Capítulo 57.6: Bônus Histórias Curtas
A noite Anterior
O vento soprou por entre as árvores, farfalhando os grossos trechos de folhas verdejantes. Aqui e ali, o brilho fraco de luzes azuis e verdes surgia na escuridão, fazendo parecer que os troncos nodosos estavam flutuando em um mar de nada.
Os ventos sopravam em direção a um grande edifício — embora talvez fosse um exagero chamá-lo assim, pois foi ‘construído’ de árvores que cresceram e se entrelaçaram para formar pilares e vigas naturais. Suas folhas e galhos se sobrepunham para formar as paredes e o teto. A porta era uma folha dura maciça, enquanto as janelas eram de cristal fino. Como um todo, parecia ser uma única grande árvore.
Vaga-lumes flutuavam no crepúsculo, sua bioluminescência pontilhando brevemente o prédio em alguns lugares antes de desaparecer. De vez em quando, iluminavam uma figura humanoide, mas esses seres se moviam silenciosamente, sem uma palavra. E então houve um baque, como se alguém estivesse tentando romper o próprio silêncio. Havia três pessoas em um dos quartos, uma das quais era uma donzela élfica com o cabelo prateado preso para trás de maneira grosseira e orelhas compridas como folhas de bambu. Ela bateu com o punho cerrado na mesa.
“Mas por que...? Você sempre age como se eu estivesse abaixo de sua atenção. Por que de repente se importa agora?”
A elfa olhou com raiva para o homem que estava sentado a sua frente, que devolveu seu olhar com olhos penetrantes e tristes.
“Você é sempre assim...” a garota continuou bufando. “Não dá a mínima para mim, até que resolva fazer esse ato paternal!”
“Marguerite, eu...”
“Chega de desculpas! Estou farto delas!”
Marguerite bateu na mesa uma vez mais. Seu pai e a mulher ao lado dele trocaram um olhar.
“Maggie... Acalme-se...”
“Cale-se! Pai, mãe, por que vocês não se preocupam com a tribo ocidental que tanto amam! Esqueçam-me!”
Sem se importar com mais palavras, Marguerite irrompeu da sala, fervendo por dentro e ultrapassando os limites de sua paciência. Seu manto tremulou enquanto se afastava.
Um pouco mais adiante no corredor, através de uma porta pouco iluminada, ficava a cozinha, onde muitas mulheres élficas trabalhavam duro na limpeza. Elas piscaram quando Marguerite invadiu.
“O que há de errado, princesa?”
“Nada.” respondeu de forma seca. Marguerite estendeu a mão para uma prateleira e pegou um grande pacote embrulhado em folhas.
“Ah... O que vai fazer com esses lembas? Não comeu o suficiente para o jantar?”
“É um lanche.” disse Marguerite, guardando vários pacotes embrulhados em folhas antes de sair. Embora as mulheres trocassem olhares, evidentemente não era a primeira vez que a princesa élfica fazia isso. Suspirando, voltaram ao trabalho.
Ao mesmo tempo, Marguerite correu para seu quarto, que estava cheio de livros e ferramentas estranhas. Havia vários mapas pregados nas paredes.
“Estou farto de tudo.”
Ela tirou violentamente o roupão e enfiou os pacotes de lembas em uma sacola. Depois, pegou uma espada fina pendurada na parede e vestiu o cardigã de pele pendurado ao lado.
Esta foi outra de uma longa série de brigas, e uma grande também. Por que o pai tem que ser tão cabeça-dura? Só de lembrar a briga dos dois a enchia de desgosto.
Embora fosse um elfo, seu tio-avô foi aclamado como um herói no mundo humano. Marguerite o admirou durante toda a infância, e suas histórias de aventura aprofundaram seu desejo pelo mundo exterior. Como consequência, passou a desdenhar a vida pacífica de sua tribo como um tédio. Se houvesse alguma perspectiva de que as coisas mudassem, poderia aguentar, porém parecia que a floresta permaneceria inalterada pelos próximos cem anos.
Ela não ia passar a vida como um pássaro em uma gaiola. Se ninguém aqui pudesse entendê-la, não se sentia obrigada a ficar. Pegando seus pertences, a garota elfa saiu do quarto. À medida que a noite avançava, um silêncio pesado desceu. Claro, é pouco provável que o território élfico pudesse ser descrito como animado. Todos estavam calmos e quietos, e raras vezes levantavam a voz, mesmo nas discussões mais acaloradas. Todos esperavam serenamente a morte — assim pareceu a Marguerite.
Assim que saiu, sentiu uma brisa suave em seu rosto. Uma fraca luz azul lançava uma sombra a seus pés.
Por alguma razão, de repente achou difícil respirar. Colocando uma das mãos no peito, tomou um grande respiro. Em breve, deixaria o lugar onde havia sido criada como princesa. Embora seu coração estivesse exultante, podia admitir para si mesma que estava se sentindo ansiosa. Ainda assim, não conseguia conter seu desejo por terras distantes, de um mundo distante.
Deslizando com agilidade por entre as árvores, Marguerite tomou cuidado para não fazer barulho. A escuridão fez maravilhas escondendo sua forma.
De repente, olhou por cima do ombro para a grande árvore da realeza onde nasceu e foi criada. Olhou para uma das janelas e, através da fina vidraça de cristal, pôde ver seu pai. Ele estava olhando para longe, mesmo depois da briga, sempre foi o rei da floresta ocidental. Seu pai manteve sua compostura total, e Marguerite odiava isso. A visão dele não fez nada para reprimir seu desejo de fugir, pelo contrário, estimulou-a ainda mais.
Por um momento, parecia que seus olhos se encontraram. Marguerite, assustada, escondeu-se atrás de uma árvore.
“Não tem como meu pai me ver.” sussurrou para si mesma. “Não quando está tão escuro.”
Tomando cuidado, Marguerite colocou a cabeça para fora para olhá-lo outra vez. Seu pai estava olhando em sua direção, contudo ela não sabia se ele podia vê-la. Talvez estivesse apenas olhando para a floresta. Parecia idiota parar para algo assim.
Marguerite respirou fundo e virou as costas.
“Você realmente vai ter que me ver um dia desses. Vou me certificar disso.”
Ela saiu correndo. Mesmo depois que sumiu de vista, seu pai continuou olhando para a floresta.
O vento soprou e farfalhou as árvores.
A pequena carroça de um cavalo descia a estrada, com destino a Estogal. Gilmenja segurava as rédeas, enquanto Angeline encostava-se à grade atrás, olhando para a paisagem distante.
Uma viagem tranquila de Orphen até a cidade de Estogal levaria cerca de meio mês. Talvez chegassem mais cedo se se apressassem, no entanto iam para o baile e nada mais. Chegar cedo seria inútil. Assim, escolheram levar o seu tempo.
No geral, uma viagem descontraída seria um pouco mais agradável, mas agora que suas férias haviam sido arruinadas, Angeline não estava no melhor dos humores. Gilmenja, que havia assumido um papel de coadjuvante nessa jornada, olhou por cima do ombro com seu sorriso habitual.
“Alguém está mal-humorada. O estômago vazio te incomodando?”
“Não é bem isso...” Angeline disse, taciturnamente descansando o queixo na borda do vagão. A carroça saltava toda vez que batia em uma pedra, e o impacto ressoava de sua mandíbula até o topo de sua cabeça e fazia o cenário vibrar.
Gilmenja jogou algo para Angeline, que pegou com uma mão sem olhar. Era um doce assado com frutas secas amassadas na massa.
Carrancuda, Angeline, no entanto, engoliu. Podia sentir a umidade saindo de sua boca.
“Você tem água?”
“Não.”
“Sério...?”
“Estaríamos condenadas se eu não tivesse.” Gilmenja jogou uma garrafa.
Fazia cerca de uma semana desde que as duas deixaram Orphen. Supunha-se que ficaria mais quente quanto mais ao sul se dirigissem, porém isto foi mitigado pela invasão do inverno. Em alguns dias, haveria neve e gelo misturados à chuva, e os ventos golpeariam impiedosamente sua pele.
Depois de saciar a sede, Angeline puxou o cobertor sobre os ombros para cobrir a cabeça. No dia anterior, elas haviam suportado a chuva cheia de granizo e tudo à vista estava úmido e sombrio.
“Quanto tempo até Estogal, Gil?”
“Estamos fazendo um bom tempo. Devemos estar lá amanhã.”
“Hã? Sério?”
“Estou brincando. Estamos na metade do caminho, tee hee.”
Angeline estufou as bochechas e encostou-se na grade uma vez mais. As travessuras de Gilmenja não eram novidade — ela estava sempre mentindo como se não fosse nada. Angeline desistiu de se preocupar com isso e se concentrou na paisagem.
Á distância podia ver moinhos de vento e, além dos moinhos, montanhas adornadas com os vermelhos e amarelos de suas florestas outonais. Logo as folhas começariam a cair. Em Turnera, o outono já estaria no auge e um tapete de folhas já se espalharia pelo chão da floresta.
De fato, seria hora de se preparar para o festival de outono. Era nessa época do ano que teria procurado nas montanhas por amoras silvestres e akebia, e remexeu nas folhas caídas em busca de cogumelos. Embora os céus fossem escuros e cinzentos no inverno, permaneceriam de um azul claro e penetrante até o festival de outono. Os pássaros ainda seriam vistos traçando caminhos circulares acima e, do outro lado dos riachos, Angeline frequentemente veria ursos forrageando em preparação para a hibernação.
Rastejando em direção ao banco do motorista, Angeline se sentou e se aninhou ao lado de Gilmenja.
Pela primeira vez, a sempre presunçosa Gilmenja ficou um pouco surpresa.
“O que?”
“Não é nada.” disse Angeline, embora se aninhasse ainda mais perto. Estava tomada por um terrível sentimento de solidão e se sentiu compelida a ficar perto de alguém. Embora Gilmenja estivesse confusa com o olhar estranho no rosto de Angeline, sentiu que algo estava acontecendo com a garota. Recuperando a compostura, cutucou o ombro de Angeline.
“Eu nunca poderia substituir seu pai, hehe.”
“Eu sei. Ninguém poderia substituí-lo...”
“Hmm, bem, visto que está se agarrando a mim assim, devo estar substituindo alguém. Agora, quem poderia ser?”
“Não seja má.”
Gilmenja gargalhou.
A carroça de um mascate passou um pouco à frente delas. As duas carroças estavam viajando na mesma velocidade, então sua carroça estava traçando os sulcos das rodas do veículo do mascate. Mais à frente havia uma carruagem que acomodava muito mais passageiros, e desta as melodias fracas dos trovadores voavam ao vento.
Muitos artistas e comerciantes viajantes já estariam em Turnera para o festival. Quando criança, Angeline gostava de suas canções e apresentações dramáticas. Seus olhos brilhariam com as histórias de aventureiros de Rank S caçando dragões e outros monstros de alto escalão. Eles eram diferentes dos contos de Belgrieve — aqueles eram mais baseados na realidade — mas, ainda assim, mexeram com seu coração.
Agora estariam cantando sobre suas façanhas. Suas bochechas ficaram vermelhas quando ouviu um menestrel cantando uma canção de matança de demônios na última cidade em que pararam. Foi um pouco perturbador ouvir o nome da Valquíria de Cabelos Negros ser chamado com tanto alarde.
Foi por causa de sua fama que sua viagem para casa foi repentinamente cancelada e, em vez disso, foi convocada para a mansão do arquiduque. Os poderes que ganhou com seu desejo de ser elogiada por Belgrieve voltaram para mordê-la. Angeline fez beicinho, inclinando ainda mais seu peso contra Gilmenja.
“Você é pesada, Ange. Gosta tanto assim de mim?”
“Não é isso...”
Ela mesma não entendia muito bem, todavia era muito mais confortável do que abraçar os próprios joelhos em um canto.
Gilmenja sorriu enquanto despenteava o cabelo da garota.
“Controle-se. Chegaremos à próxima cidade em breve.”
“Ugh...”
Angeline olhou carrancuda para a estrada, observando as outras carruagens e a grama ondulando a beira da estrada. A vista era esplêndida, mas não viu sinais de qualquer aldeia.
“O que está errado? Hehehe.”
Gilmenja olhou para o rosto de Angeline, parecendo se divertir como sempre.
Outra mentira, pensou Angeline. Porém sabia que seria provocada se dissesse algo mais a respeito.
As cores deslumbrantes do outono haviam se instalado em Turnera. Vermelhos ardentes e amarelos revigorantes cobriam a montanha, com as sempre-vivas no meio proporcionando uma pausa para os olhos. No entanto logo, na época do festival de outono, um vento frio começaria a soprar do norte e espalharia as folhas de seus galhos. Essas folhas caídas cobririam o chão da floresta e os cogumelos começariam a surgir nas brechas.
Os mirtilos já teriam ido embora, comidos por pássaros, feras e tudo o mais que os desejasse. Quaisquer bagas vermelhas que sobrassem seriam pisoteadas, suas cascas estouradas repletas de insetos.
Belgrieve conduziu Mit pela floresta antes do amanhecer, até o topo de uma vista panorâmica alta nos arredores da vila. Quando o sol da manhã começou a brilhar sobre a vila, eles puderam ver a fumaça da chaminé se dissipando no céu claro de outono. O festival já havia passado, contudo alguns mascates e artistas ainda não estavam prontos para partir, então a praça da vila era como um eco suave da atmosfera festiva anterior.
Mit puxou a capa de Belgrieve.
“Pai... Espera...”
“Oh, você já está cansado?”
Belgrieve levantou o menino em seus braços. Mit se contorceu até ter os braços firmemente em volta do pescoço de Belgrieve.
Achei que nunca mais embarcaria em uma aventura, pensou Belgrieve enquanto fechava os olhos. Mas ele sabia que era hora de fazer as pazes com seu passado. Foi repentino, e estaria mentindo se dissesse que estava pronto para isso. O cenário familiar acalmou seu coração, porém também foi tingido com a tristeza de saber que não o veria de novo por um longo tempo.
Respirando fundo, encheu os pulmões com o ar fresco que já carregava um toque de inverno.
“Devemos ir.”
“Hmm.”
Belgrieve desceu a colina com Mit em seus braços, para encontrar Marguerite sentada na carroça, conversando animada com a mascate de cabelos azuis. Graham ficou ao lado.
“Hã? Nunca viu o salmão subindo a corrente? É incrível, posso garantir. Venha na hora certa, e todo o rio estará coberto de frente a ponta com as coisas. Nem precisa pegá-los; os azarados são empurrados contra as margens, e pode só estender a mão e agarrá-los assim.” Marguerite imitou pegar um peixe.
A mascate deu uma risadinha.
“Pescar com as próprias mãos... Hehe, que selvagem. Sempre pensei que os elfos eram um pouco... Bem, ‘místicos’ é como eu diria.”
“Do que está falando? Todos nós temos que comer para viver. Certo, tio-avô?”
“De fato... Nós também construímos casas, forrageamos para comer e fazemos roupas. Não somos muito diferentes dos humanos.”
Mit caminhou bamboleando e pulou em Graham.
“Vovô...”
“Oh, Bell. Finalmente aqui.”
Marguerite saltou em expectativa.
“O que estava fazendo? Estamos todos prontos para ir.”
“Desculpe. Eu já estava sentindo um pouco de saudades de casa.” Belgrieve coçou a cabeça com um sorriso irônico. Ele olhou ao redor. “Onde está Duncan?”
“Você estava demorando tanto que Duncan decidiu dar um passeio com Hannah.” Marguerite sorriu, os braços cruzados atrás da cabeça.
Com um olhar preocupado, Belgrieve se desculpou mais uma vez, desta vez a mascate.
“Sinto muito por atrasar sua partida.”
“Não se preocupe. Só preciso chegar a Rodina hoje. Temos muito tempo, não se preocupe.” ela disse, acenando com a mão com desdém.
O tempo estava bom desde o início da manhã e, embora o vento estivesse frio, o céu estava azul até onde a vista alcançava. A mascate estremeceu com uma rajada um pouco mais fria.
“Com certeza fica frio aqui. Está bem vestida assim, Marguerite?”
Além de seu cardigã de pele, Marguerite estava adornada com nada mais do que um pano sobre o peito e calças curtas, expondo impiedosamente sua pele élfica. Ela de fato parecia estar com frio, mas a garota só inclinou a cabeça.
“Na verdade. É ainda mais frio de onde eu venho.”
“Wow, isso é incrível.” disse a mascate, com descrença no rosto enquanto esfregava as mãos para se aquecer.
As canções do povo errante eram levadas pelo vento. O sol subia de pouco em pouco, embora não atingisse a altura que atingia nos meses de verão. Algum tempo se passou antes que Duncan voltasse com Hannah.
“Droga, eu agarrei você...”
“Não, é minha culpa por me afastar. Já se despediu?”
“Longe de ser um adeus.” o rosto barbudo de Duncan corou enquanto Hannah soltava um sorriso tímido.
Eles já haviam carregado suas bagagens no dia anterior para que estivessem prontos para partir assim que todos estivessem reunidos. Marguerite saltou alegremente a bordo da carruagem, e Duncan logo a seguiria.
Belgrieve olhou ao redor. Seus olhos se encontraram com Graham, que segurava Mit em seus braços.
“Mit, você tem que ouvir o que o vovô diz, ok?”
“Sim...”
“Tome cuidado, Bell. Cuide de Marguerite para mim.”
“Eu vou. E conto com você para cuidar de Turnera.”
Belgrieve subiu a bordo. A mascate tomou as rédeas e, incitando o cavalo, iniciaram lentamente a viagem. Os aldeões que perambulavam pela praça acenavam ao passar; Marguerite se inclinou para acenar para eles em troca. O vento em suas costas trazia o balido das cabras e o chilrear dos pássaros, o som das crianças brincando e o dedilhar dos alaúdes.
Os ventos sopravam em direção a um grande edifício — embora talvez fosse um exagero chamá-lo assim, pois foi ‘construído’ de árvores que cresceram e se entrelaçaram para formar pilares e vigas naturais. Suas folhas e galhos se sobrepunham para formar as paredes e o teto. A porta era uma folha dura maciça, enquanto as janelas eram de cristal fino. Como um todo, parecia ser uma única grande árvore.
Vaga-lumes flutuavam no crepúsculo, sua bioluminescência pontilhando brevemente o prédio em alguns lugares antes de desaparecer. De vez em quando, iluminavam uma figura humanoide, mas esses seres se moviam silenciosamente, sem uma palavra. E então houve um baque, como se alguém estivesse tentando romper o próprio silêncio. Havia três pessoas em um dos quartos, uma das quais era uma donzela élfica com o cabelo prateado preso para trás de maneira grosseira e orelhas compridas como folhas de bambu. Ela bateu com o punho cerrado na mesa.
“Mas por que...? Você sempre age como se eu estivesse abaixo de sua atenção. Por que de repente se importa agora?”
A elfa olhou com raiva para o homem que estava sentado a sua frente, que devolveu seu olhar com olhos penetrantes e tristes.
“Você é sempre assim...” a garota continuou bufando. “Não dá a mínima para mim, até que resolva fazer esse ato paternal!”
“Marguerite, eu...”
“Chega de desculpas! Estou farto delas!”
Marguerite bateu na mesa uma vez mais. Seu pai e a mulher ao lado dele trocaram um olhar.
“Maggie... Acalme-se...”
“Cale-se! Pai, mãe, por que vocês não se preocupam com a tribo ocidental que tanto amam! Esqueçam-me!”
Sem se importar com mais palavras, Marguerite irrompeu da sala, fervendo por dentro e ultrapassando os limites de sua paciência. Seu manto tremulou enquanto se afastava.
Um pouco mais adiante no corredor, através de uma porta pouco iluminada, ficava a cozinha, onde muitas mulheres élficas trabalhavam duro na limpeza. Elas piscaram quando Marguerite invadiu.
“O que há de errado, princesa?”
“Nada.” respondeu de forma seca. Marguerite estendeu a mão para uma prateleira e pegou um grande pacote embrulhado em folhas.
“Ah... O que vai fazer com esses lembas? Não comeu o suficiente para o jantar?”
“É um lanche.” disse Marguerite, guardando vários pacotes embrulhados em folhas antes de sair. Embora as mulheres trocassem olhares, evidentemente não era a primeira vez que a princesa élfica fazia isso. Suspirando, voltaram ao trabalho.
Ao mesmo tempo, Marguerite correu para seu quarto, que estava cheio de livros e ferramentas estranhas. Havia vários mapas pregados nas paredes.
“Estou farto de tudo.”
Ela tirou violentamente o roupão e enfiou os pacotes de lembas em uma sacola. Depois, pegou uma espada fina pendurada na parede e vestiu o cardigã de pele pendurado ao lado.
Esta foi outra de uma longa série de brigas, e uma grande também. Por que o pai tem que ser tão cabeça-dura? Só de lembrar a briga dos dois a enchia de desgosto.
Embora fosse um elfo, seu tio-avô foi aclamado como um herói no mundo humano. Marguerite o admirou durante toda a infância, e suas histórias de aventura aprofundaram seu desejo pelo mundo exterior. Como consequência, passou a desdenhar a vida pacífica de sua tribo como um tédio. Se houvesse alguma perspectiva de que as coisas mudassem, poderia aguentar, porém parecia que a floresta permaneceria inalterada pelos próximos cem anos.
Ela não ia passar a vida como um pássaro em uma gaiola. Se ninguém aqui pudesse entendê-la, não se sentia obrigada a ficar. Pegando seus pertences, a garota elfa saiu do quarto. À medida que a noite avançava, um silêncio pesado desceu. Claro, é pouco provável que o território élfico pudesse ser descrito como animado. Todos estavam calmos e quietos, e raras vezes levantavam a voz, mesmo nas discussões mais acaloradas. Todos esperavam serenamente a morte — assim pareceu a Marguerite.
Assim que saiu, sentiu uma brisa suave em seu rosto. Uma fraca luz azul lançava uma sombra a seus pés.
Por alguma razão, de repente achou difícil respirar. Colocando uma das mãos no peito, tomou um grande respiro. Em breve, deixaria o lugar onde havia sido criada como princesa. Embora seu coração estivesse exultante, podia admitir para si mesma que estava se sentindo ansiosa. Ainda assim, não conseguia conter seu desejo por terras distantes, de um mundo distante.
Deslizando com agilidade por entre as árvores, Marguerite tomou cuidado para não fazer barulho. A escuridão fez maravilhas escondendo sua forma.
De repente, olhou por cima do ombro para a grande árvore da realeza onde nasceu e foi criada. Olhou para uma das janelas e, através da fina vidraça de cristal, pôde ver seu pai. Ele estava olhando para longe, mesmo depois da briga, sempre foi o rei da floresta ocidental. Seu pai manteve sua compostura total, e Marguerite odiava isso. A visão dele não fez nada para reprimir seu desejo de fugir, pelo contrário, estimulou-a ainda mais.
Por um momento, parecia que seus olhos se encontraram. Marguerite, assustada, escondeu-se atrás de uma árvore.
“Não tem como meu pai me ver.” sussurrou para si mesma. “Não quando está tão escuro.”
Tomando cuidado, Marguerite colocou a cabeça para fora para olhá-lo outra vez. Seu pai estava olhando em sua direção, contudo ela não sabia se ele podia vê-la. Talvez estivesse apenas olhando para a floresta. Parecia idiota parar para algo assim.
Marguerite respirou fundo e virou as costas.
“Você realmente vai ter que me ver um dia desses. Vou me certificar disso.”
Ela saiu correndo. Mesmo depois que sumiu de vista, seu pai continuou olhando para a floresta.
O vento soprou e farfalhou as árvores.
Na estrada
A pequena carroça de um cavalo descia a estrada, com destino a Estogal. Gilmenja segurava as rédeas, enquanto Angeline encostava-se à grade atrás, olhando para a paisagem distante.
Uma viagem tranquila de Orphen até a cidade de Estogal levaria cerca de meio mês. Talvez chegassem mais cedo se se apressassem, no entanto iam para o baile e nada mais. Chegar cedo seria inútil. Assim, escolheram levar o seu tempo.
No geral, uma viagem descontraída seria um pouco mais agradável, mas agora que suas férias haviam sido arruinadas, Angeline não estava no melhor dos humores. Gilmenja, que havia assumido um papel de coadjuvante nessa jornada, olhou por cima do ombro com seu sorriso habitual.
“Alguém está mal-humorada. O estômago vazio te incomodando?”
“Não é bem isso...” Angeline disse, taciturnamente descansando o queixo na borda do vagão. A carroça saltava toda vez que batia em uma pedra, e o impacto ressoava de sua mandíbula até o topo de sua cabeça e fazia o cenário vibrar.
Gilmenja jogou algo para Angeline, que pegou com uma mão sem olhar. Era um doce assado com frutas secas amassadas na massa.
Carrancuda, Angeline, no entanto, engoliu. Podia sentir a umidade saindo de sua boca.
“Você tem água?”
“Não.”
“Sério...?”
“Estaríamos condenadas se eu não tivesse.” Gilmenja jogou uma garrafa.
Fazia cerca de uma semana desde que as duas deixaram Orphen. Supunha-se que ficaria mais quente quanto mais ao sul se dirigissem, porém isto foi mitigado pela invasão do inverno. Em alguns dias, haveria neve e gelo misturados à chuva, e os ventos golpeariam impiedosamente sua pele.
Depois de saciar a sede, Angeline puxou o cobertor sobre os ombros para cobrir a cabeça. No dia anterior, elas haviam suportado a chuva cheia de granizo e tudo à vista estava úmido e sombrio.
“Quanto tempo até Estogal, Gil?”
“Estamos fazendo um bom tempo. Devemos estar lá amanhã.”
“Hã? Sério?”
“Estou brincando. Estamos na metade do caminho, tee hee.”
Angeline estufou as bochechas e encostou-se na grade uma vez mais. As travessuras de Gilmenja não eram novidade — ela estava sempre mentindo como se não fosse nada. Angeline desistiu de se preocupar com isso e se concentrou na paisagem.
Á distância podia ver moinhos de vento e, além dos moinhos, montanhas adornadas com os vermelhos e amarelos de suas florestas outonais. Logo as folhas começariam a cair. Em Turnera, o outono já estaria no auge e um tapete de folhas já se espalharia pelo chão da floresta.
De fato, seria hora de se preparar para o festival de outono. Era nessa época do ano que teria procurado nas montanhas por amoras silvestres e akebia, e remexeu nas folhas caídas em busca de cogumelos. Embora os céus fossem escuros e cinzentos no inverno, permaneceriam de um azul claro e penetrante até o festival de outono. Os pássaros ainda seriam vistos traçando caminhos circulares acima e, do outro lado dos riachos, Angeline frequentemente veria ursos forrageando em preparação para a hibernação.
Rastejando em direção ao banco do motorista, Angeline se sentou e se aninhou ao lado de Gilmenja.
Pela primeira vez, a sempre presunçosa Gilmenja ficou um pouco surpresa.
“O que?”
“Não é nada.” disse Angeline, embora se aninhasse ainda mais perto. Estava tomada por um terrível sentimento de solidão e se sentiu compelida a ficar perto de alguém. Embora Gilmenja estivesse confusa com o olhar estranho no rosto de Angeline, sentiu que algo estava acontecendo com a garota. Recuperando a compostura, cutucou o ombro de Angeline.
“Eu nunca poderia substituir seu pai, hehe.”
“Eu sei. Ninguém poderia substituí-lo...”
“Hmm, bem, visto que está se agarrando a mim assim, devo estar substituindo alguém. Agora, quem poderia ser?”
“Não seja má.”
Gilmenja gargalhou.
A carroça de um mascate passou um pouco à frente delas. As duas carroças estavam viajando na mesma velocidade, então sua carroça estava traçando os sulcos das rodas do veículo do mascate. Mais à frente havia uma carruagem que acomodava muito mais passageiros, e desta as melodias fracas dos trovadores voavam ao vento.
Muitos artistas e comerciantes viajantes já estariam em Turnera para o festival. Quando criança, Angeline gostava de suas canções e apresentações dramáticas. Seus olhos brilhariam com as histórias de aventureiros de Rank S caçando dragões e outros monstros de alto escalão. Eles eram diferentes dos contos de Belgrieve — aqueles eram mais baseados na realidade — mas, ainda assim, mexeram com seu coração.
Agora estariam cantando sobre suas façanhas. Suas bochechas ficaram vermelhas quando ouviu um menestrel cantando uma canção de matança de demônios na última cidade em que pararam. Foi um pouco perturbador ouvir o nome da Valquíria de Cabelos Negros ser chamado com tanto alarde.
Foi por causa de sua fama que sua viagem para casa foi repentinamente cancelada e, em vez disso, foi convocada para a mansão do arquiduque. Os poderes que ganhou com seu desejo de ser elogiada por Belgrieve voltaram para mordê-la. Angeline fez beicinho, inclinando ainda mais seu peso contra Gilmenja.
“Você é pesada, Ange. Gosta tanto assim de mim?”
“Não é isso...”
Ela mesma não entendia muito bem, todavia era muito mais confortável do que abraçar os próprios joelhos em um canto.
Gilmenja sorriu enquanto despenteava o cabelo da garota.
“Controle-se. Chegaremos à próxima cidade em breve.”
“Ugh...”
Angeline olhou carrancuda para a estrada, observando as outras carruagens e a grama ondulando a beira da estrada. A vista era esplêndida, mas não viu sinais de qualquer aldeia.
“O que está errado? Hehehe.”
Gilmenja olhou para o rosto de Angeline, parecendo se divertir como sempre.
Outra mentira, pensou Angeline. Porém sabia que seria provocada se dissesse algo mais a respeito.
Partida
As cores deslumbrantes do outono haviam se instalado em Turnera. Vermelhos ardentes e amarelos revigorantes cobriam a montanha, com as sempre-vivas no meio proporcionando uma pausa para os olhos. No entanto logo, na época do festival de outono, um vento frio começaria a soprar do norte e espalharia as folhas de seus galhos. Essas folhas caídas cobririam o chão da floresta e os cogumelos começariam a surgir nas brechas.
Os mirtilos já teriam ido embora, comidos por pássaros, feras e tudo o mais que os desejasse. Quaisquer bagas vermelhas que sobrassem seriam pisoteadas, suas cascas estouradas repletas de insetos.
Belgrieve conduziu Mit pela floresta antes do amanhecer, até o topo de uma vista panorâmica alta nos arredores da vila. Quando o sol da manhã começou a brilhar sobre a vila, eles puderam ver a fumaça da chaminé se dissipando no céu claro de outono. O festival já havia passado, contudo alguns mascates e artistas ainda não estavam prontos para partir, então a praça da vila era como um eco suave da atmosfera festiva anterior.
Mit puxou a capa de Belgrieve.
“Pai... Espera...”
“Oh, você já está cansado?”
Belgrieve levantou o menino em seus braços. Mit se contorceu até ter os braços firmemente em volta do pescoço de Belgrieve.
Achei que nunca mais embarcaria em uma aventura, pensou Belgrieve enquanto fechava os olhos. Mas ele sabia que era hora de fazer as pazes com seu passado. Foi repentino, e estaria mentindo se dissesse que estava pronto para isso. O cenário familiar acalmou seu coração, porém também foi tingido com a tristeza de saber que não o veria de novo por um longo tempo.
Respirando fundo, encheu os pulmões com o ar fresco que já carregava um toque de inverno.
“Devemos ir.”
“Hmm.”
Belgrieve desceu a colina com Mit em seus braços, para encontrar Marguerite sentada na carroça, conversando animada com a mascate de cabelos azuis. Graham ficou ao lado.
“Hã? Nunca viu o salmão subindo a corrente? É incrível, posso garantir. Venha na hora certa, e todo o rio estará coberto de frente a ponta com as coisas. Nem precisa pegá-los; os azarados são empurrados contra as margens, e pode só estender a mão e agarrá-los assim.” Marguerite imitou pegar um peixe.
A mascate deu uma risadinha.
“Pescar com as próprias mãos... Hehe, que selvagem. Sempre pensei que os elfos eram um pouco... Bem, ‘místicos’ é como eu diria.”
“Do que está falando? Todos nós temos que comer para viver. Certo, tio-avô?”
“De fato... Nós também construímos casas, forrageamos para comer e fazemos roupas. Não somos muito diferentes dos humanos.”
Mit caminhou bamboleando e pulou em Graham.
“Vovô...”
“Oh, Bell. Finalmente aqui.”
Marguerite saltou em expectativa.
“O que estava fazendo? Estamos todos prontos para ir.”
“Desculpe. Eu já estava sentindo um pouco de saudades de casa.” Belgrieve coçou a cabeça com um sorriso irônico. Ele olhou ao redor. “Onde está Duncan?”
“Você estava demorando tanto que Duncan decidiu dar um passeio com Hannah.” Marguerite sorriu, os braços cruzados atrás da cabeça.
Com um olhar preocupado, Belgrieve se desculpou mais uma vez, desta vez a mascate.
“Sinto muito por atrasar sua partida.”
“Não se preocupe. Só preciso chegar a Rodina hoje. Temos muito tempo, não se preocupe.” ela disse, acenando com a mão com desdém.
O tempo estava bom desde o início da manhã e, embora o vento estivesse frio, o céu estava azul até onde a vista alcançava. A mascate estremeceu com uma rajada um pouco mais fria.
“Com certeza fica frio aqui. Está bem vestida assim, Marguerite?”
Além de seu cardigã de pele, Marguerite estava adornada com nada mais do que um pano sobre o peito e calças curtas, expondo impiedosamente sua pele élfica. Ela de fato parecia estar com frio, mas a garota só inclinou a cabeça.
“Na verdade. É ainda mais frio de onde eu venho.”
“Wow, isso é incrível.” disse a mascate, com descrença no rosto enquanto esfregava as mãos para se aquecer.
As canções do povo errante eram levadas pelo vento. O sol subia de pouco em pouco, embora não atingisse a altura que atingia nos meses de verão. Algum tempo se passou antes que Duncan voltasse com Hannah.
“Droga, eu agarrei você...”
“Não, é minha culpa por me afastar. Já se despediu?”
“Longe de ser um adeus.” o rosto barbudo de Duncan corou enquanto Hannah soltava um sorriso tímido.
Eles já haviam carregado suas bagagens no dia anterior para que estivessem prontos para partir assim que todos estivessem reunidos. Marguerite saltou alegremente a bordo da carruagem, e Duncan logo a seguiria.
Belgrieve olhou ao redor. Seus olhos se encontraram com Graham, que segurava Mit em seus braços.
“Mit, você tem que ouvir o que o vovô diz, ok?”
“Sim...”
“Tome cuidado, Bell. Cuide de Marguerite para mim.”
“Eu vou. E conto com você para cuidar de Turnera.”
Belgrieve subiu a bordo. A mascate tomou as rédeas e, incitando o cavalo, iniciaram lentamente a viagem. Os aldeões que perambulavam pela praça acenavam ao passar; Marguerite se inclinou para acenar para eles em troca. O vento em suas costas trazia o balido das cabras e o chilrear dos pássaros, o som das crianças brincando e o dedilhar dos alaúdes.
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