Capítulo 59: O quarto de Angeline foi construído para uma pessoa
O quarto de Angeline foi construído para uma pessoa, e não foi uma tarefa simples amontoar cinco dorminhocos lá dentro. Embora ela tivesse posses modestas, o quarto em si era bastante pequeno. Isso não era um problema quando se sentava ao redor da mesa, mas era necessário espaço no chão quando era hora de dormir.
Por enquanto, Belgrieve, Angeline e Charlotte dormiam na cama maior, Byaku na menor que Belgrieve havia comprado e Kasim no sofá. Eles viveram assim por pouco mais de uma semana, sentindo-se apertados o tempo todo. A cama era estreita demais para três pessoas dormirem confortavelmente.
Além do mais, embora Belgrieve na verdade não se importasse em dividir a cama com Charlotte, algo parecia um pouco estranho em fazer o mesmo com Angeline. Não importa quantos anos tinha, ela sempre seria sua filha, porém era estranho tratá-la como uma criança para sempre.
“Ainda falta algum tempo antes que a neve derreta... Talvez eu deva alugar outro quarto por um curto período...” Belgrieve sugeriu enquanto salpicava queijo sobre seu café da manhã com mingau de trigo.
“Então vou ir junto com você.”
“E eu!”
“Conte comigo.”
“O que há com vocês...” Byaku suspirou enquanto olhava para os três levantando as mãos. Belgrieve deu um sorriso longo e sofrido.
“Estou dizendo que quero me mudar porque é apertado. Qual é o ponto se todo mundo vai ir comigo? E se estamos nos dividindo, não deveria ser por sexo?”
“Por que está dizendo isso? A família deve ter prioridade, pai!”
“É verdade, pai!”
“Hã? Então fico de fora?”
“Você é um adulto, Sr. Kasim. Precisa aturar essa situação...”
“Isso mesmo, tio Kasim!”
“Agora vocês estão me deixando triste...” Kasim tristemente balançou para frente e para trás.
“Kasim...” Belgrieve disse com um suspiro. “Nem precisa morar conosco em primeiro lugar, não é?”
“Que sem coração, Bell! Estou solitário! Não consegue entender?” Kasim deu um tapa na mesa. Então, parecia que a inspiração o atingiu. “Nesse caso, que tal alugarmos um quarto maior e mudarmos todo mundo para lá? Deveria resolver.”
“Boa ideia, Sr. Kasim. Então, como soa?”
“Então o que fazemos com este quarto? Seria um desperdício.”
“Não temos que fazer nada... Não temos que nos preocupar com dinheiro, pai.”
Esses aventureiros Rank S são bastante astutos, refletiu Belgrieve. Ao contrário de Turnera, onde o dinheiro era de pouca importância, custava dinheiro fazer quase tudo em Orphen.
Belgrieve trouxera suas economias com ele, mas já as usara bastante. Também trouxe o dinheiro que Sasha o entregou como agradecimento por Angeline salvar Seren, porém considerou o dinheiro de Angeline e não o tocou. Os fundos só foram aproveitados quando Angeline começou a usá-los para pagar o banquete de reencontro.
Se quisesse alugar um quarto, não teria escolha a não ser recorrer à filha ou a Kasim. Nesse caso, precisaria respeitar suas opiniões sobre o assunto. Embora parecesse errado desperdiçar dinheiro dessa maneira, o derretimento da neve ainda estava longe. O grupo não podia se amontoar neste pequeno quarto por tanto tempo.
Belgrieve suspirou e coçou a cabeça.
“Então vamos fazer isso... Espero que encontremos um lugar legal.”
“Hmm... Mal posso esperar!”
“Hey, mana¹, que quarto seria bom? Talvez devêssemos alugar uma casa inteira?”
“Essa é uma boa ideia. Contudo se for muito grande, vai ser difícil de limpar... Algum pedido, Sr. Kasim?”
“Posso dormir em qualquer lugar, então não me importo de verdade.”
“Então por que não se deita na beira da estrada...”
“Hey, Byaku!” Charlotte repreendeu, no entanto Byaku apenas se virou.
Com um sorriso, Kasim estendeu a mão sobre a mesa e deu um tapinha na cabeça de Byaku.
“Hehehe... Que pirralho tagarela você é. Não que eu tenha um problema com isso, sabe. Aí está, bom menino.”
“Pare... H-Hey... O que você está... Pare!”
“Pronto, pronto. Que tal?”
Kasim bagunçou grosseiramente o cabelo de Byaku. Talvez estivesse derramando alguma magia de sua palma, enquanto os olhos do garoto giravam. Belgrieve colocou uma mão cansada em seu braço.
“Hey, vamos, Kasim. Está sendo imaturo.”
“Estou apenas brincando.” Kasim levantou a mão e acenou com leviandade.
Byaku respirou fundo, sua cabeça ainda girando.
“Viu o que acontece quando age mal, garoto Bucky...?” Angeline deu uma risadinha.
“Cale-se. Porcaria, que velho escandaloso...”
“É porque você abriu a boca. Sabe o que dizem... A boca é o portão do infortúnio, Byaku.”
Byaku estalou a língua antes de engolir a água em seu copo.
Belgrieve suspirou.
“Não brigue por coisas sem sentido. Minha nossa...”
“Bom, por enquanto, estamos procurando uma casa. Vamos terminar e sair.” disse Kasim enquanto mergulhava uma colher em seu mingau com gosto.
Era mais um dia de céu cinzento e neve caindo cobrindo tudo com um brilho de alabastro. As ruas estavam lotadas de pessoas, suas respirações instantaneamente se transformando em baforadas de vapor tão numerosas que era quase como se estivessem criando as nuvens acima.
As fileiras de edifícios de pedra de Orphen eram uma visão bastante sombria para Belgrieve. As paredes haviam sido pintadas quando foram erguidas, no entanto todas as cores já haviam se desgastado, deixando apenas uma sensação peculiar de desolação para trás.
Fazia mais de um mês desde que havia chegado — a primeira vez que percorria esta cidade em vinte e cinco anos. Agora que estava aqui outra vez, parecia muito mais desgastado do que se lembrava. Talvez isso fosse um fato, considerando a passagem do tempo, contudo também suspeitava que suas memórias haviam se tornado cada vez mais idealizadas ao longo dos anos. Tudo parecia muito mais bonito em seus sonhos.
Porém, tendo morado aqui por pouco mais de dois anos, Belgrieve ficou surpreso por ainda se lembrar de tudo tão vividamente depois de tanto tempo. Seus dias não tinham sido muito pacíficos naquela época, mas a memória deles brilhava de uma forma que nada mais poderia esperar igualar.
Sempre que tais pensamentos cruzavam sua mente, Belgrieve esboçava um sorriso irônico e reconhecia que havia de fato envelhecido. Sua nostalgia só ficou mais forte quando se reuniu com Kasim, pois aquelas cenas passadas seriam despertadas sempre que falassem de seu passado. O que haviam sido vestígios fracos de memória durante seus anos em Turnera estavam se tornando muito mais distintos.
Ainda assim, tenho que valorizar o tempo que tenho agora, pensou Belgrieve. Para ser franco, deixar o passado para trás era um assunto pessoal. Kasim compartilhava o mesmo objetivo, então Belgrieve estava bem com sua assistência, no entanto não queria arrastar muitos outros para a mistura.
“Graham e Mit estão bem...?” Belgrieve imaginou aquela dupla taciturna sentada diante da lareira, mantendo o mesmo tipo de conversa incoerente de antes. Eles estão comendo corretamente? Os alimentos conservados estragaram? Estão girando o fio da maneira correta como eu ensinei? Separaram os grãos com cuidado? Uma vez que começou a pensar a respeito, as preocupações eram intermináveis.
No final das contas, o tempo que passou em Turnera foi muito mais longo do que em Orphen. Confrontar o passado era importante, contudo agora Turnera era tão importante quanto para ele. Já estou com saudades de casa... Belgrieve não conseguia mais rir das travessuras de Angeline depois de tudo isso.
Ele esperou sob o beiral para evitar a neve até que Angeline emergiu do prédio, parecendo claramente descontente.
“Não adianta... Não há vagas.”
“Pensando bem, não importa se o quarto for pequeno. Vamos apenas alugar dois quartos.”
“Não. Absolutamente não. A família precisa viver junta.” insistiu obstinada Angeline, derrubando a proposta de Belgrieve. Belgrieve soltou um suspiro.
Eles haviam deixado seu alojamento logo após o café da manhã para visitar corretores de imóveis por toda a cidade. Orphen refletia uma ampla seção transversal da sociedade, então as propriedades disponíveis variavam de propriedades para a nobreza a cabanas degradadas nas favelas. Entretanto a maior parte da população pertencia à classe média, incluindo comerciantes, artesãos e, aliás, muitos aventureiros. Assim, o mercado imobiliário atendeu a esse grupo demográfico. Angeline nutria grandes esperanças de que isso significaria que haveria pelo menos um quarto adequado no mercado, mas acabou desapontada ao não encontrar vagas, não importa onde buscasse.
Kasim cruzou os braços atrás da cabeça.
“Bem, que decepção. O mercado imobiliário da Orphen é muito grande, porém tem uma densidade populacional compatível.”
“Não há nada que nos obrigue a encontrar alojamento hoje...”
“Eu ficaria bem no meu quarto atual, pai.” Angeline o lembrou.
Belgrieve coçou a barba com cansaço. Sua casa em Turnera consistia em um único cômodo grande, então havia pouco que pudesse fazer sobre isso quando ela estava com ele, contudo esse não era o caso em Orphen.
“Ange... Você é uma mulher jovem. Não quer pelo menos um pouco de privacidade em sua vida?”
“Não.” respondeu ela sem pestanejar. “Não tenho nada a esconder.”
Incapaz de encontrar a resposta certa, os ombros de Belgrieve cederam. Angeline era uma boa criança, mas havia algo que parecia um pouco estranho a respeito. Ele não odiava que ela o amasse sinceramente, porém não podia deixar de se sentir ansioso ao ver que ainda era assim aos dezoito anos.
O que aconteceu com todo aquele tempo que praticou dormir sozinho? Suspirou Belgrieve.
Kasim parecia intrigado com a cena.
“Você tem uma vida difícil, Bell.”
“Se acha isso, então me dê uma mão, que tal...?”
“Hehehe, acha que sou sem tato o suficiente para ficar entre vocês dois?”
Os flocos de neve estavam ficando maiores e mais fofos enquanto dançavam ao vento e grudavam em suas roupas. Embora esta região não tivesse invernos tão terríveis como em Turnera, ainda era bastante frio.
Kasim colocou as mãos nas cabeças de Charlotte e Byaku.
“Contudo deve ser o suficiente por hoje, não acha? Preciso treinar esses dois.”
“Oh, é mesmo... Sim, podemos encontrar um quarto mais tarde.” disse Belgrieve com uma risada resignada.
Há alguns dias Kasim se tornou o professor de magia de Byaku e Charlotte. Byaku à parte, Belgrieve queria dar a Charlotte a chance de aproveitar sua infância um pouco mais, no entanto a garota insistia em aprender o ofício.
Embora Charlotte possuísse vastas reservas de mana para explorar, não sabia como usá-lo. Durante sua viagem no tempo como sacerdotisa de Salomão, ela confiou no poder de seu anel mágico. Naquela época, conseguia lidar com apenas um pouco de mana e o mínimo de encantamentos. Todavia não usava magia desde que perdeu o anel.
Comparado com a dura e aterrorizante Maria, Kasim era travesso, mas suave, sendo provável que essa fosse a razão pela qual Charlotte decidiu que esta era uma boa oportunidade para aprender. Kasim não parecia se importar e, na verdade, estava ansioso para ensinar. Não havia dúvida de suas habilidades — Kasim era um arquimago, afinal — porém foi uma grande surpresa que fosse capaz de ensiná-los. Pelo menos, era para Belgrieve, que ainda se lembrava dele como aquele garoto tímido, contudo travesso de muito tempo atrás.
Depois de almoçar em uma barraca aleatória ao longo do caminho, Belgrieve confiou as duas crianças a Kasim e foi para a guilda com Angeline. Enquanto caminhavam lado a lado, Angeline agarrou-o alegremente pelo braço.
“Parece que está feliz, Ange.” Belgrieve observou, rindo.
“Estou! É um sonho realizado andar por Orphen com meu pai!” ela disse, apertando o braço dele.
Desde que voltou de Estogal e começou a viver com Belgrieve, cada pequena coisa parecia levar Angeline a um frenesi de excitação. Não era a mesma coisa que só voltar à vida cotidiana em Turnera com o pai. Em vez disso, Belgrieve havia se tornado parte de sua própria rotina em Orphen, e tal ocasião a excitava infinitamente. Até receber um trabalho e partir para a masmorra, arrastava-o junto todos os dias, mostrando-lhe todas as boas lojas e seus lugares favoritos. E, claro, Belgrieve também estava feliz em caminhar com Angeline pelas ruas da cidade que se lembrava de maneira vaga.
Os dois chegaram à guilda depois de pouco menos de uma hora de caminhada. Já era tarde e, embora não houvesse tantos aventureiros como nos horários de pico, o lugar ainda estava animado.
Era comum que a guilda ficasse mais movimentada da manhã ao meio-dia. Depois desse horário, a maioria dos trabalhos não urgentes que chegavam só eram postados na manhã seguinte. Assim, o início do dia tornou-se um campo de batalha para abocanhar os melhores trabalhos. Aliás, era também quando os clientes mais impacientes vinham barganhar pelas mãos mais competentes e dispostas a trabalhar dentro do orçamento.
A guilda se estabeleceria à tarde, quando era amplamente ocupada por aventureiros veteranos e de alto escalão que podiam trabalhar à vontade. À tarde, o trabalho do pessoal da guilda consistia em sua maior parte em classificar os pedidos, avaliar os materiais trazidos e preencher a papelada.
Marguerite estava neste momento no balcão, alinhando-o com garras demoníacas, presas e ossos de seu saco. Talvez porque foi capaz de captar o som da perna de pau de Belgrieve batendo contra a pedra, se virou para os dois com um sorriso.
“Hey, Bell. Vejo que Ange está com você.”
“Hey, Maggie. Já está terminando?”
“Sim. Eles disseram que só tenho um pequeno caminho a percorrer antes do rank D. Ainda assim, é tudo tão fácil. Parece que falta algo.” Marguerite reclamou, embora soasse como se estivesse meio brincando.
Angeline deu uma risadinha.
“Então quer outra luta de treino...?”
“Oh! Está me desafiando? Vou deixá-la no chão hoje!”
“Oh ho, não vou perder para alguém como você...”
“Veremos então! Vou explodir essa compostura sua em pedaços!”
Marguerite, alegre, cutucou Angeline no ombro. Elas eram espadachins da mesma idade, e suas habilidades eram mais ou menos equivalentes. Parecia que Angeline e Marguerite se consideravam rivais dignas.
No entanto, como as coisas estavam, Angeline ainda era a vencedora incontestável; suas habilidades estavam no mesmo nível, mas talvez a diferença de experiência fosse o fator decisivo. Ainda assim, depois de várias partidas, os movimentos de Marguerite foram se tornando cada vez mais refinados.
A brincadeira das duas foi bastante agradável para Belgrieve, que pensou que ter uma rival as estimularia a crescer e que seriam boas amigas no final.
Porém agora tenho duas gênias para lidar. É mais do que posso suportar, pensou Belgrieve enquanto coçava a cabeça.
Angeline virou-se para seu pai.
“Eu vou lutar contra Maggie. E você, pai?”
“Vou procurar nos arquivos. Volte quando terminar.”
“O quê, nem vai assistir? Vou ganhar hoje.”
“Haha, estarei ansiosa para ouvir tudo sobre o duelo. Boa sorte, Maggie.”
Angeline fez beicinho.
“Me dê um pouco de sorte também!”
“Sim, boa sorte, Ange. Tome cuidado para não se machucar.”
“Sim!”
A mulher na mesa da recepcionista despediu-se deles com um sorriso. Depois que elas foram embora, Belgrieve foi até a mesa dos aventureiros de alto escalão.
Do outro lado do balcão estava Edgar, folheando documentos. Ele olhou para cima quando Belgrieve se aproximou enquanto endireitava sua bandana que quase havia caído.
“Hey, Sr. Bell. Pesquisando de novo?”
“Sim, sinto muito por todos os problemas, Sr. Ed.”
“O que está dizendo? Seria uma grande ajuda se esse lugar fosse arrumado.” Edgar abriu a porta do balcão que ia até a cintura e fez sinal para que entrasse. “Vamos dar uma olhada nos registros quando tivermos tempo, porém não encontramos nada promissor...”
“Este é o meu problema pessoal. Não precisa se preocupar com isso.”
“Sério? No entanto sabe, não é mentira que quero ajudá-lo. Fale comigo se acontecer alguma coisa, ok?”
“Obrigado, eu irei.” Belgrieve assentiu.
A equipe da guilda se sentiu grata a Angeline, que salvou Orphen de uma grande crise, e teve uma impressão favorável de Belgrieve, que foi um fator na decisão de Angeline de ficar e lutar. Havia também a conversa constante de Angeline sobre o Ogro Vermelho e os rumores de que era difícil abordar Belgrieve.
Contudo, Edgar parecia não se importar com essas histórias. Ele era um aventureiro Rank AAA ativo que estava interessado nas habilidades de Belgrieve e o desafiou algumas vezes. Quando trabalhou no grupo de Lionel, lutou na linha média, onde se tornou um especialista em alternar entre o ataque e a defesa. Suas batalhas simuladas foram bastante impactantes em Belgrieve.
Assim, eles se aqueceram um com o outro e agora falavam em termos amigáveis, como se fossem da mesma idade. Isso era algo pelo qual Belgrieve era grato e o ajudou a entender um pouco como era visto por Graham.
“Pensando bem, onde está a Sra. Yuri?”
“Está de folga hoje. Ela precisa sair de férias de vez em quando.”
“Entendo... Ela esteve aqui todas as vezes que passei por aqui, então estava me perguntando quando tirava uma pausa.”
“Hahaha, está certo. Parece que ficamos sentados, no entanto é um trabalho surpreendentemente cansativo, sabe. Estou surpreso que consiga fazê-lo todos os dias.”
“Bom, no meu caso, não estou aqui a trabalho... Bem, então.”
Antes que Belgrieve pudesse se afastar, Edgar de repente se lembrou de algo.
“Pensando agora, poderia arranjar algum tempo à noite?”
“À noite?”
“Certo. Veja, Leo tem se desgastado nos últimos tempos, então estou pensando em convidá-lo para uma bebida ou algo para animá-lo. Contudo é chato apenas nós dois, então gostaria de se juntar a nós? O senhor Kasim também.”
“Hmm... Tem certeza sobre me convidar?”
“Bem, por que eu não convidaria um amigo? Não seja um estranho.”
“Haha, entendo. Então vou acompanhá-lo. Devo levar Ange?”
“Vá em frente. Conheço um ótimo restaurante oriental.”
Foi então que um aventureiro voltando de um trabalho concluído chegou ao balcão, e Edgar voltou-se para atendê-lo. Ele olhou para Belgrieve e assentiu.
Com um encolher de ombros, Belgrieve foi para a área de referência.
Os documentos nesta área pertenciam a solicitações de alto escalão, então não havia tantos documentos para pesquisar como havia no balcão de baixo escalão. Porém ainda assim, era demais para investigar sozinho. Muitas das solicitações antigas também não foram classificadas da maneira correta. Já que Belgrieve estava olhando entre eles de toda forma, fez questão de classificá-los onde pertenciam.
Ele examinou um título após o outro, procurando o tipo de trabalho que Percival aceitaria. Quando encontrava um que se encaixasse, o examinava com cuidado e tentava encontrar alguma pista, porém ainda não havia encontrado nada digno de nota.
Percival tinha ido para o leste — isso era certo, mas ainda não se sabia ao certo para onde estava indo e o que esperava encontrar. É provável que seria difícil descobrir seu paradeiro de Orphen. Para ser honesto, Belgrieve não conseguia apagar a sensação de que estava perdendo seu tempo.
Mesmo assim, estava em Orphen por enquanto e não conseguia manter a compostura a menos que estivesse ocupado. Repetiu a si mesmo que era também por causa de Percival e Satie, embora uma parte sua soubesse que estava apenas justificando seus próprios desejos.
A essa altura, sentia que entendia melhor as motivações de Kasim. Ele fechou o arquivo e pegou outro.
“Hmmm...” alguém disse.
Surpreso com a aparição, Belgrieve virou-se para ver uma jovem recepcionista parada ali, inquieta. A recepcionista segurava uma bandeja com uma xícara de chá floral.
“Hum... Você está sempre trabalhando tão duro! Preparei um chá, então...”
“Oh, não precisava. Muito obrigado.” Belgrieve riu e abaixou a cabeça.
Com as bochechas avermelhadas, a jovem recepcionista pousou o chá e fugiu com pressa. Surgiu algo? Belgrieve se perguntou, no entanto sua retirada só a levou além de uma parede divisória fina, e podia ouvir vozes fofoqueiras com bastante clareza.
“Como foi? Entregou?”
“Eu estava tão nervosa... Porém ele realmente é maravilhoso...”
“Ele tem um charme que os jovens não têm. Posso entender por que a Sra. Angeline é tão obcecada por seu pai.”
“Vou entregá-lo chá da próxima vez! Entendeu?”
“Não tem chá para mim?” Edgar suspirou.
“Ah, Sr. Edgar. Desculpe. Vou pegar um pouco agora.” a mulher respondeu superficialmente, toda profissional.
“Agora olhe aqui... Bem, não é da minha conta.”
Logo, as vozes ficaram distantes.
“Como devo dizer...” Belgrieve tomou um gole do chá para se distrair da sensação desconfortável que o invadiu.
○
Marguerite soltou um profundo suspiro. Ela se sentou ao lado de Angeline em um dos longos bancos perto da parede.
“Droga, um empate... Que tal se segurar um pouco mais da próxima vez?” Marguerite disse enquanto olhava para a espada de madeira em suas mãos. Sua lâmina foi reduzida a lascas.
Angeline segurava uma espada em um estado semelhante. Passando a espada entre as mãos, examinou sua condição antes de acenar para si mesma.
“Elas não suportariam toda a mana que injetamos...”
“Tsk, que chatice. Que tal usarmos as reais da próxima vez?”
“Hmm... Bem, o pai me disse para não me machucar...”
“Então está dizendo que eu seria uma ameaça para você com uma espada de verdade?” Marguerite brincou.
Angeline franziu os lábios.
“Estou brincando... Espada de madeira, espada de verdade, não importa. Você ainda tem um longo caminho a percorrer. Contudo é louvável me levar a um empate.”
“Hah, continue contando vantagem. Será a única a ter que correr atrás do prejuízo, apenas espere.” Marguerite gargalhou. Zombando, Angeline começou a cutucá-la.
Elas se aventuraram nos campos de treinamento onde pegaram espadas de treino emprestadas e imediatamente se enfrentaram. No entanto, não demorou nem alguns minutos antes de suas espadas quebrarem. As duas trocaram apenas alguns golpes, então, como Angeline havia dito, deve ter sido o mana.
Em última análise, após certo nível, seria necessário uma arma para combinar com suas habilidades. Angeline trocou de espada várias vezes ao longo de sua carreira de aventureira.
Contudo minha espada de madeira nunca quebrou indo contra o pai, pensou Angeline. Contudo ele é super forte. Quero saber o por quê? Angeline não podia entender ao certo.
Marguerite curiosamente olhou para o rosto dela.
“O que está pensando?”
“Minha espada não quebra quando luto com meu pai...”
“Bem, imagino. A espada de Bell ainda não está nesse nível.”
“Não seja estúpida. Meu pai é mais forte do que eu.”
“Tem certeza de que não está apenas se segurando?”
Angeline pareceu insultada.
“Você nem consegue compreender a habilidade dele. Acho que é o mais longe que poderá ir...”
“O que é isso, hein? Nunca perdi para Bell antes.”
Na verdade, Marguerite lutou várias vezes com Belgrieve em Turnera. As primeiras partidas foram bastante disputadas, todavia no final Marguerite sempre foi a vencedora. É certo que ela sentiu um calafrio ao enfrentá-lo várias vezes, porém nunca foi empurrada para um canto do qual não pudesse se recuperar.
Consequentemente, a avaliação de Marguerite sobre Belgrieve era ambivalente — não era fraco, por si só, contudo também não era tão forte quanto ela. Claro, isso só se aplicava à esgrima; não havia dúvidas que respeitava suas capacidades como aventureiro.
Angeline jogou o cabo de madeira no ar e o pegou.
“Meu pai está apenas se segurando...”
“Tá bom, não vou acreditar — espere, pare, chega! Sei onde esta conversa está indo! Não estou discutindo com sobre isso.” Marguerite balançou a cabeça. “Ange, sabe de uma coisa? De repente, você se torna um saco sempre que Bell está preocupado.”
“O que quer dizer com um saco...? Meu pai é forte de verdade. Você já lutou com ele antes, não é? Então tenho certeza que entende.”
“Hmm... Bom, é verdade.” Marguerite assentiu.
Embora não achasse que perderia com uma espada, Belgrieve era sem dúvida o melhor aventureiro. Se não fosse uma batalha simulada e, em vez disso, fosse um vale-tudo onde pudesse usar o terreno e suas ferramentas, talvez Belgrieve pudesse derrotá-la. Marguerite entendia algo assim.
“Mas Bell, sabe. Como ficou tão forte quando está escondido em Turnera todo esse tempo?”
“Isso é o que há de tão incrível nele... Tenho certeza que é a força de vontade.”
“Talvez.” quando se tratava de meditação — e o manuseio de mana que vinha junto — Marguerite sentia como se Belgrieve a tivesse superado em muito. “Entendo. É por esse motivo que Bell não quebra suas espadas de madeira.”
“O que quer dizer?”
Marguerite começou a traçar círculos sobre a madeira lascada com o dedo.
“Sabe, a antiga palavra élfica para mana é chi.”
“O que significa...?”
“Hmm... Bem, de acordo com meu tio-avô, é a direcionalidade — ou orientação? Uma coisa ou outra de poder.”
“Realmente não entendo.”
“Hum, você sabe. Tipo, como quando nos concentramos em algo, sem saber, começamos a colocar poder nessa coisa? O Chi flui ao longo dessa linha de consciência. Assim que conseguir controlar o fluxo de forma consciente, aumentará sua habilidade com a espada.”
“Hmm... Imagino. Não somos magas, contudo ainda colocamos mana em nossas espadas.”
“Algo parecido. Então, se quer estar mais atenta ao fluxo, o primeiro passo é a meditação. Então, depois de compreender o fluxo de mana, se concentra em brandir sua espada com ele. Só tenho metade da sensação; Não sou boa em focar... No entanto Bell é muito bom nisso. Estou supondo que seja o seu caso também, certo?”
“Isso... Pode ser verdade.” Angeline abriu e fechou a mão. Ela canalizou mana em sua espada. Podia fazê-lo instintivamente, mas nunca havia parado para pensar a respeito. Talvez o foco que colocou em seu inimigo e sua maior consciência de seus arredores na batalha fosse esse fluxo de ‘chi’ de que os elfos falavam.
“De acordo com o tio-avô, a força mental é importante. Então, deve trabalhá-la em seus movimentos conscientes. A espada de Bell pode não quebrar porque não tem muita mana para começar, contudo acho que ele também está se movendo com eficiência, sem desperdiçar nada.”
“Hehe... Como esperado do meu pai.” Angeline se encheu de orgulho, como se a própria tivesse sido elogiada.
Marguerite tinha, de fato, acertado em cheio. Esta foi em grande parte a razão pela qual a esgrima de Belgrieve avançou. Para um humano, sua quantidade de mana era, no entanto se destacava em usá-la com habilidade, combinando o mínimo de movimentos com a menor quantidade de mana.
Por ironia, a perda de sua perna serviu para aumentar sua consciência. Não podia se mover com a mesma destreza dos aventureiros que tinham as duas pernas, então precisava estar sempre ciente de como suas pernas se moviam e como a ponta de sua espada se movia. Resumindo, sem que soubesse havia feito exatamente o que seria necessário para lidar com seu mana e, com os ensinamentos de Graham, o caminho a seguir estava claro. Assim, superou uma de suas limitações. O treinamento simplório que realizou todos os dias por mais de vinte anos deu frutos. Claro, o próprio Belgrieve não havia analisado tudo a este ponto.
Angeline ficou de pé.
“Outra partida, então?”
“Claro. Espadas de verdade?”
“Bom... Vamos mantê-las embainhadas.”
“Tudo bem! Agora não há como quebrá-las!”
Marguerite alegremente pegou sua lâmina embainhada e a girou. O que Belgrieve levou vinte anos de treinamento e um mestre instrutor para realizar, essas garotas podiam aprender por puro instinto, embora não de maneira perfeita.
A segunda luta foi intensa, entretanto terminou com a vitória de Angeline. Ainda demoraria um pouco mais até que Marguerite saísse por cima.
Notas:
1. Estou fazendo uma leve adaptação de irmã para mana, pra evidenciar um pouco melhor o relacionamento íntimo das duas.
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