Capítulo 58: Era uma memória projetada em sépia
Era uma memória projetada em sépia: luz e sombra eram distintas, mas outras cores eram bastante suaves, e nem a brisa ondulante nem o farfalhar da grama eram detalhes discerníveis. Era como se toda a cena estivesse sendo vista através de uma cortina fina. O sol estava no zênite e a luz que se filtrava pelas folhas era ofuscante, tanto que o bebê teve que apertar os olhos para olhar ao redor.
Havia outra figura presente — uma mulher, parecia, com o sol radiante brilhando atrás dela. Suas roupas bem cortadas estavam gastas em alguns lugares e estavam cobertas de manchas visíveis de sujeira. A mulher parecia estar com dor, cada respiração saindo como um assobio estridente; a miséria estava gravada em seu rosto pálido e havia vestígios de lágrimas em suas bochechas.
“Sinto muito... Mas, por favor...” murmurou, rezando. Ela colocou ervas secas trançadas sobre o bebê e gentilmente beijou sua bochecha enquanto uma rajada de vento balançava seu cabelo. Seu sorriso parecia solitário, como se estivesse se despedindo.
O que está errado? a bebê quis dizer, embora ainda não estivesse pronta para a tarefa de vocalizar. Apenas conseguiu soltar um gemido de suas cordas vocais.
A mulher respirou fundo e olhou em volta.
“Antes que eles nos encontrem...” a mulher murmurou, com as mãos cruzadas na frente do peito e o olhar tristemente lançado para baixo. “Vai ficar tudo bem... Tenho certeza que alguém... Alguém bondoso vai te encontrar.”
A forma da mulher brilhou como uma miragem, e então se foi.
Houve uma grande rajada final que derrubou as folhas das árvores outonais. Não era possível saber quanto tempo fazia desde que a mulher havia desaparecido. O sol estava tão quente, porém o vento estava frio. A criança fez uma careta quando uma sensação de desolação começou a se instalar, antes de explodir em choro lamurioso.
Houve um súbito ruído de farfalhar — o som de alguém ou algo abrindo caminho no matagal e de pés esmagando grama seca e folhas caídas.
“Bem, eu vou...”
Uma mão quente e muito reconfortante ergueu a criança. Seus olhos negros refletiam cabelos ruivos e uma expressão confusa.
○
Orphen havia entrado no auge do inverno, com a neve caindo dia após dia e deixando a cidade branca. Os varredores de rua conseguiram lidar com isso no primeiro dia, contudo logo estavam tão ocupados que a guilda dos aventureiros começou a receber pedidos de remoção de neve. Assim, o trabalho foi repassado para aventureiros de baixo escalão e crianças que queriam alguns trocados.
Havia um terreno baldio em um canto da favela onde antes havia um prédio que havia desabado, devido ao tempo ou por alguma outra causa desconhecida. Depois que os escombros foram removidos, ninguém teve a intenção de erguer mais nada. Geralmente era um ponto de encontro para crianças de rua e vagabundos, no entanto hoje havia uma grande fila de pessoas reunidas ali. A igreja assumiu a responsabilidade de distribuir alimentos para as pessoas das favelas.
Sob a neve que caía, fervia uma grande panela de ensopado que seria servido com fatias finas de pão duro. Aqueles que de outra forma teriam estremecido em casas em ruínas ou mesmo nas ruas estavam desesperados por esse calor tão esperado.
“Hey, nada de furar a fila! Ainda há bastante pra todos!” Rosetta gritou.
Depois que os pobres eram servidos com guisado pelas irmãs usando aventais sobre suas vestes, eles se reuniam ao redor do fogo para se aquecer, suas respirações saindo em nuvens de vapor crescentes. Também havia crianças de rostos corados, soprando em suas colheres quentes.
Belgrieve abriu caminho cuidadosamente por entre essa multidão com um feixe de madeira debaixo do braço.
“Onde você gostaria que eu deixasse a madeira, Sra. Rosetta?”
“Oh, Sr. Belgrieve! Muito obrigado! Hum, sim, deve ficar — bem aqui!”
Belgrieve colocou a madeira onde Rosetta havia apontado com um barulho ruidoso. As chamas sob a panela haviam diminuído para brasas fumegantes agora, embora ainda emitissem calor abundante. Belgrieve acrescentou alguns troncos sobre o carvão, as lascas finas em suas superfícies estalando enquanto queimavam.
Enquanto isso, Charlotte trabalhava duro mexendo para que o ensopado não queimasse. Em sua cabeça usava um gorro fofo de tricô puxado tão baixo que cobria as sobrancelhas e quase escondia o rosto, mesmo com o cabelo preso embaixo.
Tendo feito proselitismo¹ para a glória de Salomão e vendido talismãs para as pessoas das favelas, Charlotte queria fazer algo para expiar suas más ações. A princípio, tentou devolver o dinheiro, entretanto não havia como saber quem de fato havia comprado os talismãs. Para piorar a situação, muitas de suas vítimas agiam de maneira arrogante com ela só por ser uma garotinha. Sem guardar uma única moeda para si mesma, Charlotte doou todo o dinheiro para a igreja e esperava, ainda que fosse de alguma forma, retribuir a comunidade que prejudicou ajudando nos programas de distribuição de alimentos.
Todavia, suas características albinas a destacavam. Embora o cabelo prateado não fosse incomum, o cabelo branco puro era uma raridade. Ela não poderia realizar muito se as pessoas a reconhecessem e a perseguissem, então decidiu se disfarçar.
Charlotte tinha um profundo ódio pela Igreja de Viena desde que foi expulsa de Lucrecia, mas depois de passar um tempo com Rosetta, as outras irmãs e os órfãos sob seus cuidados, esse ódio diminuiu um pouco — e já se tornou uma devota crente, em qualquer caso. Assim, chegou à conclusão de que qualquer que seja a ‘igreja’ que os superiores em Lucrecia transformaram em uma ferramenta política, nada tinha a ver com a fé em si, e que os princípios e crenças dessa fé não deveriam ser apenas negados.
Com Charlotte como sua conexão, Belgrieve visitou o orfanato algumas vezes e ajudou em bicos aqui e ali ou brincou com as crianças. Ele não odiava fazer esse tipo de coisa; na verdade, estava acostumado a trabalhar no frio e era um ajudante melhor do que a maioria. O orfanato era administrado principalmente por mulheres, e elas ficaram encantadas por ter sua força de trabalho à sua disposição.
Por fim, assim que o sol se pôs e o último ensopado acabou, a panela foi enchida com neve derretida e recebeu uma leve esfoliação; o fogo foi apagado e todos fizeram as malas para partir.
“Você pode segurar isso para mim, Byaku?”
Byaku segurou a alça de um lado da panela sem emitir qualquer som. Belgrieve ficou do outro lado, e os dois puxaram devagar para longe o enorme pote de ferro grosso e pesado. Embora Byaku cambaleasse um pouco, apoiou as pernas de maneira teimosa e avançou. Belgrieve não pôde deixar de rir.
“Qual é o seu problema?” Byaku perguntou.
“Não, só pensei que você está trabalhando duro. Porém talvez devesse tentar treinar um pouco mais.”
“Tsk.” o garoto estalou a língua e mudou de posição.
“Hey, hey, segure assim e vai sujar suas roupas de fuligem.”
“Tanto faz, seu velho maldito. Apenas mexa-se.”
E com isso, Byaku continuou caminhando, Belgrieve rindo o tempo todo.
Depois de viverem um pouco juntos, os dois desenvolveram um peculiar senso de confiança. Byaku ainda estava brusco como sempre, contudo não era tão contrário em suas ações agora. Até passou de chamar Belgrieve de ‘velho’ para ‘velho maldito’. Embora possa parecer uma reviravolta para o pior, também significava que Byaku não o estava mais tratando como um estranho.
No que dizia respeito a Belgrieve, era como se tivesse ganhado um filho rebelde, e era um pouco divertido por si só. Deixando tudo de lado, Angeline era sua filha — como pai solteiro, sempre acabaria tratando-a com cuidado. No entanto com Byaku, por outro lado, sentiu que seria perdoado se fosse um pouco menos delicado, e o provocasse um pouco mais em vez de mimá-lo como fazia com Angeline. Os dois brigavam e, de alguma forma, passavam o dia juntos. Foi uma experiência bastante intrigante. Belgrieve olhou para Byaku para encontrá-lo carrancudo e olhando para o outro lado. O garoto tropeçou de novo e estalou a língua com irritação.
Juntos, levaram a panela de volta para a cozinha do orfanato da igreja, onde foi feita uma limpeza mais completa.
O pôr-do-sol chegava cedo nos meses de inverno e, embora o céu ainda estivesse claro, o sol poente já estava escondido atrás dos prédios mais altos e o cemitério estava envolto em sombras. As outras irmãs estavam espalhadas aqui e ali, ao que parecia se preparando para a oração da noite. As vozes das crianças brincando na neve podiam ser ouvidas do fundo do quintal.
Rosetta preparou um chá floral com um sorriso encantador.
“Você nos ajudou muito lá fora, Sr. Belgrieve. Muito obrigado!”
“Oh não, quase não fiz nada. Sem mencionar que foi sugestão de Char.”
Depois de tirar o gorro e soltar o cabelo, Charlotte começou a se mexer. Com toda a esfregação e lavagem após os ventos frios, o rosado havia se espalhado além de seu rosto até a ponta dos dedos.
“Er... Acha que eu os compensei, mesmo que só um pouco?”
“Claro que sim, Char. Esses sentimentos sem dúvida alcançarão a Grande Viena nos céus.”
“Sim... Obrigado, Rosetta. Por me ajudar. E papai e Byaku também, é claro.”
Belgrieve sorriu e deu um tapinha na cabeça dela. Byaku fechou os olhos e não disse nada.
Depois de um gole de chá, Belgrieve soltou um longo suspiro. A bebida quente tinha sido a coisa certa para combater o frio.
Angeline e seu grupo saíram a trabalho. Elas eram aventureiras de alto escalão, contudo não significava que tivessem todo o tempo do mundo para brincar. Isso significava, no entanto, que a quantia que ganhavam de um único trabalho era literalmente em uma magnitude diferente do que os aventureiros de baixo escalão poderiam ganhar.
Soprando sua xícara, Charlotte murmurou.
“Imagino como elas estão indo.”
“As garotas não foram longe. E Kasim está acompanhando-as, então com base em como pode ser, podem já estar de volta.”
Eles haviam partido no dia anterior para explorar uma masmorra próxima acompanhados por Kasim, que insistiu que queria ganhar seu sustento e conseguiu ser reintegrado como aventureiro. Lionel ficou encantado com a adição inesperada às fileiras da guilda.
“Pensando bem, Sr. Belgrieve.” Rosetta disse, já enchendo seu próprio chá. “Não vai ter sua licença reemitida?”
Belgrieve teve que pensar um pouco sobre sua resposta.
“Não planejo isso. Em todo caso, estou voltando para Turnera na primavera. Registrar-me como um aventureiro não vai fazer muito por mim.”
Embora Kasim tivesse vindo para Orphen, isso de forma alguma interrompeu sua busca por Percival e Satie. Entretanto, ainda não havia topado com nenhuma pista digna de nota e ainda estava preso a seus arrependimentos persistentes. Todavia, Turnera era um lugar importante para Belgrieve, e não poderia só partir por capricho e deixar Graham sobrecarregado com Mit para sempre.
Parece que tenho idade suficiente para pensar a respeito com cautela, Belgrieve pensou com um sorriso irônico.
“Entendo, então estará indo embora... Sinto muito em saber disso.” disse Rosetta, depois tomou outro gole.
Charlotte fixou o olhar nela e perguntou.
“Você gosta do papai? Quer se casar com ele?”
“Pff! Hack, cough! D-Do que está falando?” Rosetta ofegou, seu rosto ficando vermelho.
Belgrieve, cansado, colocou a mão na testa.
“Char, você também não...”
“Quero dizer, a irmã disse... Você não gosta da Rosetta?”
“Bem, eu gosto dela como pessoa. Mas a Sra. Rosetta ainda é jovem. Ela seria desperdiçada com um velho como eu.”
Belgrieve permaneceu completamente imperturbável enquanto Charlotte fazia beicinho com as bochechas inchadas, como se dissesse: Não foi o que quis dizer com ‘gostar’. Ao mesmo tempo, Rosetta soltou uma risada aliviada.
A verdade era que Belgrieve tinha uma boa reputação entre as irmãs que cuidavam do orfanato. Porém, elas o consideravam da mesma forma que fariam com uma celebridade sobre a qual estavam fofocando — nenhuma das irmãs estava particularmente motivado a conhecê-lo melhor e tornar-se mais intima.
Devido ao estratagema de Angeline, Rosetta no início ficou um pouco constrangida com Belgrieve, contudo agora que sabia que ele não tinha tais intenções, esse não era mais o caso. Ela o adorava, no entanto seu afeto era mais próximo do que direcionaria a um irmão ou pai, algo bem separado do amor romântico.
Então ela foi atingida por sua paternidade, Charlotte pensou com um suspiro.
Byaku gargalhou.
“Sem resposta. Parece que o amor está morto.”
“Urgh... Satie é nossa única opção?” Charlotte se perguntou, esticando os lábios.
Belgrieve deu um sorriso preocupado.
“Continuo dizendo a vocês que não é assim...”
O sino da noite soou, e Rosetta voltou a si.
“Sinto muito, preciso atender à oração.”
“Já é tão tarde. Devemos ir.”
“Senhor Belgrieve, você realmente nos ajudou hoje. Sinta-se livre para parar quando quiser. Isso vale para Char e Byaku também.”
“Sim, claro. Da próxima vez trarei Ange comigo.”
Os quatro se levantaram e arrumaram suas xícaras. Rosetta foi para a capela, enquanto Belgrieve partiu com Charlotte e Byaku.
○
A carroça chacoalhou enquanto rolava pela estrada, deixando para trás rastros que revelavam a terra preta sob a neve nunca pisada.
Era uma carroça alugada para dois cavalos. Anessa segurava as rédeas, enquanto Angeline, Miriam e Kasim cavalgavam atrás. Grande parte do vagão foi ocupada por pele, garras, presas e escamas de uma subespécie de dragão mutante.
Angeline olhou ansiosamente para a paisagem urbana de Orphen que podia ver à distância.
“Anne... Apresse-se.”
“Seja razoável. Temos quatro pessoas e uma carga completa de materiais.”
Angeline fez beicinho. Queria voltar para Belgrieve o mais rápido possível. Engolindo seu desgosto, encostou as costas no aparador da carroça.
“Imagino o que terá para o jantar...” murmurou, a troco de nada.
Angeline não pôde conter sua felicidade repentina ao pensar em seu pai esperando-a em casa.
Acariciando uma enorme presa, Miriam disse.
“Fiquei um pouco na expectativa quando soube que era um mutante. Acontece que não era nada de especial.”
“Certo. Mas poderia ter sido um pouco difícil para os escalões inferiores. Eu diria que está em algum lugar entre o rank A e AA.”
“Hmph. Não é páreo para nós... Tínhamos até o Sr. Kasim, hein?”
“Hehehe. Na verdade não fiz nada. Vocês meninas são muito fortes.” Kasim sorriu enquanto ajustava o chapéu.
Talvez fosse mais fácil para o mana se reunir na região ao redor de Orphen devido às inúmeras masmorras que pontilhavam a terra, algumas das quais eram até mesmo de alto escalão. As masmorras eram uma fonte fundamental de vários materiais, e caçar os monstros internos também impedia que saíssem para o mundo exterior. Portanto, havia demanda para tantos aventureiros quantos pudessem ser reunidos em Orphen, que era uma das razões pelas quais a cidade tinha uma indústria de aventureiros tão próspera.
O pedido desta vez era caçar um monstro mutante que apareceu em uma masmorra de baixo escalão.
Ao longo de sua longa história, a guilda catalogou inúmeras batalhas e identificou as características e fraquezas de todos os tipos de monstros. Isso resultou em uma lista detalhada, que foi usada para dividir os monstros em classificações com base em seu nível de perigo. O sistema permitia um critério simples para julgar a dificuldade do trabalho, porém sempre havia o risco de um monstro nascer de uma aberração repentina. Nesses casos, seria impossível julgar a dificuldade e, muitas vezes, uma equipe competente de aventureiros seria enviada para julgá-la e avaliar pessoalmente o nível da ameaça.
Este trabalho foi um desses casos. Enfrentar um inimigo sem dados exigia cautela e era um pouco demais para os de baixo escalão. Claro, esse monstro provou ser bastante insignificante para um grupo de aventureiros de alto escalão.
“Contudo sempre darei as boas-vindas a uma chance de explorar uma masmorra com a filha do Bell.”
“Também estou feliz por poder lutar ao lado do amigo do meu pai...”
“Hehe, isso é muito bom. Me traz lembranças de toda a diversão que tive com o grupo.”
“Hey, hey, Sr. Kasim — quais eram os papéis no seu grupo com o Sr. Bell?” perguntou Miriam.
“Vocês tinham o Lâmina Exaltada, certo? Os dois estavam na linha de frente juntos?”
Kasim pensou por um momento, despenteando os pelos do queixo.
“Vamos ver. Você está certa — Percy costumava ser a vanguarda. Bell e Satie se juntariam a ele se necessário — Satie com mais frequência do que Bell. Eu estava sempre na linha de trás e lembro que Bell estava ao meu lado na maior parte do tempo.”
“Mesmo sendo um espadachim?”
“Certo, é o que o torna tão interessante. São os seus olhos — suas habilidades de observação eram incríveis. Bell estava sempre de olho em nosso entorno quando estávamos lidando com um pedido e seria o primeiro a reagir sempre que alguma coisa inesperada acontecesse. Quando enfrentávamos muitos monstros ao mesmo tempo, Bell era quem nos dirigia. E quando Percy e Satie avançassem sem se importar com o mundo, Bell sairia correndo e estaria lá, cobrindo suas costas. Para encurtar a história, era algo como um estrategista e ajudante.”
“Entendo. Pensando bem, quando aquela confusão aconteceu em Bordeaux, a Sra. Helvetica foi salva porque o Sr. Bell percebeu que algo estava errado e correu para a mansão.”
“Eu me lembro disso... É algo de alto nível. Não pode fazer algo assim sem ter muita compostura.” disse Anessa.
Kasim assentiu.
“Poderia repetir. Bell nunca realmente se destacou, mas sua importância foi com certeza martelada a cada vez que subíamos na classificação. Sendo franco, há muitos recém-chegados que só não entendem isso. Veja, nos escalões mais baixos, podem passar sem que alguém preencha esse papel, na maioria das vezes.
“Verdade.” Angeline assentiu de volta. Para caças de monstros de baixo escalão e trabalhos de coleta de material, era possível sobreviver com força bruta, sem uma estratégia adequada.
Depois de se tornar uma aventureira de alto escalão, Angeline aos poucos começou a sentir os limites do que poderia realizar sozinha. A guilda recomendou que ela formasse um grupo com Anessa e Miriam, e então sentiu em primeira mão que bênção elas eram. Um espadachim da linha de frente precisava de apoio para cobrir suas costas, enquanto os magos e arqueiros da linha de trás precisavam de alguém para manter seus inimigos afastados.
“Depois de subir na hierarquia, não pode mais confiar apenas na força de vontade, hein...”
“Exato. Então Bell estava fazendo o que as pessoas de alto escalão fazem, e estava fazendo desde o início. Aqueles caras não entenderam — foram todos muito duros com ele, e Bell acabou passando de um grupo para outro. Tenho a sensação de que é por esse motivo que tem uma opinião tão negativa de si mesmo.”
“Entendo... Hehe, sabia. O pai é incrível.”
“Detecção de inimigos, proteção da retaguarda e acompanhamento da batalha... Sem dúvida gostaria de ter alguém como o Sr. Bell no meu grupo.” disse Anessa.
Kasim colocou a mão em seu ombro.
“Entendeu? Bem, acho que é esse o seu papel agora, Anne.”
“Você acha...? Hehe...” Anessa corou levemente quando seu papel foi comparado a um homem que admirava. Com a composição atual do grupo, Anessa costumava ser a encarregada de observar como a batalha se desenrolava.
Angeline não estava tão alegre.
“Vou assistir de trás da próxima vez.” disse fazendo um beicinho.
“Não, vamos. Se recuar, quem lutará na frente?”
“Não é justo... Também quero ser como o pai.”
“Hehehe.” Kasim riu. “Bem, sua personalidade é bem diferente da dele, Ange.”
Angeline cutucou o homem.
“No que somos diferentes?”
“Bem, vamos contá-los... Primeiro, Bell é ótimo em cuidar das pessoas — muito bom. É educado e sempre dá um passo para trás para ver as coisas de uma perspectiva racional. Todos em nosso grupo tinham uma personalidade bastante forte — inclusive eu — e tivemos nosso quinhão de brigas internas. E era sempre Bell quem intervinha para nos repreender. Nós nos acalmávamos um pouco sempre que ele nos permitia. Kasim olhou para Angeline com malícia.
“Quanto ao seu caso, Ange. Você é insociável, tem uma atitude ruim e é teimosa. Completamente diferente.”
“Grr...” Angeline mordeu o lábio.
Com um olhar satisfeito no rosto, Kasim cutucou Angeline de volta.
“Mas sabe, você é uma boa garota! E é isso o que importa!”
Miriam riu.
“É como se o Sr. Bell já fosse pai há muito tempo.”
“Talvez. Quando olho para Ange, posso realmente dizer que Bell foi um ótimo pai.”
O ânimo de Angeline foi instantaneamente elevado. Ela colocou a mão em volta do ombro de Kasim.
“Você acha? Vejo que entende mesmo, Sr. Kasim...”
“Hmm. Se tiver a chance, tente entrar em uma masmorra com Bell. Sentirá uma sensação de segurança nova e diferente.”
Angeline relembrou às vezes em que caminhou pela floresta com Belgrieve quando criança. Apenas ter Belgrieve atrás dela com certeza a enchia de uma espécie de paz de espírito. No entanto, talvez a segurança de que Kasim falou fosse outra coisa. O que sentia naquela época era como uma criança tendo o pai por perto. Angeline ainda tinha que experimentar como seria confiar em Belgrieve como um aventureiro. Suas habilidades com a espada eram reconfortantes, porém a julgar pelas palavras de Kasim, isso não era nem de longe.
Angeline apoiou o cotovelo na beirada da carroça e apoiou o rosto na mão.
“Acha que o pai vai voltar...?”
“O Sr. Bell está voltando para Turnera na primavera, então acho que não.” disse Miriam.
“Contudo o Sr. Kasim conseguiu sua licença, mesmo que ele esteja indo para Turnera junto...”
Anessa balançou a cabeça.
“Bem, o Sr. Kasim é um ex-Rank S com muitas conquistas. Embora o Sr. Bell seja uma pessoa incrível, sua falta de realizações tangíveis significa que terá que começar de baixo. Dificilmente será diferente de não voltar.”
“Meu pai deve ficar bem se eu responder por ele... A Guilda de Orphen não pode ir contra mim.”
“Sim, e meu testemunho deve selar o acordo. Aposto que aqueles velhinhos que voltaram também vão recomendá-lo. O nome de Bell é famoso em Orphen, certo? Ninguém reclamaria.”
“Nossa, é um abuso de poder. Vivi para isso!”
Enquanto os outros três gargalhavam, Anessa começou a suar frio.
“Espera, estaão falando sério?”
“Eu, por exemplo, estou falando sério... Pense a respeito. Podemos adicionar o pai ao nosso grupo aqui...”
“Seria incrível. A Valquíria de Cabelos Negros, o Destruidor de Éter e o Ogro Vermelho. Seremos o grupo mais forte da história.” exclamou Miriam com um floreio exagerado.
“Bem, dada a sua personalidade, Bell sem dúvida não voltará ao negócio.” disse Kasim com uma risada e um encolher de ombros.
“Por que? Acho que apreciaria o convite...”
“Claro que sim. No entanto Bell — ele é um cara sério. Odiaria a ideia de pular na hierarquia quando não fez nada. Certo, diria algo sobre ‘zombar de todas as pessoas que trabalham diligentemente para subir de baixo’.”
“Hum...”
Era fácil imaginar Belgrieve dizendo algo nesse sentido. E Belgrieve poderia ser bastante teimoso nessa área. Ele não concordaria com a proposta, não importa o que Angeline dissesse — poderia até ficar com raiva dela.
“Então está dizendo que o Sr. Bell não tem intenção de trabalhar do zero em Orphen...”
“Duvido. Belgrieve acha que Turnera é onde pertence.”
Angeline lembrou-se de seu pai dizendo isso da última vez que voltou para casa. Embora desejasse tivesse uma opinião mais elevada sobre si mesmo, Angeline o admirava pelo quanto ele amava sua casa e por sua simples humildade. Ela abraçou os joelhos e suspirou. Era uma pena, mas também estava orgulhosa dele.
“Essa seriedade é a melhor parte do pai.”
“Você pode dizer isso de novo! Bell salvou nossas bundas mais do que algumas vezes.”
“Sim... Imagino o que o Sr. Percy e a Sra. Satie estão fazendo agora.”
“Não sabemos de nada no momento. Porém, hey, não há necessidade de pressa. Faremos o que pudermos. Por enquanto, estou pelo menos aliviado por ter encontrado Bell de novo. Agora vai ser divertido, não importa o que eu faça.
Antes que eles percebessem, o sol já havia começado a se pôr, contudo a carroça já havia entrado em Orphen. O grupo retornou à guilda para avaliar seus materiais e aceitaram o pagamento pelo trabalho. Depois de se separar de Anessa e Miriam, Angeline voltou para casa com Kasim.
As ruas estavam cheias de uma mistura de soldados na vigília noturna e pessoas voltando para casa do trabalho. Aqui e ali, um perfume fino exalava de prédios e barracas. O fim do dia provocou uma mistura de cansaço e descanso, enchendo o ar com uma sensação penetrante de alívio.
Quanto mais perto Angeline chegava de casa, mais perceptível se tornava o sorriso repuxando os cantos de seus lábios, e maior a emoção crescia em seu peito. Ela já estava correndo quando pôs o pé no primeiro dos degraus de madeira.
Uma linha de luz fluiu através da abertura na porta... Ela estendeu a mão para a maçaneta e girou...
“Estou em casa!”
Notas:
1. Proselitismo é o intento ou empenho de converter pessoas, ou determinados grupos, a uma determinada ideia ou religião, ou conseguir adeptos via instrução oral.
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