Capítulo 66: Os rios transbordavam
Os rios transbordavam a cada ano à medida que a neve derretia. No entanto, uma camada pálida de gelo espesso permaneceria perto das margens e, nos dias mais frios, preservaria a forma congelada do fluxo turbulento. Contudo com a primavera se aproximando, grande parte do gelo já havia saído.
Enquanto os cavalos paravam para beber da margem do rio, os passageiros desciam da carroça e esticavam seus corpos rígidos, tagarelando como uma tempestade.
“Entendo! Você deve parar se estiver na área. Seria uma honra para eu hospedar a Valquíria de Cabelos Negros!”
“Hmm... Vou considerar isso.”
O filho nobre riu e foi embora. Sua casa era mais pobre, porém eles tinham seu próprio território. Os rumores de que Angeline recebera uma medalha do Arquiduque Estogal se espalharam e parecia que outros nobres agora estavam de olho nela. Na verdade, várias pessoas a procuraram durante a viagem. Muitos tinham segundas intenções e estavam apenas tentando usá-la, mas Angeline já estava acostumada e lidou com todos sem problemas. Sua insociabilidade inata provou ser útil nos lugares mais estranhos.
Agora que Angeline estava sozinha, Yakumo sentou-se ao seu lado.
“Pessoas famosas com certeza estão ocupadas.”
“Não que eu queira ser...”
“Sério? Precisa de mais iniciativa. Se é uma aventureira, não é natural pensar em como ganhar mais ou como aumentar sua reputação?”
“Não estou interessada...” Angeline disse com um suspiro, abraçando um dos joelhos. Yakumo riu e tomou um gole de seu frasco de cabaça. Mais adiante na estrada, eles podiam ver Charlotte correndo e Lucille vagarosamente atrás.
Nos últimos dias, Yakumo e Lucille se aproximaram bastante do grupo. Yakumo era descontraída e brincalhona, e todos ouviam suas histórias do leste. A princípio, ficaram incomodados com o comportamento peculiar de Lucille, entretanto agora apenas riram da situação — embora Charlotte não fosse tão indulgente.
Limpando a boca com a manga, Yakumo deixou seu olhar vagar.
“Estou surpresa que tenha subido para o Rank S com tão pouca ambição... Quer uma bebida?”
“Hmm... Obrigado.”
Angeline aceitou e deu um gole. Foi um delicioso vinho branco gelado. Angeline respirou fundo antes de devolvê-lo.
“Sra. Yakumo, aquela pessoa que está procurando... É alguém importante para você?”
“Não exatamente. É apenas um trabalho.”
“E seu trabalho levá-la até o norte... Você tem uma vida difícil.”
“Hehehe, sim, não é? É um trabalho mais envolvente do que esperei. Não há nada mais difícil de lidar do que o coração humano.”
Angeline parou por um momento.
“O que quer dizer?”
“Ange, também está se sentindo perdida com alguma coisa.”
O coração de Angeline disparou e desviou o olhar instintivamente.
Coçando a cabeça, Yakumo continuou.
“Não estou a criticando. Todos nós nos perdemos várias vezes — é apenas como a vida é. Não é uma coisa ruim mergulhar em um desses momentos.”
“Já experimentou um momento assim?”
“Claro que sim. Estou perdida, mesmo agora.”
“Sobre o que...?”
“Hehe, bem, isso é um segredo. Toda mulher precisa de sua parte justa.” Yakumo riu, segurando o dedo indicador na frente da boca.
Os cavalos foram reajustados e o condutor fez uma chamada de embarque. Os passageiros, que se dispersaram em pequenos grupos, começaram a voltar para o vagão.
Bordeaux aproximava-se a cada dia — é provável que chegassem ao entardecer do dia seguinte. Além de um encontro com monstros ao longo do caminho, o grupo chegou até aqui sem nenhum obstáculo em particular. Mesmo aquele ataque demoníaco provou ser inconsequente graças a Angeline e Kasim.
Uma hora depois, chegaram à parada da noite. Essas cidades de hospedagem na maioria das vezes ficavam a um dia de viagem de carroça uma da outra. Havia muitos comerciantes esperando fazer negócios assim que as terras do norte estivessem acessíveis, então cada parada de descanso estava cheia de vida.
Charlotte correu ao redor da carroça estacionada.
“Vamos brincar mocinha...”
“Não! Pare de me cheirar, estúpida!”
Enquanto Lucille aproximava primeiro seu nariz, Charlotte se afastou o mais rápido que suas curtas pernas permitiram e se abaixou atrás de Belgrieve.
“Parece que vocês duas estão se dando bem.”
“Não somos! Ah, ela me encontrou!” Charlotte saiu correndo de novo, levando Lucille a soltar um suspiro desapontado.
“Ela fugiu de novo...”
“Não a intimide muito, Lucille. Char é uma garota delicada.”
Bem, não parece que Charlotte a odeie de verdade, pensou Belgrieve. Parecia que a jovem estava mesmo se divertindo fugindo e fingindo.
“As pessoas do passado costumavam dizer: ‘tudo que você precisa é amor’. No entanto parece que o amor não é suficiente.”
“Nunca consigo dizer ao certo do que está falando.”
“Essa criança cheira bem, Sr. Bell. Um aroma que não encontra com frequência... Não é como o cheiro dominante do perfume de um nobre, nem é o cheiro pitoresco de sujeira e suor de um plebeu... É redondo, macio e maravilhoso.”
“É o que acha? Bom, imagino que tenha um nariz melhor do que o meu. Não posso opinar.” Belgrieve disse enquanto colocava suas malas no chão.
“A tristeza me atingiu... Contudo é nos momentos mais duros, nas provações mais duras que cantamos. ‘Oh querida, por favor, não vá’.” cantou Lucille, dedilhando seu violão de seis cordas. Embora suas letras falassem de dificuldades, sua voz era surpreendentemente indiferente, sem um pingo de tristeza em sua melodia. Uma música triste sobre uma melodia alegre era um pouco incompatível, porém Belgrieve teve que se perguntar se essa alegria um tanto confusa veio dos homens bestas do sul superando sua história sombria.
Era uma chateação descarregar seus pertences toda vez que chegavam a uma pousada, mas era melhor do que deixá-los correr o risco de serem arrancados da carroça. Belgrieve já havia dominado o processo e, depois de descarregar habilmente todos os seus pertences da carroça, entregou-os a seus amigos para que os levassem para o quarto.
Parecia que havia mais inverno pairando no ar quanto mais perto eles chegavam de Bordeaux. A brisa suave recuperou sua nitidez e a neve ainda pintava a paisagem com manchas brancas. Ainda assim, não era nada comparado ao quão duro um inverno do norte poderia ser. Os fazendeiros já estavam cuidando de seus campos, e brotos de trigo frescos já despontavam suas faces verdes no solo. Eram visões como essas que o lembravam de que estava se aproximando de casa, e Belgrieve se sentiu bastante aliviado. Essas paisagens campestres lhe convinham muito mais do que a cidade.
Enquanto jogava a última bolsa no ombro, Yakumo caminhou até ele.
“Hey, Sr. Bell. Pegou tudo?”
“Sim, obrigado pela ajuda. Esta deve ser a última peça.”
“Hmm, você carrega muito para alguém que não é mascate.”
“Sim, esse é o homem do campo em mim se mostrando... Deve ser bom ter tão pouco para carregar.”
“Viajar leve é o que significa ser um vadio. Não se preocupe em retribuir minha ajuda — pode me dar uma mão mais tarde.”
“Obrigado de qualquer maneira.” Belgrieve sorriu enquanto mexia na bolsa. Começou a andar, Yakumo e Lucille o seguindo. Estavam hospedados na mesma pousada. “Então, devemos chegar a Bordeaux amanhã. Espero que encontre quem está procurando.”
Yakumo coçou a bochecha.
“Espero que sim...”
“Hmm...? Há algo de errado?”
“Bem...” Yakumo riu desajeitadamente. “Não é nada.”
Belgrieve se separou das duas e entrou em seu quarto para encontrar Kasim e Byaku sentados em uma mesa um de frente para o outro. Byaku permaneceu parado com os olhos fechados, embora Kasim tenha se virado ao ouvir a batida da perna de pau de Belgrieve.
“Oh, esse é o último?”
“Sim. Byaku está meditando?”
“Bastante. Ele se tornou bastante proficiente. Pode ter a ver com deixar de lado todas essas preocupações desnecessárias.”
Byaku nem se mexeu enquanto falavam. Parecia perfeitamente focado.
Belgrieve sentou-se na cama.
“Está melhorando, então?”
“Mais ou menos. Ter uma mente estável é muito importante com esse tipo de coisa.”
“Então o garoto por fim se acalmou. Estava na hora.”
“Parem de falar como se eu não pudesse ouvir vocês, velhos.”
Belgrieve olhou e viu que Byaku havia aberto apenas um olho para encará-lo.
“Apenas cale a boca e assista...”
“Sim, sim.”
“Desculpe.”
“Tsk.” Byaku resmungou e fechou os olhos de novo.
Trocando um olhar, Belgrieve e Kasim sorriram em silêncio um para o outro.
○
Depois de jantarem no restaurante contíguo à estalagem, eles se acomodaram em quartos separados mais uma vez. Ainda era início da noite e o tempo lá fora estava bastante sombrio, mas havia muitos bêbados nos corredores e podiam ouvir vozes alegres nas janelas.
Para manter as mãos ocupadas, Angeline trançou o cabelo de Charlotte, depois o desfez e trançou outra vez. Charlotte a deixou fazer o que quis com um olhar sonolento em seu rosto. O cabelo de Charlotte era sedoso e maravilhoso de se tocar. Ele carregava um cheiro doce para arrancar, e ela entendeu vagamente por que Lucille estava tão encantada — é provável que uma mulher besta cão tenha um nariz muito mais aguçado, afinal.
Miriam estava cochilando com o queixo apoiado na mesa. Um estômago cheio deve tê-la deixado sonolenta, e Angeline também se sentiu bastante sonolenta.
Foi quando Anessa voltou de sua caminhada, esfregando as bochechas, que estavam vermelhas com o vento forte.
“Já estão com sono?” perguntou.
“Estou chegando lá... Aconteceu alguma coisa?”
“Nah, acabei de ver um lugar que oferece banhos de vapor na minha caminhada. Queria saber se alguém quer ir.” O lugar arranjou pedras de fogo mágicas e colocou ervas secas por cima. As meninas tomaram banhos de esponja em sua jornada e não tiveram a chance de se lavar adequadamente nos últimos dias.
“Eu vou... Hey, Char. Como soa um banho de vapor?”
“Hmm...? Banho de vapor? Claro...”
Charlotte se virou até ficar de frente para Angeline, então a agarrou. Era óbvio que estava meio adormecida, porém foi evidente que estava indo de qualquer maneira. Miriam se levantou e deu um bom tapa nas bochechas para se animar.
Embora elas chamassem os homens, todos recusaram. Belgrieve tinha algumas coisas para escrever, Kasim odiava banhos e Byaku respondeu sem rodeios.
“Quem diabos iria querer ir com você?”
“Ele está nessa idade.” Kasim gargalhou. “Não quer ser o único cara em um bando de moças bonitas.”
“Não é isso.”
“De qualquer forma, dê um bom descanso ao seu corpo. Não pegue um resfriado saindo à noite logo após o banho. Assim que terminar, voltem direto para o seu quarto.”
“Sim, entendi...” Angeline assentiu. “Estou indo, então.”
Angeline estava em um estado de espírito bastante peculiar, sentindo-se ao mesmo tempo um pouco solitária e um pouco aliviada.
Uma vez que estava do lado de fora, achou o vento contrário tão frio e forte que teve que apertar os olhos. Não estava nevando, contudo parecia que pedaços finos de alguma coisa estavam raspando em seu rosto. Charlotte se agarrou aos braços de Angeline.
“Ah, isso me acordou agora.”
“Sim... Vamos nos apressar.”
O banho não estava longe. Era uma construção de madeira, escavada no meio do penhasco atrás dela. O vapor subia e escapava pelas frestas dos painéis de madeira, e a luz que vinha de baixo — fosse uma chama ou uma pedra brilhante — parecia lançar estranhas sombras tridimensionais sobre o vapor.
As garotas pagaram a taxa no balcão e entraram para encontrar o lugar quase vazio. Talvez eles já tivessem passado do horário de pico. Significava apenas que poderiam levar seu tempo. Angeline tirou a roupa e entrou na área de banho.
Os banhos eram segregados por sexo, o que era raro nesses estabelecimentos do interior. A zona balnear foi construída numa gruta na arriba, o que ajudava na retenção do calor. A produção de calor poderia ser alterada organizando as chamas em diferentes configurações, e um cano pingava água de nascente sobre elas de cima. Havia um som crepitante onde quer que a água entrasse em contato e, assim, o vapor subia. Uma fragrância refrescante exalava das ervas aromáticas colocadas sobre as pedras.
Embora houvesse lanternas penduradas no teto, era difícil para Angeline ver alguma coisa através do vapor espesso, e mal conseguia distinguir um punhado de silhuetas humanoides.
“Hey, onde todos foram...?” Miriam resmungou, ficando para trás.
“Estamos aqui.” respondeu Anessa. “Cuidado onde pisa.”
As garotas deveriam sentar e esperar em um banco de madeira perto da parede. Já parecia muito quente quando entraram pela primeira vez, e ainda mais depois de esperar pacientemente um pouco. As pedras flamejantes pareciam ter sido colocadas em uma temperatura bastante alta.
O vapor era tão espesso que Angeline nem conseguia distinguir os rostos de quem estava sentado à sua frente. Após piscar algumas vezes, usou a mão para afastar as gotas que escorriam pela testa.
Foi então que a mulher sentada à sua frente iniciou a conversa.
“Hey, é você, Ange?”
“Sra. Yakumo...” Angeline acenou com a mão na frente do rosto para limpar um pouco de vapor, mal conseguindo distinguir Yakumo e Lucille sentados ao seu lado, a visão de quem fez Charlotte gritar.
Lucille respirou fundo.
“Oh, que sorte... Mas não consigo sentir nenhum cheiro aqui...”
“Vocês duas vieram também?”
“Sim, pensei em tirar um pouco da sujeira.” disse Yakumo, enxugando as mãos contra o corpo nu. Talvez parecesse mais magra nas roupas; seu peito e quadris se projetavam onde deveriam, porém sua constituição era firme e musculosa fora isso. Contudo, uma inspeção mais detalhada revelou muitas cicatrizes antigas. A mais proeminente fazia parecer que havia sido cortada do ombro ao peito, e outra falava de uma facada direto no estômago.
Percebendo o olhar de Angeline, Yakumo riu.
“Eu passei por um pouco de dificuldade em um dos meus antigos trabalhos. Claro, deixaram uma marca ruim, no entanto não doem mais.”
“Que tipo de trabalho?”
“Bom, sou uma aventureira. Enfrentei um monstro mais poderoso do que poderia lidar. É o que chamaria de indiscrição juvenil.” respondeu, afastando a franja úmida.
“Sra. Yakumo.” disse Anessa, maravilhada. “Eu sabia que você devia ser bastante habilidosa...”
“Hehe, vou tomá-lo como um elogio. Vocês todas têm corpos tão bonitos. Alcançar os níveis AAA e S sem incorrer em uma cicatriz é a prova de suas habilidades e talentos. Deveriam se orgulhar desse feito.”
“Hmm...” Angeline fechou os olhos pensativamente. Existem todos os tipos de aventureiros...
Lucille levantou-se e sentou-se ao lado de Miriam.
“São enormes... O que eu não daria por isso, gatinha.”
“Você acha? Eles são muito pesados em meus ombros.”
“Esse é o peso da felicidade... Posso tocá-los?”
“De graça não, não pode.”
“Que grupo animado...” Yakumo suspirou, enxugando o suor da testa.
“Estamos chegando a Bordeaux amanhã... O tempo voa...” comentou Anessa.
“Ainda há um longo caminho a percorrer, Anne... Turnera está muito longe.”
“Entendo, mas a pessoa que a Sra. Yakumo e Lucille estão procurando deve estar em Bordeaux, certo? Estaremos nos despedindo.”
“Como as pessoas do passado costumavam dizer, ‘nosso caminho está na estrada de novo’.”, Lucille entrou na conversa.
“Cala a boca. Bem, é bom saber que alguém vai sentir nossa falta.”
“Quem você está procurando, afinal?”
“Sim, pensando bem, nunca perguntamos. Se nos contar, talvez possamos ajudar.”
“Hmm...” Yakumo silenciosamente fechou os olhos e Lucille estava com a cabeça baixa.
Após um momento de silêncio, a cachorrinha disse.
“Talvez seja hora de abrir a cortina, Yakinha.”
“O que diabos é ‘Yakinha’...? Bem, acho que está certa.” Yakumo arranhou grosseiramente seu couro cabeludo, lançando gotas voando. “Estamos procurando um nobre lucreciano. A filha de certo cardeal, ao que parece. Ouvimos dizer que foi expulsa de seu país e fez uma campanha obscura pela Rodésia.”
A expressão de Charlotte endureceu e a guarda de Angeline subiu de imediato.
“E?”
“Presumo que tenha ouvido falar que houve uma agitação política em Lucrecia. A situação mudou e alguém quer que ela recupere seu status legítimo. Eles nos pediram para trazê-la de volta.” respondeu Lucille.
Yakumo olhou para Charlotte.
“Filha de Balmung... Nós sabemos quem é. Foi Sir Hrobert quem fez o pedido.”
“Isso é mentira... O tio morreu! Eu sei isso!”
Lucille balançou a cabeça.
“Ele é um velho teimoso... Diz-se que um dublê de corpo morreu em seu lugar. O verdadeiro esteve escondido no subsolo o tempo todo.”
“Não pode ser...”
“Quem é Hrobert?”
“Um parente distante de Sir Balmung. Ele fazia parte da facção antipapal, então teve a Inquisição o buscando por um tempo.”
“Não isso. Quero dizer, que tipo de pessoa é? Tratará Char bem?”
“Hmm...” Yakumo coçou a bochecha sem jeito. “Sendo sincera, não sei. É um típico nobre lucreciano, do tipo que dedica todo o seu tempo à politicagem. Não acho que fará nada de ruim para ela, porém...”
“Vocês são boas pessoas.” disse Lucille. “Se fossem pessoas más, nós os surraríamos e a levaríamos...”
“Certo. Char é filha de um ex-nobre e uma linda moça para tomar. Teria tornado as coisas muito mais fáceis se algum grupo obscuro a estivesse usando. Contudo você é tão virtuosa que, pra ser honesta, me preocupo com o seu futuro. Não temos certeza se é certo levar Char de volta para Lucrecia.”
“Então pode abandonar seu pedido?” perguntou Miriam.
Yakumo balançou a cabeça.
“Sendo aventureiras, devem entender. Abandonar uma solicitação depois de aceita afetará nossa credibilidade. Poderíamos dizer que o alvo não queria voltar, contudo não significaria nada para eles. Além do mais, Sir Hrobert é seu parente de sangue. É sua família. Não sei se é um bom homem, no entanto não o consideraria a pior opção.”
As palavras ‘parente de sangue’ fizeram o coração de Angeline disparar. No momento seguinte, sentiu um peso sobre seu corpo quando Charlotte caiu contra ela, com o rosto vermelho. O sangue subia à sua cabeça — estava no vapor por muito tempo, e todos esses acontecimentos repentinos podem ter contribuído para dominá-la.
Yakumo olhou para Angeline se desculpando.
“São negócios. Não queremos forçar ninguém, mas se acabarmos em desacordo...”
“Atravessaremos essa ponte quando chegarmos a ela. Sinto muito, Char precisa sair agora.”
“Sinto muito... Não vou apressá-la. Porém gostaria de ouvir uma resposta em Bordeaux.”
“Boa noite...”
Elas partiram com o assunto não resolvido. Embora o vento frio fosse agradável contra sua pele quente, não tiveram tempo de aproveitá-lo. De sua parte, Anessa e Miriam caíram em um silêncio pensativo.
Angeline, carregando Charlotte nas costas, também estava perdida em seus pensamentos. Perguntou-se se a menina seria mais feliz com um de seus parentes, mesmo que ele não fosse seu pai de fato. O que Charlotte achou disso? Seria mais feliz vivendo como nobre em vez de viver no campo sombrio?
As garotas não discutiram nada depois de voltar para o quarto; seus pensamentos não foram organizados o suficiente para discutirem. Teria sido melhor se Yakumo tivesse vindo até elas com uma lâmina, sem aceitar um não como resposta. Diante dessa abordagem, seu poder físico pouco significava.
Parecia que Belgrieve e os outros já estavam dormindo, então as meninas também foram para a cama. Enquanto estava lá, os pensamentos de Angeline voltaram-se uma vez mais para as relações de sangue. Ela não tinha nenhuma, e isso nunca atrapalhou os dias que passou com Belgrieve. Contudo o que é uma família de verdade? Isso, não sabia. O pensamento de que Belgrieve estava escondendo algo sobre seu nascimento surgiu espontaneamente em sua mente, no entanto Angeline não conseguiu reunir a determinação de perguntá-lo a respeito. Suas dúvidas só continuaram a crescer, e não conseguiu pregar o olho antes que o céu começasse a clarear.
○
Por volta do nascer do sol, quando Belgrieve saiu para realizar sua rotina diária de treinamento, Angeline correu em sua direção e se agarrou em suas costas.
“Whoa, hey.” Belgrieve disse enquanto cambaleava um pouco. Firmou rápido suas pernas e recuperou o equilíbrio. “Bom dia, Ange. Há algo de errado?”
“Hmm...” Angeline apertou o rosto na parte de trás do pescoço de seu pai e respirou fundo. Belgrieve não pôde deixar de sorrir com a sensação de cócegas.
“Você é sempre minha garotinha, hein?”
“Treinamento?”
“Sim. Quer se juntar a mim?”
“Ok...” Angeline concordou, ainda agarrada às costas de Belgrieve.
Havia algumas pessoas por perto que planejavam partir no início da manhã. As negociações de alguns comerciantes devem ter dado certo, pois podiam ver grandes pacotes sendo trocados entre os vagões. O lugar era bastante animado, apesar da geada brilhante que ainda cobria o chão.
Belgrieve encontrou um terreno baldio depois de caminhar um pouco; os outros pareciam evitá-lo devido a todo o lixo e lixo espalhados pelo chão. Ele poderia balançar sua espada aqui sem incomodar ninguém.
Depois de descer de suas costas, Angeline observou Belgrieve realizar seus movimentos de espada sem sacar sua própria lâmina. Mas depois das primeiras oscilações, ela se viu acompanhando. Parecia haver algo que faltava em seus movimentos, uma espécie de nitidez. Ela balançou mais algumas vezes antes de Belgrieve perceber que algo estava errado e parar, olhando-a com preocupação.
“O que há de errado? Você está agindo de forma estranha.”
“Então, sabe...”
“Sim?”
Angeline se mexeu. Juntando as mãos, seus gestos deixavam bem claro que estava procurando as palavras certas.
“Pai... Você não está escondendo nada de mim, está?”
“Hmm? Escondendo? Bem, acho que não...”
“Sabe quem são meus pais verdadeiros?”
Belgrieve franziu a testa.
“Hmm...”
Mesmo enquanto o encarava com um olhar fixo, esperando por sua resposta, os olhos negros de Angeline ficaram enevoados.
Depois de pensar um momento, Belgrieve suspirou.
“Desculpe.”
“Hã? Então...”
“Eu não sei.” Belgrieve continuou enquanto seu rosto se contorcia de tristeza. “Você estava sozinha, em uma cesta... Não me interprete mal, verifiquei o melhor que pude quando a encontrei, contudo... Achei que não era uma boa ideia ficar vagando pela floresta por muito tempo com um bebê.”
“O que...?”
“Hmm... Bem, o que estou tentando dizer é que sinto muito. Pensei várias vezes sobre como eu a deixaria encontrá-los se soubesse quem eram, no entanto... Nunca pude trazer esse assunto à tona.” Belgrieve disse, coçando a cabeça sem jeito.
Então Ange finalmente está curiosa sobre quem são seus verdadeiros pais, pensou Belgrieve. Não importa o que fizesse, seria apenas seu pai adotivo. Era simplesmente inevitável que ela procurasse suas raízes.
Belgrieve havia falado com Angeline sobre todo tipo de coisa, mas raras vezes falava sobre seus pais verdadeiros. Ele intencionalmente se absteve de fazê-lo. Trazê-lo à tona o faria sentir como se Angeline estivesse se distanciando.
Porém, dado que a própria Angeline havia levantado a questão, sentiu que era seu dever como pai atender aos seus desejos e confrontar o que estava fugindo.
“Ange... Se quiser, hum... Podemos procurar pelos seus verdadeiros...”
Contudo antes que pudesse terminar, Angeline pulou em seu peito em lágrimas.
“Você não precisa!”
“Hã? Mas, Ange...”
“Não precisa! Você é o único pai de que preciso!”
Belgrieve gentilmente deu um tapinha em suas costas.
“Alguma coisa deve estar te incomodando.”
“Sim...”
Angeline desajeitadamente deu vazão a seus pensamentos perturbados, escolhendo suas palavras enquanto abria seu coração: sobre como Marguerite primeiro a deixou curiosa sobre seus pais verdadeiros e depois sobre suas suspeitas de que Belgrieve estava escondendo algo; sobre como tinha inveja do relacionamento de Charlotte e Byaku; e sobre como o conceito de família estava ficando cada vez mais confuso para ela.
Belgrieve ouviu em silêncio, apenas intervindo quando necessário. E assim que Angeline terminou, ele acariciou seu cabelo.
“Entendo... Isso deve ter sido difícil.”
“Desculpe...”
“Não precisa se desculpar. Lamento nunca ter notado.”
“Não, eu só saí por conta própria...”
Inclinando-se um pouco, Belgrieve olhou-a diretamente nos olhos.
“Ange, você pode ser adotada, e nós podemos não ser parentes de sangue. No entanto você é sem dúvida minha menina e a coisa mais importante do mundo para mim. Por favor, não se esqueça disso. Ok?”
“Sim...”
“Eu... Veja bem, estava preocupado que estivesse se esforçando demais. Você já tem dezoito anos, então não queria que se sobrecarregasse com o que lhe disse.”
“Então é por esse motivo que perguntou se eu queria conhecê-los?”
“Isso... Está certa... Sim, isso mesmo.”
“Hehe... Não só sigo tudo o que me diz, sabe!” Angeline pulou sobre ele e, com os braços em volta de seu pescoço, balançou frouxamente. “Pai! Se há algo que quer me dizer, apenas diga! Fico ansiosa quando age inseguro assim!”
“Haha, meu erro... Mas o mesmo vale para você também.”
“Hehehe...”
Uma vez que seus pés estavam de volta no chão, Angeline se virou para Belgrieve, parecendo um pouco mais séria.
“Agora, há algo importante que preciso lhe dizer.”
“Sim?”
Angeline o contou o que ouviu de Yakumo e Lucille na noite anterior. Belgrieve franziu a testa e cruzou os braços.
Ao longe, eles podiam ouvir galinhas cacarejando e carroças fazendo barulho na terra.
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