Capítulo 79: Dia após dia, os caules se erguiam
Dia após dia, os caules se erguiam mais alto dos canteiros de trigo e espigas verdejantes começavam a se espalhar de suas pontas. Belgrieve já via esse mesmo cenário há décadas. Aos poucos, o verde se transformaria em dourado e, uma vez que os plantios estivessem prontos para a colheita, o ar seria preenchido com o espírito do verão.
Por fim, os dias seguintes passaram sem intercorrências e nenhum de seus medos se concretizou. A luz do sol ainda brilhava como sempre, e não houve uma enxurrada de monstros da floresta para sitiar a vila. Na verdade, não havia vestígios de monstros. Era tão pacífico que era quase como se o ataque dos caçadores cinza tivesse sido um sonho.
No entanto, Mit ainda estava com medo e, fosse dia ou noite, sempre se agarrava com força a Belgrieve ou Graham. Sua atitude era bastante antinatural e mantinha todos nervosos enquanto faziam seu trabalho. No campo atrás da casa, Charlotte observou com uma expressão perplexa enquanto uma jarra de álcool era diluída em água.
“O que você vai fazer com isso?”
“Este licor aqui teve uma fruta embebida nele. Isso o transforma em um bom repelente de insetos.”
Belgrieve gesticulou para que Charlotte desse uma cheirada. Misturado com o cheiro doce de álcool havia um fedor penetrante nasal, fazendo-a cambalear para trás e esfregar o nariz.
“Isso fede!”
“Haha, não é? É bastante eficaz. Também pode usá-lo como um remédio.”
Belgrieve riu enquanto diluía ainda mais a concentração. Em seguida, usando uma concha para retirá-lo, jogou-o sobre os talos de vegetais que haviam começado a crescer. Quanto aos insetos que já estavam nas folhas, teve que pegá-los e esmagá-los com a mão.
“Então agora os insetos não terão que morrer...”
“Sim, você não gostaria de comer um veneno que mata insetos, certo? Isso só vai impedi-los de vir de agora em diante. Faz muita diferença... Quer ajudar, Mit?”
Ele mudou a conversa para Mit, que estava montado em suas costas. Mit timidamente acenou com a cabeça antes de descer para o chão. Com um sorriso, Charlotte agarrou sua mão.
“Vamos fazê-lo juntos!”
“Sim...” a expressão de Mit suavizou um pouco quando espalhou a mistura com Charlotte.
É bom ter crianças por perto nessas horas, refletiu Belgrieve enquanto se inclinava para começar a arrancar as ervas daninhas.
Eles já estavam trabalhando há um bom tempo antes de Byaku voltar de casa.
“Hey, velho. Você tem um convidado.”
“Hmm? Quem...?” Belgrieve se virou e notou Sasha atrás de Byaku. A garota parecia tão enérgica como sempre.
“Bom dia, Mestre! Desculpe por incomodá-lo no meio do seu trabalho.”
“Oh, de jeito nenhum. Será bem vindo a qualquer hora. Tenho vergonha de cumprimentá-la com essas roupas sujas.”
Belgrieve se levantou e fez uma reverência, com Charlotte fazendo o mesmo. Um vento morno do meio-dia levantava pequenas nuvens rodopiantes de poeira ao redor deles.
“Está ficando mais quente a cada dia.” comentou Sasha, enxugando o suor da testa.
“Sim, tem estado excepcionalmente quente nos últimos dias.”
O verão não estava longe e, com o frio que Turnera costumava fazer, até mesmo um leve aumento na temperatura fazia com que parecesse abafado. Dito isto, a falta de ventos fortes nos últimos dias fez com que parecesse estranhamente abafado.
Sasha parecia impressionada enquanto olhava para o campo que Belgrieve estava cuidando.
“Sei que deveríamos retornar a Bordeaux em breve... Contudo os agrimensores não parecem estar indo muito bem.”
“Oh?” Belgrieve disse, fazendo uma careta.
Mais pessoas estavam adoecendo em Turnera do que o normal. Não foi o suficiente para colocá-los fora de serviço, porém tornou-se um pouco mais difícil para alguns dos fazendeiros balançarem suas enxadas nos campos. Belgrieve estava ansioso por uma epidemia estar sobre eles. Havia muitas coisas estranhas acontecendo.
“Não tenho conhecimento sobre doenças, então não posso entrar em detalhes.” continuou Sasha, cruzando os braços. “Mas as pessoas não têm febre; apenas se sentem muito lentos para se mover como querem. São todos trabalhadores esforçados, então não acho que estejam dando desculpas para relaxar.”
“Tenho certeza... Já foram até a boticária?”
“Sim, e recebemos uma decocção de ervas. Os agrimensores estão descansando por enquanto, no entanto não parece que vamos voltar no horário. Pensei que você deveria saber.”
“Entendo... Vou visitá-los mais tarde.”
“Seria ótimo... Vou aguardá-lo então. Perdoe-me pela interrupção.”
“Não se preocupe.”
Sasha sorriu, antes de se virar para Byaku e agarrá-lo pelo ombro. Até aquele momento, o menino estava parado ali indiferente à conversa.
“Agora — tenha um duelo comigo, Byaku!”
“Tsk... Essa idiota...” Byaku fez uma careta, esfregando onde havia sido atingido antes. Ele se virou para Belgrieve. “As batatas já estão cozidas.”
“Oh, obrigado. Tente estar de volta ao meio-dia.”
“Faça o seu melhor, Byaku!” disse Charlotte.
“Hmph...”
Byaku e Sasha passaram pela casa. Sasha, que agora era Rank AAA, ao que parecia era uma boa luta para Byaku, que havia sido treinado por Graham e Kasim. O pátio era um campo de batalha muito pequeno para Byaku, então realizavam suas partidas na praça ou fora da cidade.
Uma vez que os dois estavam fora de vista, Belgrieve se espreguiçou antes de se curvar para continuar capinando. Um vento quente roçou sua nuca, nem refrescante nem reconfortante. Era como se algo peculiar estivesse fazendo cócegas em sua espinha. Irritado, ele esfregou o pescoço algumas vezes.
Os ventos não diminuíram nos últimos dias, continuaram soprando da floresta para o oeste. Houve algumas estações em que o vento das montanhas do norte descia ininterrupto, contudo isso era diferente. Era um pouco estranho que houvesse um vento tão incessante vindo do oeste.
Belgrieve estava arrancando ervas daninhas e pensando quando Mit subiu em suas costas.
“Pai...”
“Hmm? Já terminou?”
“Só temos que espirrar nos talos, certo? Então terminamos.” disse Charlotte, carregando a jarra que agora estava quase vazia.
Depois disso, eles estavam todos em serviço de capina. As que começaram a brotar eram macias e fáceis de puxar. Antes que as ervas daninhas ganhassem tração, era apenas uma questão de saber se poderiam ser arrancadas com cuidado suficiente para não quebrar os caules. A quantidade de esforço necessária era bem diferente do que seria se esperassem demais.
Às vezes, ele se levantava e se espreguiçava enquanto arrancava um caule. Quando olhou para frente, viu que ainda havia um longo caminho a percorrer. Mas se olhasse para trás, saberia que havia percorrido uma boa distância.
Antes que percebesse, o sol estava alto e o meio-dia logo estava sobre suas cabeças. Belgrieve — com Mit ainda empoleirado em suas costas — levantou-se e começou a recuperar suas ferramentas, pensando em preparar o almoço.
Ao voltar para casa, colocou uma panela cheia de água sobre a lareira e se ocupou picando carne e legumes quando Angeline voltou com um olhar sombrio no rosto. Ela tinha ido para a floresta ocidental com Anessa e Miriam. Belgrieve franziu a testa, imaginando o que poderia ter acontecido.
“Bem-vinda ao lar, Ange. Como estava a floresta?”
“Nada de errado, pelo que pude ver... Porém algo está estranho. Parecia que alguém estava me observando o tempo todo. Também não estou falando dos animais...”
“Sim, como se alguém estivesse vigiando alguma coisa.” Miriam continuou.
“Algo parecido...” Anessa entrou na conversa. “Contudo não havia nenhum monstro... E nada desencadeou minhas armadilhas.”
“Hmm. Significa que os animais também se foram?”
“Deixe-me pensar... Sim, não vi um único coelho hoje.” Anessa cruzou os braços, um olhar duvidoso em seu rosto. “E... Houve outro pastor de árvores hoje. Estava parado na beira da floresta, olhando para nós.”
Os pastores de árvores ainda apareciam na vila. Kerry e os outros agricultores teriam visto um deles quando trabalhavam nos campos fora da vila onde as mudas de rumel seriam plantadas. Embora não pudessem fazer mal, os fazendeiros estavam sussurrando sobre como eram sinistros. Como estavam sendo avistados em todo o lugar, é provável que não fosse apenas um espécime.
Em poucos dias, vários desses mesmos fazendeiros começaram a adoecer. Eram pessoas resistentes, seus corpos treinados por anos de cultivo, então era estranho que adoecessem sem aviso prévio.
“É uma situação bem séria...”
Sem dúvida algo estava acontecendo onde não podiam ver. Embora Belgrieve se mantivesse vigilante, não tinha ideia de como neutralizar a ameaça informe que se aproximava da vila dessa maneira.
Ele havia decidido pensar em fazer o almoço quando Byaku voltou com uma expressão estranha no rosto.
“Bem-vindo de volta, Bucky.” Angeline o cumprimentou, uma nota de provocação em sua voz.
“Esse não é o meu nome... Hey, meu velho.”
“Sim?”
“Seren desmaiou...”
“O que?” as mãos de Belgrieve congelaram. “O que quer dizer?”
“Não sei os detalhes.”
De acordo com Byaku, ele estava lutando com Sasha fora da vila quando Barnes correu até os dois em pânico. Ao que parecia, Seren estava conversando com os fazendeiros que trabalhavam na roça rumel e desmaiou de repente. Assim que ouviu a história, uma Sasha de rosto pálido correu para o lado de sua irmã.
Angeline prendeu sua espada em seu quadril.
“Estou indo!”
“Sim, te encontro lá.”
O almoço era agora a menor de suas preocupações. Angeline saiu com Anessa e Miriam. Charlotte as viu partir, nervosamente inquieta, e Byaku colocou a mão em suas costas.
“Você está preocupada, certo? Vá logo.”
Depois de outro momento de hesitação, ela respondeu.
“Sim!”
E então Charlotte correu atrás das outras garotas.
“E você, Byaku?”
“Pareço o tipo de cara que sai por aí visitando os doentes? Você vai, não é? Então alguém precisa vigiar a casa.”
“Entendo... Estou indo então.”
Por enquanto, Belgrieve deixou Byaku para cuidar da casa. Ele enfiou alguns frascos de remédio em sua bolsa e, com Mit a reboque, correu para a casa de Kerry. Parecia que a vila estava terrivelmente quieta, e até mesmo as cabras — que na maior parte do tempo baliam de maneira bem ruidosa — sentavam-se silenciosamente à sombra das árvores. Já era hora de conduzir as ovelhas para as planícies abertas e, no entanto, não conseguia ver nenhum dos pastores fazendo seus preparativos. Belgrieve também não conseguia ouvir as crianças brincando.
O ar estava pesado. Era quase como se a própria vila tivesse adoecido. Até Belgrieve, que deveria estar bem, começou a se sentir estranhamente lento.
“O que está acontecendo aqui...?”
Assim que chegou à praça, os jovens aventureiros que vieram para proteger o mascate estavam sentados ao redor, parecendo muito entediados. Sola acenou assim que o notou.
“Hey, Sr. Belgrieve.”
“Olá para vocês também. O que foi? Ouvi dizer que partiriam em breve.”
Kain agitou sua cabeça.
“Nosso cliente desmaiou... A boticária está cuidando dele, porém parece que vamos ficar presos aqui por alguns dias.”
Mais um paciente. Considerando o período de tempo, era difícil pensar que algum dos viajantes havia trazido à doença. Ninguém havia adoecido na época em que chegaram. Ainda que fosse uma doença que demorasse a apresentar sintomas, seria estranho que o viajante adoecesse ao mesmo tempo que os aldeões. Fazia apenas dois ou três dias desde que alguém começou a adoecer.
“Vocês três estão se sentindo bem?”
“Sim, sempre fui robusto, se nada mais.” disse Jake jocosamente.
“Não tenho certeza se devo dizer...” acrescentou Sola. “Contudo estou feliz por ficar em Turnera um pouco mais.”
“Hey, vamos. O que está dizendo quando a vila que está neste estado?”
“Eep...” Sola estremeceu sem jeito diante da repreensão de Kain.
Belgrieve puxou a barba com um sorriso no rosto.
“De qualquer forma, é melhor tomarem cuidado. Nunca se sabe quando pode atacar.”
“Entendi.”
“Seremos cuidadosos.”
Ele se separou dos três e continuou seu caminho para a casa de Kerry. Quando chegou lá, encontrou os trabalhadores contratados — que não pareciam muito bem — correndo e cuidando dos doentes. O quarto de Seren ficava na casa de hóspedes separada bem no fundo, onde os agrimensores ficavam.
Seu rosto estava pálido e sua respiração superficial fazia parecer que o ar não chegava às partes mais profundas de seu peito. Sasha, Angeline, Anessa, Miriam e Charlotte a cercaram com rostos preocupados; de vez em quando, elas se revezavam torcendo uma toalha de mão e usando-a para enxugar a testa dela.
“Você acha que Seren vai ficar bem?”
“Seren... O que foi que aconteceu?” Sasha lamentou, mordendo o lábio em frustração e cerrando os punhos.
Ao ouvir seus passos se aproximando, Angeline se virou em sua direção.
“Pai.”
“Papai...” Charlotte repetiu.
“Sim... Como está a condição de Seren?”
“Acabou de adormecer... No entanto está lutando para respirar.”
“Entendo. Onde está Atla?” Belgrieve perguntou, referindo-se a boticário da vila.
Angeline balançou a cabeça.
“Ela está sendo chamada em todo lugar e ainda não chegou aqui...”
“Deveria ter imaginado...”
Sim, dado o estado da vila, a boticária seria muito procurada.
Belgrieve se aproximou devagar e colocou a mão na testa de Seren. Não parecia estar com febre — ao contrário, parecia que sua temperatura estava caindo. Seu nariz provavelmente estava entupido, dado que estava respirando apenas pela boca.
Charlotte olhou ansiosa para Belgrieve.
“Como está, pai...? Seren vai ficar bem, certo?”
“Sim...” Belgrieve parou por um momento para pensar antes de tirar um frasco do tamanho da palma da mão de sua bolsa e entregá-lo a Sasha.
“Espalhe isso no timo dela. Em torno do centro de seu peito.”
“O que é?” Sasha abriu a rolha e sentiu o cheiro. Seus olhos piscaram em surpresa.
“É uma mistura de algumas ervas, em maior parte rumel e hortelã. Acho que vai ajudá-la a respirar com um pouco mais de facilidade.”
“M-Muito obrigado!”
Sasha se apressou e abriu a frente das vestes de Seren e Belgrieve rapidamente se virou para sair. Ele podia ouvir a voz chocada de Angeline vindo de suas costas.
“Ela está... Crescida...?”
“É verdade... Seren era um pouco menor antes, não era?”
“Sim, era. Seren pode superar a irmã mais velha nesse ritmo.”
“Hmm... O que a puberdade faz com uma garota...”
Do que elas estão falando? Belgrieve se perguntou, antes de descartar o pensamento. Ele rapidamente começou a aplicar o mesmo remédio nos agrimensores. Parecia que a respiração difícil deles havia se tornado um pouco mais leve.
“Já é um começo...”
Entretanto isso era apenas tratar os sintomas. Não havia chegado nem perto de identificar a causa raiz.
Belgrieve sentiu Mit apertar sua mão e apertou de volta com força. Ocorreu-lhe então que não sabia o que havia acontecido com Graham e Kasim. Eles haviam entrado na floresta separados de Angeline. Embora duvidasse que precisasse se preocupar com aqueles dois, foi assaltado por sentimentos de irritação e impaciência.
De repente, o ar mudou e a atmosfera pesada e estagnada de repente ficou mais leve. Os agrimensores supinos de repente estavam respirando pacificamente, e aqueles que permaneceram acordados piscaram perplexos e se sentaram em suas camas.
Houve um tumulto no quarto de trás. Seren estava acordada.
“Seren! Obrigado Viena, você está bem!” Sasha chorou em meio às lágrimas ao abraçar a irmã. Embora Seren retribuísse com um sorriso perturbado, sua tez havia melhorado. Angeline e as outras observaram as irmãs, exaustas, mas aliviadas.
Belgrieve estreitou os olhos e coçou a barba. Duvidava muito que seu próprio remédio tivesse exibido um efeito tão milagroso. Um olhar para o lado revelou que a expressão de Mit havia clareado um pouco também. Com certeza havia algo acontecendo em algum lugar que não sabia.
Sem aviso, Sasha voou para fora do quarto e abraçou Belgrieve, que, tendo sido pego desprevenido, se viu apoiando as pernas para evitar cair. Ela aninhou seu rosto radiante em seu peito.
“Mestre! Muito obrigado! Seren... Seren está...”
“C-Calma, Sasha... Isso não é culpa do meu remédio.”
“Hey, o que pensa que está fazendo...?” Angeline cutucou a cabeça de Sasha fazendo beicinho. Tendo se esquecido de sua alegria, Sasha ficou vermelha de repente. A garota recuou um pouco frenética e curvou a cabeça se desculpando.
“De-Desculpe, eu só...”
“Não se preocupe com isso... Ange, vou voltar primeiro.”
“Sim, vamos sair em breve também...”
“Tome cuidado, Seren.”
“Claro, e obrigado.” Seren sentou-se, ainda parecendo um pouco doente, contudo parecia alegre o suficiente.
Quando Belgrieve passou pela praça da cidade outra vez, encontrou Graham e Kasim parados ali. Graham estava bem no centro, pressionando a ponta de sua espada no chão. Os dois estavam olhando em volta, parecendo procurando por algo. Quando os olhos de Kasim pararam em Belgrieve, ele sorriu.
“Hey, Bell.”
“Kasim... O que vocês estão fazendo?”
“Descobrimos a causa. Certo, vovô?”
“Verdade? Sabem por que tudo está tão estranho na vila?”
“É pólen.” disse Graham. “O vento da floresta oeste está carregando pólen.”
“Pólen? Como o pólen...?”
“É misturado com vestígios de mana. Tão minúsculo que nem o velho e eu teríamos notado se não estivéssemos procurando por ele.”
“Cada grânulo individual não é nada significativo. No entanto devemos respirar para viver, e inalar esse pólen dia após dia fará com que vestígios de mana se acumulem em nossos corpos. Embora faça pouco para aqueles de nós que são versados na manipulação de mana.”
“Resumindo, o povo da vila está sendo derrubado pela mana da floresta.”
“Há algum atributo venenoso?”
“Não, não exatamente. É mais preciso dizer que há alguma força maliciosa por trás desses acontecimentos. Embora ainda não saibamos quem é o responsável.” disse Graham com um suspiro.
Kasim baixou o chapéu.
“Bom, em qualquer caso, isso exigiria um pouco de habilidade para fazer. Não estamos lidando com qualquer velho monstro. É pelo menos Rank AAA — na pior das hipóteses, pode ser Rank S.”
Monstros no geral possuíam corpos e poderes que ultrapassavam em muito os da humanidade. Se alguém se atrevesse a lutar contra um de mãos vazias, a pura diferença física tornaria a vitória quase impossível. Havia apenas dois pontos que permitiam aos humanos lutar em pé de igualdade: aprimoramento corporal baseado em mana e inteligência.
Na maioria dos casos, os monstros eram bestas, e muitos ficavam aquém dos humanos quando se tratava de intelecto. Orcs e outros monstros humanoides possuíam certo nível de inteligência, porém era apenas o suficiente para eles estabelecerem sociedades rudimentares e se envolverem em táticas de grupo limitadas na guerra. Seu intelecto não estava em um nível onde pudessem conceber um plano sofisticado para manipular mana a tal ponto que escapasse à atenção humana.
Com isso dito, monstros que variam de Rank AAA a S podem, em casos raros, possuir tal astúcia. Por exemplo, havia vampiros — monstros que já foram humanos — e dragões, que acumularam conhecimento ao longo de suas longas vidas. Ainda assim, ao longo da longa história da humanidade, contra medidas para esses seres transcendentes foram encontradas e meios para caçá-los foram inventados. A capacidade de ponderar sobre todas as facetas da vida estava diretamente ligada à força. Se, por exemplo, um caçador cinza adquirisse níveis humanos de intelecto, subiria em seguida para o nível de um inimigo de Rank S.
Nesse caso, a ameaça enigmática que se aproximava de Turnera parecia muito mais formidável do que um mero monstro. Era uma maldade intangível com intelecto. Belgrieve estremeceu com o pensamento.
“O que estamos enfrentando ao certo...?”
“Quem pode dizer? Eu não tenho ideia...”
“Pode ser... A própria floresta.”
Belgrieve fez uma careta com a sugestão de Graham.
“A floresta?”
“Sim. Já comentei sobre como a floresta tem vontade, não é? Já caminhei por esses bosques muitas vezes desde que vim para Turnera... Contudo hoje foi diferente.”
“Quer dizer que a floresta se voltou contra nós?”
“Não sei. Eu direi que algo se escondeu habilmente. É a primeira vez que vejo uma floresta emanar uma intenção tão má sem parecer diferente do normal.”
Graham soltou um profundo suspiro e fechou os olhos. Essa talvez fosse a tristeza que apenas um elfo que vivia entre as árvores entenderia.
Mit se agarrou a ele.
“Vovô...”
“Mit. Você tem estado estranho desde que voltou daquela floresta. Consegue se lembrar do que aconteceu?”
“Eles me chamaram.”
“Chamaram? Quem?” Kasim perguntou, enviando-lhe um olhar duvidoso.
Mit parecia que estava prestes a chorar quando enfiou o rosto em Graham.
“Não sei... Mas foi assustador...”
“Entendo...”
“Não se preocupe. Não importa o que aconteça, não vou deixar que levem você.” declarou Belgrieve, acariciando o cabelo de Mit. Mit continuou a esfregar o rosto na camisa de Graham.
“Então, como eliminou a mana da floresta?”
“Certo, é aquela coisa ali.” disse Kasim, apontando para a espada de Graham plantada no chão. A espada soltou um rosnado baixo, sua lâmina emitindo uma luz misteriosa, algo completamente diferente de apenas refletir os raios do sol.
“Essa lâmina está lutando há muito tempo e absorveu a mana do vovô o tempo todo. Os dois cresceram juntos e foram recheados com a essência purificadora de um elfo. Estamos usando esse recurso para cobrir toda a vila em uma nova barreira.”
A praça ficava bem no centro da cidade. Ao que parecia, uma cúpula invisível foi erguida ao redor da vila com a espada no centro. O resultado foi que a mana do pólen perdeu sua conexão com a floresta e aqueles que foram afligidos por ela agora podiam se recuperar.
Belgrieve soltou um suspiro de admiração.
“Uma façanha e tanto...”
“Hehe, fico feliz em ouvir isso de você.”
“Entretanto a situação não está resolvida. Devemos entrar naquela floresta para localizar o culpado.”
“Certo...” isso exigiria algum planejamento. Belgrieve não sabia quanto tempo levaria, porém não poderia ter pedido uma equipe melhor para trabalhar.
O som de passos apressados anunciou a aproximação de Angeline.
“Desculpe a demora... O ar não ficou um pouco mais leve?”
“Sim, graças a Graham.”
Ela logo foi seguida pelas outras. A situação foi explicada as garotas no caminho de volta para casa e, quando chegaram lá, todos estavam com um pouco mais de fome do que estariam de outra forma. Estava ficando tarde, contudo ainda podiam conversar durante a refeição. Podemos planejar esta noite e partir amanhã cedo, pensou Belgrieve. Quando olhou de volta para a floresta, ele pôde ver um pastor de árvores parado à distância. A grande cavidade em seu tronco parecia estar cheia de uma escuridão sem fundo.
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