Capítulo 87: Havia uma carroça deixada no pátio
Havia uma carroça deixada no pátio atrás da estalagem. Sua carga de barris velhos estava envolta em teias de aranha salpicadas de orvalho que brilhavam como joias à luz do amanhecer.
Pisando no terreno enevoado, Belgrieve estendeu uma arma — a espada que Graham o havia confiado. Ele podia sentir o peso seguro da espada quando a segurava com firmeza, mas ela se movia tão leve quanto a pena de um pássaro quando cortava o ar.
Depois de vários balanços de prática simples, Belgrieve começou a adicionar trabalho braçal para praticar sua forma, uma vez que não tinha muita experiência em empunhar uma espada tão grande. Na pior das hipóteses, arriscava a se machucar. Era preciso se acostumar a empunhá-la.
Balançando de novo e de novo, certificando-se de não sulcar o chão. Começou com duas mãos, depois uma, e até praticava uma pegada por baixo por vezes. A lâmina parava completamente sempre que desejava; ele se moveria facilmente para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo e depois congelaria no lugar.
A essa altura, sua perna protética não era mais um obstáculo. Na verdade, sentiu como se recuperar o outro pé apenas tornasse seus movimentos mais desajeitados neste ponto. Era como se seu corpo estivesse mais leve quando segurava a espada. Graham a usou por muitos anos, e a alta densidade de mana élfica armazenada poderia estar imbuindo-o de força.
Porém ao contrário de Angeline, Belgrieve ainda não tinha ouvido a voz da espada. Belgrieve parou para respirar, olhando atento para o sol da manhã refletido na lâmina. De acordo com Angeline e Marguerite, a espada era como uma senhorita afetada e adequada, contudo não entendia de fato o que queriam dizer.
“Você quer falar comigo?” perguntou. No entanto a espada não respondeu. Suspirando, devolveu-a a bainha antes de sacar de seu quadril a espada que havia sido sua parceira por muitos anos. Ele brilhava como se estivesse esperando por este momento. Talvez fosse apenas sua imaginação, entretanto parecia um pouco ciumento também.
“Não se preocupe, vou usá-la também.”
Kasim cacarejou de seu poleiro no topo da carroça quebrada ao lado, observando a prática de Belgrieve.
“Não está tão ruim. Mas ainda um pouco estranho em comparação com a que está em suas mãos agora.”
Belgrieve inspecionou a lâmina, da frente para trás. Deu um giro brusco com uma das mãos, passando a lâmina habilmente pelas pontas dos dedos enquanto esta fazia um circuito ao seu redor antes de retornar à bainha. Ao contrário de quando empunhava a espada de Graham, não se sentia mais leve. Porém está era uma espada com a qual lutou por mais de vinte anos; era a mais confortável de manejar. Por fim, o poder que sentiu com a grande espada em suas mãos era apenas um poder emprestado. Estava assustado com a perspectiva de vir a confiar demais em seu poder. Era preciso encontrar um meio termo.
“Onde estão as meninas?” perguntou a Kasim.
“Quem sabe? Talvez ainda dormindo. É provável que tiveram uma noite de garotas depois que elas voltaram para o quarto.”
Posso imaginar isso. Belgrieve riu. Ah, ser jovem e animado.
Fazia um dia e meio desde que eles deixaram Yobem, e agora estavam na cidade de Mansa. Ficava ao sul de Yobem e uma das cidades de retransmissão ao longo da rota para Khalifa. A guilda tentou encontrar quaisquer pedidos que os levassem ao longo das montanhas, contudo ninguém ousou ir nessa direção. Os únicos pedidos nas montanhas eram para a pilhagem de materiais das masmorras de lá. Isso exigiria retornar a Yobem depois, então esses trabalhos estavam fora de questão. Em Mansa, talvez, tenham mais sorte em encontrar uma caravana na esperança de encurtar sua jornada.
O grupo havia saído de Yobem com uma carta de apresentação e chegaram a Mansa na noite anterior. Como o sol já havia se posto quando chegaram, planejaram passar pela guilda de Mansa no dia seguinte.
Belgrieve sacou a grande espada de Graham novamente, esperando fazer outro teste, quando Angeline e as outras chegaram. Ela ainda parecia sonolenta, seu cabelo bagunçado e emaranhado.
“Dormi muito... Bom dia, pai.”
“Sim, bom dia. Vocês todas dormiram bem?”
“Bem, tanto quanto possível. Esta pousada tem bons colchões. Foi difícil pra me convencer a levantar.” Marguerite respondeu, esticando os braços.
Apesar de ser uma pousada barata, os colchões eram sem dúvida macios.
Belgrieve podia entender a tentação de dormir até tarde.
Miriam bocejou enquanto enxugava as lágrimas sonolentas de seus olhos.
“Por que acordou tão cedo, Sr. Bell?”
“No meu caso, é apenas um hábito. Meus olhos sempre se abrem antes do nascer do sol. Talvez sejam apenas os anos me afetando, hahaha.”
“Hey, por essa lógica, isso também me envelhece.” protestou Kasim.
“Depois que seus dedos dos pés ultrapassam a marca dos quarenta anos, você não é mais um garoto na primavera da juventude. A certa altura, começa a agir de acordo com a sua idade.” advertiu Belgrieve.
“Você só cresceu e suavizou muito rápido. Nesse ritmo, será um velho vovô aos cinquenta.”
“Senhor Bell já parece um eremita da montanha.” disse Anessa com uma risada.
Belgrieve coçou a cabeça.
“Quer dizer aqueles caras que jogam fora seus desejos mundanos? Não é para isso que estou vindo aqui...”
“Um mestre espadachim sem classificação... O Ogro Vermelho da Fronteira... Super legal.” Angeline murmurou, encantada com as imagens que essas palavras conjuraram.
“Eu gosto de como soa!” Marguerite gargalhou. “Vamos fazer dele o assunto de Tyldes!”
“P-Pare com isso! Sério!”
O grupo riu ao ver Belgrieve em tal estado de pânico.
○
Depois do café da manhã, eles partiram, esperando evitar os horários de maior movimento da guilda. Seu objetivo era chegar pouco antes do meio-dia. Mansa não era tão animada quanto Yobem, todavia era um ponto de parada para os viajantes, e eles viram algumas pessoas passando. Havia uma masmorra próxima e alguns aventureiros para serem vistos andando pelas ruas. Mercadores que negociavam com os materiais da masmorra também paravam com frequência.
Ao entrar na guilda — um edifício com alicerces de pedra e paredes de terra — puderam ver partículas de poeira flutuando suavemente na luz que entrava pelas janelas. As missões da manhã já haviam sido reivindicadas, então não havia muitas pessoas por perto.
Angeline olhou ao redor e viu a mesa exclusiva para aventureiros de alto escalão na parte de trás do saguão. Não havia fila, então ela se dirigiu com Kasim, onde foram recebidos pelo sorriso de uma recepcionista de tez corada — talvez ela fosse de uma das tribos nômades.
“Bem-vindos. O que posso fazer para vocês hoje?”
“Temos uma carta de apresentação... Queremos ir para o sul e esperamos nos juntar a uma caravana ou mascate indo nessa direção.”
O olhar da recepcionista saltou entre a carta, a placa de Rank S de Angeline e a própria Angeline, seus olhos piscando algumas vezes enquanto processava o que estava à sua frente.
“Oh, entendo... Tudo bem. Vou dar uma conferia. Poderiam esperar aqui um pouco?”
“Sim. Não temos pressa. Sem pressa...”
Os dois se viraram e se juntaram ao resto do grupo, acomodando-se em um canto vazio do saguão. O ar empoeirado estava um tanto seco, em parte por causa da fumaça do cigarro que pairava no ar. As paredes e o piso do prédio eram de terra, embora mosaicos de azulejos coloridos intercalassem a estrutura, enfeitando o local. A atmosfera era bastante diferente da guilda de Orphen, com seus pisos de pedra e paredes brancas.
Marguerite usava um capuz na cabeça para evitar atenção indevida. Mas enquanto se sentava lá em silêncio, não parecia nem um pouco pacífica.
“Tsk, por que tenho que me esgueirar assim?” choramingou a garota elfa. “Se alguém começar uma briga, só tenho que mandá-los voando.”
“Não recorra à violência para resolver todos os problemas...” disse Belgrieve. Ele fechou os olhos, cansado, e coçou a barba.
Angeline, por outro lado, estava rindo. Certo, eu me lembro de ter ensinado uma lição àqueles aventureiros arrogantes quando comecei, ela relembrou.
Com os aventureiros, a força de combate de uma pessoa supera todas as outras. Uma vez que a diferença de poder foi claramente estabelecida, todos os outros aspirantes a desafiantes tendiam a recuar, não querendo se envergonhar. É claro que, às vezes, isso geraria ressentimentos e, por vezes, resultaria em mais brigas. Assim, era importante aplicar a quantidade certa de punição. Nunca era bom exagerar nas coisas.
“Eles nos perseguiram quando Anne e eu também estávamos começando.” observou Miriam, com a cabeça apoiada em uma das mãos.
“Sim, é verdade. Acho que menosprezam as crianças. E as mulheres...”
“O que vocês duas fizeram a respeito? Os espancaram?”
“Bastante. Não sou boa com socos, então eu pregaria suas roupas na parede com flechas ou atiraria nos copos em suas mãos.”
“Eu os dei arrepios com raios fracos.”
Anessa e Miriam riram enquanto Marguerite acenava alegremente com a mão.
“Ouviu? Mostrar sua força é a melhor maneira de resolver o problema!” ela declarou.
“Não viemos aqui para lutar... Nada de bom virá de ir para uma terra estrangeira e arruinar a reputação da guilda lá. Está planejando fazer isso em todas as cidades que formos?”
“Grrr... Bom, talvez...”
De repente, ocorreu a Angeline se perguntar como as coisas tinham ido para Belgrieve em sua época. Seu olhar voltou para o rosto dele.
“E no seu caso, pai? As pessoas brigavam com você?”
“Hmm? Bem, claro que sim. Não as aceitava, no entanto.”
“Uma pena. Queria ouvir sobre seu heroísmo.” resmungou Miriam.
Marguerite resmungou.
“Tsk, nada divertido. Bell e o tio-avô são muito mansos.”
“Bem, deixando-me de lado, quando Graham era jovem...”
“Hã? O que há com o velho Graham?”
“Bem, hm... Imagino que Graham provavelmente era parecido com Maggie quando era mais jovem.”
“Vovô e Maggie...?” os olhos de Angeline se arregalaram quando olhou para Marguerite.
Talvez — apenas talvez — uma vez que essa princesa moleca cresça, ela se estabelecerá em uma personalidade calma e agradável... Angeline tentou imaginar tal situação para si mesma, apenas para falhar miseravelmente. Marguerite sempre seria Marguerite, não importa quanto tempo passasse. Também não conseguia imaginar Graham como um delinquente de sangue quente.
“Não consigo imaginar... Uma Maggie calma é impossível.”
“Não há como eu murchar como o tio-avô! Não seja estúpido!”
“Acha mesmo?” Belgrieve riu.
Foi então que a recepcionista correu até eles.
“Desculpe por deixá-los esperando. Hmm, a mestra da guilda quer vê-los. Podemos ter um momento do seu tempo?”
“Hmm? Claro. Devemos ir todos juntos...?”
“Bem, hum... Não. A sala é pequena, então só os dois Ranks S...” a recepcionista explicou, e com um olhar para o resto do grupo, ela curvou-se se desculpando. Porém não houve nenhuma objeção, nem nenhum deles pareceu se ofender. Assim, Angeline e Kasim foram levados mais para dentro da guilda.
Pela janela do corredor, podiam ver o pátio onde vários materiais trazidos por aventureiros estavam sendo recolhidos. Os comerciantes eventualmente apareciam para comprar as mercadorias a granel, não muito diferente de um pequeno mercado. Havia uma cacofonia de todos os tipos de vozes chamando ao redor, tão alto e confuso que era impossível dizer o que qualquer pessoa estava dizendo.
Eles passaram em frente a um arsenal e depois a uma sala de referência antes de chegar ao escritório da mestra da guilda nos fundos. As paredes do lado de fora eram ladrilhadas e a velha porta de madeira era decorada com ornamentos de ferro. Assim que passaram pela porta, se encontraram em uma sala bastante estreita, apenas exacerbada pelas estantes de livros. Não havia mesa para receber os convidados; as cadeiras tiveram que ser arrastadas para frente da mesa do escritório, perto dos fundos.
Do outro lado da mesa estava sentada uma mulher esbelta de meia-idade com pele bronzeada e ocre — presumivelmente a mestra da guilda. Seus longos cabelos trançados eram de um tom de violeta quase preto, sobre os quais ela usava um chapéu de pano. Sua bochecha estava tatuada com um símbolo peculiar e um tapa-olho cobria seu olho direito.
A mulher carregava o ar digno de uma lutadora experiente; ela não disse nada, contudo Angeline já estava impressionada. É assim que um mestre de guilda deve ser...
A mulher sorriu para Angeline e Kasim.
“Bem-vinda à Guilda de Mansa, Madame Valquíria de Cabelos Negros. Eu sou a mestra da guilda de Mansa, Sierra. É um prazer.”
“O prazer é todo meu... Eu sou Angeline.”
“Hehe, ouvi os rumores, no entanto você realmente é jovem. O que eu daria pelo seu talento.” disse Sierra, rindo.
Angeline de repente se sentiu um pouco desconfortável.
“Hmm, esse cara aqui é o Sr. Kasim.” disse, olhando para Kasim, que tinha um sorriso bastante rígido no rosto.
“S-Sierra...? O que está fazendo aqui?”
“Eu deveria estar te perguntando isso, Kasim.” Sierra sorriu para Kasim sem vacilar, entretanto seus olhos eram afiados e pareciam bastante zangados.
Angeline olhou para trás e para frente entre os dois.
“Vocês já se conhecem?”
“Bem, um pouco.” Kasim murmurou, seus olhos vagando.
Sierra saltou sobre sua mesa e pousou diante de Kasim, pairando sobre ele antes de levantá-lo pelas lapelas, seu rosto ainda colado com um sorriso alegre, mesmo quando uma veia latejante tornou-se visível em sua testa.
“Pensei que sabia o quão egocêntrico você poderia ser, mas o que lhe deu o direito de faltar a um trabalho e só desaparecer assim? A próxima coisa que ouço é que está se aposentando como aventureiro! Você pelo menos entende os problemas que nos fez passar? E achou mesmo que poderia se disfarçar deixando a barba crescer?”
“Hey, hey, hey! Espera, espera! Me desculpe, ok? Eu estava desesperado naquela época, acredite em mim!”
“Isso não é desculpa, idiota. E então você vai ser reintegrado alegremente... Vou lhe dar uma boa palmada e podemos começar a conversar a partir daí.”
“Tenha piedade! Um tapa seu me mataria!”
“Sim, essa é a intenção. Tem alguma reclamação?”
“Hey! Ange! Me salve!”
Angeline, que os observava atordoada, saiu de seu estado e agarrou Sierra pelo braço.
“Sra. Sierra, por favor. Ele é meu camarada, depois de tudo...”
“Hmph... Parece que encontrou um novo sopro de vida, Kasim.”
“Me de uma folga... Quantos anos já se passaram?” Kasim ajeitou sua roupa com um sorriso preocupado no rosto.
Angeline o cutucou.
“Qual é o seu relacionamento?” ela perguntou.
Coçando a cabeça sem jeito, Kasim explicou.
“Bem, você sabe... Costumávamos estar no mesmo grupo. Isso foi, uh... Quando eu estava na capital imperial, acredito.”
“Sim, já se passaram mais de dez anos. Nós caçamos o Senhor do Vazio juntos...”
A caçada ao Senhor do Vazio foi a conquista que rendeu a Kasim sua promoção ao Rank S. Então eles são camaradas daquela época, pensou Angeline, olhando para Sierra de forma mais avaliadora.
Sierra estava na idade em que as rugas apenas começavam a aparecer. Seus braços tatuados, descobertos por qualquer manga, eram bastante musculosos. O poder que emanava dela não parecia diferente do de um jovem guerreiro. Não importa a ‘meia-idade’ — Sierra parecia estar no auge de sua vida.
“Depois que desapareceu de repente, foi um inferno para preencher a lacuna que deixou. Acabamos tendo que cancelar o trabalho em que estávamos... Então Carter subiu ao poder e o grupo se desfez.”
“Pedi desculpas, não pedi? E de qualquer maneira, deveria saber o quanto Carter e todos os outros me odiavam. De qualquer forma, eu iria embora mais cedo ou mais tarde, acredite em mim.”
“Ah, pare de tagarelar. Não estou reclamando que foi embora — estou reclamando de todos os problemas que me causou na saída. Contudo já que tocou no assunto — qual era a sua atitude naquela época? Você não cooperou nem um pouco com os outros membros; na verdade, sou praticamente a única com quem teve uma conversa adequada. Você possui parte da culpa por como as coisas foram. Há uma maneira certa e errada de sair, idiota. Ah, só de lembrar já me deixa irritada.”
Sierra então lançou um punho casual no flanco de Kasim, provocando um grito do homem.
“Nunca vai aprender a controlar essa sua força monstruosa!” ele reclamou.
“Cala a boca.”
“Ow! Sério! Pare!”
Na maior parte do tempo Kasim agia separado de tudo, então a estranha visão dele implorando era divertida o suficiente para que Angeline caísse na gargalhada ao vê-lo.
Depois de cutucar Kasim até que estivesse satisfeita, Sierra suspirou alto e arrastou duas cadeiras do canto da sala para Kasim e uma Angeline ainda rindo. Pouco tempo depois, a recepcionista voltou com o chá antes de se curvar e seguir seu caminho prontamente. O chá tinha um aroma diferente dos chás florais servidos no Orphen. Foi um prazer, no entanto Kasim não bebeu nem um gole de sua bebida, apenas caiu para trás em sua cadeira parecendo estar todo esgotado.
“Deveria ter esperado no saguão...”
“Apenas teve o que merece, idiota.”
“Hehehe... Estou feliz que vocês dois se dão bem.”
“Eu não diria isso...”
Sierra olhou para Kasim com dúvida.
“Kasim, você mudou. Não parece mais tão patético.”
“Hmm? Acha mesmo?”
“Sim. Quando costumávamos trabalhar juntos, você sempre era tão cínico e amargo com tudo... Parece estar se divertindo de verdade agora.”
Kasim ajeitou o chapéu e pegou o chá.
“Veja bem, meu amigo, consegui encontrá-lo outra vez.”
“Hmm... Aquele de Orphen?”
“Sim. Hehehe, eu tinha certeza que ele saiu e morreu, mas ainda estava por aí. Essa garota é filha dele, na verdade.” disse Kasim, dando um tapinha no ombro de Angeline.
“Oh? O destino trabalha de maneiras misteriosas...” Sierra meditou, um sorriso um tanto triste enfeitando seus lábios enquanto tomava um gole de seu próprio chá. Ela endireitou a postura e colocou as mãos sobre a mesa.
“Vamos continuar. Então, está levando a filha do seu amigo e indo para o sul? O que está fazendo agora?”
“Sim, bem, esse é o ponto. Lembra como disse que tinha três velhos amigos? Encontrei-me com um deles e descobrimos onde está o próximo. Estamos indo vê-lo.”
“Entendo...”
Incomodava Angeline o quão pouco impressionada Sierra parecia, porém sentiu que seria rude prosseguir com o assunto. De qualquer forma, explicou que estavam indo para as montanhas Nyndia para facilitar esse reencontro e que planejavam viajar por essa rota para manter suas habilidades afiadas.
“No atual momento não há caravanas procurando contratá-lo. Ninguém segue para o sul de Mansa — o perigo supera em muito os escassos retornos. A maioria das caravanas está tentando chegar a Khalifa.”
Angeline franziu a testa. Isso é o que esperávamos... Mesmo Yobem, que era maior do que Mansa, não tinha mercadores imprudentes o suficiente para ir para o sul.
Além do mais, uma olhada no mapa mostrou que teriam que percorrer uma distância considerável ao longo das montanhas para encontrar algo parecido com uma cidade grande. Em comparação, fazer um desvio para Khalifa era mais seguro e lucrativo, pois a rota incluía mais centros comerciais importantes.
Acho que não teremos essa aventura. Angeline recostou-se na cadeira, sentindo-se abatida.
Um sorriso cruzou o rosto de Sierra.
“Embora haja um tipo diferente de trabalho disponível.”
“Um diferente?”
“Sim.” Sierra se inclinou, os cotovelos pressionados contra a mesa. “Não protegendo, no entanto. Vocês estarão transportando.”
Ao que parecia, houve um pedido de entrega de documentos e pacotes para a guilda de uma cidade do sul. Era bom passar por Khalifa para chegar lá, entretanto ainda assim seria um desvio e tanto. Se alguém pudesse ir direto para o sul, reduziria bastante o tempo. Embora a guilda não estivesse com pressa para receber esta remessa, também não havia mal em chegar cedo.
“Normalmente, alguém da guilda cuidaria da tarefa... Mas Mansa é um lugar pequeno. Não temos muitas pessoas por perto. Pensei em ir por mim mesma, porém Kasim é alguém em quem posso confiar. O mesmo vale para você, Angeline.”
“Tem certeza...? Podemos fugir com sua remessa.”
“É claro, um aventureiro grande o suficiente para receber uma medalha do Arquiduque Estogal não faria algo do tipo. Suspeito que seria mais arriscado para você manchar a reputação que conquistou.”
Angeline silenciosamente bebeu seu chá um pouco. Por fim, olhou para Sierra e assentiu. “Entendido. Isso deve ser fácil o suficiente... Deixe o trabalho conosco.”
“Haha, que confiável. Acho que não há necessidade de se preocupar com dois Ranks S no caso.”
“Ah, ótimo. Será um peso a menos no meu peito. Obrigado, Sierra.”
“Hmph, não fiz isso por você. Fiz por Angeline.”
“Hehehe, não precisa ficar envergonhada. Você sempre foi uma boa garota.” Kasim riu, aparentando recuperar seu bom humor.
Sierra balançou a cabeça.
“Minha nossa. Nunca pensou duas vezes sobre o meu comportamento em relação a você, não é?”
“Hmm? O que foi?”
“Não é nada. Então, qual é a sua formação? Não são só vocês dois, são?”
“Claro que não. Temos os membros do grupo de Ange, o pai dela — ou seja, meu velho amigo — e uma elfa.”
A testa de Sierra se contraiu.
“Entendo... Então ele está aqui.”
“Bem, sim, vamos encontrar nosso outro camarada. Eu deveria te apresentá-lo também.”
“Hmm...” Sierra murmurou. Seus olhos se fecharam enquanto acariciava o queixo.
○
O chá de leite com especiarias era muito doce, embora dificilmente parecesse chá. Havia uma loja ao lado do saguão que vendia vários tipos de comida e bebida, então eles compraram doces e chá enquanto esperavam que Angeline e Kasim voltassem.
“Hmm... Preciso me convencer de que é assim que deve ser o gosto...” Belgrieve se viu fazendo uma careta diante dessa combinação de doces açucarados com chás doces. As meninas pareciam se deliciar, nem um pouco desanimadas.
Marguerite piscou, vendo que a mão de Belgrieve havia parado.
“Hey, não seja um estranho, Bell. Se não quiser, eu pego.”
“Claro vá em frente. Ainda assim, estou surpreso que todas possam comer tanto.”
“Coma bem se quiser se manter saudável e feliz. Certo, Merry?”
“Certo, certo. Deve comer se quiser crescer grande e forte, Sr. Bell.”
As meninas estavam rindo enquanto Belgrieve coçava a cabeça quando Angeline voltou.
“Pai...”
“Oh, Ange. Como foi? Algum progresso?”
“Sim... Esta é a mestra da guilda, Sra. Sierra. E este é meu pai, Belgrieve...”
A mulher de pele morena fez uma reverência quando Angeline a apresentou.
“É um prazer te conhecer. Meu nome é Sierra.”
“É um prazer. E pensar que a mestra da guilda viria pessoalmente nos ver. Eu sou Belgrieve.” Belgrieve se levantou e devolveu seu gesto. Enquanto isso, o olho direito de Sierra o olhava de cima a baixo, e ela levou a mão ao queixo, pensativa.
“Hmm... Entendi. Então você é o velho amigo de Kasim.”
“Oh?” Belgrieve inclinou a cabeça. A maneira como ela colocou fez parecer que conhecia Kasim.
“Sierra é uma velha companheira minha de quando estive na capital. Lutamos lado a lado por cerca de cinco anos.” explicou Kasim, rindo.
“Entendo... É estranho como essas coisas funcionam.” Belgrieve sorriu, acariciando a barba. Sierra, por sua vez, apenas esfregou os cabelos, de olhos fechados.
Anessa, Miriam e Marguerite a cumprimentaram antes que chegasse a hora de Sierra explicar o trabalho. Eles iriam transportar documentos e suprimentos da guilda. Posso entender deixar isso para um velho amigo como Kasim, mas o resto de nós somos estranhos. Está tudo bem? Belgrieve se perguntou.
“Entendo a situação... Porém tem certeza que pode nos confiar esse trabalho?”
“Essa é a parte um tanto problemática, Sir Belgrieve. Conheço bem Kasim; Angeline é uma Rank S de grande renome, e os membros de seu grupo são confiáveis. Contudo — e sei que pode soar rude — devo ser mais cautelosa ao lidar com a elfa de Rank D. E então tem você, alguém que nem é um aventureiro.”
“Hmm... Bem, isso faz sentido.” reconheceu Belgrieve, acenando com a cabeça compreensivamente.
Kasim, ao contrário, parecia lívido.
“O que está dizendo? Bell é meu amigo. Não pode confiar nele?” exigiu Kasim, dando um passo à frente.
“Não é uma questão de confiança, é uma questão de propriedade. Não posso permitir que ninguém pense que a guilda contratou um completo amador de origem desconhecida.”
“Não seja tão teimosa. A autoridade de mestra da guilda deve ser suficiente para lidar com esses detalhes.”
“É possível... No entanto, o caminho da montanha é de fato perigoso. Monstros de alto escalão foram confirmados habitando os desfiladeiros ao longo do caminho. Sem prova de sua capacidade, seria irresponsável mandá-lo para lá sem pensar duas vezes.” explicou Sierra, olhando para a expressão descontente de Kasim, antes de se virar para Belgrieve. “Isso pode não ser o que esperava ouvir... Espero que entenda.”
“Não, você está apenas mostrando a devida preocupação. Estou ciente de que não estamos sendo razoáveis, então, por favor, não se preocupe.”
“Dito isto, também ficaríamos muito gratos se essas mercadorias pudessem chegar rapidamente ao seu destino. Eu quero mesmo que seu grupo aceite o trabalho.” explicou Sierra, virando-se para Angeline.
Angeline fez uma careta.
“Está nos dizendo para deixar o pai e Maggie para trás?”
“Bom, seria o ideal...”
“Só pode estar brincando. Isso nunca vai acontecer.”
“É você quem vai decidir? Ou talvez...” Sierra olhou para Belgrieve com olhos curiosos. Ela não parecia se desculpar. Era mais como se estivesse tentando provocar alguma resposta dele.
Esta mestra da guilda está estranhamente irritada desde que pôs os olhos em nós. Há algo em nós que não a agrada? Belgrieve se perguntou. Suas palavras faziam sentido — era natural que tivesse dúvidas sobre o envio de um aventureiro de baixo escalão e alguém que nem mesmo era um aventureiro em um caminho perigoso, ainda mais quando acabara de conhecê-lo.
Não era razoável esperar que ela confiasse nele assim.
Claro, uma vez que o trabalho foi aceito, ficou a critério dos aventureiros que o aceitaram. Nesse ponto, poderiam contratar um não aventureiro para guiá-los ou carregar sacolas, se assim o desejassem. Se Angeline já havia aceitado o trabalho, era sua decisão trazer Belgrieve e Marguerite.
O problema é que Angeline ainda não tinha. E a guilda, sabendo o que faziam, agora hesitava até mesmo em oferecê-la o trabalho.
Agora então, o que fazer? Belgrieve pensou. Mas suas reflexões foram interrompidas quando Marguerite se aproximou.
“Resumindo, senhora. Está tentando dizer que sou fraca.”
“H-Hey, Maggie.”
“Fique fora disso, Bell. Ouça, senhora, estou apenas me rebaixando para o Rank D. E Bell aqui? Não é sua habilidade que o impede de se tornar um aventureiro. É um capricho.”
“O que está tentando dizer?” a boca de Sierra se contorceu em um sorriso, embora a expressão não alcançasse seus olhos.
Marguerite zombou.
“Estou dizendo que vamos lutar, você e eu. Não poderá reclamar se eu for mais forte que você, certo?”
“Parece que alguém está me subestimando... Não que desgoste desse tipo de coisa. Está certa: certamente posso acomodá-la como uma exceção se puder medir pessoalmente suas habilidades.”
“Hehe, gosto quando mantém as coisas legais e simples. Pronto, o jogo começou. Prepare-se, Bell.”
“Hã?”
“Por que está distraído? Nesse ritmo, vamos ficar presos aqui ou ficaremos obrigados a seguir pelo caminho longo e chato. Vamos derrotar essa velha senhora e seguir para o sul.”
Belgrieve, carrancudo, deu um tapa na cabeça de Marguerite. A garota gritou, segurando a cabeça e encarando-o com os olhos marejados.
“O que está fazendo...?”
“Sua atitude é muito rude. É bom ser emocionada, porém trate-a com respeito.” Belgrieve virou-se para Sierra. “Você está bem com isso?”
“Hmm? É preocupação que estou ouvindo? Não acha que vai perder para gente como eu, acha?”
“Eu nunca disse isso. Apenas pensei que poderia haver problemas no futuro se as coisas fossem resolvidas de forma tão grosseira.”
“Não é... seu papel se preocupar com isso.”
“Agora olhe aqui, Sierra.” Kasim tentou interromper, contudo foi ignorado — Sierra já havia se virado e se afastado rapidamente. Por alguma razão, ela parecia estar com raiva. Marguerite a perseguiu animada, e depois de trocar olhares, Angeline, Anessa e Miriam seguiram atrás.
Havia um ar um tanto triste em Kasim quando olhou para Belgrieve.
“Eu meio que... Sinto muito por tudo. Ela é uma boa moça, apesar de tudo.”
“Entendo. Ela leva a sério seus deveres profissionais e tenho certeza de que tem algo em mente. Estou grato por estar nos deixando escapar com apenas uma luta.”
“Sim...” Kasim soltou um grande suspiro. “Sigh... Sierra, sua pequena...” então, com o chapéu na cabeça, Kasim se apressou no caminho à frente.
Apenas por sua postura, Belgrieve poderia dizer que Sierra era um inimigo formidável. E saber que era a antiga companheira de Kasim tornava fácil supor sua força. Belgrieve se perguntou se poderia lutar bem o suficiente para impressioná-la.
“Parece que minha aventura já começou.” Belgrieve abriu um sorriso torto enquanto ajustava a espada em suas costas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário