Capítulo Extra 83.5: Espírito de Fogo
Tinham um longo caminho pela frente, porém não podiam deixar-se envolver pelos preparativos a ponto de negligenciar o trabalho diário. Eles colhiam trigo, desenterravam batatas e ajudavam a consertar casas e, no meio de tudo isso, a primavera desaparecia continuamente para ser substituída por um leve ar de verão. Os brotos de cores vivas que surgiram na primavera agora eram de um verde forte e profundo. Até o azul do céu parecia ficar mais brilhante à luz do sol que se fortalecia aos poucos.
À tarde dos aldeões era dedicada à colheita do trigo. Depois que os homens brandiam suas grandes foices, as mulheres embalavam e transportavam a colheita, e as crianças os seguiam para recuperar os restos caídos. Charlotte estava entre as crianças, usando um chapéu de palha enquanto colhia espigas caídas. Qualquer um que ela recuperasse era colocado em uma cesta ao lado. As sobras individuais eram pequenas, contudo formavam uma quantidade considerável depois de reunidas. Embora esse fosse um trabalho rotineiro para os aldeões, o ataque da Floresta Antiga havia arruinado muitos dos campos de trigo, e todos estavam coletando com muito mais cuidado do que o normal este ano.
Depois de ficar curvada por um longo tempo, Charlotte respirou fundo e se levantou, alongando as costas. Ela enxugou o suor da testa, olhando para o céu com os olhos semicerrados. Como albina, Charlotte não se dava muito bem com a luz do sol forte. Assim, sempre usava mangas compridas e um chapéu de abas largas para minimizar a exposição.
Angeline aproximou-se da garota, com um feixe de trigo debaixo do braço.
“Tudo bem...?” perguntou. “Se estiver cansada, deveria descansar um pouco.”
“Ainda estou pronta para continuar. Nós apenas começamos.” Charlotte ajeitou o chapéu e estufou o peito.
Angeline devolveu com um sorriso.
“É bom saber. No entanto não se force... Mit, está bem?”
“Estou bem. Você está bem, irmã?” Mit limpou a sujeira de suas mãos enquanto olhava para Angeline. Desde o ataque à floresta, seus olhos arregalados agora refletiam uma luz de vontade mais forte e suas frases eram mais claras do que antes.
Angeline riu.
“É claro. Eu sou a irmã mais velha aqui.”
Angeline carregou seu feixe de trigo para a carroça enquanto as duas crianças voltavam ao trabalho. Eles colheram e colheram, e ainda havia muitas espigas caídas pela frente. Mesmo quando se concentravam ao máximo, tentando obter até o último, quando olhavam para trás, ainda encontravam pedaços de trigo que haviam esquecido.
“É como se estivessem saindo do chão quando não estamos olhando.” disse Charlotte.
Mit assentiu.
“Sim. Mas todos ficarão felizes se pegarmos muitos.”
“Certo, temos que fazer o nosso melhor, então.”
Os dois se reuniram com uma nova motivação e gradualmente sua cesta foi preenchida. Um adulto próximo os elogiou por seu trabalho árduo e carregou a cesta para a carroça para eles. Em seguida, limpe e repita.
O sol começou a se pôr e o espectro adicional de matizes parecia fazer com que a luz caísse ainda mais forte sobre os aldeões. Charlotte balançou as roupas encharcadas de suor para respirar um pouco e respirou fundo.
“Está ficando mais quente... Você está bem, Mit?”
“Sim. Porém você está cansada, Char. Vamos descansar.” Mit pegou-a pela mão e puxou-a para a sombra de uma árvore perto do campo.
Havia lugares ao redor de Turnera que serviam como uma linha divisória distinta entre as planícies e a floresta, contudo também havia lugares onde árvores esparsas e perdidas cresciam mais densas de maneira gradual até formarem uma extensão da floresta. Essas árvores soltas serviam de ponto de descanso para os agricultores nos intervalos entre os trabalhos.
“Mit, não está mais com medo da floresta?” Charlotte perguntou, um pouco preocupada enquanto olhava para a floresta ao longe.
Mit assentiu.
“Estou bem.”
“Entendo... Espero que sim.” Charlotte ainda estava um pouco nervosa. Ela tinha ouvido falar que a Floresta Antiga tinha vindo por causa da mana de Mit, e tendo nascido com uma imensa reserva de mana própria, não podia deixar de achar a floresta um pouco assustadora agora. Se tivesse sido levada sozinha para aquelas árvores escuras... Só de pensar na responsabilidade a fez estremecer.
Não era como se os dois não tivessem entrado na floresta antes. Mit tinha ido inúmeras vezes com Graham, e Charlotte tinha ido com os outros para colher relva antes do festival da primavera. Ela não sentiu nenhum medo então. No entanto, após o incidente, hesitou até mesmo em abordá-la.
Eu posso não ser boa sozinha, no entanto deveríamos ficar bem juntos, Charlotte pensou enquanto se agarrava à mão de Mit e ele a levava adiante. Sua mão estava coberta de sujeira e pegajosa de suor.
Depois de uma curta caminhada por uma encosta suave, os dois estavam sob as folhas de um olmo que balançavam com a brisa fresca e projetavam uma sombra confortável no chão. Não muito longe, a densa floresta brilhava verde sob a luz do sol poente.
Sob a árvore, encontraram Kasim deitado de bruços, o chapéu cobrindo o rosto.
“Ah, tio Kasim, eu queria saber para onde você tinha ido!”
“Está com sono?” Mit bateu no flanco de Kasim com o sapato, provocando um gemido do homem em resposta.
“Ugh... Hã, são apenas as crianças.” Kasim sentou-se, esticando os braços enquanto bocejava.
“Ahh, foi uma boa soneca. Já é de noite?”
“Não fique tirando boas sonecas! O pai vai ficar bravo se descobrir que está relaxando aqui!”
“Oh não, ai de mim. Precisam manter isso em segredo. Bell é bem assustador quando está bravo.” Kasim riu enquanto juntava as mãos e inclinava a cabeça.
“Seja sério!” Charlotte retrucou, levando a mão ao quadril e estufando o peito, mas não parecia muito interessada em prosseguir com o assunto. Ao se voltar e se sentar na base da árvore, Mit se sentou ao seu lado.
“A irmã disse que você era um preguiçoso.” disse Mit.
“E está certa, eu estou. Portanto, não fique muito bravo; é algo que vem naturalmente para mim.”
“Hey, o que vai fazer se Mit começar a imitá-lo?”
Mit pareceu bem ofendido com a sugestão.
“Eu não vou. Vou imitar o pai.”
Kasim acariciou sua barba se divertindo.
“Imitar Bell, hein? Como planeja fazê-lo?”
“Praticar com a espada. Então deixar crescer a barba.”
“Uma barba não vai ficar bem em você, Mit!” Charlotte protestou. “E a esgrima do pai não é tudo que existe sobre ele! Precisa trabalhar duro e ser gentil com todos!”
“Que dupla alegre vocês são.” refletiu Kasim. Ele bocejou de novo e encostou-se no olmo.
“O trabalho do dia já está feito? Vieram aqui para me acordar?”
“Nah... Nós nem pensamos que estivesse aqui...”
“Severo.”
“Estamos apenas fazendo uma pausa. De acordo com Ange, vamos nos reunir até o sol se pôr.”
“Nossa, tanto trabalho. Com certeza não é para mim.”
“Apenas tente, por que não? É interessante, como uma caça ao tesouro. Há uma enorme sensação de realização quando encontra uma espiga cheia de grãos até a borda. Certo, Mit?”
“É verdade. Como é um adulto, tem que trabalhar.”
“Não há nenhuma lei dizendo que todo adulto tem que trabalhar.”
“Mas... Mas o pai trabalha.”
“Isso é porque ele é o Bell. Bells são Bells. Kasims são Kasims. O que há de errado com isso?”
“Bom...”
“Espere, Mit, não deixe que ele te engane! O tio está apenas usando sofisma!”
“Hmm, vejo que conhece uma palavra bem difícil, Char. Muito bom.”
“E-Elogios não te levarão a lugar nenhum comigo!”
“Vamos, vamos, não precisa ser rabugenta. Vocês vieram para descansar, certo? Deixe-me ensinar-lhe as alegrias da preguiça. Sabiam que existe um feitiço para sonhar qualquer sonho que quiser?”
Mit e Charlotte trocaram um olhar. Embora Kasim estivesse claramente tentando-os de uma maneira diabólica, ainda despertava sua curiosidade infantil.
“As alegrias... Da preguiça...”
“P-Porém o pai não...”
“Hey, não se preocupem. Só precisam não contar ao velho Bell. É divertido ter um ou dois segredos.”
“Que bobagem está ensinando às crianças?” disse uma nova voz. Antes que percebessem, Byaku veio para ficar ao lado deles com um olhar azedo no rosto.
Mit engasgou, levantou-se, correu e quase o agarrou em um abraço.
“Bucky!”
“Gwah!” Byaku cambaleou quando o pegou. “Hey, eu disse para não bater em mim.” reclamou.
“Hm-hmm.” Mit não deu à mínima e em seguida começou a escalá-lo. Byaku era rude e insociável, contudo, por algum motivo, as crianças o tratavam bem, e Mit não era exceção.
“O irmão mais velho está tão popular como sempre, pelo que vejo.” disse Kasim com um sorriso.
“Tsk... Maldito velho delinquente.”
Apesar de sua carranca obstinada, Byaku sutilmente se moveu para tornar mais fácil para Mit escalar — a visão provocou risos de Charlotte. Nós dois mudamos um pouco desde nossa peregrinação herética, ela pensou. Naquela época, seu coração era espinhoso e o mundo parecia tão detestável. Agora, tudo parecia radiante.
Mit alcançou o peito de Byaku e Byaku virou o menino de costas.
“Devemos ir para casa primeiro e começar a preparar o jantar.”
“Oh? Foi isso que o pai disse? Então devemos ir.” Charlotte levantou-se de um salto, recolhendo o chapéu ao longo do caminho.
“Hey, você anda sozinho.” Byaku resmungou enquanto baixava Mit no chão e revirava os ombros. Ele havia treinado um pouco desde que chegou a Turnera, entretanto sua constituição ainda era esbelta. Levaria muito tempo até que pudesse segurar as crianças tão facilmente quanto Belgrieve e Graham.
Kasim se levantou e se espreguiçou.
“Certo, em frente. O que há de bom para o jantar?”
“Tio! Você vai ajudar, marque minhas palavras!”
“Sim, sim, como quiser, princesa.”
E assim, os quatro seguiram seu caminho. Mit olhou por cima do ombro e olhou para as árvores. O som de folhas farfalhando fez cócegas em seus ouvidos.
○
Quando o jantar acabou, a brisa da noite aumentou. Quando a louça foi guardada, as crianças se dirigiram para a casa inacabada com abajures e velas. Embora ainda não estivesse completa, o telhado estava acabado, as paredes levantadas e os caixilhos das janelas cheios de vidraças, o suficiente para evitar a chuva.
Mesmo assim, não havia chama na lareira e a estrutura interna ainda era um trabalho em andamento. Eles não trouxeram nenhum mobiliário permanente, todavia depois de arrastar uma mesa e cadeiras e acender algumas velas, isso deu a vibração de uma base secreta ao interior esquelético, e foi emocionante apenas sentar lá. Embora estivesse um pouco frio os cobertores que trouxeram contribuíram para a atmosfera vertiginosa.
Angeline colocou um tabuleiro de damas — uma compra de seu último souvenir — sobre a mesa.
“Agora, Byaku. Sua vez...”
“Sem chance. Suas habilidades dão pena.”
“Como se estivesse em posição de dizer algo... Não vou deixá-lo terminar com uma sequência de vitórias!”
Diante da demanda obstinada de Angeline, Byaku soltou um suspiro cansado e ocupou seu lugar na frente dela.
A mesa havia sido colocada no chão de terra nua. Havia tábuas elevadas ao redor daquele local inacabado, onde colocaram almofadas para sentar. Isso deixou as meninas deitadas com os dedos dos pés pendurados ao ar livre.
Esta seria sua casa uma vez que sua jornada terminasse. Angeline imaginou como seria a vida enquanto olhava ao redor do interior iluminado por velas. Miriam sentou-se confortavelmente enquanto Charlotte mexia em seu cabelo, trançando-o e prendendo-o em vários estilos. Anessa estava a uma curta distância, com Mit rolando ao seu lado, seu foco voltou para a obra de Charlotte, um pouco interessada.
“Seu cabelo é tão fofo, Merry. É tão arejado e maravilhoso quando é trançado. Vamos prender com uma fita.” Charlotte insistiu.
“Sério? Eu nunca brinco com meu penteado.”
A primeira prioridade de Miriam era esconder as orelhas, então eram poucas as vezes que tirava o chapéu. Dificilmente importava qual era seu penteado quando estaria coberto de qualquer maneira, então nunca tinha pensado muito a respeito.
No momento em que seu penteado foi amarrado com fitas em tranças, Anessa caiu na gargalhada.
“Pfft! Bem, olha quem ficou fofa de repente.”
“Não estou? Hehe, está com ciúmes?” Miriam levantou com cuidado uma das tranças com um sorriso.
“Nah, o meu não é longo o suficiente para fazer igual.” disse Anessa, passando a mão pelo cabelo.
“Oh, mas ainda há muitas coisas para tentar. Temos grampos de cabelo e fitas.”
“Vamos colocar um enorme. Uma grande fita vermelha brilhante!”
“Hey, que tal tentar com esse?”
Foi quando Angeline soltou um gemido estranho. Byaku estava recolhendo cansadamente as peças de damas do tabuleiro.
“São três vitórias para mim. Apenas desista.”
“Grrr... Por que não consigo vencer...?” Angeline fez beicinho, olhando para o tabuleiro. Então Anessa veio até e cutucou seu ombro.
“Já não é o suficiente? Deixe-me tentar.”
“Urgh... Tudo bem. Minha cabeça precisa de um pouco de descanso.”
“Está descansando o ano todo, não é?” Byaku brincou com um sorriso fino. Angeline mostrou a língua em resposta. Ela se jogou no chão e olhou para o teto.
“Irmã, você perdeu?” Mit perguntou, inclinando-se sobre Angeline.
“Não perdi... Foi uma retirada estratégica.” Angeline se equivocou antes de puxar Mit para um abraço apertado. Mit guinchou e se contorceu, porém acabou se resignando ao seu destino.
A luz da vela piscou, fazendo com que as sombras dançassem ao redor dos rostos de Byaku e Anessa no tabuleiro de damas. Ambos olharam para ele, bastante focados.
Com um grunhido, Angeline sentou-se com Mit ainda em seus braços.
“Bucky, aquele miserável. Ele nunca parecia tão sério quando estava contra mim.”
“Anne é forte?”
“Sim...”
Angeline nunca havia derrotado Anessa em damas antes. Não é estranho? ela se perguntou enquanto reorganizava as pernas para se sentar de pernas cruzadas. Com Mit descansando em seu colo, o abraçou por trás e descansou o queixo na cabeça do garoto. Mit não ofereceu resistência.
“Hey, quando os vejo assim, vocês são a cara um do outro.” Miriam riu. “Seu cabelo tem o mesmo comprimento e cor também.”
Parecia assim porque ambos compartilhavam longos cabelos negros. Angeline beliscou as bochechas de Mit. Elas eram macias e suaves, uma delícia de tocar.
“Somos irmãos... Afinal.”
“Sim.”
O vento estava aumentando e puderam ouvir o farfalhar através da janela. Mit olhou para cima, então pulou e mancou até o parapeito da janela. Se não chegasse perto o suficiente, o vidro apenas refletiria seu próprio rosto. Angeline estava logo atrás, olhando para fora também. A borda do quintal estava iluminada por uma fraca luz azul — evidentemente, a lua estava lá fora. O cenário era iluminado por uma luz pálida até onde a vista alcançava e, embora não conseguisse distinguir nenhum dos detalhes mais sutis, ainda podia ver as silhuetas das árvores se movendo com a brisa.
“Oh... Quer dar uma olhada? Vai ser uma boa caminhada.”
“Eu quero ir.”
“Hã? Um passeio? Também quero ir!” Charlotte se levantou e se juntou a eles.
Miriam se enrolou em um cobertor bem apertado e caiu preguiçosamente de lado.
“Boa sorte com isso.”
Angeline assentiu, olhando para os dois rostos ao redor do tabuleiro de damas. “E vocês dois...?” ela perguntou, sem resposta. “Hey... Querem caminhar?”
“Hmm...” Anessa deu uma resposta vaga. Byaku não deu nenhuma resposta. Ambos tinham vincos profundos nas sobrancelhas, parecendo imersos em pensamentos. Angeline deu de ombros e abriu a porta, segurando uma lâmpada em uma das mãos.
○
Lá fora, o ar soprava rapidamente. No início do verão, eles não precisavam se preocupar com a chegada da geada, contudo ainda havia um pouco de neve no topo das montanhas do norte, e a temperatura despencava sempre que os ventos sopravam de lá. O contraste com o dia quente e suado era um choque para o corpo.
Das janelas do edifício original e do anexo, a luz projetava sombras bizarras.
No céu, a pálida meia-lua tinha finos fiapos de nuvens fluindo ao seu redor. O ar estava claro, então todos tinham contornos nítidos. Suas partes superiores eram brancas e claras o suficiente para distinguir cada saliência e cavidade ao luar, no entanto suas partes mais sombreadas desbotavam para um azul profundo, de modo que suas feições se fundiam. A lua estava brilhante demais para que as estrelas deixassem uma marca, entretanto ainda havia algumas mais brilhantes marcando sua presença aqui e ali.
Um farfalhar ao longe anunciou outra forte rajada que sacudiu a macieira e os arbustos do quintal. Mit apurou seus ouvidos, tentando discernir o que esses ventos estavam tentando lhe dizer, enquanto Angeline fechava os olhos e enchia os pulmões com o ar fresco.
“Vamos andar um pouco, mana. Ficar parado está me congelando.” Charlotte sugeriu, puxando sua manga.
“Certo... Vamos.”
Os três seguiram seu caminho. Angeline estava entre Mit e Charlotte, segurando ambas as mãos. Mit segurava a lamparina com a outra mão. Quando o vento aumentasse, eles seriam bombardeados com o orvalho da tarde e o cheiro da grama.
A vila estava quieta. Ao contrário de Orphen, não tinham um único poste de luz. Embora a luz penetrasse pelas frestas das janelas e portas, poucas vezes ouviram qualquer voz.
“As noites de Turnera são sempre tão escuras... É bom termos lua hoje.” observou Charlotte, olhando em volta.
“Certo, as noites sem lua são escuras como breu... Mit, você vai ficar sozinho cuidando da casa?”
“Não... Estarei com o vovô.”
“Hehe, entendo... Já experimentou uma noite clara de inverno?”
Mit piscou. Depois que Belgrieve, Marguerite e Duncan partiram de Turnera, Mit passou o inverno lá com Graham. Claro, os dois saíam para passear, porém havia nuvens pesadas pairando sobre eles todos os dias, espalhando neve branca e fria sobre tudo. Ele tinha certeza de que essas noites claras de luar simplesmente não aconteciam no inverno.
“Não... Pode ficar claro?”
“Pode. O chão é branco puro e brilha ao luar. É mais brilhante do que pode imaginar...”
“Wow... Parece adorável!” disse Charlotte.
Angeline sorriu, apertando mais a mão de Mit.
“Vamos caminhar um pouco na periferia.”
“Sim... Grama e orvalho. Gosto do cheiro.” disse Mit, respirando fundo.
Fora da vila, as planícies cobertas de mato pareciam brilhar. Caminhar pela grama os encharcou de orvalho até as canelas.
Angeline apagou a lâmpada. Seus olhos demoraram um pouco para se ajustar, contudo depois de suportar a escuridão por um curto período, o luar foi o suficiente para enxergarem sem problemas. Na verdade, tudo parecia ainda mais claro agora que a lâmpada havia apagado.
Os olhos de Mit brilharam quando olhou em volta. As planícies pareciam continuar até se fundirem com o céu. As altas montanhas que pareciam sustentar o céu flutuavam como solenes picos brancos. Normalmente elas pairavam acima como grandes sombras, no entanto ao luar podiam distinguir a superfície rochosa e escarpada. As árvores que cresciam no meio do caminho paravam depois de certo ponto, e era pedra a partir daí. Os três podiam ver tudo tão claramente, mesmo sendo noite.
De repente, houve um barulho como se algo tivesse sido estrangulado até a morte. Foi um grito estridente, entretanto sua origem não foi vista. Mit e Charlotte olharam ao redor, apreensivos.
“O que é que foi isso...?”
“Tem um pássaro que canta assim na floresta.”
“A floresta...” quando Mit olhou, parecia que havia algo apenas na borda da linha das árvores. “Algo está lá.”
“Hmm?”
Angeline forçou os olhos e olhou também. Havia luzes verdes acendendo e apagando, movendo-se em uma ampla gama. O deles era um brilho peculiar, diferente do brilho da grama. Mit agarrou-se a Angeline com medo.
“Aquilo é...”
“Não se preocupe. Não há nada a temer...” Angeline o tranquilizou. Então, um sorriso malicioso cruzou seu rosto. “Vamos vê-los de perto.”
“Hã?”
“Sua irmãzona está com você. Vamos, vamos.”
Mit ainda parecia um tanto tímido, mas Angeline o segurava pela mão, e o garoto não tinha meios de escapar. Embora Charlotte também estivesse nervosa, seguiu-a sem reclamar.
Os três cortaram um campo de trigo completamente colhido. O solo estava pegajoso e úmido e, quando pisaram nos tocos de trigo, sentiram uma sensação de enrugamento sob os pés. Aqui e ali, encontravam ervas daninhas altas cobertas de gotas brilhantes.
Grupo caminhou até a orla da floresta com os sapatos encharcados, por fim chegando ao local onde as luzes verdes oscilavam logo depois da próxima fileira de árvores. Parecia algum tipo de fosforescência, porém não era como se houvesse vaga-lumes voando. Era apenas uma luz destacada que piscava de mais forte para mais fraca.
O coração de Mit disparou quando puxou Angeline. Embora suas memórias fossem fracas, sentiu como se tivesse visto aquelas luzes verdes quando foi capturado pela Floresta Antiga. Apenas olhá-la trazia de volta todos os tipos de coisas nas quais não queria pensar.
“Você está assustado?” Angeline perguntou a Mit.
Seu rosto se contraiu. Seus olhos vagaram para um lado e para o outro antes de finalmente ele esticar o peito.
“Estou bem... Você está bem, Char?”
“Estou bem. A mana está conosco.”
Apesar do que disseram, as duas crianças olharam ansiosas para a escuridão da floresta e as luzes que estavam além.
Não há necessidade de se fazer de forte, pensou Angeline, sufocando seu sorriso e puxando-os para frente.
“Ok... Se todos estão bem, então vamos um pouco mais longe. É uma aventura.”
“Hã?”
“M-Mas o pai disse que a floresta era perigosa à noite...”
“Só um pouco está bom. Estou com vocês. Vamos, vamos.”
Além da linha das árvores, o luar estava cortado, no entanto aquela luz verde bruxuleante iluminava tudo sob seus pés. Depois de se concentrar um pouco, puderam distinguir aproximadamente todas as depressões, solavancos e galhos caídos.
Mit acalmou seu coração acelerado, seus olhos voando para lá e para cá. Ele sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Cada aglomerado de árvores poderia muito bem ser um pastor, e estava usando as duas mãos agora para segurar a mão de Angeline. Charlotte olhou em volta, inquieta e com medo, ficando perto de Angeline também.
As mãos de Angeline desapareceram por um momento, e então ela se abaixou, com as mãos em seus ombros.
“Deem uma boa olhada...”
Os dois olharam para as luzes verdes à frente, que vagavam pelo espaço e aos poucos se aproximavam. As crianças piscaram, sem saber, agarrando as mãos umas das outras.
Por fim, as luzes os cercaram — eram pontinhos, como grãos de areia, e havia uma conspicuamente grande e redonda no centro. Cresceu e diminuiu, e cada vez que piscava as árvores ao redor pareciam se manifestar na escuridão. O leve farfalhar das folhas ressoou.
“Whoa...” Charlotte exclamou. As árvores da floresta, iluminadas de verde, eram uma visão linda e mística. Mit esqueceu seu medo de momentos antes, e antes que percebesse, estava estendendo a mão para pegar uma das luzes na palma da mão. Porém, ele fechou os dedos tão delicadamente em torno e acabou sem nada.
“Ah...”
Gradualmente, o número de luzes desapareceu uma a uma. Não demorou muito para que o último desaparecesse, e a floresta estivesse uma vez mais envolta em sua escuridão original. Mit olhou para os vestígios de luar através das copas das árvores. Angeline riu, agarrando suas mãos e se levantando.
“Agora vamos voltar.”
Sem entender nada, Mit e Charlotte seguiram seu exemplo. Os dois mal haviam entrado na floresta e agora estavam fora mais uma vez. A luz da lua brilhava como sempre, iluminando as planícies de branco.
Olhando para Angeline, Charlotte perguntou.
“O que eram aquelas luzes, mana?”
“Isso, sabe, são espíritos de fogo.” respondeu Angeline.
“Espíritos de fogo?” Mit inclinou a cabeça com curiosidade.
“Sim... Era uma vez, eu estava perdida e sozinha naquela floresta.” os olhos de Angeline se estreitaram enquanto relembrava. “Foi antes do festival da primavera, sabe. Pensei em colher um pouco de relva por conta própria, e meu pai iria me elogiar pelo feito... Contudo me cansei e adormeci no caminho, e antes que percebesse, a noite havia caído. Estava escuro e frio, e eu estava apavorada.”
“O que aconteceu então?”
“Estava com muito medo de me mexer e, quando estava pensando no que fazer, aquelas luzes vieram até mim... A beleza delas me fez esquecer meu medo por um momento. E depois disso, o pai veio me salvar. Quando o perguntei mais tarde, ele me disse que deviam ser espíritos de fogo. O pai disse que eles vieram porque eu parecia solitária.”
Mit piscou. Perguntando-se sobre aquelas luzes bruxuleantes que tinha visto na Floresta Antiga — elas vieram porque estavam preocupadas com ele?
“Os espíritos são... Gentis...?”
“Sim. Ouvi dizer que gostam de crianças. Embora também façam suas travessuras... Tenho certeza de que vieram até a borda da floresta porque queriam que vocês dois os notassem.”
Mit e Charlotte imediatamente se viram olhando para trás. Nas profundezas das sombras, a luz verde soltou uma explosão final antes de desaparecer para sempre. Parecia que estava acenando com a mão. Seus medos se foram agora, e Mit puxava Angeline à frente, animado.
“Incrível. Foi bonito.”
“Foi mesmo. A floresta não é tão assustadora à noite quanto pensei.” Charlotte disse com uma risadinha. Quando foi colher grama brilhante, tinha ido com um grande grupo e não teve tempo de sentir medo. Mesmo agora que eram apenas os três, ela se sentia mais impressionada do que com medo.
“Existe um conto popular sobre os espíritos de fogo, sabe. O conto da Perdida Isolde... Meu pai conhece.”
“Sério?”
“Quero ouvi-lo.”
Os três voltaram apressados para uma história. Eles não foram para o anexo, em vez disso abriram a porta da casa principal. Belgrieve e Graham se viraram de seus assentos junto à lareira.
“Hmm? Já é hora de dormir?”
“Pai, quero ouvir sobre o conto da Perdida Isolde!”
“Nos conte!”
As crianças correram para Belgrieve e sentaram-se em ambos os lados. Belgrieve pareceu agradavelmente surpreso, puxando a barba para trazer de volta algumas lembranças.
“Essa história... Tudo bem, não vejo por que não. Mas primeiro, escovem os dentes e preparem-se para dormir.”
As crianças rapidamente se levantaram e foram pegar seus pijamas.
Kasim, relaxado em uma cadeira e bebendo licor destilado, gargalhou.
“As crianças com certeza são animadas.”
“Sim... Ange, aconteceu alguma coisa?”
“Você poderia dizer que sim...” Angeline riu.
Graham fechou os olhos, um leve sorriso no rosto.
Enquanto trocavam de roupa, Charlotte sussurrou baixinho para Mit.
“Sinceramente, fiquei um pouco assustada quando entramos na floresta.”
“Eu... Também estava. Porém estou bem agora.”
“Hehe, sim. Nunca imaginei que pudesse estar tão quente lá dentro.”
Estranhamente, parecia mais quente na floresta do que nas planícies. O dossel os havia protegido do ar frio que soprava de cima. Embora estivessem muito nervosos e com medo para perceber isso, a memória parecia estar voltando agora.
Depois de trocar de roupa e escovar os dentes, os dois sentaram-se ao lado de Belgrieve. Belgrieve preparou um pouco de água quente e então contou uma história. Era a história de uma garota que se perdeu e como foi levada de volta à cidade pela luz dos espíritos de fogo. Isso é tudo; era uma história simples, contudo adorável por sua simplicidade.
A floresta pode ser assustadora, no entanto também pode ser calorosa. Vou dar outra olhada nisso, pensou Mit. Os medos que o garoto manteve por tanto tempo pareciam ter sido queimados.
Houve um som crepitante. A lenha na lareira estourou, enviando partículas de chama dançando pelo ar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário