria ser?” Marguerite perguntou de forma grosseira, com um intenso olhar suspeito no rosto. A mascate se contorceu e se virou para Belgrieve com olhos suplicantes.
“Maggie.” disse Belgrieve. “Por que está tentando brigar com ela? É uma mascate.”
“Mascate... Oh! Você está indo para o sul? Tem uma carruagem?” Marguerite perguntou ansiosamente.
“Er, sim?”
“Hmm, olha... Desculpe por te assustar. Se estiver tudo bem, poderia me levar junto? Tenho conhecimento de esgrima, então posso ser sua guarda. Hey, que tal?”
“Er, hm...” a mascate olhou para Belgrieve com um sorriso preocupado. “Está me dizendo que essa garota é ainda mais forte do que você...?”
Belgrieve assentiu. “É uma garota um pouco rude, contudo não é uma má pessoa. Garanto que estará muito mais segura com ela do que com vários aventureiros medianos.”
“Sério... Hmm... Entendi! Vou embora em dois dias, está bom para você?”
“Viva! Obrigado! A propósito, meu nome é Marguerite! Prazer em conhecê-la!”
Marguerite vertiginosamente pegou a mão da mascate e a girou. A vendedora se encolheu, talvez porque estivesse lidando com uma elfa, no entanto sua expressão se suavizou ao ver o sorriso inocente de Marguerite. Mit olhou para elas com um olhar perplexo em seu rosto.
Marguerite a encheu de perguntas com entusiasmo, como “Que tipo de lugar é a capital do sul?” e “Como será a jornada?”. Embora parecesse bastante perturbada, a mascate forneceu respostas ponderadas. Belgrieve riu para si mesmo enquanto uma comemoração se elevava do centro da praça. Parecia que a estátua da Grande Deusa havia chegado inteira ao seu destino.
O barulho de cascos anunciava o chefe da vila Hoffman, que conduzia um cavalo. A carroça presa a seus arreios lindamente decorados estava cheia de espigas de trigo da primavera, batatas, frutas da montanha e o restante da colheita do outono. O cavalo foi deixado para trás por Angeline quando partiu, mas Belgrieve não precisava do animal, então o deu a Hoffman. Agora estava fazendo várias tarefas ao redor da vila. As crianças pegaram espigas de milho e flores e enfeitaram a estátua. As melodias do povo viajante ficavam mais altas e alegres, e aqui e ali, casais se pegavam pela mão, formando um grande círculo com sua dança.
Pensando bem, Helvetica esteve aqui há um ano. Era como se o tempo tivesse passado em um piscar de olhos, cada dia igual ao anterior — embora houvesse muitos acontecimentos entre eles. Angeline partiu na primavera e então Belgrieve a seguiu até Bordeaux; Duncan estava em Turnera quando voltou. Então Graham e Marguerite apareceram; havia a aberração na floresta, e Mit... Belgrieve refletia sobre todos esses eventos.
“Aconteceu tão rápido...” ele bateu a perna de pau contra o chão. O sol estava subindo para o zênite e o solo já havia secado desde que a geada da manhã derreteu. Pegando Mit de Marguerite, seguiu sua patrulha sem rumo. Cidra de maçã estava sendo servida e conversas alegres enchiam o ar. No canto, viu Duncan e Hannah sentados juntos.
Se os dois se dão tão bem, Duncan precisa mesmo de outra viagem? Belgrieve se perguntou. Todavia Duncan estava pensando em sua vida à sua própria maneira, e este era provavelmente o próximo passo que precisava dar para pôr fim à sua jornada. Belgrieve se convenceu a não dizer nada desnecessário.
Relembrou sua própria jornada, uma vez. Como aventureiro, suas viagens o levaram de cidades, aldeias e masmorras. Havia trocado histórias com seus camaradas; sacos de transporte; e lutou contra monstros, bestas selvagens e bandidos que atacavam de tempos em tempos. Ele assumiu vários papéis, suportou fracassos e desfrutou de vitórias. Parecia que todos os dias estavam radiantes de possibilidades.
Mit puxou sua mão. “Papai, vovô.”
“Hmm?”
Graham sentou-se calmamente na beira da praça, permanecendo discreto nas sombras das árvores. Belgrieve conduziu Mit em sua direção.
“Está animado.” disse Graham, levantando o rosto para encontrar o olhar de Bell.
“É assim todos os anos.”
Mit saltou sobre Graham, subindo em seu ombro.
“Vovô, tão alto...”
“Entendo.”
Belgrieve sentou-se ao lado, observando o festival. Estava acostumado com o festival agora, mas isso o tornava ainda mais precioso para ele.
No entanto, de fato parecia que algo estava faltando. Quase parecia que estava de volta ao tempo em que voltou para a vila — quando ainda estava cheio de arrependimentos por ter deixado o mundo das aventuras para trás. Era esse o seu desejo de aventura? Não, não era esse o caso. Era seu desejo confrontar seu passado. Precisava acertar as coisas com seu eu mais jovem, que havia jogado tudo de lado e fugido. Agora, todos esses anos depois, não havia nada em sua mente além do passado. Precisava olhar para trás se quisesse olhar para frente de novo.
“Bell.” disse Graham.
Belgrieve inclinou a cabeça. “O que foi, Graham?”
“Está pensando em algo.”
Belgrieve o encarou, passando a mão pela barba. “Bem, estou... Você viu através de mim.”
“Fale amigo. Se for algo em que eu possa ajudar.”
“Obrigado.” Belgrieve refletiu um pouco a respeito, escolhendo cada palavra com cuidado enquanto contava sua história.
○
O homem de chapéu ergueu lentamente o torso. Ele soltou um grande bocejo e flexionou os ombros, seus ossos estalando sob sua fina camada de carne.
A masmorra não tinha dia nem noite e estava cheia de um frio sempre presente. Contudo, o homem se vestia com roupas leves e usava apenas sandálias nos pés descalços. Apesar disso, não estremeceu. Coçando a barba, parecia estar muito entediado.
“Que sonho terrível.” murmurou.
Ele esticou as pernas e olhou para o teto. A luz da tocha piscou e se contorceu, fazendo com que as sombras dançassem de maneira realista. De cima, podia ouvir um vago tipo de ruído. Ao que aparentava, um baile ou festa ou algo assim aconteceria em breve; muitos convidados haviam sido convidados, e pessoas vestidas de forma elegante logo estariam entrando e saindo do lindo lugar.
“Eu quero vomitar.” o homem murmurou.
Todas aquelas pessoas que usavam roupas tão deslumbrantes eram negras como breu por dentro. O homem preferia aventureiros nesse respeito — e então adormeceu, esperando ter um sonho daqueles bons velhos tempos. Mas tudo o que o esperava era um pesadelo. Embora soubesse que não era real, sentia como se o cheiro de sangue ainda persistisse nas profundezas de suas narinas desde aqueles primeiros dias radiantes, quando lutou desesperadamente por seu lugar entre os fortes, e o poder o chamou em resposta. Essas pessoas irritaram sua alma, aprofundaram seu pessimismo e transformaram o homem em uma bagunça cínica. Naquela época, havia se convencido de que força era o que precisava para recuperar os dias que passara com seus companheiros.
“E foi aqui que acabei... Sigh...” lamentou, envolvendo os joelhos com os braços.
O homem havia tentado várias coisas para preencher o vazio em seu coração, porém agora parecia que nada disso fazia diferença. Mesmo assim, quando não fazia nada, aquele terrível vazio o atacava.
Em meio a tudo isso, apenas as lembranças de quando era um novato de baixo escalão brilhavam. Sempre que pensava que já deveria morrer, essas memórias o paravam.
“O que deveríamos ter feito? Hey, diga-me, Bell...”
O homem caiu e pegou uma garrafa de bebida, contudo estava vazia, como todas as outras. Ele a jogou na parede, onde ela quebrou, antes de erguer o dedo cansadamente e agitá-la no ar. Os fragmentos quebrados flutuaram e, peça por peça, se remontaram. A garrafa havia recuperado sua forma original. No entanto assim que o homem abaixou o dedo, a força que os mantinha juntos se dissipou e eles caíram no chão em pedaços mais uma vez.
“Uma vez quebrado, não adianta juntar de novo...” murmurou, ajeitando o chapéu de abas largas.
Foi quando ouviu um som fraco e uma figura apareceu do outro lado das barras de metal. Era uma garota de cabelo castanho-oliva, por volta de doze ou treze anos. Ela usava um vestido arrumado sem uma única mancha — uma terrível incompatibilidade com a masmorra de pedra fria em que se encontrava.
O homem de chapéu parecia bastante farto. “Aqui de novo... Vai ser um grande problema se alguém te ver.”
“Eles estão ocupados. Ninguém vem aqui hoje. Estão todos se preparando freneticamente para o baile. Quão barulhentos conseguem ser?” sua voz era como o toque de um sino, refinada e clara — um som puro que nada conhecia da mácula da corrupção.
O homem suspirou. “Por que não ficar com seu noivo, então? Está frio aqui embaixo.”
“Você parece com mais frio do que eu, vestido assim!”
“Sou especial. Você vai pegar um resfriado.”
“Um pouco de risco é bom. Preciso de uma mudança de ritmo, de vez em quando. Hey, conte-me outra história. Gostei daquele sobre o dragão na masmorra.”
“Uma garrafa da coisa forte — então conversaremos.”
A garota se levantou. Ela levantou a bainha da saia enquanto subia as escadas. Então, como se estivesse apenas lembrando, se virou e gritou. “Volto logo! Nada de dormir!” Então, se foi. Irritado, o homem voltou a deitar-se, descansando o chapéu sobre o rosto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário