Capítulo Único
Yoshiko viu seu marido sair para o trabalho no Ministério das Relações Exteriores pouco depois das dez horas. Então, agora que dispunha de seu próprio tempo com inteira liberdade, ela se trancou no escritório que dividia com o marido para retomar o trabalho na história que deveria enviar para a edição especial de verão da revista K.
Ela era uma escritora versátil com um grande talento literário e um estilo fluido. Até a popularidade de seu marido como diplomata se via ofuscada pela sua como autora.
Seus leitores a abrumavam diariamente com cartas elogiando seus trabalhos. De fato, nesta mesma manhã, assim que se sentou diante de sua mesa, começou em seguida a folhear as inúmeras cartas que o correio matinal trouxera. No conteúdo, sem exceção, todos seguiam o mesmo padrão, mas estimulada por seu profundo senso feminino de consideração, sempre lia cada correspondência que lhe era endereçada, fosse monótona ou interessante.
Em primeiro lugar, se dedicou as cartas curtas e simples, que não tomavam muito tempo. Por último, chegou a um que era um volumoso maço de páginas manuscritas. Embora não tenha recebido nenhum aviso prévio de que um manuscrito deveria ser enviado a ela, ainda assim não era incomum que recebesse os esforços de escritores amadores em busca de suas valiosas críticas. Na maioria dos casos, eram tentativas prolixas, inúteis e incitantes de bocejos de escrever. No entanto, agora abriu o envelope em sua mão e tirou as numerosas folhas escritas com muito cuidado.
Como havia previsto, era um manuscrito, cuidadosamente encadernado. Contudo de alguma forma, por alguma razão desconhecida, não havia título nem assinatura. O manuscrito começou de forma abrupta:
“Cara Senhora: ...”
Refletiu por alguns instantes. Talvez, afinal, fosse apenas uma carta. Sem que se desse conta, seus olhos se apressaram para ler duas ou três linhas, e então pouco a pouco foi absorta em uma narrativa estranhamente truculenta. Com a curiosidade despertada a ponto de explodir e estimulada por alguma força magnética desconhecida, continuou a ler:
“Cara Senhora: espero que perdoe esta carta presunçosa de um completo estranho. O que estou prestes a escrever, senhora, pode chocá-la infinitamente. No entanto, estou determinado a expor diante de você uma confissão — minha própria — e descrever em detalhes o terrível crime que cometi.”
“Por muitos meses eu me escondi da luz da civilização, escondido, por assim dizer, como o próprio diabo. Em todo este vasto mundo ninguém sabe dos meus feitos. No entanto, há pouco tempo, uma estranha mudança ocorreu em minha mente consciente, e já não suporto mais guardar meu segredo. Tenho que confessar!”
“Tudo o que escrevi até agora deve de fato ter despertado apenas perplexidade em sua mente. Todavia, peço-lhe que tenha paciência comigo e tenha a gentileza de ler meu relato até o amargo fim, porque se o fizer, entenderá completamente o estranho funcionamento da minha mente e a razão pela qual é para você em particular que eu faço essa confissão.”
“O certo é que estou sem saber por onde começar, pois os fatos que estou expondo são todos tão grotescamente fora do comum. Sendo franco, as palavras me faltam, pois as palavras humanas parecem inadequadas para esboçar todos os detalhes. Em qualquer caso, tentarei expor os eventos em ordem cronológica, assim como eles aconteceram.”
“Primeiro, deixe-me explicar que sou feio além da descrição. Por favor, tenha este fato em consideração; caso contrário, temo que, se e quando você conceder meu pedido final e me vir, possa ficar chocada e horrorizada ao ver meu rosto — depois de tantos meses de vida insalubre. Entretanto, imploro que acredite em mim quando afirmo que, apesar da extrema feiura de meu rosto, dentro do meu coração sempre ardeu uma paixão pura e avassaladora!”
“Em seguida, deixe-me explicar que sou um humilde trabalhador. Se tivesse nascido em uma família abastada, poderia ter encontrado o poder, com dinheiro, para aliviar a tortura de minha alma provocada por minha feiura. Ou talvez, se tivesse sido dotado pela natureza de talentos artísticos, pudesse novamente esquecer meu semblante bestial e buscar consolo na música ou na poesia. Porém, não abençoado com tais talentos, e sendo a infeliz criatura que sou, não tive nenhum ofício a que recorrer, exceto o de um humilde marceneiro. E terminei me especializando na elaboração de vários tipos de cadeiras.”
“Nesse campo em particular, tive bastante sucesso, a tal ponto que ganhei a reputação de ser capaz de satisfazer qualquer tipo de pedido, por mais complicado que fosse. Por esta razão, nos círculos da marcenaria, passei a gozar do privilégio especial de aceitar apenas encomendas de cadeiras de luxo, com pedidos complicados de entalhes exclusivos, novos designs para o encosto e apoios de braços, estofamento extravagante para as almofadas e assento — tudo trabalho de natureza que exigia mãos habilidosas e paciente teste e estudo, trabalho que um artesão amador dificilmente poderia realizar.”
“A recompensa por todas as minhas dores, no entanto, estava no puro prazer de criar. Você pode até me considerar um fanfarrão ao ouvir isso, mas tudo me pareceu o mesmo tipo de emoção que um verdadeiro artista sente ao criar uma obra-prima.”
“Assim que uma cadeira ficava pronta, era meu costume me sentar nela para ver como se sentia e, apesar da vida sombria de minha humilde profissão, nesses momentos eu experimentava uma emoção indescritível. Dando rédea solta à minha imaginação, costumava imaginar os tipos de pessoas que acabariam se acostando na cadeira, sem dúvida pessoas da nobreza, morando em residências palacianas, com pinturas requintadas e inestimáveis penduradas nas paredes, lustres de cristal brilhantes pendurados no teto, tapetes caros no chão, etc.; e uma cadeira em particular, que imaginei de pé diante de uma mesa de mogno, me deu a visão de flores perfumadas ocidentais perfumando o ar com uma fragrância doce. Envolto nessas estranhas visões, passei a sentir que também pertencia a tais ambientes, e sentia um prazer sem fim ao me imaginar como uma figura influente na sociedade.”
“Pensamentos tolos como esses continuavam vindo a mim em rápida sucessão. Imagine, senhora, a figura patética que fiz, sentado confortavelmente em uma luxuosa cadeira de minha autoria e fingindo que estava com a garota dos meus sonhos em meus braços. Como sempre acontecia, contudo, a tagarelice barulhenta das mulheres grosseiras da vizinhança e os gritos histéricos, balbucios e lamentos de seus filhos dissiparam tão cedo todos os meus belos sonhos; uma vez mais a realidade sombria ergueu sua cabeça feia diante dos meus olhos.”
“De volta à terra, encontrei-me de novo uma criatura miserável, um verme rastejante indefeso! E quanto à minha amada, aquela mulher angelical, também desapareceu como uma névoa. Amaldiçoei-me por minha loucura! Ora, mesmo as mulheres sujas que cuidavam de bebês nas ruas nem se incomodavam em olhar em minha direção. Toda vez que eu completava uma cadeira nova, era assombrado por sentimentos de desespero total. E com o passar dos meses, minha miséria acumulada foi o suficiente para me sufocar.”
“Um dia fui encarregado de fazer uma enorme poltrona de couro, de um tipo que nunca havia concebido, para um hotel estrangeiro localizado em Yokohama. Na verdade, esse tipo específico de cadeira deveria ter sido importada do exterior, porém por persuasão de meu patrão, que admirava minha habilidade como fabricante de cadeiras, recebi a encomenda.”
“Para fazer jus à minha reputação de artesão talentoso, comecei a me dedicar com seriedade à minha nova missão. Aos poucos, fiquei tão absorto em meus trabalhos que às vezes até esquecia de comer e dormir. A verdade é que, não seria exagero afirmar que o trabalho se tornou minha própria vida, cada fibra da madeira que usei parecia ligada ao meu coração e alma.”
“Por fim, quando a poltrona ficou pronta, experimentei uma satisfação até então desconhecida, pois acreditei com toda franqueza que havia realizado um trabalho que superava incomensuravelmente todas as minhas outras criações. Como antes, descansei o peso do meu corpo nas quatro pernas que sustentavam a cadeira, primeiro arrastando-a para um local ensolarado na varanda da minha oficina. Que conforto! Que luxo supremo! Nem muito duras nem muito moles, as molas pareciam combinar com a almofada com uma precisão incrível. E quanto ao couro, que toque sedutor! Esta poltrona não só suportava a pessoa que nela se sentava, como também parecia abraçar e acalmá-la. Além disso, também notei o ângulo de reclinação perfeito do apoio para as costas, o delicado inchaço inchado dos apoios de braço, a simetria perfeita de cada uma das partes componentes. Sem dúvida nenhum produto poderia ter expressado com maior eloquência a definição da palavra ‘conforto’.”
“Deixei meu corpo se afundar na poltrona e, acariciando os dois apoios de braço com as mãos, ofeguei com satisfação e prazer genuínos.”
“Mais uma vez minha imaginação começou a fazer seus truques habituais, despertando estranhas fantasias em minha mente. A cena que imaginei surgiu diante de meus olhos com tanta nitidez que, por um momento, me perguntei se não estava enlouquecendo. Enquanto estava nesta condição mental, uma ideia estranha de repente me assaltou. Não me cabe dúvidas, era o sussurro do próprio diabo. Embora fosse uma ideia sinistra, me atraiu com um poderoso magnetismo ao qual achei impossível resistir.”
“A princípio, é evidente que a ideia encontrou sua semente em meu anseio secreto de ficar com a cadeira para mim. Percebendo, no entanto, que isso estava fora de questão, desejei acompanhar a cadeira aonde quer que ela fosse. Lenta, mas firmemente, enquanto eu continuava a alimentar essa ideia fantástica, minha mente caiu nas garras de uma tentação quase aterrorizante. Imagine, senhora, eu decidi de fato levar a cabo aquele esquema terrível até o fim, aconteça o que acontecer!”
“Rapidamente desmontei a poltrona e a montei de novo para atender aos meus estranhos propósitos. Como era uma poltrona grande, com o assento coberto até o nível do chão, e, além disso, como o encosto e os apoios de braços eram todos grandes em dimensões, logo consegui fazer a cavidade interna grande o suficiente para acomodar um homem sem qualquer perigo de exposição. Claro que o meu trabalho foi dificultado pela grande quantidade de estrutura de madeira e as molas no interior, porém com a minha habilidade habitual de artesão remodelei a cadeira para que os joelhos pudessem ser colocados abaixo do assento, o tronco e a cabeça para dentro do encosto. Sentado assim na cavidade, podia-se ficar perfeitamente escondido.”
“Como esse tipo de artesanato veio como uma segunda natureza para mim, também adicionei alguns toques finais, como acústica aprimorada para capturar ruídos externos e, claro, um olho mágico recortado no couro, contudo imperceptível. Além do mais, também providenciei espaço de armazenamento para suprimentos, onde coloquei algumas caixas de biscoitos e uma garrafa de água. Por outra necessidade da natureza, também inseri um grande saco de borracha e, quando terminei de equipar o interior da cadeira com essas e outras facilidades únicas, ela se tornou um lugar bastante habitável, mas não por mais de dois ou três dias seguidos.”
“Completando minha estranha tarefa, me despi até a cintura e me enterrei dentro da cadeira. Imagine a sensação estranha que experimentei, senhora! De fato, senti que tinha me enterrado em uma cova solitária. Após cuidadosa reflexão, percebi que era de fato uma sepultura. Assim que entrei na cadeira fui engolido pela escuridão completa, e para todos os outros no mundo eu não existia mais!”
“Logo chegou um mensageiro do negociante para receber a poltrona, trazendo consigo um grande carrinho de mão. Meu aprendiz, a única pessoa com quem morava, desconhecia o que havia acontecido. Vi-o conversando com o mensageiro.”
“Enquanto minha cadeira estava sendo carregada no carrinho de mão, um dos funcionários exclamou:”
— Meu Deus! Como pesa esta cadeira! Deve pesar uma tonelada.
“Quando o ouvi, meu coração saltou para minha boca. No entanto, como a cadeira em si era obviamente pesada, nenhuma suspeita foi levantada, e em pouco tempo pude sentir a vibração do carrinho de mão chacoalhando sendo puxado pelas ruas. É claro que minha preocupação fora constante, todavia por fim, naquela mesma tarde, a poltrona em que estava escondido foi colocada com um baque no chão de um quarto do hotel. Mais tarde descobri que não era uma sala comum, e sim o saguão.”
“Agora, como já deve ter adivinhado há muito tempo, meu principal motivo nessa aventura louca era deixar meu esconderijo na cadeira quando não houvesse ninguém por perto, vagar pelo hotel e começar a roubar. Quem sonharia que um homem estava escondido dentro de uma cadeira? Como uma sombra fugaz, poderia vasculhar todos os cômodos à vontade e, quando qualquer alarme soasse, estaria são e salvo dentro do meu santuário, prendendo a respiração e observando as palhaçadas ridículas das pessoas do lado de fora procurando por mim.”
“Presumo que já tenha ouvido falar do caranguejo eremita que é encontrado com frequência nas rochas costeiras. Com a forma de uma grande aranha, este caranguejo rasteja furtivo e, ao ouvir de passos, recua o mais rápido possível para uma concha vazia, onde se esconde, com as patas dianteiras horríveis e peludas meio expostas, olhando furtivamente em volta. Eu era como esse monstro-caranguejo esquisito. Entretanto em vez de uma concha, gozava de uma proteção melhor — uma cadeira que me esconderia com muito mais eficácia.”
“Como pode imaginar, meu plano era tão único e original, tão inesperado, que ninguém nunca foi mais sábio. Em consequência, minha aventura resultou em um total êxito. No terceiro dia após a minha chegada ao hotel, descobri que já havia feito uma boa viagem.”
“Imagine a emoção e o entusiasmo de ser capaz de roubar tudo que satisfizesse meu coração, para não mencionar a diversão que senti ao observar as pessoas correndo de um lado para o outro a apenas alguns centímetros de distância sob meu nariz, gritando: ‘O ladrão foi por aqui!’ e: ‘Ele foi para lá!’. Para infelicidade, não disponho do tempo para descrever todas as minhas experiências em detalhes. Em seu lugar, permita-me prosseguir com minha narrativa e contá-la uma fonte muito maior de estranha alegria que consegui descobrir — na verdade, o que estou prestes a relatar agora é o ponto chave desta carta.”
“Antes, devo pedir-lhe que volte seus pensamentos para o momento em que minha cadeira — e eu — fomos colocados no saguão do hotel. Assim que a cadeira fora colocada no chão, todos os vários membros da equipe se revezaram testando o assento. Passada a novidade, todos saíram da sala, e então reinou o silêncio, absoluto e completo. No entanto, não tive coragem de deixar meu santuário, pois comecei a imaginar mil perigos. Pelo que pareceram séculos, mantive meus ouvidos alertas para o menor som. Depois de um tempo, ouvi passos pesados se aproximando, evidentemente vindos da direção do corredor. No momento seguinte, os pés desconhecidos devem ter começado a pisar em um tapete pesado, pois o som da caminhada se extinguiu por completo.”
“Algum tempo depois, o som de um homem ofegante, sem fôlego, atingiu meus ouvidos. Antes que pudesse prever qual seria o próximo desenvolvimento, um corpo grande e pesado como o de um europeu caiu de joelhos e pareceu saltar duas ou três vezes antes de se acomodar. Com apenas uma fina camada de couro entre o assento de sua calça e meus joelhos, quase podia sentir o calor de seu corpo. Quanto aos seus ombros largos e musculosos, descansavam totalmente contra o meu peito, enquanto seus dois braços pesados estavam depositados por sobre os meus. Podia imaginar esse indivíduo fumando seu charuto, pois o forte aroma veio flutuando até minhas narinas.”
“Imagine-se na minha posição esquisita, senhora, e reflita por um breve momento sobre o estado de coisas tão antinaturais. Quanto a mim, contudo, estava tomado pelo temor, tanto que me agachei no meu esconderijo escuro como se estivesse petrificado, suor frio escorrendo pelas minhas axilas.”
“Começando com esse indivíduo, várias pessoas ‘se sentaram em meus joelhos’ naquele dia, como se esperassem pacientes por sua vez. Ninguém, entretanto, suspeitou, mesmo por um momento fugaz, que a ‘almofada’ macia em que estavam sentados era na verdade carne humana com sangue circulando em suas veias — confinado em um estranho mundo de escuridão.”
“O que havia nesse buraco místico que me fascinava tanto? De alguma forma me senti como um animal vivendo em um mundo novo. E quanto às pessoas que viviam no mundo lá fora, só conseguia distingui-las como pessoas que faziam barulhos estranhos, respiravam pesadamente, falavam, farfalhavam suas roupas e possuíam corpos macios e redondos.”
“Aos poucos, pude começar a distinguir aqueles que se assentavam apenas pelo sentido do tato, e não da visão. Aqueles que eram gordos pareciam grandes águas-vivas, enquanto aqueles que eram muito magros me faziam sentir que como se estivesse sustentando um esqueleto. Outros fatores distintivos consistiam na curva da coluna vertebral, na largura das omoplatas, no comprimento dos braços e na espessura de suas coxas, bem como no contorno de suas nádegas. Pode parecer estranho, mas não falo nada além da verdade quando digo que, embora todas as pessoas possam parecer iguais, existem inúmeros traços distintivos entre todos os homens que podem ser ‘vistos’ apenas pela sensação de seus corpos. De fato, existem tantas diferenças quanto no caso de impressões digitais ou contornos faciais. Essa teoria, é claro, também se aplica aos corpos femininos.”
“No geral, as mulheres são classificadas em duas grandes categorias — as simplórias e as belas. Porém, em meu mundo escuro e confinado dentro da cadeira, os méritos ou deméritos faciais eram de importância secundária, sendo ofuscados pelas qualidades mais significativas encontradas na sensação da carne, no som da voz, no odor corporal. (Senhora, espero que não se ofenda com a ousadia com que às vezes falo.)”
“E desse modo, para continuar com minha narração, havia uma garota — a primeira que se sentou em mim — que acendeu em meu coração um amor apaixonado. A julgar apenas por sua voz, era europeia. No momento, embora não houvesse mais ninguém na sala, seu coração devia estar cheio de felicidade, porque estava cantando com uma voz doce quando entrou caminhando de bom ânimo na habitação.”
“Logo a ouvi de pé na frente da minha cadeira e, sem dar nenhum aviso, de repente caiu na gargalhada. No momento seguinte, pude ouvi-la batendo os braços como um peixe lutando em uma rede, e então ela se sentou... Em cima de mim! Por um período de cerca de trinta minutos, continuou a cantar, movendo o corpo e os pés no ritmo de sua melodia.”
“Para mim, foi um desenvolvimento bastante inesperado, pois sempre me mantive distante de todos os membros do sexo oposto por causa do meu rosto feio. Agora percebi que estava presente na mesma sala com uma garota europeia que nunca tinha visto, minha pele praticamente tocando a sua através de uma fina camada de couro.”
“Inconsciente da minha presença, ela continuou a agir com liberdade sem reservas, fazendo o que bem entendesse. Dentro da cadeira, eu podia me visualizar abraçando-a, beijando seu pescoço branco como a neve — se ao menos pudesse remover aquela camada de couro...”
“Após essa experiência um tanto profana, mas ainda assim agradável, esqueci tudo sobre minhas intenções originais de cometer um roubo. Em vez disso, parecia estar mergulhando de cabeça em um novo redemoinho de prazer enlouquecedor.”
“Por muito tempo ponderei:”
— Talvez esteja destinado a desfrutar desse tipo de existência.
“Gradualmente, a verdade pareceu surgir em mim. Para aqueles que eram tão feios e evitados como em meu caso, sem dúvida era mais sensato aproveitar a vida dentro de uma cadeira. Pois neste mundo estranho e escuro eu podia ouvir e tocar todas as criaturas desejáveis.”
“Amor em uma cadeira! Isso pode parecer fantasioso demais. Só quem a experimentou de fato poderá atestar as emoções e as alegrias que proporciona. Claro, é um tipo estranho de amor, limitado aos sentidos do tato, audição e olfato, um amor queimando em um mundo de escuridão.”
“Acredite ou não, muitos dos eventos que acontecem neste mundo estão além da compreensão total. No começo, pretendia apenas perpetrar uma série de roubos e depois fugir. Agora, porém, fiquei tão apegado aos meus ‘aposentos’ que os ajustava cada vez mais à vida permanente.”
“Nas minhas rondas noturnas, sempre tomava as maiores precauções, observando cada passo que dava, quase sem fazer barulho. Portanto, havia pouco perigo de ser detectado. Quando me lembro, no entanto, que passei vários meses dentro da cadeira sem ser descoberto nem uma vez, realmente me surpreendi.”
“A maior parte do dia permanecia dentro da cadeira, sentado como um contorcionista com os braços cruzados e os joelhos dobrados. Como consequência, senti como se todo o meu corpo estivesse paralisado. Além de tudo, como nunca conseguia ficar em pé, meus músculos ficaram tensos e inflexíveis e, pouco a pouco, comecei a engatinhar em vez de caminhar até o banheiro. Que louco eu fui! Mesmo diante de todos esses sofrimentos não conseguia me convencer a abandonar minha loucura e deixar aquele mundo esquisito de prazer sensual.”
“No hotel, embora houvesse vários hóspedes que permaneciam um mês ou até dois, fazendo do local a sua casa, havia sempre uma entrada constante de novos hóspedes e um êxodo igual dos antigos. Como resultado, nunca consegui desfrutar de um amor duradouro. Mesmo agora, enquanto lembro-me de todos os meus ‘casos amorosos’, não consigo me lembrar de nada além do toque cálido da carne.”
“Algumas das mulheres possuíam os corpos firmes dos pôneis; outras pareciam ter corpos viscosos de serpentes; e outras ainda tinham corpos compostos de nada além de gordura, dando-lhes a sensação de uma bola de borracha. Havia também as exceções incomuns que pareciam ter corpos feitos apenas de puro músculo, como estátuas gregas artísticas. Mas, independente das espécies ou tipos, todas tinham um fascínio magnético especial bastante distinto, e eu estava sempre mudando o objeto de minhas paixões.”
“Certa vez, por exemplo, um dançarino de renome internacional veio ao Japão e se hospedou neste mesmo hotel. Embora tenha se sentado em minha cadeira apenas em uma única ocasião, o contato de sua carne macia e suave contra a minha me proporcionou uma emoção até então desconhecida. Tão divino era o toque de seu corpo que me senti inspirado a um estado de exaltação absoluta. Nesta ocasião, em vez de meus instintos carnais serem despertados, apenas me senti como um artista talentoso sendo acariciado pela varinha mágica de uma fada.”
“Episódios estranhos e sinistros se seguiram em rápida sucessão. No entanto, como o espaço proíbe, abster-me-ei de dar uma descrição detalhada de cada caso. Em vez disso, continuarei a delinear o curso geral dos acontecimentos.”
“Um dia, vários meses depois de minha chegada ao hotel, de repente ocorreu uma mudança inesperada na forma do meu destino. Por alguma razão, o proprietário estrangeiro do hotel foi forçado a partir para sua terra natal e, como resultado, a administração foi transferida para mãos japonesas.”
“A partir dessa mudança na propriedade, uma nova política foi adotada, exigindo uma redução drástica nos gastos, abolição de acessórios de luxo e outras medidas para aumentar os lucros pela economia. Um dos primeiros resultados dessa nova política foi que a administração colocou em leilão todos os móveis extravagantes do hotel. Incluída na lista de itens à venda estava minha cadeira.”
“Quando soube desse novo desenvolvimento, senti de imediato a maior das decepções. Logo, contudo, uma voz dentro de mim aconselhou que deveria retornar ao mundo natural lá fora — e gastar a boa quantia que havia adquirido roubando. É claro que percebi que não precisaria mais retornar à minha vida humilde de artesão, pois na verdade estava relativamente rico. A ideia de meu novo papel na sociedade pareceu superar minha decepção por ter que deixar o hotel. Além disso, após uma profunda reflexão sobre todos os prazeres que ali obtive, fui obrigado a admitir que, embora meus ‘casos amorosos’ tenham sido muitos, todos foram com mulheres estrangeiras e que, de alguma forma, sempre faltava algo.”
“Chegado a este ponto, me dei perfeita conta de que, como japonês, ansiava por um amante da minha origem. Enquanto revirava esses pensamentos em minha mente, minha cadeira — ainda comigo — foi enviada para uma loja de móveis para ser vendida em um leilão. Talvez desta vez, disse a mim mesmo, a cadeira seja comprada por um japonês e mantida em uma casa japonesa. Com os dedos cruzados, decidi ter paciência e continuar com minha existência na cadeira por mais algum tempo.”
“Embora tenha sofrido por dois ou três dias na minha cadeira enquanto estava na frente da loja de móveis, por fim ela foi colocada à venda e foi prontamente comprada. Isso, para minha satisfação, foi por causa do excelente acabamento que foi feito em sua fabricação e, embora não fosse mais nova, ainda tinha um ‘porte digno’.”
“O comprador era um funcionário de alto escalão que morava em Tóquio. Quando estava sendo transferido da loja de móveis para a residência palaciana do homem, o salto e a vibração do veículo quase me mataram. Cerrei os dentes e aguentei bravamente, confortado pelo pensamento de que tinha sido comprado por um japonês.”
“Dentro de sua casa, fui colocado em um espaçoso escritório de estilo ocidental. Uma coisa sobre a locação que me deu a maior das satisfações foi o fato de que minha cadeira era mais para uso de sua jovem e atraente esposa do que para ele próprio.”
“Dentro de um mês eu estava constantemente com a esposa, unido a ela como um, por assim dizer. Com exceção das horas de jantar e dormir, seu corpo macio estava sempre sentado em meus joelhos pela simples razão de que estava envolvida em uma tarefa de pensamento profundo.”
“Você não tem ideia do quanto amei essa senhora! Foi a primeira mulher japonesa com quem tive um contato tão próximo e, além do mais, possuía um corpo maravilhosamente atraente. A vi como a resposta a todas as minhas orações! Em comparação, todos os meus outros ‘casos’ com as várias mulheres do hotel pareciam flertes infantis, nada mais.”
“A prova do amor louco que agora nutria por esta senhora intelectual foi encontrada no fato de que eu desejava abraçá-la a cada momento do tempo. Quando esta estava fora, mesmo que por um momento fugaz, esperava seu retorno como um Romeu louco de amor ansiando por sua Julieta. Jamais tinha experimentado tais sentimentos até então.”
“Aos poucos, passei a querer transmitir meus sentimentos a ela... De alguma forma. Tentei em vão cumprir meu propósito, porém sempre encontrei uma parede interpondo no caminho, pois estava absolutamente indefeso. Oh, como ansiei que meu amor fosse retribuído! Sim, você pode considerar isso a confissão de um louco, pois eu estava louco — loucamente apaixonado!”
“Mas como poderia sinalizá-la? Se me revelasse, o choque da descoberta a levaria a ligar para o marido e os criados no mesmo instante. E isso, claro, seria fatal para mim, pois a exposição não significaria apenas desgraça, mas punição severa pelos crimes que havia cometido.”
“Portanto, decidi por outro curso de ação, isto é, fazer todo o possível para que se sinta confortável e cômoda, e assim despertar nela um amor natural pela — cadeira! Sendo uma verdadeira artista, de alguma forma me senti confiante de que seu amor natural pela beleza a guiaria na direção que eu desejava. E quanto a mim, estava disposto a encontrar puro contentamento em seu amor mesmo por um objeto material, pois podia encontrar consolo na crença de que seus delicados sentimentos de amor por uma mera cadeira eram poderosos o suficiente para penetrar na criatura que habitava o lado de dentro... Que era eu mesmo!”
“Me esforcei de todas as maneiras para deixá-la mais confortável toda vez que colocava seu peso na minha cadeira. Sempre que se cansava de ficar muito tempo sentada em uma posição na minha pessoa humilde, eu lentamente movia meus joelhos e a abraçava mais calorosamente, deixando-a mais confortável. E, quando cochilava para dormir, movia meus joelhos, de forma bem suave, para embalá-la em um sono mais profundo.”
“De alguma forma, talvez por um milagre (ou foi apenas minha imaginação?), esta senhora agora parecia sentir um amor profundo por minha cadeira, pois cada vez que se sentava agia como um bebê caindo nos braços de uma mãe, ou uma menina se entregando aos braços de seu amante. E quando se movia na cadeira, senti que ela estava sentindo uma alegria quase amorosa. Desta forma, o fogo do meu amor e paixão se ergueu em uma chama saltitante que nunca poderia ser extinta, e no fim cheguei a um estágio em que só tinha que fazer um apelo estranho e ousado.”
“Terminei por pensar que se chegará a me olhar, ainda que apenas por um breve momento, poderia morrer com o mais profundo contentamento.”
“Estou seguro, senhora, que a esta altura, já deve ter adivinhado quem é o objeto de minha louca paixão. Para não fazer mais rodeios, ela não é outra senão você, senhora! Desde que seu marido trouxe a cadeira daquela loja de móveis, tenho sofrido dores excruciantes por causa do meu louco amor e saudade de você. Sou apenas um verme... Uma criatura repugnante.”
“Tenho apenas um pedido. Poderia me encontrar uma vez, apenas uma vez? Não lhe pedirei mais nada. É claro que não mereço sua simpatia, pois sempre fui nada além de um vilão, indigno até mesmo de tocar a sola de seus pés. Porém se me conceder este único pedido, apenas por compaixão, minha gratidão será eterna.”
“Ontem à noite saí às escondidas de sua residência para escrever esta confissão porque, mesmo deixando de lado o perigo, não tive coragem de encontrá-lo de repente cara a cara, sem nenhum aviso ou preparação.”
“Enquanto estiver lendo esta carta, estarei perambulando pela sua casa com a respiração suspensa. Se concordar com meu pedido, por favor, coloque seu lenço no vaso de flores que fica do lado de fora de sua janela. A este sinal, abrirei sua porta da frente e entrarei como um humilde visitante...”
Assim terminou a carta.
Mesmo antes de Yoshiko ter lido muitas das páginas, alguma premonição do mal a fez ficar mortalmente pálida. Levantando-se inconscientemente, fugiu do escritório, daquela cadeira em que estava sentada, e buscou refúgio em um dos quartos japoneses de sua casa.
Por um momento foi sua intenção parar de ler e rasgar a mensagem sinistra; todavia, de alguma forma, continuou lendo, com as folhas escritas de perto sobre uma escrivaninha baixa.
Agora que havia terminado, sua premonição se provou correta. Aquela cadeira em que se sentava dia após dia... Continha realmente um homem? Se for verdade, que experiência horrível passou sem saber! Um calafrio repentino a invadiu, como se água gelada tivesse sido derramada em suas costas, e os arrepios que se seguiram pareceram nunca parar.
Como alguém em transe, olhou para o vazio. Ela deveria examinar a cadeira? Porém como poderia se preparar para uma provação tão horrível? Ainda que a cadeira agora esteja vazia, e os restos imundos, como a comida e outros itens necessários que ele deve ter usado?
— Senhora, uma carta para você.
Com um susto, olhou para cima e encontrou sua empregada parada na porta com um envelope na mão.
Atordoada, Yoshiko pegou o envelope e abafou um grito. Que horror! Era outra mensagem do mesmo homem! Mais uma vez, seu nome foi escrito naquele mesmo rabisco familiar.
Por um longo tempo hesitou, perguntando-se se deveria abri-la. Por fim, reuniu coragem suficiente para remover o selo e tirou as páginas tremendo. Esta segunda comunicação foi curta e concisa, e continha outra surpresa de tirar o fôlego:
“Perdoe minha ousadia em dirigi-la outra mensagem. Para começar, sou apenas um de seus fervorosos admiradores. O manuscrito que lhe entreguei em capa separada foi baseado em pura imaginação e no meu conhecimento de que você havia comprado recentemente aquela cadeira. É uma amostra de minhas próprias tentativas humildes de escrever ficção. Se puder ter a amabilidade de me dar sua opinião, não conhecerei maior satisfação.”
“Por motivos pessoais, enviei meu texto antes de escrever esta carta de explicação e suponho que já a tenha lido. O que achou? Se a senhora tiver achado entretido ou divertido em algum grau, sentirei que meus esforços literários não foram desperdiçados.”
“Embora eu propositalmente me abstivesse de contar a você no texto, pretendo dar à minha história o título de ‘A Cadeira Humana’.”
“Receba meus mais profundos respeitos e votos sinceros.” Atentamente...
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