Capítulo Extra 57.5: Acúmulo Diário
Houve um rugido quando o vento devastou o lado de fora da casa. De vez em quando, ruídos altos vinham das persianas das janelas, seja de suas dobradiças ou de algo batendo contra elas. Angeline — que agora tinha cinco anos — levantou uma cara assustada e encostou-se a Belgrieve.
Um fogo vermelho ardia na lareira à sua frente. Fora do inverno, seria raro ver a lareira queimando com força suficiente para emitir chamas tão impressionantes. A madeira precisava ser economizada na frígida Turnera, mas a frugalidade poderia ser levada longe demais se levasse à doença.
“Está com frio?” Belgrieve perguntou.
Angeline balançou a cabeça. Suas costas eram a parte mais fria, porém agora estava quente e agradável quando se sentou nos joelhos de Belgrieve.
Quase não havia trabalho para fazer fora durante o inverno. No máximo, precisariam remover a neve acumulada do telhado e das estradas, contudo não havia razão para se aventurar nos campos.
Angeline olhou para um feijão de cima a baixo antes de jogá-lo em um prato. Estava separando os finos dos disformes e carcomidos por insetos. Esse era o tipo de tarefa simples que ela faria para passar o inverno. Outros trabalhos incluíam selecionar sementes de vegetais, transformar lã de ovelha em fios e usar esse fio para tricotar várias coisas. As outras estações os teriam ocupados se movendo do lado de fora, enquanto o inverno era a calmaria antes daquela tempestade de atividade.
Por um momento, Belgrieve poderia jurar que ouviu uma leve batida na porta.
Angeline levantou a cabeça e olhou para seu pai.
“Alguém está aqui.”
“Hmm?” Belgrieve se levantou e se aventurou até a porta. No entanto depois de abrir uma fresta, deu de ombros e voltou.
“Não há ninguém lá.”
“Hã... Mas eu ouvi.”
“Entendo...” os olhos de Belgrieve vagaram enquanto refletia a respeito. Sentando-se de volta, colocou Angeline outra vez em seu colo. “Nestes dias frios de inverno, às vezes as criaturas selvagens batem à sua porta.”
Angeline olhou por cima do ombro para ele.
“Monstros?”
“Não, não são monstros. Monstros não são tão educados. Fadas e espíritos... Às vezes fantasmas também. Você fecha a porta quando sabe que não há ninguém, porém se esperar um pouco mais, vão bater de novo.”
Angeline fez uma careta ao se lembrar das fadas travessas que costumavam provocá-la na floresta.
“Vamos, vamos.” disse Belgrieve, rindo. “De volta ao trabalho.”
Angeline rapidamente jogou o próximo feijão no prato, contudo ricocheteou na borda e caiu no chão.
Alguém batendo na porta — ela estava bem com fadas, contudo esperava que não fosse um fantasma. Afinal, não podia cortar fantasmas com uma espada. As fadas só faziam travessuras, por sua vez os fantasmas olhavam com rostos cheios de ressentimento. Sem dúvidas eram aterrorizantes.
Foi quando houve outra batida. Não o mesmo fraco de antes — parecia que alguém estava batendo com o punho cerrado contra a madeira. Angeline saltou e agarrou-se a Belgrieve, que olhou duvidosamente para a entrada.
Uma voz abafada gritou.
“Hey, Bell!”
“Oh, é só o Kerry.”
Angeline deu um tapinha no peito de alívio quando Belgrieve se levantou para recebê-lo. A janela balançou e a pequena tornou a ficar na ponta dos pés.
○
Pensando nisso agora, de fato tinha sido o vento. No entanto, soou como uma batida de verdade e, quando criança, se encolhia ao pensar que alguém poderia estar espiando pela abertura no batente da porta.
Kasim pousou sua xícara, com um olhar divertido em seu rosto.
“Então você já foi uma criança normal. Hehehehe.”
Angeline estufou as bochechas.
“Você também teria pensado assim se tivesse ouvido, Sr. Kasim. Certo, pai?”
“Ange tem razão. Soou como uma batida na porta.”
“Hmm, é mesmo? Nunca estive no norte no inverno.”
“Então já esteve lá outras vezes?” perguntou Anessa.
Kasim assentiu e jogou um feijão torrado na boca.
“Estive em território élfico no verão. Passei pelo Ponto de Checagem de Haril — as florestas ficavam mais densas quanto mais avançava, e era refrescante mesmo no calor do verão. Foi bem estranho.”
“Hmm? Então foi para o nosso lugar. Deve ter sido chato, certo?” Marguerite interveio.
“Só está dizendo isso porque cresceu lá. Não foi tão ruim, até onde vi.”
“Hmm, é o que acha?” Marguerite perguntou com uma sobrancelha franzida.
Belgrieve riu.
“O território élfico está repleto de vida selvagem. Kasim, vejo que realmente esteve por toda parte.”
“Com certeza. Achei que eles poderiam ter algo para consertar essa sua perna. Entretanto não poderia ir muito longe naquela floresta — essa é uma maneira rápida de nunca mais ser visto. Os elfos podem ser capazes de distinguir um lugar do outro, mas nós, humanos, não conseguimos entender. Desisti e voltei antes de estar completamente fora de mim.”
De acordo com Kasim, às vezes os elfos apareciam em Haril para negociar, porém eram um enigma. As florestas eram profundas e dizia-se que tinham vontade própria. Ao que parecia, os andarilhos se perderiam mesmo que marcassem seus caminhos. Somente os elfos que nasceram lá podiam navegar com segurança de um lugar para o outro.
Miriam assentiu, fascinada, e olhou para Marguerite.
“Você não se perde, Maggie?”
“Sim, na verdade, não tenho ideia de como vocês podem se perder na floresta de todos os lugares. Orphen é muito mais complicado.”
“Sim, não vou defender Orphen. As pessoas também se perdem aqui.” disse Belgrieve.
Angeline assentiu. Quando veio pela primeira vez para a cidade, muitas vezes percebeu que não tinha ideia de onde estava. Mesmo depois de morar aqui por cinco anos, ainda havia lugares onde nunca tinha estado antes. Tanto a floresta quanto a cidade eram labirínticas.
Um reencontro inesperado com Belgrieve havia dissipado todo o seu cansaço. Angeline, agora nas nuvens, se prestou o quanto antes a conduzi-los ao bar de sempre. Era uma pena que Belgrieve já parecesse familiarizado com o lugar, todavia estava feliz por cercar uma mesa com seu amado pai e seus companheiros. Cada bebida elevava ainda mais seu ânimo.
Angeline se pressionou contra o ombro de Belgrieve.
“Como é estar em Orphen depois de tanto tempo, pai?”
“Haha, não é tão diferente da última vez que estive aqui. Tão ocupado e animado... Certo, Kasim?”
“É verdade. Contudo é um pouco mais decrépito do que eu me lembro. Tenho a sensação de que as paredes da guilda costumavam ser mais brancas.”
“Elas eram...? Talvez fossem. Contudo tenho a sensação de que minha memória foi aprimorada com o tempo.”
“Pode ser isso. É como se tudo estivesse brilhando naquela época.”
“Estávamos em transe. Naquela época, vivíamos como se cada momento fosse o último.”
“Sim. Nós nunca perguntamos um ao outro sobre nosso passado. Sempre foi sobre o que faríamos amanhã e o que faríamos depois. Nossos olhos estavam no futuro.”
Os dois homens de meia-idade olharam para longe em tempos passados. Os olhos de Kasim estavam até um pouco turvos.
“Esses velhos saudosistas.” Byaku murmurou.
“Certo. Por que vocês estão ficando tão sentimentais?” Marguerite deu um leve chute na perna de Belgrieve por baixo da mesa. No entanto, acabou atingindo Charlotte, que estava sentada em seu colo, e a garotinha gritou.
“O que está fazendo, Maggie?”
“Hã? Eu te acertei? Desculpe, desculpe.”
“Sério, o que está fazendo?” Belgrieve soltou uma risada resignada enquanto levantava Charlotte e corrigia sua posição.
Charlotte estava sentada onde Angeline costumava sentar antes. Parecia que sua família havia crescido. Ela ficou muito feliz e sorriu de orelha a orelha enquanto abraçava o braço de Belgrieve.
“O que há de errado, Ange? Você está bêbada?”
“Não, estou bem.”
“Bom, não é a primeira vez que Ange o bajula, Sr. Bell.”
“Já está animada...”
Miriam e Anessa trocaram um olhar e um sorriso.
“Ah, não me canso dessas coisas.” disse Kasim antes de pedir outra bebida. “Hehehe, nunca pensei que seria capaz de beber de bom humor outra vez.”
“É bom saber, mas hey, não exagere.”
“Sim, tem que deixar um pouco para mim.”
“Não foi o que eu quis dizer, Maggie.”
“Está bem, pai. Estamos bebendo com tudo hoje — em comemoração à sua vinda para Orphen e tudo mais. E conhecer o Sr. Kasim.” disse Angeline, batendo as mãos na mesa. Ele seria um desmancha-prazeres se a impedisse agora, então Belgrieve sorriu e torceu os fios da barba.
Pensando que essa seria uma chance tão boa quanto qualquer outra, trouxe consigo o dinheiro que recebera da Casa Bordeaux como presente de agradecimento para Angeline e o entregou. Angeline nunca foi pressionada por dinheiro para começar, então não hesitou em estender a mão para cobrir suas bebidas — não que estivessem bebendo cem moedas de ouro.
Um súbito estalo atraiu seus olhos para a lareira, onde o musgo seco que cobria a tora que havia sido jogada no fogo começou a crepitar e queimar.
Kasim limpou a barba encharcada e disse.
“Está mais frio aqui do que em Estogal. Fica ainda mais frio em Turnera, certo?”
“Sim, está certo. Tudo é branco puro até onde pode olhar, e há pingentes de gelo desse tamanho crescendo nos beirais.” explicou Angeline, relembrando as cenas que viu quando criança. Já é hora de a neve voltar a cair em Turnera, pensou ela.
○
Era raro ver um céu claro em Turnera, e as nuvens cinzentas persistentes inevitavelmente cobririam a cidade com sua carga nevada. Mesmo assim, houve momentos em que as nuvens se afastaram e revelaram o sol.
Nesses dias, as crianças saíam correndo de uma só vez, correndo pela paisagem branca da cidade sem seus casacos. Eles saltitavam tão cheios de vigor que alguns suavam como uma tempestade, mesmo quando sua respiração saía de um branco nebuloso. Os adultos ficaram preocupados com a possibilidade de pegar um resfriado, no entanto, lembrando-se daqueles dias de sua juventude, observaram a cena com uma risada.
Foi um daqueles dias em que as nuvens se abriram pouco antes do meio-dia, dando ao sol a chance de brilhar depois de tanto tempo. Os pingentes de gelo pendurados brilhavam como pedras preciosas deslumbrantes na luz, quase ofuscantes. Angeline, de cinco anos, arrancou uma e começou a correr com esta na mão.
“Frio!”
“Não segure por muito tempo, ou ficará congelado.”
A neve havia se acumulado por todo o quintal. O boneco de neve que Angeline tinha feito um tempo atrás tinha engordado um pouco sob as folhas de neve fresca. Belgrieve pegou uma pá e começou a abrir caminho. Demorou algum tempo até que chegasse à terra embaixo e, assim que terminou, Angeline enfiou sua lança de gelo no monte de neve resultante.
Era um dia um pouco quente, a temperatura favorecida pela luz do sol e pelo vento ameno; apenas cavar a neve foi o suficiente para Belgrieve começar a suar. Observando para a pilha de lenha, notou o quanto havia diminuído. Ele havia feito o possível para usar a lenha com parcimônia, contudo quanto mais frio, mais rápido os suprimentos acabavam. Ainda havia muito no estoque comunitário da vila, porém deveria ser reservado para os enfermos e idosos. Belgrieve estava saudável e em condições para fazer algum exercício, então decidiu expandir sua patrulha para a floresta e pegar alguns galhos secos enquanto estava lá.
“Ange, vou pegar um pouco de lenha.”
“Eu também!” o rosto de Angeline se iluminou. Ela estava alinhando bolas de neve no chão.
Tirando um trenó do galpão, Belgrieve conduziu Angeline a bordo e começou a puxar. Os rastros finos dos corredores de trenó cortavam as marcas redondas de seus sapatos de neve. Angeline virou-se para um lado e para o outro, observando tudo ao seu redor.
Quando o vento soprava, levantava um fino e brilhante borrifo de neve das árvores e casas. O ar estava frio e fresco e, em um dia tão claro, podia ver todo o caminho até os cumes das montanhas do oeste e do norte que, sob condições normais, eram obscurecidos pelo aguaceiro. As montanhas eram todas de um branco puro em seus casacos nevados e ofuscantes de se olhar.
Os dois deixaram os campos e entraram na floresta sob galhos cobertos de neve, uma camada branca cobrindo os galhos longos e espalhados, cada um amarrado com pingentes de gelo cristalinos. As árvores que mantinham suas folhas no inverno eram cobertas com muito mais espessura do que as que as perdiam, e a neve caía com um baque quando o vento balançava seus galhos. Belgrieve precisava estar atento ao que estava acima dele sempre que queria puxar um galho seco da neve.
A neve acumulada nesses galhos folhosos era importante para a floresta. O acúmulo acabaria quebrando os galhos fracos e moribundos que não conseguiam sustentar o peso, deixando a luz entrar pelo dossel espesso. Então, as mudas que cresciam modestamente à sombra das grandes árvores experimentavam um repentino surto de crescimento. Onde caísse a luz do sol, brotariam novas folhagens, diferentes daquelas que cresciam na sombra, e o ecossistema floresceria com sua abundância.
Certo, pode não ser apenas neve. Talvez um galho caia sobre nós.
“Ange, sei que continuo repetindo, mas cuidado com o seu...” Belgrieve ouviu um baque vindo de atrás e um grito. Virando-se, pode ver Angeline toda coberta de neve ao pé de uma árvore. Ao tentar arrancar um galho, uma moita caiu sobre ela. Belgrieve não pôde deixar de rir depois de ver que Angeline estava ilesa.
“Wow, isso fez um barulho enorme. Eu lhe disse para ter cuidado com o que está acima, não disse?”
“Urgh...”
Angeline cambaleou, quase tropeçando na neve, e agarrou-se a seu pai. Belgrieve sacudiu a neve da cabeça e dos ombros. Graças a Deus era só neve, pensou. Alguns dos galhos que caíram eram mais grossos que seus braços. Embora esses fossem os tipos de galhos que pretendia usar como combustível, eles poderiam ser bastante perigosos.
“Parece que vai nevar de novo antes do pôr do sol...” comentou com um suspiro enquanto olhava para as nuvens espessas deslizando devagar do norte. A nebulosidade abaixo deles provavelmente era a neve caindo. As nuvens já haviam alcançado o topo das montanhas e os ventos já estavam mais frios.
Belgrieve quebrou os galhos maiores contra sua perna ou os cortou no tamanho certo enquanto Angeline empilhava os pedaços no trenó. A última pilha de madeira foi amarrada com corda para não desmoronar, e então estavam voltando para casa. Angeline pegou um graveto na medida certa para suas mãos e o girou.
“Encontrei minha espada!”
“Oh, essa é legal. Vai matar demônios com essa?”
“Sim! Vou derrubar um dragão!”
“Hahaha... Minha filha, uma matadora de dragões. Imagine só.” Belgrieve deu um tapinha e Angeline sorriu em resposta.
Talvez admirando a maneira como Belgrieve praticava balançar suas espadas, de vez em quando ela tentava pegar a espada sozinha. Era pesada demais, e isso sempre a deixava de mau humor, porém uma bengala parecia servir. Angeline já estava brincando de lutinha com as outras crianças. Lembro-me de balançar uma vara quando tinha a mesma idade. Era uma lembrança afetuosa e um tanto embaraçosa para Belgrieve.
Angeline já sabia manusear uma faca, capaz de descascar cascas de frutas e tirar a casca dos galhos para gravetos. Era uma garota ativa e saudável, então Belgrieve pensou em comprar uma adaga na próxima vez que um mascate a visitasse na primavera. Não havia muitas oportunidades de lutar em Turnera, contudo poderia ter dificuldades se não soubesse lidar com uma lâmina.
O sol parou de brilhar antes que os dois estivessem de volta à vila, e a neve começou a cair em touceiras maiores, talvez devido à temperatura. No entanto à medida que a noite se aproximava, pouco a pouco se transformava em pó e, à meia-noite, voltaria ao mesmo frio de gelar os ossos.
Belgrieve carregava Angeline nas costas; ela se agarrou a ele ao longo do caminho de volta. Quando voltou para casa, a neve caía tão forte que nublava sua visão. Até o chão que havia cavado antes estava coberto outra vez. Angeline balançou a cabeça para espalhar a neve.
“Frio.”
“Sim, vamos entrar. Vou pegar uma xícara de chá quente para você.”
“Sim!”
Ele colocou um pouco de lenha sobre as brasas da lareira. Os galhos que acabara de pegar ainda estavam úmidos demais para serem usados, então os empilhou ao lado do fogo para secar. Usou a panela de água fervente para preparar um chá floral, aqueceu um pouco do pão da manhã no fogo e o cobriu com um pouco da geleia de maçã que poucas vezes abria. O rosto de Angeline se iluminou.
“Tem certeza?”
“Sim, você trabalhou duro hoje.”
Depois de morder o pão doce, Angeline ergueu a xícara fumegante com as duas mãos e começou a assoprá-la. Suas orelhas e nariz estavam vermelhos e logo soltou um espirro.
○
“Achoo...” Angeline espirrou enquanto estava deitada enrolada na cama. Seu ‘travesseiro de abraço’ Charlotte murmurou algo enquanto Belgrieve se levantou e caminhou até a cama para colocar a coberta desgrenhada sobre elas. As meninas permaneceram em um sono profundo.
Kasim colocou uma xícara na mesa.
“Aah, olhe para aquele olhar desleixado no rosto dela. Viajei com essa garota por quase meio mês e nunca a vi assim.”
“Haha, Ange está tendo dificuldade em se tornar independente.”
“Hehehe, diga o que quiser, mas você também está muito feliz em vê-la.” Kasim continuou rindo enquanto pegava o bule e se servia de sua segunda xícara.
A ceia comemorativa durou até a meia-noite. No caminho de volta para o quarto de Angeline, a neve havia caído suavemente. Angeline estava bebendo um pouco de vinho até que saíram e, ao caminhar com as pernas bambas, acabou parando nas costas de Belgrieve. Tendo mantido um agarre sobre seu pai, foi muito difícil separá-la e colocá-la na cama. Porém agora, não parecia se importar com o mundo.
Belgrieve tomou um gole de chá e suspirou. O consumo excessivo de álcool fez com que o sabor do chá fosse muito melhor do que deveria.
“É estranho. Nunca pensei que nos encontraríamos de novo assim.”
“Você está certo. Eu nunca teria imaginado que a aventureira vindo atrás de sua medalha era sua filha.”
“Certo. Nós nunca teríamos nos encontrado outra vez se não fosse por Ange.”
Não sei por que, contudo isso me deixa com um estranho sentimento de felicidade, pensou Belgrieve com um sorriso.
Kasim coçou a barba.
“Hehe, que pai amoroso. No entanto gosto bastante desse tipo de coisa.”
“Eu... Me sinto meio mal, sabe. Estava vivendo em paz quando vocês estavam passando por tanta coisa.”
“Não diga isso. Estamos aqui juntos outra vez, e é tudo que importa. Quero dizer, admito que me soltei um pouco, entretanto agora é como se pudesse relaxar os ombros.”
“Entendo. Vou acreditar na sua palavra.”
Belgrieve fechou os olhos. Não podia negar que se sentiu um pouco triste quando Kasim lhe contou sobre como seus antigos camaradas se desentenderam e seguiram caminhos separados. Claro, ficou feliz em ver Kasim de novo, mas não conseguiu apagar o passado.
Ainda assim, havia pouco que conseguiria ocupando-se com arrependimentos. Tinha que viver no presente e no futuro; talvez pudesse carregar o passado, porém não poderia ser um prisioneiro deste. Foi por esse motivo que havia vindo até Orphen, e como podia reconhecer que seu reencontro foi graças a Angeline. Agora que tinha visto o passado, não havia tempo para pensar a respeito.
“Por que está fazendo essa cara inquieta?”
“Não é nada.” Belgrieve pegou sua xícara com um sorriso irônico.
Kasim estreitou os olhos em dúvida, depois olhou pela janela e disse.
“Está caindo mais forte agora.”
A neve estava realmente caindo em grandes flocos. Além de seus reflexos fracos no vidro levemente fosco, descia e refletia a luz da sala ao longo do caminho.
“Não é de admirar que estivesse sentindo frio. Quer que eu feche as cortinas?”
“Não, não se preocupe. Podemos fazer isso antes de dormir.”
“Entendi.”
Se estava assim em Orphen, tinha que estar branco puro em Turnera. Como estão Graham e Mit? Belgrieve se perguntou enquanto tomava seu chá. Todavia embora fosse difícil passar o inverno em Turnera, Graham vivia no território élfico, onde o frio era ainda mais forte. Talvez não houvesse necessidade de se preocupar com isso, afinal.
Kasim olhou para a janela. Olhando para seu perfil, Belgrieve teve a sensação de que seu nariz costumava ser um pouco mais pontudo. A luz da lamparina enfatizava as rugas em sua testa e sob seus olhos. Mesmo sem a barba desgrenhada, o garoto travesso de suas memórias havia crescido.
Percebendo os olhos avaliadores de Belgrieve, Kasim devolveu o olhar com curiosidade.
“O que?”
“Bem... Nós envelhecemos. Nós dois.”
“Ah... Ahahaha, claro que sim. Já se passaram vinte anos... Não, um pouco mais. Tem que ser. Tenho mais de quarenta anos, sabe.”
“Entendo. Até o nosso caçula está na casa dos quarenta agora... Então, estou de fato envelhecendo.” refletiu Belgrieve.
“Você era dois anos mais velho, certo?”
“Sim, eu e Percy tínhamos a mesma idade. Satie era um ano mais nova.”
“Certo, certo. Você parecia um irmão mais velho, no entanto Percy e Satie não davam a mesma impressão de serem mais velhos do que eu.”
“É porque você estava perdendo a cabeça. De onde veio toda essa confiança infundada?”
“Hey, isso é juventude. Não consigo imaginar ser assim na minha idade.”
“Acho que tudo parecia tão novo para nós naquela época.” sem dúvida, suas esperanças e sonhos se tornaram uma força poderosa que os levou adiante. Agora que havia espalhado suas raízes em uma cidade agrícola, Belgrieve recordava com carinho seu antigo zelo e vigor.
Deitado em sua cama simples, Byaku se virou durante o sono. Belgrieve olhou para o garoto e ajustou o cobertor do menino.
“Contudo acho que a passagem do tempo não chega ao seu núcleo enquanto continua em movimento.” refletiu Belgrieve.
“Nah, não é verdade. Toda vez que fica sem fôlego, parece que ficou muito mais velho. A meu ver, continua-se ainda jovem enquanto tem resistência e força de vontade para correr sem pensar. Hoje em dia, estou sempre parando para olhar para trás.”
“Pode ser que esteja certo sobre isso.”
“Estou. Naquela época, a ideia de parar para olhar para trás parecia uma loucura. Porém agora, meus olhos se voltam mais para o passado do que para o futuro.”
“Acho que sim. Sim, deve ser o caso.”
Isso era simplesmente o quão radiantes aqueles velhos tempos costumavam ser. É estranho, o passado para o qual olho para trás tornou-se minha motivação para seguir em frente, pensou Belgrieve enquanto desgrenhava a barba.
Kasim hesitou um momento antes de se servir de outra xícara de chá.
“Ha, eu bebi demais.”
“Sim, exagerei um pouco. Eu deveria encerrar a noite.”
“Hehe, esses jovens são uma má influência para nós. Então, como está Turnera? Deve ser um lugar legal, certo?”
“É a minha casa; não chamaria de boa ou ruim. Mas é o lugar onde posso me acalmar.”
“Entendo. Ouvi algumas coisas de Ange, como iam para a floresta e o rio, só vocês dois. Grama brilhante, não é? Do tipo que manda flutuando no rio... Ela falou em ir buscá-la.”
“Quer se juntar a nós um dia desses? Está ainda mais frio do que aqui.”
“Adoraria ir. Minha jornada tem sido tão, tão longa. Só quero um lugar para descansar meus ossos.”
“É mais movimentado do que pensa, no campo. Temos que trabalhar todos os dias.”
“Hmm... Mesmo no inverno?”
“Isso mesmo. Separamos feijões e fiamos fios. Há todo tipo de coisas para fazer.”
“Nada mal. Parece divertido.” a risada de Kasim se transformou em um bocejo.
O vento sacudia a janela e, embora estivesse completamente congelado, eles podiam dizer que a neve caía ainda mais forte lá fora. Mas, ao contrário da chuva, a neve parou sem fazer barulho.
○
Quanto mais a neve se acumulava, mais parecia drenar todo o som. Esse efeito foi mais impressionante à medida que a noite avançava. O som de cada respiração e o leve movimento do tecido tornaram-se muito mais pronunciados.
Quase nenhum trabalho ao ar livre foi feito durante os curtos dias de inverno de Turnera em meio à nevasca incessante. Em vez disso, ocupavam-se com trabalhos que implicavam um trabalho calmo e concentrado, como tecer cestas de trepadeiras colhidas no outono, fiar lã e tricotar. As famílias sentavam-se juntas em frente ao fogo, conversando enquanto suas mãos estavam ocupadas com tais tarefas. Pode-se dizer que este foi um período de descanso do intenso trabalho agrícola exigido nas outras estações.
Sentada ao lado de Belgrieve, girando um fuso, Angeline fez um beicinho carrancudo.
“Eu não consigo fazer isso bem.”
“Hum? Oh.”
O fio havia sido enrolado de forma desigual, com protuberâncias e depressões. Quando não era girado ou alimentado da maneira correta, o fio tornava-se uma protuberância irregular. Uma pequena diferença no processo pode alterar muito a qualidade do fio.
Belgrieve pegou o fio que Angeline havia fiado e deu um puxão.
“Sim, não está quebrando. É um bom sinal. Acalme-se e tente mais uma vez. Envie a lã na mesma velocidade de antes e mantenha uma mão lenta e firme.”
“Entendi.”
O rosto de Angeline ficou sério quando começou a enrolar o fuso. Sua expressão era tão divertida que Belgrieve não conseguiu conter o riso, e Angeline virou-se para ele incisivamente.
“O que?”
“Hmm? Estava pensando que você estava trabalhando duro.”
“Sou muito séria. Não ria.”
“Desculpe, desculpe.”
Angeline zombou e voltou para a lã. É isso mesmo, não consigo rir quando ela está levando a sério, pensou Belgrieve. No entanto, sentiu um sorriso puxando suas bochechas e tomou muito cuidado para controlar sua expressão.
Sob a luz fraca da lamparina e no brilho da lareira bruxuleante, o fuso girava e girava. Angeline ergueu a mão esquerda devagar, agarrando a lã. Pouco a pouco, alimentou a rotação, girando os fios espalhados em um.
“Como se parece?”
“Aquele acabou bem.”
Ela parou o fuso e enrolou o fio completo. Não era perfeito, contudo era muito mais organizado do que sua última tentativa.
“Acho que fez bem.”
“Hmph...”
Mesmo assim, Angeline parecia bastante insatisfeita quando comparou seu trabalho com o que Belgrieve havia fiado, fazendo-a voltar ao trabalho com uma expressão confusa no rosto.
A lareira estalou e as chamas dançaram.
É bom ter alguma ambição, pensou Belgrieve com um sorriso irônico. O fuso giratório era como um pião suspenso por um barbante. Quando o giro ficava muito fraco, ele o enrolava com a mão na parte externa da coxa e depois o colocava entre as pernas. Com uma das mãos segurava os tufos de lã e com a outra os dirigia. Assim, o fio surgia bem entre seus dedos.
Já era noite e os dois precisavam se preparar para dormir logo. Porém, de repente, ele ouviu um uivo ecoando do lado de fora da janela. Belgrieve inclinou a cabeça. Os sons externos raramente eram ouvidos quando nevava tanto. Levantando-se, abriu uma fresta na porta para verificar.
“Quer dar um passeio, Ange?”
“Um passeio?”
Sua sonolência se foi, e Angeline prontamente jogou seu fuso de lado. Ela vestiu o casaco, o cachecol e o gorro de tricô. Uma vez do lado de fora, até mesmo a menor respiração criava uma pluma de aparência esfumaçada no ar.
A neve fofa que acabara de cair naquele dia já havia congelado e solidificado. Houve um som nítido de flocos de neve esmagados sob os pés a cada passo, e a sensação ressoou através de seus sapatos até a cabeça.
A neve havia parado. As nuvens haviam se afastado, um céu claro de inverno pairava sobre suas cabeças e o mundo estava iluminado pelo luar.
“Incrível.”
Animada, Angeline puxou a mão de Belgrieve.
“A lua!”
“Sim, é brilhante.”
Eles não tiveram uma noite de luar por um tempo. Estava saindo apenas uma pequena parte da lua cheia. Ainda assim, era grande e brilhante o suficiente para que não precisassem de lanternas.
Que bom que não dormimos cedo, pensou Belgrieve enquanto contemplava a bela noite. Muitas casas fechavam cedo para economizar óleo de lamparina, e a de Belgrieve era uma dessas. Os dois só ficaram acordados até tão tarde porque Angeline estava tão envolvida em sua fiação.
Essas noites claras eram preciosas e raras. Embora houvesse momentos em que não estava nevando, o céu geralmente estava coberto de nuvens. Agora, a lua reluzia com intensidade e as estrelas brilhavam ao seu redor como se em uma tentativa teimosa de ofuscá-la. O céu noturno de inverno estava bastante animado.
Todas as superfícies até onde a vista alcançava estavam cobertas de neve e brilhavam em um azul pálido sob a lua. Flashes de prata piscariam onde a neve havia congelado. Belgrieve havia se acostumado a viver em Turnera, mas essa visão era bonita o suficiente para arrancar dele um suspiro de saudade.
Angeline correu alegre pela frente, tropeçando na neve o tempo todo. Sua sombra se arrastava atrás, mais longa do que ela era alta.
“Pai!” Angeline se virou e acenou. “Por aqui!”
“Estou chegando.”
Ele seguiu devagar com passos longos e cautelosos. A voz forte de Angeline parecia ressoar sem parar pelos campos de neve.
○
Eu reconheço a sensação desta cama, porém por que está muito mais estreita? Angeline se perguntou enquanto abria os olhos. Uma luz fraca penetrou no quarto através das cortinas fechadas.
Sentando-se, seus olhos meio adormecidos vasculharam sem rumo. Charlotte estava dormindo ao seu lado e Belgrieve estava deitado ao lado de Charlotte.
É verdade, o pai veio para Orphen, ela lembrou. Sua cabeça ainda estava confusa por causa de todo o álcool, fazendo-a estender a mão e beliscar a barba do homem. Quando puxou, ele murmurou algo antes de virar e olhar para o outro lado.
Kasim estava deitado de bruços no sofá, roncando alto com o chapéu sobre o rosto.
“Hehe...”
Angeline se sentiu estranhamente feliz. Apesar da viagem forçada para Estogal ter arruinado as suas férias, agora estava contente por isso ter acontecido. Um arrepio percorreu sua espinha só de pensar em como teria sido se tivesse ido para Turnera apenas para sentir desencontrar seu pai.
O ar fresco da manhã parecia estar vazando de algum lugar, então tornou a deitar e puxou as cobertas quentes e confortáveis.
Ouvindo um farfalhar, ergueu o rosto para ver que Byaku estava acordado. O garoto coçou a cabeceira da cama branca enquanto mantinha um olhar turvo em volta do quarto, carrancudo ao notar o ronco de Kasim.
“Então é ele quem está fazendo todo o barulho.”
“Bom dia, Bucky.”
“Hã? Oh... O que? Ninguém mais acordou ainda?”
“Quieto. Deixe-os dormir.”
“Hmph.”
Byaku se levantou devagar, pegou o bule e começou a ferver água com a destreza de já ter feito isso centenas de vezes. Angeline deitou-se, um leve sorriso enfeitando suas feições. Mal podia esperar para passar seu primeiro dia em Orphen com Belgrieve — contudo, por enquanto, iria dormir. Ela se agarrou a Belgrieve, Charlotte imprensada entre eles, e fechou os olhos. Além do cheiro doce de Charlotte, podia sentir o cheiro de palha e fogueiras. Dessa forma, sem dúvida sonharia com Turnera.
Nenhum comentário:
Postar um comentário