Capítulo 49: Você precisa confrontar seu passado
Você precisa confrontar seu passado — essa era a essência do conselho de Graham. “O passado é onde estão suas preocupações. Eles grudam em você como espinhos; até que os arranque, nunca poderá conquistar seu passado de verdade.”
“Foi o que imaginei.” Belgrieve tomou um gole de cidra forte e fechou os olhos, relaxando ao som do festival.
Ele pensou que o momento em que começou a cuidar de Angeline foi um afastamento completo de quem era antes. Desde criá-la, despedir-se dela e depois recebê-la em casa uma vez mais, sua mente estava ocupada com nada além de Angeline.
Mas agora, não restava dúvida de que Angeline havia se tornado independente, e Belgrieve tinha certeza de que sua filha poderia cuidar de si mesma — então seus pensamentos deram uma guinada desconfortável para a introspectiva. O passado com o qual pensava ter chegado a um acordo agora voltava espontaneamente, e cada vez que seus pensamentos se desviavam nessa direção, sentia seu coração apertar.
Belgrieve não o havia superado — apenas estava desviando o olhar.
Belgrieve baixou a cabeça. “Contudo, sabe... Se Maggie e Duncan estão indo embora, então eu realmente não posso ir também...”
“Preocupado com Turnera?”
“Sim.”
Afinal, a deformação da floresta acontecera enquanto estava em Bordeaux. Funcionou muito bem porque Duncan estava lá para lidar com os monstros resultantes, porém era assustador imaginar o que poderia ter acontecido de outra forma. Foi um evento raro, com certeza, no entanto ainda havia a possibilidade de um monstro que estava além do que os jovens da vila pudessem suportar emergisse. Pior ainda, se partisse para Orphen agora, seria difícil voltar até a primavera. Esses pensamentos pesavam em sua mente e faziam seus pés parecerem pesados.
Graham refletiu em silêncio sobre o assunto por um momento. “Então eu só preciso ficar...”
“Hã?” Belgrieve ergueu o rosto. “Você vai ficar em Turnera?”
Não poderia haver maior garantia de segurança de Turnera do que essa. A presença de Graham ofereceria a Belgrieve mais paz de espírito do que se o próprio ficasse, e não teria motivos para temer, mesmo que demônios ou dragões aparecessem. Além do mais, o elfo já havia sido aceito pela vila. Algumas pessoas ainda o admiravam e temiam por causa de seu comportamento taciturno, mas não o tratavam pior por isso.
Belgrieve poderia deixar Graham para cuidar da casa e ir para Orphen com Marguerite. Poderia encontrar Angeline, procurar seus antigos aliados e acertar as contas com seu passado. Uma excitação maior do que sentiu em anos borbulhou por dentro enquanto conectava esses pontos em sua cabeça.
“Contudo... você tem certeza? Não quer continuar sua própria aventura?”
“Eu originalmente vim aqui porque estava perseguindo Marguerite. Era muito arriscado deixá-la sozinha.” Graham tinha um olhar distante em seus olhos enquanto observava os aldeões dançando. Seu olhar se demorou em uma garota rindo enquanto vários rapazes tentavam cortejá-la de brincadeira. “Pelo que experimentou aqui, aprendeu a se comportar bem o suficiente... Ela deve ficar bem sem eu perseguindo-a.”
“Entendo... Maggie cresceu bastante.” Belgrieve sorriu.
Os olhos de Graham se encontraram com os de Belgrieve. “Isso é graças a sua ajuda, Bell. Quero retribuir o favor.”
Belgrieve fechou os olhos. “Obrigado, Graham.” o gesto magnânimo de seu antigo amigo encheu seu coração de calor.
Mit, sentado no colo de Graham, olhou para Belgrieve com admiração. “Papai, vai ir...?”
“Sim... Vou ver sua irmã.”
“Irmã...”
“Só tenho um favor a pedir...” Graham murmurou.
“Hmm?”
“Enquanto estiver em sua jornada... Posso cuidar de Mit?”
“Sentindo-se solitário?”
○
“Senhor Beeeell!” no momento em que Miriam avistou Belgrieve, ela avançou direto para ele, agarrou sua mão e a girou com entusiasmo. “Por que? Por que? Por que? Viva! É o Sr. Bell, de verdade!”
“Hey, Merry... Dói se me balançar tanto.” disse Belgrieve com um sorriso irônico.
Embora Miriam o soltasse, continuou batendo os pés de excitação.
Anessa deu um leve golpe no topo da cabeça de Miriam. “O que está fazendo?”
“Quero dizer, é o Sr. Bell! Você também está animada, não tente disfarçar!”
“Er...” Anessa olhou para Belgrieve com um leve rubor enfeitando suas bochechas antes de olhar desajeitadamente para o chão. “J-Já faz um tempo, Sr. Bell.”
Belgrieve riu. “Sim, já faz, Anne. Vocês duas parecem bem.”
“Obrigado. Hum... Você recebeu a, uh... Carta?” Anessa murmurou.
Belgrieve inclinou a cabeça. “Uma carta? Não...”
“Vocês devem ter se desencontrado, então. Sabe, Ange...”
“Ela foi buscar a medalha, não é? Ouvi de Lionel. Sério, ainda bem que é Estogal. Não sei o que faria se Ange acabasse partindo para Turn...” de repente, Belgrieve ficou pasmo ao ver Lionel se ajoelhando suavemente.
“Você tem minhas maiores desculpas, Sr. Belgrieve. Sei que deve estar com raiva, mas se minha vida for o suficiente para acalmar sua raiva, então...”
“N-Não, de jeito nenhum. Por favor, levante a cabeça, Lionel. É uma grande honra receber uma medalha do arquiduque. Como pai, não poderia estar mais orgulhoso — não tenho motivos para ficar com raiva.”
“Porém sua filha realmente... Realmente salvou nossa guilda. E em vez de recompensá-la, continuamos aumentando seus problemas...”
Belgrieve deu um sorriso preocupado. Ele se agachou e colocou a mão no ombro de Lionel. “Sei que fez o que podia. Aqueles com poder e autoridade geralmente assumem responsabilidades correspondentes. Caso contrário, a própria hierarquia teria perdido todo o seu valor. E se Ange pudesse fazer o que quisesse só porque é uma Rank S, isso diminuiria a dignidade dos aventureiros como um todo. Estou feliz que minha filha não negligenciou esta cerimônia para me ver. Obrigado por ser honesto com ela, Lionel.”
“S-Sr. Belgrieve... Não fiz nada pelo qual deva me agradecer.” disse Lionel, começando a chorar.
Claro, havia aqueles que enlouqueciam precisamente por causa de suas posições elevadas. Isso não se aplica apenas aos aventureiros — muitos nobres também eram assim. As três irmãs Bordeaux eram a exceção, não a norma.
Ainda assim, ninguém poderia fugir das obrigações de status para sempre. Mesmo que não suportassem, havia algumas coisas que os aventureiros não podiam apenas ignorar. Caso contrário, o inevitável golpe não cairia apenas sobre eles, mas sobre todos ao seu redor. Belgrieve ficou feliz em saber que Angeline entendeu a situação e agiu de acordo. E, como pai, estava com uma genuína satisfação pelo reconhecimento de suas realizações.
Se a guilda tivesse acobertado Angeline e a deixado ir para Turnera, sem dúvida haveria problemas no futuro. A guilda é responsável pelo sustento de muitos aventureiros e atendeu às preocupações dos moradores da cidade, e muitos deles seriam afetados se o arquiduque impedisse sua operação. Mesmo que a guilda de alguma forma saísse vitoriosa no final, Belgrieve não gostaria que as coisas fossem tão longe em primeiro lugar.
“O que é isso agora? Pensei que o mestre da guilda deveria ser alguém incrível.” Marguerite meditou, vendo Lionel todo engasgado. “Esse cara está além de qualquer esperança.”
“Hic... N-Não vou negar...”
“Hey, vamos, Maggie.” Belgrieve franziu a testa. “Não pode dizer esse tipo de coisa.”
“Ah... Desculpe.”
“Está tudo bem, Sr. Belgrieve... O que ela disse é verdade...”
Yuri deu uma risadinha. “‘Perdeu todo o seu valor, hein? Ouviu isso, Leo?”
“Sim, farei o meu melhor.” Lionel lançou seu olhar para o chão.
Ao mesmo tempo, Miriam lançou um olhar para Marguerite. “Então, hum, eu queria saber se você apresentaria aquela elfa ali.”
“Oh, é verdade. Esta é a Marguerite. Uma coisa levou a outra e ela acabou ficando um tempo na minha casa.”
“Hmm, vivendo com uma elfa...”
“Essa é a vida para você. Ela diz que quer ser uma aventureira, então a acompanhei no caminho. Maggie, essas garotas são membros do grupo da minha filha. Ambas são de alto escalão e serão suas veteranas na guilda.”
Marguerite estufou o peito. “O nome é Marguerite! Prazer em conhecê-las! Podem me chamar de Maggie!”
“Eu sou Miriam. Me chame de Merry.”
“E eu sou Anessa. Meus amigos me chamam de Anne, mas... Bem, me chame como quiser.”
“Tudo bem! Então vocês duas são aventureiras? São fortes?”
“Bem, nós somos... Decentes, talvez? Eu e Anne, somos Rank AAA.”
“Ahá! Isso de fato é algo! Contudo vou alcançá-las em breve!”
“Hmm... Você é tão forte assim, Maggie?”
“Pode apostar que sou.”
Quando as meninas começaram a conversar entre si, Belgrieve voltou-se para Lionel. “E essa é a história. Sei que está ocupado, no entanto quero registrá-la como uma aventureira de verdade.”
“Não, não, não se preocupe — ela naturalmente terá prioridade!”
“Não precisa. Não é como se estivéssemos com pressa.” disse Belgrieve.
Com uma risadinha, Yuri chamou Marguerite. “Tudo bem, Maggie, vamos inscrevê-la.”
“Viva! Bem, Bell, vou sair um pouco!”
Yuri estava prestes a conduzir Marguerite quando de repente se lembrou de algo e voltou. “Oh, e S-Sr. Belgrieve.”
“Sim?”
Suas bochechas ficaram vermelhas de repente. “Ouvi dizer que é solteiro, porém... Hum... Não tenho tanta certeza sobre ter sua filha, er... Procurando uma esposa para você.”
“Hã?” Belgrieve respondeu, confuso.
“Sinto muito, sei que não é da minha conta! Por favor, esqueça o que eu disse...”
Yuri colocou timidamente as mãos nas bochechas e saiu correndo, Marguerite seguindo logo atrás.
Com uma carranca preocupada, Belgrieve olhou para Anessa. “Esposa...?”
“Bem, er, Ange...”
“E a Ange?”
A voz de Anessa aumentou em pânico. “Hum, Sr. Bell! Há algumas pessoas que queremos apresentar também!”
“Hã? Mas e quanto essa conversa sobre uma esposa...?”
“Certo, Merry?”
“Certo, certo!”
Miriam puxou Charlotte e Byaku pelas costas. Quando Belgrieve olhou em sua direção, Charlotte timidamente se escondeu atrás de Byaku. Ela espiou com cautela por trás das costas do menino para dar uma olhada. Por alguma razão, Byaku parecia estar cauteloso.
Belgrieve semicerrou os olhos. “Vocês são... De Bordeaux?”
Charlotte abriu e fechou a boca enquanto procurava as palavras certas. “Hm... Meu nome é... Charlotte! O-Obrigado por me salvar naquela época!” disse a garota, corando.
“Hã? Oh... Entendo. Estou feliz que esteja bem.”
As emoções de Charlotte por fim atingiram um ponto de ruptura, e ela correu e pulou no peito de Belgrieve. Surpreso como estava, Belgrieve a pegou.
“O-O que há de errado?”
Sem dizer uma palavra, a garota acariciou seu peito com o rosto.
Perplexo, Belgrieve exibiu um sorriso enquanto olhava para Anessa e Miriam em busca de ajuda.
“Hum...?”
“Haha... Bem, muita coisa aconteceu...”
“É verdade. Há muitas coisas que quero lhe dizer, Sr. Bell! Ah, no entanto Ange pode ficar com raiva se dissermos alguma coisa sem ela.”
“Não, não se preocupe com isso. Tenho certeza de que Ange tem muitas histórias próprias. Contudo, primeiro, o que é essa história de encontrar uma esposa para mim?”
“Er.” Lionel interrompeu reservadamente. “Hm... Sinta-se à vontade para fazer o que quiser, porém você pode querer levar essa conversa para outro lugar...”
Belgrieve olhou em volta. Ainda estavam no saguão da guilda sempre ocupado e atraíram muita atenção e murmúrios.
“Cabelo ruivo... Perna de pau...”
“Aquele é o Ogro Vermelho? O pai e mentor da Valquíria de Cabelos Negros...”
“Sim, deve ser... Diz-se que ele é ainda mais forte que a Valquíria...”
“Ele veio com uma elfa... Quem exatamente é ele?”
“Basta dar uma olhada naquela aura... Não é um cara qualquer...”
“Afinal, o mestre da guilda caiu de joelhos...”
“Por que está segurando uma garotinha?”
Belgrieve estava atraindo bastante atenção e começou a se sentir estranho parado ali. Foi então que lembrou que o ‘Ogro Vermelho’ era um nome famoso na guilda de Orphen.
“Obrigado pelo aviso, Lionel... Vamos encontrar um bom lugar assim que Maggie voltar.” respondeu. Havia muitas coisas sobre as quais estava curioso. Todavia o primeiro na agenda era sem dúvida esse negócio de encontrar uma esposa.
○
O ar do banheiro estava impregnado de um aroma agradável e doce. Ervas medicinais, flores secas e outros aromáticos foram generosamente misturados na água quente, tingindo-a de um tom verde claro.
Foi a primeira vez que Angeline tomou um banho assim. A banheira no banheiro anexo ao quarto de hóspedes acomodava no máximo duas pessoas, porém o quarto era muito grande. Metade do espaço poderia ter sido separado como vestiário e ainda assim seria maior do que o necessário. Mais, por peculiaridade, foi decorado com vasos e pinturas, apesar de ser uma área de banho.
A mente de Angeline estava bem calma enquanto mergulhava na banheira. A temperatura estava perfeita, a fragrância divina, e sentiu que poderia cair no sono a qualquer momento. Quase esquecendo o porquê estava ali.
Ela ergueu as mãos para fora da água e olhou para elas. A pele de suas palmas, que havia ficado áspera e calejada por anos empunhando uma espada, ficou branca aqui e ali depois de mergulhar na água. Talvez minhas mãos estejam começando a ficar parecidas com as do meu pai, pensou.
Com esse pensamento em mente, afundou até o nariz e exalou uma corrente de bolhas. Seus longos cabelos soltos flutuavam livres ao seu redor como algas marinhas.
Três empregadas a esfregaram completamente da cabeça aos pés, e Angeline se sentiu mais revigorada do que nunca em sua vida — pelo menos, era certamente o mais ensaboado que já esteve. Embora as empregadas tivessem usado panos, elas a acariciaram por toda parte, e ela sentiu como se tivesse perdido um pouco de dignidade no processo. Contudo não foi tão ruim.
Uma vez que estava limpa, pediu às criadas que saíssem até que estivesse aquecida pela água. Teria sido uma coisa se elas estivessem lá para compartilhar o banho junto, tal qual estava acostumada, no entanto tê-las esperando-a, completamente vestidas enquanto se banhava nua à suas vista, era um pensamento perturbador.
Através da água do banho, podia ver seu peito e quadris modestos. Sua silhueta era esbelta e bem construída. Pedaços balançando só iriam atrapalhar quando brandisse sua espada. Todavia Angeline ainda estava naquela idade em que esperava ser mais mulher.
Colocando a mão no peito, depois nos quadris, lembrou-se de Miriam e Helvetica. “Nenhum desenvolvimento... Mas por quê?” se perguntou, franzindo a testa.
Porém não adiantava pedir o que não tinha. Quando se levantou da água, seus fios flutuantes de cabelo de repente ganharam peso e se agarraram ao seu corpo. Ela se secou com uma toalha felpuda. Não era como os trapos finos multifuncionais com os quais estava acostumada, e achou muito aconchegante enrolá-la como um cobertor.
Uma empregada, que provavelmente ouviu o som dela chapinhando, gritou do outro lado da porta.
“Você terminou?”
“Sim.”
A porta se abriu em seguida, e as criadas estavam a sua volta. Elas carregavam roupas íntimas e vestidos e pareciam bastante entusiasmadas.
“Por favor, experimente estas roupas íntimas!”
“Ahh... Tão maravilhosamente magra — um diamante bruto.”
“Seu cabelo também é muito bonito. Você acha que esse estilo combina mais? Para os enfeites, claro...”
“A cor do vestido também é um problema. Devemos usar tons frios chiques ou trazer um pouco de calor...”
“Ela é bonita e tonificada, então nada muito solto.”
“A exposição moderada pode ser mais cativante... Contudo não o suficiente para ser vulgar.”
“Temos muito tempo. Agora, madame, por aqui...”
Angeline ficou impressionada com o ímpeto das empregadas. “Estou começando a entender como você se sentiu, Bucky.” murmurou.
Por um longo tempo, as empregadas a vestiram com roupas de todas as cores e estilos, e embora estivesse um pouco triste no início, Angeline se envolveu na atividade pouco a pouco. Quando se sentou e ficou em frente ao grande espelho de corpo inteiro, o sol finalmente beijou o horizonte.
Embora tivesse começado a se divertir, ainda estava cansada de sua longa jornada. Soltando um suspiro profundo, disse. “Hey. Estou cansada hoje. Podemos continuar amanhã?”
“Oh querida, bem quando estava começando a ficar interessante... No entanto, como quiser.”
“Já decidimos nossa direção. Estou animada para ver o que faremos amanhã.”
“Deixe-me trazer o jantar então. Por favor, fique à vontade, madame.”
Alegres como estavam, as criadas rapidamente guardaram os vestidos e saíram. Angeline se jogou no sofá fofo, agora adornada com uma roupa de dormir simples. Depois de se sentar, sentiu que não conseguiria se levantar de novo e percebeu que estava muito mais cansada do que o esperado.
“Esses nobres são uma força a ser reconhecida.” murmurou outra vez. Existem mundos lá fora dos quais não sei absolutamente nada.
Mas contanto que pudesse vencer sua vergonha, não era tão ruim usar vestidos bonitos. Afinal, Angeline estava nessa idade. Sem contar que ela podia se distrair de suas tristezas desde que mergulhasse em diversões. Na verdade, a maior parte de seu nervosismo e irritação em relação à Villard havia diminuído desde o encontro.
Mesmo a medalha não era tão ruim — talvez Belgrieve a elogiasse se a trouxesse de volta junto. O momento era terrível e não tinha nenhum interesse pessoal em medalhas, porém não era uma coisa ruim de se ter. Independente de seus sentimentos, eles tinham que ser valiosos — caso contrário, as pessoas não os veriam como uma honra a ser recebida.
Sentada no sofá, um pouco atordoada, ouviu uma batida na porta.
“Eu trouxe o jantar.”
“Entre.”
A porta se abriu e entraram as criadas com pratos cheios de comida. Havia quatro criadas agora, uma a mais do que quando a vestiram. As criadas prepararam a mesa habilmente com mãos hábeis e apresentaram uma quantidade absurda de comida, tal como Villard havia pedido.
Ao passar do sofá para a mesa, olhou para tudo como se fosse um sonho. Seu olhar caiu sobre o rosto da nova empregada, e ela de repente estremeceu em choque.
Assim que os pratos foram colocados, as criadas formaram uma fila ao lado da mesa.
“Permita-nos servi-la.”
“Não, é, er... Perturbador ser observada enquanto como. Vocês podem só fazer seus outros trabalhos... Hum... Apenas deixe a empregada à direita.”
As criadas trocaram olhares, contudo assentiram ao lembrar que Angeline não era da nobreza. Elas deixaram apenas a empregada designada para trás e se dirigiram para a porta. Depois que as outras três saíram, a última criada restante trancou bem rápido a fechadura e sorriu. “Que refeição deliciosa você tem aí.”
“O que você está fazendo, Gil?”
Gilmenja ria na roupa de criada. “Uma garota tem que trabalhar, certo? Como fica em mim?” ela levantou a bainha da saia e fez uma reverência exagerada.
Angeline estava sentindo algo entre alívio e espanto. Em todo caso, estava bastante cansada.
“Estou surpresa que você conseguiu entrar.”
“Não é difícil quando eles estão todos tão agitados, com pessoas entrando à esquerda, à direita e ao centro. Eu costumava fazer parte de uma trupe de teatro itinerante antes de me tornar uma aventureira, então sou boa nesse tipo de coisa.”
“Hmm... Não sabia disso.”
“Bem, é porque não é verdade. Agora, coma antes que sua refeição esfrie.”
Gilmenja abriu uma garrafa de vinho e encheu um copo. A essa altura, Angeline já havia desistido e pegou um garfo. Não sabia nada sobre boas maneiras à mesa, então arbitrariamente encheu as bochechas, mastigou e engoliu tudo com vinho.
Como era de se esperar da comida da despensa de um arquiduque, tudo estava delicioso. Mesmo depois de ter comido bastante, sua mão continuou a estender para mais. Nunca havia um momento para sua boca descansar e, ainda enquanto mastigava, não podia deixar de suspirar de admiração.
“Delicioso... Talvez eu estivesse com mais fome do que pensava.”
“Está falando consigo mesma. Então, que tal? Um pouco diferente do que servem em Orphen, certo?”
“Sim, mas delicioso mesmo assim.”
Angeline mastigou um prato de vegetais cozidos no vapor cobertos com queijo derretido, depois enxugou o molho que sobrou do prato de carne grelhada com um pedaço de pão. O que parecia ser ensopado de peixe de rio defumado tinha um cheiro único, porém não era desagradável. Havia pasta feita de fígado e grandes moluscos grelhados na meia concha com ervas picadas. Todos esses eram pratos incomuns em Orphen.
Angeline comeu uma e atrás da outra e sentiu o estômago inchando. Contudo se sentiu um pouco feliz. As coisas que a irritavam enquanto estava com fome pareciam bastante inconsequentes com o estômago cheio. De repente, sentiu-se bastante sonolenta e suas pálpebras pareciam bastante pesadas.
Gilmenja recolheu com grande esperteza e habilidade a louça, preparou um bule de chá e serviu uma xícara para Angeline.
“Foi do seu agrado, madame?”
Seu tom de brincadeira colocou um sorriso no rosto de Angeline. “Sim... Os nobres comem assim todos os dias?”
“Não os mais pobres. No entanto aposto que os arquiduques sim. Na verdade, imagino que comam refeições muito melhores do que as que acabaram de servir.”
Eles são de fato incríveis, esses arquiduques, pensou Angeline enquanto tomava um gole de chá. A comida na propriedade de Bordeaux também era saborosa, todavia em comparação com o que acabara de comer, o prato e a variedade pareciam simples e carentes.
Gilmenja sentou-se à sua frente. “Então, como foi? Está começando a entender como lidar com os nobres?”
“Percebi que eles também são pessoas... Mas os mundos em que vivemos são muito diferentes. Não posso lidar com isso. Apenas não posso.”
“Não tem jeito. Porém passar por toda essa situação uma vez mudará sua perspectiva, hehehe.”
“Sim... Poderia ter sido mais fácil se você estivesse ao meu lado, entretanto eu não teria aprendido nada.”
Se Gilmenja estivesse lá para lidar com tudo, é provável Angeline teria ficado para trás, fazendo beicinho e resmungando sobre como não suportava nobres o tempo todo. Ela teria passado pela situação, contudo não teria experimentado nada.
A expressão de Gilmenja suavizou um pouco. “Agora você está entendendo. Boa menina, boa menina. Pelo que pude ver pelo buraco da fechadura, bem... Vou te dar notas de aprovação. Se as coisas dessem errado, eu teria invadido a sala, fingindo que havia um grande incidente em algum outro lugar da casa.”
Angeline sentiu sua força se esvaindo. “Você estava assistindo... O tempo todo?”
“Quem sabe? Hehehe.” Gilmenja riu enquanto colocava a mão sobre a mesa. “Então, de qualquer maneira, eu estava reunindo informações. Algo parece suspeito.”
“Entendo.”
Angeline já tinha uma vaga ideia do que estava acontecendo. Se ao menos terminasse no projeto idiota de vaidade de Villard... No entanto, alguém parecia estar aproveitando esta oportunidade para inventar algum esquema. Esses nobres sem dúvida gostam de suas lutas pelo poder, pensou Angeline. Ela estava realmente impressionada com isso.
“Sabe quem está envolvido?”
“Não no momento. Se quer começar a levantar suspeitas, então todo mundo é suspeito. Seus irmãos dentro da casa, os nobres proeminentes, seus parentes. Sem mencionar que o próprio príncipe herdeiro foi convidado para o baile.”
“Coroa... Quem?”
“O filho do imperador. E o próximo imperador, se tudo der certo.”
“Este é um evento especial?”
“Tem que ser.”
O Império Rodesiano — que abrangia Estogal — era a maior potência nas regiões do norte do continente. Embora Estogal tivesse permissão de autogoverno como grão-ducado, o arquiduque ainda emprestou sua autoridade do imperador. Sejam arquiduques ou reis, todos eram meros súditos do império.
A julgar pela majestade da propriedade, Estogal não era motivo de escárnio, mas a Rodésia era ainda mais poderosa. Este não era um baile comum — algo obscuro deveria estar acontecendo se até mesmo o herdeiro do império fosse convidado.
Há pouco tempo, Angeline não teria pensado a respeito. Porém depois de perceber o quão cansativo era falar com Villard, estremeceu com o quão mais exaustivo seria falar com alguém ainda mais importante e poderoso.
“E minha medalha é a peça central da cena?”
“Assim parece. Não se preocupe, só precisa ficar lá e fazer uma reverência graciosa quando eles a chamarem. Os nobres falarão por você.”
“Não consigo nem imaginar como vai ser...”
“É tudo uma experiência. No entanto, tenha cuidado. Se o seu arco estiver errado em um único grau, vai ser quando os tomates começaram a voar.”
“Hã?”
“Estou brincando. Contudo deveria mesmo aprender a se curvar, para começar.”
“Parece um saco.”
“Então não o faça.”
“Isso não é uma opção, é?”
Angeline levantou-se mal-humorada, então se jogou no sofá e olhou para o teto.
Gilmenja riu. “Quer começar agora?”
“Não quero. Estou cansada, então vou dar tudo de mim amanhã.”
“Como quiser. Bem, vou apoiá-la das sombras ao longo do dia.”
E com isso Gilmenja se levantou e deslizou para as sombras, escondendo sua presença enquanto o som da maçaneta batendo permeou o silêncio. A porta não abriu; estava trancado. Alguns segundos depois, houve uma batida na porta e Angeline se levantou meticulosamente.
“Quem é?”
“Sou eu! Eu!” veio à voz de uma garota.
Angeline não tinha ideia de quem era. Ela se arrastou até a porta. “‘Eu’ realmente não me diz muito.”
“Hã? Você não pode dizer? Sou eu, Liselotte! Abra a porta!”
Quem? Angeline olhou para Gilmenja, que emergiu da escuridão e assentiu com um sorriso. Seu convidado não era um vilão, ao que parecia.
Assim que Angeline abriu a porta, uma menina de doze anos entrou. Seu cabelo castanho-oliva estava meticulosamente trançado e preso, e ela usava um vestido elegante. Seu rosto irradiava uma sensação de inocência jovem e fofa, exalando um ar cativante e travesso.
A garota olhou para Angeline com as bochechas inchadas e carnudas.
“Pelo amor de Deus! Por que não abriu de uma vez?”
“Certo...” os olhos de Angeline vagaram quando Gilmenja surgiu de repente atrás dela e ofereceu uma reverência respeitosa.
“Senhorita Liselotte, um bom dia para você.”
“Hmph! Hey, você, prepare um chá para nós!”
“Como quiser.”
Gilmenja de pronto começou a servir de um bule preparado com um olhar divertido no rosto.
A garota chamada Liselotte sentou-se à mesa de jantar como se fosse o seu lugar. Dando um sorriso para Angeline, incitando-a a sentar-se no assento oposto.
“Você é uma aventureira, não é? Villard te chamou aqui.”
“Sim, pelo que parece...” Angeline obedeceu, parecendo um pouco perdida.
Gilmenja colocou xícaras diante de cada uma delas. “Madame, está sentada diante da filha do arquiduque, senhorita Liselotte Estogal.” explicou Gilmenja em um tom que soou bastante teatral, dada a consciência de Angeline de sua verdadeira natureza.
“Oh, sua filha...” Angeline murmurou.
“Isso mesmo!” Liselotte gargalhou. “Hey, Valquíria de Cabelos Negros? Sabe, adoro ouvir histórias sobre aventureiros! Por isso vim brincar. Me conte uma história!”
“Hum...”
E agora? Ange pensou. Estava exausta e queria dormir neste exato instante. No entanto, os olhos inocentes da garota brilharam enquanto olhavam direto para os seus. Isso a lembrou de si mesma quando costumava implorar a Belgrieve para contar suas histórias, e ela não conseguia encontrar forças para recusá-la.
Com um suspiro resignado, Angeline forçou um sorriso no rosto. “Ok... O que quer ouvir?”
“Você é a matadora de demônios, certo? Que tipo de monstro é um demônio? É forte?”
“Um demônio... Sim, era... Forte. Esse tipo de coisa era como uma sombra contorcida... Era mais ou menos do seu tamanho.”
“O que? Tão pequeno?”
“Sim... Mas é especialmente perigoso se baixar a guarda.”
“Incrível... Hey, os demônios têm presas? Já lutou com um dragão antes? Qual deles é mais forte?”
“Essa é difícil... Dragões soltam fogo, porém o demônio era bem mais rápido.”
Apesar de ser uma nobre, Liselotte não fingia nem um pouco ao expressar sua pura curiosidade. E talvez por causa disso, Angeline estava começando a relaxar inconscientemente. Sua reação a tudo foi tão dramática e exagerada, contudo isso apenas estimulou Angeline, já que logo estava ansiosa para ver como a garota reagiria ao próximo conto. A pedra amarela que iluminava o quarto a impedia de perceber que estava escurecendo lá fora.
Gilmenja riu enquanto servia uma segunda xícara de chá.
“Estou feliz que você esteja se dando bem.”
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