domingo, 13 de fevereiro de 2022

Monogatari Series — Volume 01 — Capítulo 14.1

Capítulo 14.1: Mayoi Snail 006


“Então — que tipo de espírito, espectro, ghoul ou goblin é essa Vaca Perdida, afinal? O que precisamos fazer para derrotá-lo?”

“De verdade, Araragi, tudo no que pensa é violência. Alguma coisa boa aconteceu com você ultimamente?”

Parecia que Senjougahara havia acordado Oshino enquanto dormia. Ele resmungou algo sobre o quão horrível era que ela interrompesse sua preguiçosa manhã de domingo, mas mesmo deixando de lado o fato de que já era tarde, todo dia para Oshino era um domingo de férias de verão. Oshino não tinha o direito constitucionalmente garantido de falar essas palavras, então não me incomodei em dignificá-los com uma resposta.

Oshino não tinha celular, o que significava que teve que pegar emprestado o de Senjougahara para nos comunicarmos. No entanto, devido a razões dogmáticas e monetárias, também parecia ser muito ruim com a tecnologia. Quando o ouvi começar a dizer coisas tão idiotas como: “Oi, garota tsundere¹. Qual botão aperto quando estou falando?” senti uma vontade de apertar o botão que cortaria a chamada.

O que achava que estava usando, um walkie-talkie?

“Porém... Me pergunto o que está acontecendo aqui. Isso não é tão incomum quanto anormal. Não posso acreditar que conseguiu se deparar com tantas aberrações em um período tão curto de tempo, Araragi. Que curioso. Ser atacado por um vampiro seria suficiente para a maioria das pessoas, mas olhe para você. Primeiro se mistura com o gato da senhorita presidente de classe, depois com o caranguejo da senhorita tsundere, e agora foi e tropeçou em um caracol?”

“Não sou eu quem tropeçou.”

“Hm? De verdade?”

“Quanto Senjougahara te contou?”

“Bem... Ela me contou tudo, contudo também estava meio dormindo. Está um pouco vago, e posso estar me lembrando mal de um pouco disso... Ah, mas sabe, sempre sonhei com o quão bom seria se uma garota bonita do ensino médio viesse e me acordasse. Graças a seu pedido, Araragi, um sonho que eu tinha desde o ensino médio finalmente se tornou realidade.”

“… E como se sente?”

“Hmm, não tenho certeza. Ainda estou meio acordado.”

Talvez seja assim que os sonhos são realizados.

Não só para ele, mas para todos.

“Ei, ela está olhando para mim, com dureza. Sim, agora estou com medo. Me pergunto se algo de bom aconteceu com ela.”

“Quem sabe.”

“Você não, eh? Afinal, não parece entender muito bem as mulheres, Araragi ─ contudo, esqueça isso. Hmm. Bom, é verdade que é mais fácil se encontrar de volta ao mundo depois de se envolver nele uma vez, no entanto... Parece um pouco concentrado demais. A presidente da classe e a mocinha tsundere também são suas colegas de classe ─ e, pelo que entendi, ambas são da área em que está, certo?”

“Senjougahara não mora mais aqui, no entanto. Porém, não tem nada a ver com isso. Hachikuji nunca teria morado aqui antes.”

“Hachikuji?”

“Ah, Senjougahara não te contou? O nome da menina que se deparou com o caracol. Mayoi Hachikuji.”

“Ah...”

Houve uma pausa.

Também não parecia ser porque estava com sono.

“Mayoi Hachikuji, você diz... Haha, claro. Estou começando a ter uma ideia. Minhas memórias estão se juntando. Claro. É uma pequena conexão agradável, na verdade. Quase como um jogo de palavras.”

“Um jogo de palavras? Ah, porque ‘Mayoi’ pode significar ‘perdido’? ‘Perdido’ como ‘Vaca Perdida’ e ‘Criança Perdida’... Sabe, Oshino, você tem algumas ideias bem chatas para alguém que sempre tem um sorriso idiota no rosto.”

“Não gosto de piadas tão simples. Não sorrio como faço apenas para mostrar. Nada esconde uma arma melhor do que um rosto sorridente, sabe. Estou falando sobre os dois nomes dela juntos. Mayoi e Hachikuji. Sabe, Hachikuji. Como no quinto verso de Shinonome Monogatari?”

“O que?”

Hanekawa não disse algo semelhante?

Não que significasse alguma coisa para mim.

“Você não sabe de nada, Araragi, não é? Fico feliz que esteja me dando uma boa desculpa para explicar tudo. No entanto, não temos tempo agora, temos? Além do mais, estou com sono. Hm? O que foi, mocinha tsundere?”

Nossa conversa parou por um momento quando Senjougahara parecia dizer algo para Oshino. Mesmo minha audição não conseguiu captar – ou melhor, estava falando intencionalmente com ele para que eu não pudesse ouvi-la.

Estava compartilhando um segredo? Não ─ não pode ser isso.

O que poderia estar dizendo?

“Hmm. Ok.”

Oshino acenando com a cabeça foi tudo que pude captar. E─

“... Ahh.”

Um suspiro pesado.

“Araragi, está sendo realmente inútil. Sabia disso?”

“Hã? O que fiz para merecer isso? Nem te disse que estou apenas passando o tempo.”

“Fazendo com que a mocinha tsundere se preocupe por você... Que até se sente responsável. Que patético. Praticamente tem que segurar sua mão e te vestir, Araragi. É ela quem deveria estar vestindo as calças aqui.”

“Espera... Me sinto mal por arrastar Senjougahara para isto. Me sinto mal de verdade. Não apenas mal, me sinto responsável. Foi apenas na semana passada que ela terminou de cuidar de seus próprios problemas, mas já a coloquei em outro estranho─”

“Ugh, não é o que estou me referindo. Sabe, Araragi, estou começando a pensar que está te subindo a cabeça depois de resolver problemas com três aberrações seguidas. Só para ter certeza de que saiba, o que você mesmo vê e sente não é toda a verdade.”

“... Não pretendia contestar isso.”

Eram palavras severas — fulminantes. Parecia que tinha me batido onde mais doía, porque soava familiar.

“Bem, é provável que não seja sua intenção fazê-lo, Araragi. Já entendi que tipo de pessoa você é. Só acho que não faria mal se fosse um pouco mais atencioso, só isso. Se não está agindo de forma presunçosa, então acho que algo pode ter te encurralado. Ouça com atenção. Ver não deve necessariamente ser acreditar — e por outro lado, não ver não é necessariamente contrafactual², Araragi. Quero dizer que te disse algo parecido na primeira vez que nos encontramos. Espero que já não tenha esquecido.”

“... Não estamos falando de mim agora, Oshino. Poderia me dizer como lidar com essa... Vaca Perdida? Este caracol? O que fazemos para derrotá-lo?”

“Mais uma vez com a conversa violenta. Não diga esse tipo de coisa. Na verdade, não entende nada, não é? Vai se arrepender se continuar assim, e espero que assuma a responsabilidade então. Entendido? E também — a Vaca Perdida é... oh, er.”

Oshino hesitou por um momento.

“Haha. Não sei, isso é muito simples. Parece que não importa o que eu diga, vou te salvar aqui. Esse tipo de coisa não é bom... Preciso que se salve por conta própria.”

“É simples? Sério?”

“Nós não estamos lidando com um vampiro aqui. Aquilo sim, foi de fato um caso raro, Araragi. Acho que não pode deixar de ter muitas ideias erradas se essa foi sua primeira experiência, porém... Tudo bem, podemos dizer que essa Vaca Perdida é mais parecida com o caranguejo que a mocinha Tsundere encontrou.”

“Hm.”

O caranguejo.

Aquele caranguejo.

“Oh, certo. Sobre ela também...” Oshino disse. “Não sei se gosto disso. Estou aqui apenas para conectar os humanos com o outro lado. Conectar humanos com outros humanos não é minha especialidade, entende... Haha. Bem então. O que agora? Posso ter me permitido ficar um pouco amigável demais com você, Araragi. É como se estivéssemos em conluio. Nunca imaginei que seria tão simples para você me pedir ajuda, muito menos que me faria resolver um caso pelo telefone.”

“... Bem, acho que foi muito fácil da minha parte.”

Era mais fácil — e eu estava relutante sobre a opção.

Ainda assim — também é verdade que era a única opção.

“Gostaria que não me tratasse de uma maneira tão casual. Sob condições normais não teria alguém como eu por perto quando encontra uma aberração. E, embora seja uma coisa tão simples e de bom senso dizer que é fora do meu caráter fazê-lo, não acho muito admirável de sua parte enviar uma bela jovem para um prédio mais ou menos... Abandonado onde um homem suspeito está acampado.”

“Oh, então percebe que é suspeito e que mora em um prédio mais ou menos abandonado...”

Contudo — tinha que admitir, Oshino estava certo. Absolutamente certo. Senjougahara concordou em ir de boa vontade ─ praticamente se ofereceu— que falhei em ser atencioso a esse ponto.

“Não é como se você fosse fazer alguma coisa com ela.”

“Ainda que aprecio a confiança que depositou em mim, temos que traçar limites. É por esse motivo que temos regras. Deixe-as escapar de suas mãos e logo se encontrará em uma situação desagradável. Consegue entender? Precisa estabelecer limites que digam, não importa as circunstâncias, isso está fora dos limites. Porque se não o fizer, se verá aos poucos cedendo seu terreno. Com certeza já deve ter ouvido as pessoas dizerem que as regras são feitas para serem quebradas, mas não deveriam ser. São regras. Além do mais, não terá nada a quebrar se não tiver regras em primeiro lugar. Haha, estou começando a soar como a senhorita presidente de classe.”

“Hmm...”

Bem, Oshino estava certo.

Absolutamente certo.

Vou pedir desculpas a Senjougahara mais tarde.

“Araragi, não é como se ela confiasse em mim tanto quanto você confia em mim. Tudo o que ela tem é uma confiança provisória baseada no fato de que você confia em mim — então lembre-se, isso significa que se algo acontecer com a mocinha, à responsabilidade recai direto sobre você. Não que eu fosse fazer alguma coisa, é claro. Não, sério, não vou! Whoa, por favor, largue esse grampeador!”

“...”

Então Senjougahara ainda carregava um desses por aí.

Então, de novo, esse não era o tipo de hábito que se livrava da noite para o dia.

“Ufa... Que surpresa. Acho que mocinha tsundere é uma mocinha tsundere assustadora, hein? Que caso temos aqui. Bem, tudo certo... Eh, sabe, não gosto de telefones, afinal. É tão difícil falar com eles.”

“Difícil? Sério? Sei que algumas pessoas são ruins com tecnologia, mas Oshino, isso já é se passar.”

“Claro, faz parte, contudo é só que enquanto estou aqui falando sério, você pode estar deitado, bebendo um refrigerante e lendo um mangá por aí. Tudo parece tão vazio quando penso dessa forma.”

“Hm... Nunca soube que você era tão sensível.”

Ao que parece, as pessoas que se importavam com essas coisas realmente se importavam com elas.

“Tudo bem, Araragi, então eis o que vou fazer. Vou dizer a mocinha como lidar com a Vaca Perdida, e você pode ficar aí.”

“Como lidar? Então, conhecimento de segunda mão é tudo o que vamos precisar aqui?”

“Se vai colocar dessa forma, a própria Vaca Perdida é tradição oral.”

“Não é ao que quero chegar — hm, não precisamos de algum tipo de cerimônia como fizemos para Senjougahara?”

“Não. O padrão aqui é o mesmo, no entanto esse caracol não é tão difícil de lidar quanto aquele caranguejo. Afinal, não é um deus. É apenas um monstro, por assim dizer. E não como um ghoul ou um goblin. É algo como um fantasma.”

“Um fantasma?”

Nesse caso, não vi muita diferença entre deuses, ghouls, goblins e fantasmas. Porém, era com Oshino que estava falando. Sabia que as diferenças entre cada um eram importantes.

Ainda — um fantasma.

“Fantasmas também são uma espécie de yokai. A Vaca Perdida em si não é exclusiva de nenhuma região, ela aparece em todo o Japão. Uma aberração que foi transmitida em todos os cantos do país. Não é muito conhecida, e seu nome muda aqui e ali, contudo começou como um caracol. Hmm, e mais uma coisa, Araragi. Hachikuji é na verdade um termo que originalmente se referia a templos que ficam em bosques de bambu. O ‘ji’ significa templo, é claro, mas o ‘hachi-ku’ não são os números oito e nove com os quais costumamos escrever. O correto é que deriva da palavra para bambu preto. Sabe que existem dois tipos principais no Japão, não sabe? Bambu preto e bambu de carapaça de tartaruga. De todo modo, isso foi alterado para os caracteres de ‘oito’ e ‘nove’ como, bem, apenas um jogo de palavras. Sabe sobre a peregrinação de oitenta e oito templos em Shikoku, ou a peregrinação de trinta e três templos na região oeste?”

“Ah... Claro, até eu já ouvi falar.”

Pode-se ouvir sobre isso o tempo todo.

“Ok, então esse é o tipo de coisa que até você já ouviu falar — com certeza, acho que seria. Bom, existem muitas peregrinações semelhantes, entretanto nem todas tão famosas. E uma delas é uma peregrinação ‘Hachikuji’ ─ com uma lista de oitenta e nove templos. Também tem a ver com bosques de bambu como falei, porém em termos de coisas que estão sendo colocadas, eles queriam uma peregrinação com mais um templo do os oitenta e oito de Shikoku.”

“Huh...”

Então tinha algo a ver com Shikoku, a menor das quatro principais ilhas do Japão?

No entanto, Hanekawa havia dito algo sobre a região oeste de Kansai da ilha principal.

“Sim.” disse Oshino. “Porque esses oitenta e nove templos estão principalmente em Kansai — nesse sentido, poderia dizer que está mais perto da peregrinação dos trinta e três templos do que dos oitenta e oito. Contudo ─ e aqui chegamos ao ponto crucial da história, onde a tragédia começa — também pode-se ler ao acaso os caracteres de ‘oito’ e ‘nove’ juntos não como ‘hachiku’, se não como ‘yaku’, infortúnio. Coloque esse título em seu templo e terá adicionado um prefixo negativo. Não foi uma boa ideia.”

“... Agora que mencionou, não consegui ler essa parte do seu nome e pensei que poderia ser ‘yaku’, porém... Não é como se quisessem dizer isso, certo?”

“Não, mas sem querer, deram esse sentido. Palavras são coisas assustadoras. Sem qualquer intenção envolvida, as coisas podem sair de uma certa maneira. A linguagem está viva, embora as pessoas digam isso muito casualmente hoje em dia. De qualquer forma, a interpretação se espalhou e não demorou muito para que os oitenta e nove templos deixassem de ser agrupados. A maioria deles fechou durante o movimento anti-budista nos anos 1800, de qualquer maneira, e apenas cerca de um quarto ainda existe hoje — além do mais, quase todos escondem o fato de terem feito parte daqueles oitenta e nove templos para começar.”

“...”

Suas explicações eram tão improvisadas, o que as tornava fáceis de seguir, contudo também tinha a sensação de que repeti-las para qualquer pessoa me exporia ao risco de sujar meu rosto com lama.

Esse era o tipo de conhecimento que não dava um único resultado quando pesquisava na internet, e eu tive problemas para decidir quanto deveria engolir em primeiro lugar.

Havia de por um grão de sal.

“E então, se olhar para o nome Mayoi Hachikuji com esse pano de fundo — essa história — parece, bom, um pouco significativo demais para ser cômodo. Os nomes estão conectados — sabe? Você encontra esse tipo de coisa na literatura clássica, como em O Grande Espelho, que deve ter surgido na aula. Ainda assim, não tenho certeza sobre o nome dela. Mayoi — ‘perdido’? Parece óbvio demais. Se alguma coisa aqui é fácil ou simplista, seria isso. Quem o inventou não parece ter um talento especial para nomes. Hm, teria sido bom se sentisse isso desde o início, Araragi.”

“Bom? Que? E também─”

Hachikuji estava sentada no banco, esperando pacientemente que eu terminasse a ligação. Não parecia que estava me ouvindo — contudo tinha que estar. A conversa era sobre ela, como não poderia?

“Não foi até pouco tempo que seu sobrenome se tornou Hachikuji. Era Tsunade antes.”

“Tsuna? Hã, de fato agora... Jogue essa torção na mistura — e o fio começa a ficar emaranhado. Desgastado, poderia dizer. Isso é um pouco demais, mesmo para o destino. Como se houvesse um homem atrás das cortinas puxando as cordas para que todos os dominós caíssem. Hachikuji e Tsunade... Entendo, e então Mayoi. Então esse foi o ponto importante aqui. Ma-yoi — ‘crepúsculo verdadeiro’. Phew ─ me dá um tempo.”

Que ridículo, Oshino murmurou.

Disse como se fosse para si mesmo — no entanto, era dirigido para mim.

“Quer saber, Araragi, não importa. Esta é uma cidade muito interessante, devo dizer. Um cadinho heterogêneo. Tenho a sensação de que não poderei sair por um tempo... Bem, vou contar os detalhes à mocinha tsundere, para que os pegue dela.”

“Hm? O-Ok.”

“Isso é—” Oshino concluiu em um tom tão sarcástico que eu praticamente podia ver seu sorriso. “Se tiver sorte o suficiente para ela sair e te contar.”

E então — a chamada cortou.

Oshino tinha uma regra sobre nunca dizer adeus.

“... Então, Hachikuji. Parece que há um jeito.”

“Não soou como se houvesse, seguindo sua conversa.”

Então estava ouvindo.

Bom, Hachikuji não pode ter descoberto as partes importantes se apenas tivesse ouvido o meu lado.

“De qualquer forma, senhor Araragi.”

“O que foi?”

“Você percebe que estou com fome, certo?”

“...”

Ok, e daí?

Não o diga, pensei, como se estivesse gentilmente tentando me avisar que esqueci de cumprir uma obrigação importante.

Porém, agora que Hachikuji mencionou, tinha esquecido graças a esse negócio de caracol que eu não tinha visto o almoço de Hachikuji. Senjougahara também... No seu caso, porém, Senjougahara pode ter ido comer em algum lugar sozinha antes de ir para a casa de Oshino.

Hm, não tinha me ocorrido.

Porque meu corpo não exigia mais que comesse muito.

“Ok, então vamos a algum lugar para comer assim que Senjougahara voltar. Na verdade, só tem casas por aqui — contudo você pode ir a lugares desde que não seja a casa da sua mãe, certo?”

“Sim. Posso.”

“Certo, vamos perguntar a Senjougahara ─ ela deve saber o restaurante mais próximo. Então, há algum tipo de comida que você gosta?”

“Gosto de qualquer coisa desde que seja comida.”

“Hmm.”

“Sua mão também estava deliciosa, senhor Araragi.”

“Minha mão não é comida.”

“Oh, não precisa ser tão modesto. Estava delicioso de verdade.”

“...”

É provável que Hachikuji ingeriu um pouco da minha carne e sangue, então não era brincadeira.

A garota canibal.

“A propósito, Hachikuji. É verdade que já foi para a casa da sua mãe antes?”

“Sim. Eu não conto mentiras.”

“Entendo...”

No entanto, ainda se perdeu no caminho — e não porque fazia tanto tempo. Ela se deparou com o caracol, então, mesmo se tivesse estado antes — mas espere, por que Hachikuji encontrou aquele caracol em primeiro lugar?

Uma razão.

Havia uma razão pela qual fui atacado por um vampiro.

Havia uma para Hanekawa e Senjougahara também.

Assim ─ tinha que haver uma razão para Hachikuji também.

“... Ei. Sei que esta é uma maneira simplória de olhar para tudo, contudo não é como se seu objetivo fosse chegar onde está indo, é apenas encontrar sua mãe, certo?”

“É muito insensível da sua parte dizer ‘apenas’, mas sim.”

“Nesse caso, sua mãe não pode vir te encontrar? Até que não possa ir à casa da senhorita Tsunade, não é como se sua mãe estivesse trancada lá dentro. Tenho certeza de que os pais têm o direito de ver seus filhos mesmo depois de se divorciarem─” eu não era especialista na área. “Ou é o que ouvi.”

“Isso é impossível. Na verdade, é inútil.” respondeu Hachikuji de uma vez. “Teria o feito desde o início, se pudesse. Porém, não posso. Não posso nem ligar para minha mãe.”

“Hmph...”

“A única coisa que posso fazer é visitá-la dessa forma. Embora sabendo que nunca chegarei lá.”

Hachikuji estava dizendo de uma maneira indireta, mas isso significava que tinha algo a ver com sua situação familiar? Parecia complicado. Por outro lado, eu deveria ter adivinhado pelo fato de que, mesmo no Dia das Mães, ela precisou vir sozinha até uma cidade desconhecida. Entretanto tinha que haver um método mais lógico... Por exemplo, Senjougahara poderia ir na nossa frente e chegar primeiro na casa da senhorita Tsunade... Não, uma estratégia direta como essa não funcionaria em uma aberração. Não nos deixaria chegar onde Hachikuji estava tentando ir, assim como fez com que o telefone de Senjougahara ficasse fora de serviço quando tentou usar seu GPS. Consegui falar com Oshino no meu telefone porque ele e eu estávamos bem.

Aberrações — são o próprio mundo.

Ao contrário dos seres vivos — estão conectados ao mundo.

A ciência por si só não pode esclarecer as aberrações. Assim como as pessoas nunca deixarão de ser atacadas por vampiros.

Pode não haver escuridão no mundo que não possa ser iluminada.

No entanto, a própria escuridão nunca desaparecerá.

O que significava que nossa única opção era esperar a chegada de Senjougahara.

“Uma aberração...” comentei. “Embora eu não saiba muito sobre os detalhes, para ser honesto. E você, Hachikuji? Sabe muito sobre yokais, monstros e esse tipo de coisa?”

“... Hmm?” ela fez uma pausa estranha antes de responder. “Ah, não, de jeito nenhum. Apenas o noppera-bo, acho.”

“Oh, o monstro sem rosto de Lafcadio Hearn...”

“Sim, eu realmente poderia afundar meus dentes nessa história.”

“Bom para você.”

Tinha certeza que ela podia.

Por outro lado, uma vez mais, praticamente qualquer pessoa no Japão já ouviu isso.

“Assustador, não?”

“Sim. Contudo — não conheço nenhum outro.”

“Certo, faz sentido.”

Um yokai, pode ter sido.

Mas, meu caso, o vampiro — não, não importava.

Eles eram todos semelhantes para os humanos.

Era um problema conceitual.

A parte mais profunda do problema é─

“Hachikuji — não sei os detalhes, mas você está realmente desesperada para ver sua mãe? Sendo sincero, não entendo por que está disposto a ir tão longe.”

“Acho normal uma criança querer ver a mãe... Estou errada?”

“Não, claro que é verdade, porém...”

Claro que é verdade. No entanto.

Se houvesse algum motivo envolvido que não fosse normal — então pensei que poderíamos descobrir por que Hachikuji havia encontrado o caracol. Entretanto não parecia haver nada definido o suficiente para ser chamado de razão. Era simples, impulsivo — um princípio semelhante ao instinto não linguístico no âmbito do desejo.

“Senhor Araragi, está mora na mesma casa que seus pais, certo? Por isso não entende. Não pensa em como é sentir falta de algo enquanto está satisfeito. As pessoas querem o que lhes falta. Se tivesse que viver longe de seus pais, tenho certeza de que gostaria de ir vê-los também.”

“É assim?”

É assim que é — eu suponho.

Um problema agradável de se ter.

─Sabe, Koyomi, é por isso...

“Se não se importa que diga, senhor Araragi, do meu ponto de vista, estou com ciúmes do simples fato de ter os dois pais.”

“Oh...”

“Ciumenta como um goblin de olhos azuis.”

“Ah... Sabe que está errado de ambos os lados.”

O que Senjougahara teria dito nessa situação? Se ela tivesse ouvido sobre os problemas de Hachikuji, então — não, é provável que não tivesse dito nada. Senjougahara provavelmente nem teria se comparado a Hachikuji como eu estava fazendo.

Mesmo que estivesse em uma posição muito mais próxima a Hachikuji do que eu.

Um caranguejo e um caracol.

Organismos que viviam à beira da água — era assim?

“A julgar por suas palavras, senhor Araragi, tenho a impressão de que não gosta muito de seus pais. Esse é o caso?”

“Ah, não, não é caso. É só─”

Antes de continuar, passou pela minha cabeça o pensamento de que talvez não fosse algo que deveria contar a uma criança. Então, uma vez mais, eu já tinha investigado as circunstâncias de Hachikuji, então ainda que ela fosse uma criança, não parecia certo apenas parar.

“Sabe, eu costumava ser um garoto muito bom.” falei.

“Não é bom mentir.”

“Não estou mentindo...”

“Entendo. Então digamos que não. Uma pequena mentira nunca fez mal a ninguém.”

“Então você é da aldeia dos mentirosos.”

“Sou da aldeia dos contadores da verdade.”

“É assim. De qualquer forma, embora nunca tenha falado do jeito irritantemente educado que você fala, eu era um aluno muito bom e um atleta muito bom, e nunca me meti em muitos problemas. Além do mais, nunca me rebelei contra meus pais sem uma boa razão, como os outros meninos ao meu redor. Sentia-me grato por eles estarem me criando.”

“Ah, que louvável.”

“Tenho duas irmãzinhas também, e elas são em essência a mesma coisa. As coisas estavam ótimas em casa, contudo exagerei quando estava tentando entrar no ensino médio.”

“Exagerou?”

“...”

Fiquei impressionado com a facilidade com que Hachikuji fez nossa conversa fluir.

Era isso que chamavam de ser um bom ouvinte?

“Fui e me inscrevi em uma escola para alunos muito melhores do que eu — e consegui entrar.”

“Isso é uma coisa maravilhosa. Parabéns.”

“Não, não foi. Se me candidatasse a uma escola que não era para mim e não entrasse, teria sido tudo, estaria tudo bem — no entanto, como resultado, não consegui acompanhar. Não acreditaria no quão ruim fica quando você é um fracasso em uma escola para crianças inteligentes. Não só isso, todo mundo ao meu redor é super sério... Pessoas como Senjougahara e eu somos a exceção, não a regra.”

Quanto a Tsubasa Hanekawa, aquela personificação da seriedade, era uma exceção apenas por se preocupar em lidar com um aluno como eu. Ela tinha o que era preciso para compensar isso, simplesmente.

“E quando esse evento ocorreu, fui de um bom garoto para o contrário, e tão difícil quanto. Não é como se houvesse algo específico que aconteceu comigo, no entanto. Meu pai e minha mãe são os mesmos de sempre, e estou agindo da mesma forma em casa, ou pelo menos sinto que estou, mas há apenas esse sentimento estranho que não consigo descrever. Ele sai não importa o que faça, e permanece. Então todos nós acabamos nos preocupando demais uns com os outros, e─”

Minhas irmãs mais novas.

Minhas duas irmãs.

─ Sabe, Koyomi, é por isso─

“É por essa razão que nunca cresço, me disseram. Vou continuar criança e nunca me tornar um adulto ─ me disseram.”

“Então você é uma criança?” perguntou Hachikuji. “Sendo assim é igual a mim.”

“... Acho que não. O que querem dizer é apenas que o seu corpo está crescendo, sem ser desenvolvido devidamente.”

“Que coisa rude para dizer a uma dama, senhor Araragi. Deve saber que sou uma dos alunos mais desenvolvidos da minha classe.”

“É verdade, seu peito era bastante impressionante.”

“O que? Você tocou?! Quando?”

Os olhos de Hachikuji se transformaram em pires no seu rosto atônito.

“Hum... Quando estávamos brigando?”

“Isso é ainda mais chocante do que o fato de ter me golpeado!”

Hachikuji segurou sua cabeça.

Ela parecia chocada de verdade.

“Espere... Não é como se tivesse feito de propósito, e foi apenas por uma fração de segundo de qualquer maneira.”

“Uma fração de segundo? Sério? De verdade?”

“Sim. Só toquei nele umas três vezes.”

“Não é apenas mais do que uma fração de segundo, qualquer vez após a primeira deve ter sido intencional!”

“Está me acusando de algo que não fiz. Foi um acidente lamentável.”

“Tive meu primeiro toque roubado de mim!”

“Seu primeiro toque?”

Era disso que as crianças de hoje em dia falavam?

Os alunos do ensino fundamental de fato amadurecem rápido.

“Pensar que meu primeiro toque veio antes do meu primeiro beijo... Que garota travessa Mayoi Hachikuji se tornou!”

“Ah sim, Hachikuji. Agora que mencionou, percebo que esqueci de lhe dar a mesada que prometi.”

“Por favor, que momento escolheu para trazer isso à tona!”

Em seguida, com a cabeça ainda nas mãos, Hachikuji começou a se contorcer como se uma vespa tivesse entrado em suas roupas.

Pobrezinha.

“Vamos, não se deixe abater tanto. É melhor do que seu pai dar seu primeiro beijo, sabe?”

“Soa como um evento muito normal!”

“Ok, então é melhor do que seu reflexo no espelho ser seu primeiro beijo, certo?”

“Nenhuma garota em nosso mundo teve tal evento com elas!”

Sim.

Provavelmente poderia incluir garotas no próximo mundo.

“Grrrah!”

Justo quando pensei que Hachikuji estava tirando as mãos de sua cabeça, ela se moveu em seguida para tentar morder minha garganta. Foi onde uma vampira me mordeu durante as férias de verão, então um calafrio percorreu minha espinha. De alguma maneira, consegui colocar minhas mãos nos ombros de Hachikuji e empurrá-la para trás, evitando qualquer problema. “Grrrrrrrrr!” Hachikuji rangeu os dentes de forma ameaçadora. Lembrei-me de que havia uma inimiga em algum videogame antigo como ela (parecia uma bola de ferro com uma corrente) enquanto a acalmava.

“V-Vamos, vamos. Quem é uma boa garota?”

“Por favor, não me trate como um cachorro! Ou esta é sua maneira indireta de me comparar a uma cadela no cio?”

“Bom, se tivesse que compará-la com alguma coisa, sendo sincero diria que está agindo mais como um raivoso...”

Contudo, tinha um belo conjunto de dentes. Hachikuji mordeu minha mão até o osso, porém não lascou ou perdeu um único dente, nem de bebê nem de adulto. Não só eram perfeitamente alinhados, como eram bastante duráveis.

“Sabe, senhor Araragi, já está agindo de forma muito descarada há algum tempo! Não vejo um pingo de arrependimento no seu rosto! Não há algo que deveria dizer depois de ter tocado o peito delicado de uma jovem?”

“... Obrigado?”

“Não! Estou exigindo um pedido de desculpas seu!”

“Você diz isso, mas aconteceu no meio da nossa briga. Como poderia ser algo menos que um ato de Deus? Quase creio que deveria estar feliz que foi apenas seu peito. E como Hanekawa disse antes, você é a errada por morder alguém com uma força tão ridícula quanto o fez.”

“Isso não é sobre quem é o culpado! Mesmo que eu esteja, estou em um estado de choque incrível! Não pode se chamar de adulto se não se desculpar com uma garota em estado de choque, mesmo que não seja sua culpa!”

“Homens adultos não pedem desculpas.” respondi em uma voz profunda. “Isso rebaixa sua alma.”

“Que legal!”

“Ou está dizendo que nunca vai me perdoar a menos que te peça desculpas? Dizer que perdoará alguém se ele se desculpar contigo... É como admitir que não pode ser magnânimo com pessoas que não se humilharam.”

“Por que me tornei naquela a ser criticada aqui? Só um ladrão poderia ser tão ousado, como se costuma dizer... Agora você me deixou louca de verdade... Posso ser tolerante, porém isso é como virar minhas duas bochechas do avesso!”

“Seria muito tolerante da sua parte...”

“Na verdade, não vou te perdoar mesmo que peça desculpas!”

“Qual é o grande problema, afinal? Só vai ser desperdiçado de outra forma.”

“E agora está totalmente desafiador, senhor Araragi?! Essa não é a questão aqui! E eu apenas comecei a puberdade, então não vai ser desperdiçado!”

“Sabe, as pessoas dizem que ficam maiores se as massagear.”

“Só os homens acreditam nessa superstição!”

“Tornou-se um mundo triste e chato lá fora...”

“Você tem usado essa superstição como desculpa para apertar os seios das mulheres o tempo todo? Que asqueroso!”

“Por desgraça, nunca tive a chance.”

“Então é só uma misero virgem!”

“...”

Essa garota do ensino fundamental conhecia essa expressão?

Os alunos do ensino fundamental não estavam amadurecendo rápido? Estavam acabando.

Não estava vivendo em um mundo chato, mas em um horrível...

Então, de novo, poderia fingir lamentar o que estava acontecendo no mundo hoje o quanto eu quisesse, porém pensando bem, absorvi isso quando estava na quinta série também. É assim que a ansiedade sobre as gerações mais jovens tende a funcionar.

“Grrr! Grarrr! Grarrarrr!”

“Ahh, e-ei, cuidado! Sério, é perigoso!”

“Um virgem me tocou! Estou manchada!”

“Como essa parte muda alguma coisa?”

“Queria que meu primeiro fosse alguém experiente e tranquilo! Porém, foi você em vez disso, Senhor Araragi! Meus sonhos foram esmagados!”

“Que tipo de fantasia exagerada é essa? Está fazendo com que qualquer sentimento de culpa que tenha desapareça, sabe?”

“Graarr! Grrah, graaah, grr!”

“Ah, fique quieta! Está parecendo mesmo um cão raivoso! Sua mulher barulhenta, mordedora e má! Tudo bem então! Vou esfregá-los tanto que vai esquecer tudo sobre seus primeiros beijos!”

“Eeek!”

Lá estava ele, um garoto do ensino médio que estava enlouquecendo na frente de uma garota do ensino fundamental, que estava ameaçando assediá-la à força, que gostaria de acreditar que não era eu.

Mas era...



Notas:
1. Tsundere é um termo japonês para uma personalidade que é inicialmente agressiva, que alterna com outra mais amável. Tsundere é uma combinação de duas palavras, tsuntsun e deredere. Tsuntsun é a onomatopeia para “frio, brusco”, e deredere significa “tornar-se amável/amoroso”.
2. Se denomina contrafactual a todo acontecimento ou situação que não há sucedido no universo atualmente observável pela investigação humana, porém que poderia haver ocorrido.

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