domingo, 26 de fevereiro de 2023

Boukensha ni Naritai to Miyako ni Deteitta Musume ga S Rank ni Natteta — Volume 04 — Capítulo 57

Capítulo 57: Byaku abriu os olhos

Byaku abriu os olhos em resposta a um leve toque nas costas.

“Está começando a entender?”

“Só um pouco.”

O garoto ficou de pé. Ele respirou fundo e olhou para sua mão, que repetidamente abria e fechava para confirmar a sensação nas pontas dos dedos.

Fazia quase um mês desde que Belgrieve veio para Orphen. O ar ficava mais frio a cada dia, e tinha certeza de que já nevava bastante em Turnera.

Se Percival, Satie e Kasim ainda estivessem por aí se aventurando, Belgrieve pensou que poderia descobrir alguma informação ou boatos. Assim, Belgrieve visitava a guilda todos os dias para acompanhar os eventos atuais e digitalizar formulários de solicitação antigos para seguir suas trilhas. Também andou pela cidade e conversou com os donos de bares e vendedores de equipamentos para aventureiros, bem como com o mascate viajante ocasional.

No entanto, ainda não havia encontrado nada promissor. Talvez fosse natural, já que todos haviam deixado Orphen há mais de uma década.

Nas horas vagas, enfrentava os desafios daqueles que desejavam testar sua força contra o Ogro Vermelho. Belgrieve não tinha objeções ao treino, e podia sentir seus próprios movimentos sendo mais refinados enquanto cruzava lâminas com oponentes que utilizavam todos os tipos de táticas.

O estilo de espada de Belgrieve era puramente defensivo. Foi um estilo que foi forçado a trabalhar do zero depois de perder a perna direita e, por isso, caiu perfeitamente nele. Contudo seu estilo de espada era autodidata. Quando a tentativa e o erro por fim atingiram seu limite, foram as instruções de Graham que abriram o caminho para um nível superior. Agora, percebeu que seu estilo defensivo estava cheio de movimentos desnecessários, como se todos os tipos de coincidências tivessem se cruzado para produzir suas artes de lâmina. A percepção disso foi um sentimento bastante peculiar.

O treinamento de respiração para melhorar a circulação de mana era, claro, eficaz também para os magos. Desde que soube que um demônio habitava o corpo de Byaku e que este dependia do demônio para grande parte de sua mana, Belgrieve reservava um tempo todos os dias para instruir Byaku no método. Se o garoto pudesse aprender a usar sua própria mana não demoníaca com mais eficiência, não precisaria se restringir tanto.

Belgrieve colocou a mão na cabeça de Byaku.

“Você deveria ser melhor do que eu em lidar com mana. Contanto que capture o sentimento, conseguirá descobrir em algum momento.”

“Não precisa dar tapinhas na minha cabeça por cada coisinha.” Byaku disse mal-humorado, embora não fizesse nenhuma tentativa de remover a mão de Belgrieve.

Eles ainda estavam no quarto de Angeline. Belgrieve sentira-se em casa no último mês, e as prateleiras da despensa estavam agora totalmente abastecidas. Belgrieve até comprou uma cama simples para Byaku, o garoto resmungando o tempo todo. Agora, Belgrieve e Charlotte dormiam na cama maior e Byaku na pequena ao lado.

Ele está passando por essa fase, pensou Belgrieve.

Ao mesmo tempo, essa angústia adolescente normal e rebelde era bastante cativante para Belgrieve. Apesar de todo o negócio de demônios, Byaku ainda era um garoto comum.

Belgrieve vestiu seu manto e colocou o cachecol que ganhou de Charlotte em volta do pescoço.

“Tudo bem, vamos para a guilda, então.”

“Você nunca vai fazer algum progresso?”

“Não sei... Porém é melhor do que não fazer nada.”

Belgrieve alisou a barba com um sorriso ao sair da habitação.

O quarto de Angeline ficava no segundo andar, saindo para um deque de madeira e descendo um lance de escadas até a estrada abaixo. Uma vez no nível da rua, tirou o pano que havia enrolado na perna de pau. Embora em um primeiro momento tivesse andado com este exposto, parecia que fazia um barulho alto de batidas no chão, e uma reclamação veio do morador do andar de baixo.

O céu estava coberto por um véu de nuvens e parecia que iria nevar a qualquer momento. Não era tão ruim quanto Turnera, mas ainda estava muito frio para ficar confortável. Belgrieve puxou o cachecol sobre a boca.

Angeline estará de volta em breve? se perguntou.

Levaria cerca de meio mês para chegar à cidade de Estogal de carruagem. Belgrieve tinha chegado a Orphen na altura em que Angeline deveria ter chegado a Estogal, por isso, se nada corresse mal, supôs que ela já estaria a caminho de volta.

Em todo caso, não adiantava se preocupar com isso. Belgrieve apressou seus passos para o prédio da guilda.

Não havia muitas pessoas no saguão. Menos pedidos formais chegaram quando o frio ficou mais forte; em seu lugar foram substituídos por biscates, como remover a neve e buscar mantimentos. A maioria dos aventureiros completos iria desconsiderá-los, no entanto iniciantes precisando de dinheiro e crianças na adolescência ainda os enfrentariam. Aventureiros vinham de todos os tipos.

Yuri sorriu ao chegar ao balcão.

“Bom vê-lo, Sr. Bell.”

“Trabalhando duro de novo, pelo que vejo. Me desculpe, eu continuo incomodando-a...”

“Oh não. Não é nada demais. Na verdade, sinto muito por não poder ajudar mais...”

“Você já está fazendo muito. Obrigado.”

Yuri corou timidamente. Então, atrás dela, uma voz gritou.

“Pai!”

Charlotte correu e se agarrou suavemente à perna de Belgrieve. Estava enrolada em um casaco de inverno fofo e gorro de tricô.

“Ah, Char. Você tem sido uma boa menina?”

“Claro! Oh, comprei outro novelo de lã! Acho que vou te fazer um suéter desta vez!”

“Haha, estou ansioso por isso.”

“Byaku! Está praticando tudo certo?”

“É claro. Porém não vejo por que seria da sua conta.”

“Aqui está seu sarcasmo de sempre.” disse Belgrieve, cutucando-o na cabeça. Byaku fez beicinho e se virou.

“Oh, é o Sr. Bell.”

“Senhor Bell, já terminou de praticar com Byaku?”

Quando Belgrieve olhou para cima, viu que Anessa e Miriam tinham chegado e agora estavam ao lado de Charlotte.

“Sim, estamos bem por hoje. Obrigado por cuidar da Char, vocês duas.”

“Não se preocupe, nós estávamos vindo para cá de qualquer maneira...”

“Certo, certo. E Char tem um bom par de olhos nela, sabe.”

As duas haviam levado Charlotte para fazer compras. A meditação era tranquila e chata, e Belgrieve achou que se divertiria mais com as meninas; parecia que estava certo. Ele sorriu ao ver Charlotte livre e brincando.

Ao que tudo indicava Char já estava sendo o alvo, e Belgrieve queria que pudesse aprender magia também. Contudo, depois de ouvir sobre as viagens de Charlotte e Byaku, Belgrieve considerou a pressão que a menina de dez anos estava suportando e decidiu adiar — queria dá-la uma chance de brincar. Era verdade que cedo ou tarde precisaria aprender a se proteger. Mas tendo sofrido algo que nenhuma garotinha deveria, perdendo seus pais para um infortúnio irracional, tornando-se uma fanática por Salomão em sua busca obsessiva por vingança e viajando initerruptamente desde então... Seu treinamento mágico poderia esperar.

Talvez Charlotte nunca pudesse voltar atrás no que havia feito em Bordeaux, e era bom se arrepender de suas ações. Todavia não poderia permanecer prisioneira de seu passado para sempre.

“É trabalho de um adulto proteger as crianças.” murmurou. De qualquer forma, ele estava pelo menos à altura da tarefa de aliviar os fardos dessa criança.

Foi nessa hora que Marguerite apareceu com a pressa de sempre.

“Oh, o que é isso? Para que todos estão reunidos?” Marguerite riu enquanto colocava sua cesta na frente de Yuri. Estava cheio até a borda com ervas e frutas de inverno. “Fui buscar materiais! Avalie-os para mim!”

“Agora olhe aqui, Maggie. Sei que já disse isso várias vezes antes, mas este é o balcão exclusivo para aventureiros de alto escalão. Por favor, use o outro...”

“Não é como se algo assim importasse mesmo.”

“Não pode. Se quiser usar este balcão, faça o possível para subir na classificação.”

“Tsk, tudo bem. Faça do seu jeito.” Marguerite cedeu a contragosto.

Belgrieve deu uma olhada em sua cesta e ficou bastante impressionado.

“Vejo que está indo bem, Maggie.”

“Não estou? É quase fácil demais.”

“Pode parecer assim. Porém precisa continuar praticando até conseguir segurar sua força adequadamente, ok?”

“Eu sei, eu sei! Estou praticando, estou!” respondeu ela, estufando as bochechas fazendo beicinho.

Ao se tornar uma aventureira, Marguerite aceitou tão rápido como pôde todos os pedidos, desde extermínio de monstros de baixo escalão até exploração de masmorras e coleta de materiais. Embora quisesse pular todo o trabalho tedioso para enfrentar monstros poderosos, Belgrieve não permitiria. Do jeito que via, a garota precisava aprender o básico passo a passo, ou ficaria muito convencida e se prepararia para uma queda.

Marguerite já havia entrado em crise por causa de seu orgulho uma vez antes e, embora em primeiro momento relutasse em seguir o processo padrão, parecia que estava começando a gostar. Tudo se resumia à sua nova descoberta: desde que sempre tentasse encontrar algo novo no que estava fazendo, qualquer coisa poderia ser divertida.

“Então vou fazer uma avaliação lá.”

“Sim, te vejo em breve.”

Marguerite caminhou para o balcão de baixo escalão com seu rendimento.

“Quero continuar minha investigação de onde parei ontem.” disse Belgrieve a Yuri.

“Sim claro. Vá em frente.”

“Vou examinar alguns documentos, então...”

“Sim! Vou esperar com Anne e Merry! E Byaku também!” Charlotte respondeu cheia de energia enquanto Byaku manteve seu silêncio.

Belgrieve foi para trás do balcão e começou a examinar os documentos armazenados nos fundos. O arquivo, embora não fosse uma sala separada, estava em um ponto cego conveniente, então não precisava se preocupar com atenção indesejada enquanto examinava os arquivos antigos. Muito raramente, encontrava pedidos que seus antigos membros de grupo haviam feito, contudo os arquivos dificilmente eram bem organizados. Depois de examinar o primeiro arquivo várias vezes com um olho de verruma¹ para ter certeza de que não havia nada digno de nota, devolveu-o e passou para o próximo.

Tinha começado a nevar lá fora, e as pessoas que entravam agora tinham uma camada branca de geada nas roupas, que derretia enquanto caminhavam. Também havia neve no vento que soprava para dentro do prédio, formando gotas de água por toda parte.

Belgrieve se espreguiçou, tendo terminado de examinar uma série de arquivos sem sucesso. Ele não era péssimo nesse tipo de trabalho, no entanto fazia tanto tempo que não o fazia que agora o achava cansativo.

Seus ouvidos se aguçaram para uma comoção do lado de fora. Quando colocou o rosto para fora, viu Angeline parada ali com um olhar cansado no rosto, discutindo algo com as outras garotas. Uma mulher de cabelo castanho-avermelhado e um homem esguio de chapéu-coco estavam ao seu lado.

“Agh.” Angeline gemeu, levantando uma mão cansada. “Estou cansada, mas estou de volta...”

“Haha, fico feliz por ter você de volta. E você também, senhora Gil.”

“A propósito, não estou particularmente cansada, hehehe.”

“Hey, hey, Ange. Há algo muito importante que preciso lhe dizer.”

“Isso pode esperar...? Depois de entregar meu relatório, quero ir para casa e dormir...”

“Vai te surpreender! Confie em mim!”

“É verdade, irmã! Você ficará chocada.”

“Sim, sim. Mais tarde...”

“Bem, de qualquer forma, bem-vinda de volta, Ange.”

“Obrigado, Anne... Porém eu gostaria de ouvir isso do pai.” Angeline soltou um profundo suspiro.

“Sério?” Belgrieve respondeu enquanto ele rapidamente saía. “Então seja bem-vindo de volta, Ange.”

“Sim, estou em casa, pai... Pai?” a cabeça de Angeline disparou e seus olhos se arregalaram.

“Como foi em Estogal?” Belgrieve perguntou com uma risada. “Foi buscar uma medalha, certo?”

“Pai!”

Angeline saltou sobre Belgrieve com a força de uma lebre saltando, e ele instintivamente preparou suas pernas para segurá-la.

“Pai, pai, pai, pai!”

“Haha, o que é tudo isso agora? Que garota problemática...”

“Pai, pai!”

“Eu sei, eu sei.”

“Se Ange o está chamando de ‘pai’... Você deve ser o Sr. Belgrieve.”

“Sim, sou... E você?”

“Pai, pai, pai, pai!”

“Meu nome é Gilmenja. Me desculpe por ter mantido sua filha longe por um tempo...”

“Ah, então você é... Ouvi dizer que cuidou da minha filha, e sou grata por isso. Ela deve ter dado muito trabalho...”

“Pai, pai, pai, pai, pai!”

“Calma, Ange!”

“Pai!”

Angeline enterrou o rosto em seu peito e respirou fundo. Caso contrário, parecia que sua boca se movia sozinha. Embora sorrisse ironicamente, Belgrieve acariciou a cabeça de Ange.

“Vejo que continua fazendo muita confusão por tudo.” Miriam riu. “Acho que não dá pra evitar, já que Ange pensou que poderia ir para casa, então não pôde. Então pensou que não iria vê-lo, e agora aqui estamos nós.”

“Parece um cachorro que sente falta de seu dono.” Byaku rosnou.

Belgrieve coçou a cabeça.

“O que posso fazer...?”

E assim Angeline permaneceu ali, presa a Belgrieve por mais algum tempo. Contudo, por fim, levantou a cabeça para dizer.

“Hey, por quê? O que está fazendo em Orphen, pai?”

“Hmm... Achei que seria bom vir te ver.”

“Estou tão feliz! Hehe... É o pai! É o pai! Fogueiras e palha... O cheiro de Turnera!” Angeline o aninhou várias vezes antes de seu rosto se iluminar. Ela finalmente se lembrou. “Então, sabe — o negócio é — encontrei um dos seus velhos amigos em Estogal!”

Belgrieve ficou sem fala por um momento.

“Hã?”

“Ele disse que queria te ver, então eu o trouxe para Orphen! Pensei em levá-lo de volta para Turnera na primavera! Hmm...”

Angeline examinou a área uma e outra vez, e inclinou a cabeça. Então, viu Gilmenja sorrindo e apontando para o homem de chapéu agachado e enrolado, fazendo o possível para se esconder.

Angeline agarrou seu ombro.

“O que está fazendo?”

“Quero dizer... Não me disseram que ele estaria em Orphen... Ainda não estou pronto...”

“Bem, é um pouco tarde para isso!” Angeline o levantou com força e o empurrou na frente de Belgrieve.

Belgrieve estreitou os olhos e observou o rosto do homem de perto.

“É você... Kasim?”

“He... Hehehe...”

Kasim coçou a cabeça. Seus olhos brilhavam; seus ombros enrijeceram. Sua boca tremia, contudo não sabia o que dizer. No fim, reuniu algumas palavras na menor voz imaginável.

“Vejo que deixou sua barba crescer, Bell.”

“Haha... Você também.” Belgrieve disse com um sorriso exausto.


Eles estavam no que aparentemente era uma sala de descanso para o pessoal da guilda. Havia várias mesas e cadeiras, mas — talvez por ser horário de pico — não havia mais ninguém por perto.

Belgrieve e Kasim sentaram-se frente a frente em uma dessas mesas. Os dois queriam conversar um pouco, só os dois. Porém Belgrieve se viu um pouco preocupado sobre por onde começar e como. Kasim parecia estar no mesmo barco, seus olhos vagando inquietos.

“Como devo dizer...” Kasim ao fim abriu a boca. “Agora que estou aqui, nem sei por onde começar.”

“Certo...”

“Então, está aguentando aí?”

“Mais ou menos... Você?”

“Eu, bem...” Kasim baixou os olhos.

Belgrieve coçou a bochecha.

“Ouvi dizer que você parou de se aventurar. Mesmo que tenha chegado ao Rank S.”

“Sim... Comecei a me sentir... Qual é a palavra certa... Vazio. Sim, é assim, e...” Kasim se interrompeu e olhou para Belgrieve com um sorriso amargo. “Talvez não devesse falar a respeito. Pode ser que me entenda de maneira errada.”

“De jeito nenhum... Por favor, me diga. O que aconteceu com Percy e Satie? Aconteceu alguma coisa com vocês três depois que parti para Turnera?”

Kasim ficou em silêncio por um tempo. Por fim, respondeu.

“Nós... Bem, decidimos que íamos ficar fortes. Assim fizemos; ficamos mais fortes, subimos mais alto, estávamos assumindo trabalhos mais difíceis... Hmm, pensamos que poderíamos encontrar uma maneira de recuperar sua perna.”

“Hmm...?”

“Não ria de nós, ok? Nós éramos jovens e estúpidos. Todos nós sabíamos que você estava tentando desesperadamente colocar um sorriso em meio a toda a dor. No entanto não sabíamos o que fazer. Estávamos com medo de que uma palavra errada o fizesse fechar seu coração para sempre.”

“Entendo... Então é por isso...”

“Sim... Então, trabalhamos nosso caminho até o topo. Se fôssemos fortes, se encontrássemos uma maneira de recuperar sua perna, pensávamos que voltaria. Percy acreditou mais do que o resto de nós. Ele, bem...”

Kasim lutou para encontrar as palavras, porém Belgrieve balançou a cabeça.

“Não foi culpa de ninguém.” disse Belgrieve. “Estávamos no lugar errado na hora errada. Nada mais nem menos.”

“Entendo...” Kasim puxou o chapéu sobre os olhos. “De qualquer forma, saímos para procurar como restaurar sua peça que faltava.”

“Se ao menos algo assim existisse.”

“Sim, acertou, Bell — não há. Mesmo que tenha, é um tabu. Uma maneira seria restaurar sua perna em troca de enlouquecer. Outro faria com que a perna comesse seu corpo até que fosse outra pessoa. Era apenas isso — a mesma coisa, de novo e de novo... Hehe, magia não é nada especial de fato. Fui aclamado como um arquimago ou algo parecido, contudo não consegui nem restaurar a perna do meu amigo.”

Um sorriso miserável persistiu no rosto de Kasim.

“Percy estava sorrindo cada vez menos — e depois que você desapareceu, nunca mais vi o sorriso dele. Satie costumava olhar para longe. Apenas nós três... Bem, sabe, nós éramos todos muito teimosos. Tipos de personalidade forte e tudo mais. Nós nos dávamos bem porque sua presença sempre intervinha quando as coisas ficavam muito ruins.”

“Não é...” Belgrieve começou a dizer antes de parar, se perguntando se havia algum sentido em agir com humildade tão tarde no jogo.

“Então, enquanto o procurávamos, cada coisa trivial se tornava uma discussão. Um dia, Satie só se levantou e foi embora, e foi o fim de tudo. Eu e Percy seguimos caminhos separados. Não sei o que aconteceu com os dois desde então. Irônico, não é? Todos queriam salvá-lo, mas nós três passamos a nos odiar.”

“Kasim...”

“Está tudo bem, Bell. Apenas me ouça. Mesmo assim, não desisti. Percy também não. Ele se tornou um aventureiro Rank S em Orphen. Senti que não havia mais nada que pudesse encontrar em Orphen, então parti para a capital imperial e me tornei um Rank S lá. Saí com alguns malucos para aprender artes proibidas. Houve um tempo em que dei as mãos ao pessoal que pesquisava os demônios. Houve um tempo em que eles também me usaram. E uma vez me enganei — me entreguei a um senso de superioridade equivocado, sabendo que estava apenas deixando que me usassem. O problema é que poderia me distrair enquanto estivesse fazendo alguma coisa. Quando conseguisse, imaginava idiotamente você, Percy e Satie aparecendo de repente e me dizendo que fiz um bom trabalho.”

Um sorriso enlouquecido cruzou o rosto de Kasim.

“Sabe... Eu tinha talento, então todo tipo de coisa ia bem. Desenvolvi uma nova magia, me tornei um arquimago, mas por ironia...”

Seus dedos começaram a bater na mesa.

“Não era o que almejei ser. Quanto mais era elogiado por minhas realizações, mais vazio me sentia. Sempre que podia me dedicar a algo, era apenas para desviar minha atenção. Tinha perdido de vista o que queria. Meu coração, bom, estava definhando. Me tornei uma bola de neve rolando colina abaixo e, antes que percebesse, havia passado do ponto sem volta. Quando percebi, não tinha nada.”

Kasim continuou e prosseguiu, suas palavras escapando com apenas uma pausa para respirar.

“O tempo parou para mim... Mesmo com o passar dos anos, ainda era apenas uma criança burra por dentro, hehehe.” ele enxugou as lágrimas com a palma da mão, um sorriso triste enfeitando suas feições. “Ange é uma boa criança... Ela é sua filha, sem dúvida. Quando a ouço falando a seu respeito, sei que fez o certo por ela. Você realmente é incrível.”

Belgrieve se levantou e agarrou o ombro de Kasim do outro lado da mesa.

“Desculpe. É tudo minha culpa que tenha passado por memórias tão dolorosas.”

“Isso não é verdade! Você foi quem mais sofreu! Apenas uma perna, e então eles estavam falando pelas suas costas! Rindo da sua situação! Nós... Não conseguíamos parar...” Kasim começou a soluçar. “Você é incrível... Mesmo quando sua perna estava sendo arrancada, pegou aquele pergaminho e nos salvou. Se não tivesse, então...”

“Hey, Kasim.” Belgrieve disse calmamente. “Sendo honesto... Eu estava com inveja de vocês três.”

“Hã?”

“Seus talentos estavam todos em outro nível. Sabia que nunca venceria Percy ou Satie com uma espada, e também nunca derrotaria sua inteligência.” Belgrieve fechou os olhos. “Vocês estavam tão cheios de confiança e senti que não pertencia ao grupo. Dia após dia, todos me lembravam que havia um reino que nunca alcançaria, não importa quanto esforço fizesse. É por esse motivo que estava sempre dando voltas no mesmo lugar. Porque nunca pude reconhecer meu próprio valor.”

“Está errado! Isso é...”

“Porém como perdi minha perna, consegui seguir em frente.” Belgrieve olhou diretamente para Kasim. “Eu conheci Ange.”

“Ange...”

“Se não tivesse perdido minha perna, teria continuado em Orphen como um aventureiro. Então, nunca a teria encontrado nas montanhas da minha cidade natal.”

“Ha... Haha... Acho que sim! Afinal, ela é sem dúvida uma boa menina!”

“Não é? Ange é meu orgulho e alegria. Não sei quantas coincidências tiveram que se sobrepor para trazê-la até mim. Contudo hoje, te encontrei por causa dela. Talvez devesse até agradecer por minhas perdas.” Belgrieve baixou os olhos devagar para a espada em seu quadril. “Fiquei melhor com essa coisa do que nunca em meus dias de aventura. Posso continuar ficando mais forte ainda na minha idade.”

“Hehehe. Está falando sério? Algo assim é...”

“Eu mesmo não pude acreditar... Hey, Kasim. Sou o mesmo. Pensei várias vezes o que faria se tivesse seguido um caminho diferente na vida. No entanto não podemos viver no passado, não importa o que façamos. Temos que carregar o passado e caminhar com os olhos no futuro.”

“Sim...”

“Você assumiu muito do passado. Tentei o meu melhor para não encará-lo. Só que precisamos nos encontrar em algum lugar no meio do caminho. É por esse motivo que vim para Orphen.”

“Acho que é... Verdade. Queria recuperar o passado que deixei para trás...”

Belgrieve sorriu e estendeu a mão.

“Estou feliz por poder vê-lo outra vez, Kasim. Desculpe por fazê-lo passar por tanta coisa. E obrigado.”

“Me... Me desculpe... Me desculpe, Bell! Obrigado!”

Kasim usou uma mão para puxar o chapéu para baixo para esconder o rosto soluçante e a outra para segurar firmemente a mão de Belgrieve. Ficaram assim mais algum tempo, em silêncio. Mas antes que eles percebessem, ambos estavam de pé rindo.

Kasim enxugou as lágrimas e disse.

“Uma vez Bell, sempre Bell!”

“Talvez sim. Mas você mudou demais. Nem sabia quem era no começo.”

“Ahahaha... Já me acostumei com esse visual.” Kasim puxou alegremente a barba.

“Entendo. Depois de criar o hábito de mexer nela, não pode só depilar mais!”

“Certo, certo!” Kasim sorriu e, com um suspiro, deu um tapinha no ombro de Belgrieve. “Hey, Bell. Perdoe Percy, sim? Ele sentiu muita responsabilidade à sua maneira...”

“Claro. Quero encontrá-lo e conversar. E Satie também, é claro. Poderia me ajudaria a procurá-los?”

“Claro que vou! Mal posso esperar! Nós quatro, juntos de novo!”

“Eu me pergunto como ele está agora. Acha que deixou a barba crescer também?”

“Nunca se sabe. Percy já deve ter ficado careca... Oh, é verdade...” Kasim fez uma careta antes de dar um tapinha nas costas de Belgrieve. “Deixe-me dizer uma coisa, Bell! Você é um dos melhores aventureiros que conheço! O valor de um aventureiro não está em sua espada. Já estive em muitos grupos e briguei com todo tipo de pessoa, porém nunca conheci ninguém tão observador, ou tão casualmente atencioso, ou tão bom em se preparar antes de sairmos.”

“Hey, isso não está indo longe demais...” Belgrieve coçou a bochecha desajeitadamente.

Com uma risada seca, Kasim começou a sacudir Belgrieve.


“Hehe, sabia! Eu não sou bom com todas as coisas melosas! Vamos beber algumas das coisas boas!”

Quando eles saíram da sala, Angeline estava imediatamente sobre eles.

“Terminaram? Conversaram?”

“Sim, obrigado, Ange. Devemos tudo a você.”

“Hehehe. Você não estava errada, Ange. Seu pai é sem dúvida o melhor!”

“Não é? Hey, hey, pai. Também tenho muitas coisas para te contar!”

“Sim, está certo. Seu pai tem muito o que falar.” o sorriso de Belgrieve se tornou malicioso quando agarrou Angeline pelo ombro. “O que é essa história de tentar encontrar uma esposa para mim?”

“Hã?”

“Eu recebi muitas repreensões, sabe. Todos os tipos de pessoas estão me dizendo para não deixar esse tipo de coisa para minha filha.”

“Hmm, er... Isso é...”

Vendo Angeline cair em consternação, Belgrieve riu.

“Estou brincando. Mas eu realmente tive que sair por aí me desculpando. Não haverá uma próxima vez, ok?”

“Ouch... Desculpe...”

Belgrieve colocou a mão na cabeça dela.

“Boa menina. Tudo bem, vamos comemorar com um pouco de comida e bebida.”

Uma rajada de vento soprou um deslumbrante redemoinho de neve pela porta aberta.


Notas:
1. Um olhar atento, penetrante.

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