Capítulo 90: O ar estava morno, apesar da chuva que caía
O ar estava morno, apesar da chuva que caía, e enrolava-se desconfortavelmente em volta da pele. O céu estava coberto de nuvens densas que pareciam descer em névoa espessa na terra abaixo, e a visibilidade era terrível. Embora elas pudessem dizer que havia pessoas por toda parte, a névoa era muito espessa para ver qualquer um deles. Não havia nada além de presenças sem rosto com o peso do nada opaco pressionando-as.
O som de armas sendo balançadas e magia explodindo podia ser ouvido por toda parte; metal bateu contra metal enquanto gritos e berros ressoavam no ar. O perigo estava se aproximando — aproveitando a névoa, vários monstros rastejaram para fora do poço.
A mulher, com seu cabelo preto preso em um rabo de cavalo, enfiou sua lança em um monstro bípede peculiarmente escamoso. Ela chutou seu inimigo empalado para o lado antes de fazer um balanço da situação, aborrecimento estampado em suas feições.
“Tsk, ainda nem começou de verdade... Parece que vai ser bem sério dessa vez.”
A mulher preparou sua lança outra vez, empurrando-a para outra silhueta escura na névoa.
“Hey!” ela gritou. “Você já terminou?”
“Só um momento.” respondeu a garota de orelhas dobradas atrás dela. A garota estava segurando um instrumento de seis cordas, com os olhos fechados. Às vezes, suas orelhas balançavam para um lado e para o outro até que ouviu um som suave no vento. De repente, estendeu a sua mão direita e puxou uma das cordas.
“Baby.”
À medida que a corda vibrava, a névoa parecia ressoar junto. A garota tocou outra, depois outra, e a cada vez a névoa tremia enquanto os sons ricocheteavam por toda parte. Todos os ruídos de batalha que haviam sido tão pronunciados momentos antes foram substituídos pelos gritos de monstros.
A mulher de cabelos negros descansou a lança contra o ombro e prendeu a respiração.
“Espalhando sua mana pela névoa e tocando um som maligno, hein? Você nunca deixa de me surpreender.”
“Eu queria aproveitar um pouco mais...”
“Sua idiota. Se fosse com tudo me mataria junto com os monstros.”
“Agora estou desanimada...”
A presença de monstros foi ficando mais fraca conforme a garota de orelhas dobradas dedilhava suas seis cordas. Sua música poderia entorpecer os movimentos de seus inimigos, dando aos outros aventureiros a oportunidade de despachá-los de maneira eficaz.
Apoiando-se em sua lança como cajado, a mulher suspirou.
“Já faz quanto tempo...? Mesmo que o Sr. Bell planeje vir, não temos ideia de quando isso acontecerá.”
“Onde está o senhor?”
“Quem sabe? Quando tenho que lutar contra as criaturas das profundezas desta névoa, não tenho tempo para me preocupar com outra pessoa.”
“Hmm...”
Parecia que a batalha havia acabado, então as mãos da garota com orelhas de cachorro pararam. Ela podia ouvir as vozes dos aventureiros conversando ao redor, porém a névoa a impedia de distinguir qualquer um deles.
Girando os ombros, a mulher de cabelos negros pegou sua lança.
“Minha nossa, pensei que poderia ir com calma, contudo parece que a grande onda deste ano será um assunto sério. Vamos rezar para termos um elenco forte quando chegar a hora.”
“Ange estará aqui...”
“O que?”
“É apenas instinto... No entanto muitas vezes estou certa. Problemas nunca vem desacompanhados.”
“Bem, tanto faz. Podemos definitivamente contar com eles em uma luta, de qualquer maneira.”
“Você só pensa em você. Ange e seus amigos não estão vindo aqui por nós, baby.”
“Eu sei. Mas o que há de errado em pensar em como sobreviver? Estamos com uma onda maior do que nunca. Está me dizendo para não ficar ansiosa?”
“‘Não pense duas vezes.’”
“O que?”
“‘Está tudo bem.’”
Mudando de posição no instrumento, a garota de orelhas dobradas correu para a névoa. Deixada para trás, a mulher de cabelos negros ficou imóvel por um momento. Então, a névoa se dissipou um pouco, e ela pôde fazer uma vaga distinção de vários humanos caminhando na mesma direção.
Houve uma leve comoção se formando, então a mulher se dirigiu para lá com um olhar curioso no rosto. O chão estava cheio de pilhas de cadáveres de monstros — e alguns corpos humanos também. Suas feridas vieram de uma lâmina, não de presas ou garras. Tinha que ser obra de um humano.
“O que aconteceu? Brigas internas?” perguntou a mulher a um aventureiro próximo.
O homem sacudiu a cabeça.
“Foi o Leão de Ferro. Ele sempre cuida dos monstros durões, e parece que algumas pessoas não gostaram muito disso. Eles tentaram aproveitar a situação para emboscá-lo.”
O homem usou a ponta da bota para virar um dos cadáveres. Olhando para o rosto do homem morto, continuou.
“Ele estava sempre resmungando sobre como isso não era justo. Morto por seu próprio orgulho, eu diria.”
“E o caçador se tornou a caça, hein? Uma maneira miserável de ir...”
A mulher de cabelos negros se apoiou em sua lança com um suspiro. Mais uma vez, foi lembrada de que aqueles bem-intencionados aventureiros da zona rural de Turnera eram a exceção, não a norma.
“O sapo no poço não conhece o oceano. Eles não teriam muito mais tempo de qualquer maneira se fossem tão vaidosos com sua própria força. Pode ter sido o melhor — não sobreviveremos à grande onda se tivermos esses caras nos enganando por ciúmes mesquinhos.”
“Vou concordar com isso. É bom ter os idiotas eliminados. Claro, esse cara aqui era um Rank S. Seu amigo lá era Rank AAA. Não eram fracos de forma alguma... O Leão é apenas um enigma. Ele é confiável, porém meio desanimador.”
“Certo...”
A mulher de cabelos negros estreitou os olhos e olhou em volta. A chuva aumentou e vários rastros de água passaram por seus pés. Além da névoa, podia ver as costas de um homem loiro.
○
A carroça correu a uma velocidade incrível. Suas rodas chacoalhavam toda vez que atingiam um lugar irregular no caminho, sacudindo todo o veículo. Eles estavam lentamente sendo cercados por um grupo a cavalo enquanto os perseguiam.
“Não esperaria menos dos cavaleiros de Tyldes.” disse Kasim com uma risada alegre. “Pragas persistentes, não são?”
“Não é hora para piadas.” advertiu Belgrieve. Ele não conseguia se levantar se a carroça balançasse muito, e seu corpo estava desajeitadamente curvado enquanto se segurava na lateral. Com uma perna falsa, era mais difícil ainda manter o equilíbrio.
As flechas disparadas por esses bandidos montados seriam cortadas no ar por Angeline ou Marguerite. As tábuas de madeira que ergueram para bloqueá-los já estavam cheias de buracos.
Com o nível de habilidade do grupo, as flechas representavam pouca ameaça. Todavia todo o tremor deixou Miriam doente, e ela estava agarrada a Belgrieve com o rosto pálido. Kasim estava preso derrubando flechas perdidas, embora parecesse estar gostando da situação. Dado que Anessa, sua melhor lutadora de longo alcance, era quem segurava as rédeas, a batalha parecia ser unilateral a favor dos bandidos.
Belgrieve ergueu o rosto e olhou para frente.
“Só um pouco mais.”
“Whoa, aquilo não é brincadeira. Há ainda mais bandidos vindos de trás.”
As palavras de Marguerite fizeram Belgrieve se virar e ver os companheiros dos cavaleiros invadindo-os como uma onda. Angeline jogou uma garrafa vazia, que atingiu a cabeça do cavaleiro mais próximo, fazendo-o cair do cavalo. Contudo, isso foi como uma gota em um balde. Parecia sem sentido.
Coçando a cabeça, Angeline perguntou.
“Será por que matamos os primeiros...?”
“Os cavaleiros bandidos de Tyldes são conhecidos por guardar rancor. Não vão desistir até que estejam mortos ou nós estejamos.”
“Então não podemos só matá-los?” Marguerite perguntou alegremente enquanto golpeava outra flecha no ar.
“Não, será diferente de lutar contra monstros.” Belgrieve disse de maneira seca. “Humanos podem ser assustadores, Maggie.”
“Hum? Bem, tanto faz. Admito que cortar tantos humanos me deixaria de mau humor.”
Foi nesse momento que vários dos cavaleiros que cavalgavam atrás do seu grupo trocaram olhares e gritaram algo incompreensível. Um deles levantou a mão. De repente, todos os cavaleiros levantaram seus arcos em sincronia e atiraram ao mesmo tempo. As flechas caíram tão densas quanto a chuva.
Belgrieve, apoiando a perna esquerda, levantou-se e sacou a espada grande de suas costas.
“Agarrem-se a algo!”
E com um grito de batalha animado, balançou a lâmina rugindo com toda a sua força. Uma enorme onda de choque irrompeu, espalhando as flechas voadoras no chão em pedaços quebrados. Os cavaleiros grunhiram descontentes, mas continuaram sua perseguição implacável.
Respirando fundo, Belgrieve guardou a espada e se abaixou de novo. Angeline se agarrou em suas costas.
“Incrível... Você é incrível, pai!”
“E-Espere, Ange, agora não é a hora.”
“Hehehe, já se acostumou a manejar essa coisa. Nada mal, Bell.”
“Por que todo mundo é tão despreocupado...?”
“Estamos acelerando! Calem a boca se não quiserem morder a língua!” Anessa gritou enquanto chicoteava as rédeas. Os cavalos aceleraram. Como esperado dos cavalos de Tyldes, eram notavelmente rápidos e ainda não haviam atingido seus limites.
A carroça — que vinha correndo pelas planícies — em algum momento alcançou a base das montanhas, mergulhando no fundo de uma ravina imprensada por penhascos íngremes. Belgrieve olhou para trás e então se virou para Kasim.
“Boa hora pra agir!” gritou Belgrieve.
“Pode deixar.” Kasim acenou com as mãos. Um raio de magia voou, atingindo o topo dos penhascos de ambos os lados. Com um tremor, rochas e terra em ruínas caíram sobre os cavaleiros que cavalgavam logo abaixo.
O caminho estava selado agora. Embora talvez se pudesse escalar a pé, os penhascos não podiam ser percorridos com cavalos. Seu grupo escapou por pouco do perigo, mas cortou sua própria rota de fuga. Além do mais, ainda estavam presos com vários bandidos, que ficaram confusos ao serem separados do resto de suas forças.
“O que fazemos com esses?”
“Apenas deixe-os. Vamos nos separar enquanto podemos. Afinal, o forte deles são as emboscadas nas planícies.” observou Belgrieve enquanto o suor escorria de sua testa.
À medida que a carruagem relaxou um pouco o ritmo, o tremor tornou-se um pouco mais controlável e, assim, Belgrieve pôde por fim ficar à vontade. Ele deu um tapinha nas costas de Miriam, pois ela ainda parecia um pouco verde.
“Merry, tudo bem?”
“Urgh... Estou me sentindo mal...”
“Que fracote.” Marguerite brincou.
Miriam estufou as bochechas.
“Eu sou uma senhorita delicada!”
“Eu... Me sinto mal também.” Angeline se agarrou a Belgrieve enquanto exibia suas terríveis proezas de atuação.
Com um suspiro, Belgrieve colocou a mão na cabeça.
“Você está completamente bem.”
“Quero dizer, não é justo...”
“Ange fica com o Sr. Bell o tempo todo, esteja doente ou não!” Miriam protestou. Ela juntou as mãos sobre a boca para conter a náusea.
Kasim deu um pulo nervoso e encostou-se na beirada da carroça.
“Hey, vamos, vai ser uma bagunça se vomitar aqui.”
“Que tal fazermos uma pausa assim que chegarmos a uma distância segura? Os cavalos precisam de um pouco de descanso.” disse Belgrieve enquanto olhava para os penhascos acima. Seus perseguidores haviam desistido, ao que parecia, e de sua parte, os pelos lisos de seus cavalos pareciam encharcados de suor.
Mais de meio mês se passou desde que deixaram Mansa. Talvez porque o verão estivesse chegando ao zênite — ou porque estavam indo para climas de verão mais quentes — cada dia parecia mais quente que o anterior.
Ao longo do caminho, eles negociaram em um assentamento nômade improvisado, lutaram contra enxames de monstros e cruzaram um assentamento abandonado que se transformou em uma masmorra. Depois de muitos desses acontecimentos, por fim deixaram as planícies. Este conflito com os bandidos marcou o fim de seu tempo lá, e agora poderiam finalmente encontrar algum alívio nas montanhas. Se tudo corresse bem, chegariam à cidade de Istafar, no sul.
Esta foi a primeira vez que Belgrieve fez uma viagem tão longa sem nenhuma aldeia ou cidade para passar a noite, ou mesmo uma cama. Talvez se fosse mais jovem estaria tudo bem, todavia a vida na estrada cobrava um preço alto de seu corpo de quarenta anos, que se acostumara à vida no campo por tanto tempo. Ele pode não ter andado com os próprios pés, entretanto o passeio rochoso na carroça o esgotou mesmo assim.
E ainda nem começamos, pensou Belgrieve com um sorriso autodepreciativo. O grupo ainda não havia chegado ao primeiro ponto de referência e ele já estava muito exausto. Quão terrível será quando chegarmos ao Umbigo da Terra?
Anessa olhou por cima do ombro.
“O que acha, Sr. Bell?” ela perguntou. “Até onde devemos ir?”
“Vamos encontrar um lugar que seja um pouco mais aberto. Não há garantia de que não encontraremos bandidos da montanha por aqui. Eu não gostaria de ser emboscado quando o terreno está contra nós.”
“Certo. Então vamos desacelerar um pouco primeiro. Chame-me se vir algum lugar que se encaixe no projeto.” Anessa disse e olhou para frente novamente.
Miriam, que estava morta de cansaço, encostou-se na beirada da carroça. Marguerite procurou em suas sacolas um tônico para reanimá-la; Kasim, por sua vez, apenas fechou os olhos como se estivesse dormindo.
Angeline aninhou-se em Belgrieve.
“Teremos que retirar as flechas.” disse ela.
“Certo, isso é um pouco doloroso de se olhar.” respondeu Belgrieve, olhando para as tábuas de madeira que se tornaram almofadas de alfinetes. De sua parte, ficou um tanto impressionado que aqueles bandidos pudessem disparar suas flechas com tanta precisão enquanto estavam a cavalo, e sabia que não teria saído inteiro se estivesse sozinho. Era compreensível que ninguém quisesse seguir a rota do sul. Belgrieve estava na ponta dos pés desde que Sierra o alertou sobre os perigos, e estaria muito abalado para agir de outra forma.
Um pouco depois, chegaram a uma pequena cavidade nas rochas, onde os penhascos funcionavam como uma espécie de teto. Ao que aparentava, havia um riacho nas proximidades, pois podiam ouvir o som de água corrente.
O sol ainda estava alto, mas a perseguição havia sido cansativa e eles decidiram descansar cedo. O balde de água que usavam tornou-se um peso morto enquanto fugiam, então jogaram fora seu conteúdo. Foi uma sorte que pudessem reabastecê-lo tão cedo.
Com energia de sobra, Marguerite e Angeline partiram em busca do riacho com baldes de madeira na mão, enquanto Anessa saiu com seu arco e flecha em busca de caça selvagem. Miriam ainda estava completamente desanimada para fazer alguma tarefa.
Kasim veio para Belgrieve carregando um feixe de galhos secos.
“Eu tenho um pouco de lenha.”
“Oh, obrigado.”
Belgrieve estava afastando algumas das pedras maiores da área, alisando o terreno e preparando um lugar para dormir. Ele juntou algumas das pedras para fazer um fogão simples e acendeu o fogo. Assim que Angeline e Marguerite voltaram, seus baldes de água foram direto para a panela, fervendo junto com um pouco de carne picada em conserva, grãos secos e feijões.
“Pai... Posso ajudar em alguma coisa?” Angeline perguntou, inquieta atrás dele.
“Não, estou bem aqui. Você pode tirar as flechas da carroça?”
“Sim!” Angeline correu entusiasmada para a carroça, onde os cavalos bebiam água.
Depois de algum tempo, Anessa voltou com uma cabra do tamanho de um cachorro.
“Eu peguei uma cabra, melhor que nada. Parece que as daqui são pequenas, no entanto.”
“Isso é o bastante... Oh, você já a sangrou.”
“Foi ao lado do rio. Contudo pensei que você seria melhor em esfolá-lo...”
“Eu não diria isso... Bom, será mais rápido se nós dois o esfolarmos. Vamos fazê-lo juntos.”
“Ce-Certo, hehehe...” Anessa sorriu.
Foi quando Angeline apareceu sem um som.
“Eu também.”
“Wah!”
“Já terminou?”
“Já. E não é justo...”
“Meu Deus, não estou tentando tomá-lo nem nada.” disse Anessa, deixando escapar um suspiro cansado.
Belgrieve pegou uma faca de caça com um sorriso irônico. Embora fosse bastante hábil em esfolar a cabra, Anessa não estava muito atrás, nem Angeline. Não demorou muito para que a carne vermelha e irregular da cabra fosse exposta. Dada à estação, não tinha muita gordura, no entanto foi mais do que suficiente para adicionar um toque especial à refeição.
No momento em que a carne exalava um delicioso aroma, o sol havia caído e a lanterna e a fogueira pintaram os penhascos rochosos com as sombras de seus corpos.
“Assim que chegarmos a Istafar, Nyndia não deverá estar longe.” comentou Kasim, servindo um pouco do mingau de grão e feijão.
Belgrieve assentiu.
“Certo. O problema é que não sabemos a localização exata do Umbigo da Terra.”
A cordilheira de Nyndia se estendia pelas terras de Tyldes e Dadan, mas se estendia por vários países do nordeste ao sudoeste. Istafar estava no território de Tyldes, e seguir as montanhas ao sudoeste os levaria ao império de Dadan. Se fossem para o oeste antes de chegarem lá, se encontrariam em Lucrecia ou Rodésia.
Embora devesse estar perto da cordilheira, eles não tinham ideia de onde realmente estava o Umbigo da Terra. Também não aparecia no mapa de Sierra. Talvez a localização só tenha sido de fato passada de boca em boca entre um punhado de aventureiros habilidosos.
“Hey, tenho certeza de que encontraremos alguém que saiba, desde que cheguemos a Istafar.” argumentou Marguerite, engolindo um pedaço de carne de cabra grelhada.
“É provável.” concordou Angeline. “Vamos começar perguntando pela guilda.” ela enfiou uma colher em seu mingau, porém antes que pudesse cavar, teve uma percepção repentina e olhou para trás de sua refeição. “Pai... Temos queijo?”
“Sim, nós temos.” Belgrieve a entregou um pedaço de queijo que havia trocado com alguns nômades que passavam. Raspar um pouco com uma faca no mingau incutiu uma riqueza muito necessária.
“Sua comida está boa como sempre, Bell.” disse Kasim. “Eu também não sou tão ruim, porém só a sua comida me deixa à vontade.”
“Foi uma longa jornada, contudo... Nunca tivemos problemas com comida.” acrescentou Anessa.
“Certo. Teremos que agradecer a Sra. Sierra.” disse Belgrieve.
“É isso.” disse Kasim. “No entanto você também fez um bom trabalho gerenciando nossos suprimentos.”
“De jeito nenhum. É porque todo mundo saiu para caçar e forragear...”
“Mas quando se tratava de alocação e uso de água — isso foi tudo graças ao seu cuidado, Sr. Bell.” declarou Anessa. “Você é muito útil, pensando bem.”
“Uh-huh, não é...? Como esperado do meu pai.”
Ouvir todos elogiá-lo fez Belgrieve se sentir desconfortável e agitado.
“Qual é o sentido de me elogiar por cada pequena coisa? O que estão querendo conseguir?”
Angeline olhou para ele inexpressivamente.
“Quero dizer, você realmente é incrível...”
“Agora, ouça aqui, Ange...”
“Vamos, vamos. Não é como se alguém estivesse te insultando. Que tal só aceitar?” Anessa rogou.
Marguerite teve que se intrometer.
“Gosto de como ele parece incomodado quando o elogia.”
“Meu Deus...” Belgrieve soltou um suspiro resignado enquanto acrescentava lenha ao fogo. Eles deveriam aprender o significado de ‘condenar com elogios irônicos’, pensou ele. Quando eles continuaram assim, parecia que o estavam provocando. Marguerite, pelo menos, deixou claras suas intenções nessa parte.
“Hmm... Algo cheira bem...”
Houve um farfalhar vindo de suas costas. Miriam, que estivera dormindo o tempo todo, enfim acordou. Seu cabelo naturalmente desgrenhado estava uma bagunça ainda maior do que o normal.
Anessa pegou uma tigela e serviu um pouco de mingau.
“Pensei que ia ficar dormindo até de manhã. Ainda conseguirá dormir à noite se acordar agora?”
“Talvez não, porém me sinto revigorada. Talvez eu fique de vigia esta noite.” Miriam sorriu enquanto pegava a tigela.
Depois que o jantar acabou, não havia nada acontecendo que justificasse ficar acordado até tarde. A maioria deles embrulhou-se em seus cobertores e deitou-se. Tendo recuperado bastante vigor de sua soneca, Miriam sentou-se perto do fogo em frente à Kasim, que também havia dormido durante o dia. Anessa e Marguerite estavam deitadas uma ao lado da outra, enquanto Angeline se apoiava sonolenta em Belgrieve enquanto este dava outra boa olhada no mapa.
“Parece que geralmente é um caminho direto...”
“Vamos ter que atravessar algumas estradas antigas. Vamos torcer para que estejam em boa forma para a carroça.”
“Há monstros também, pelo que parece. O mapa não dá nenhum aviso sobre bandidos, no entanto.”
Descansando o queixo nos joelhos, Miriam inclinou a cabeça para o lado.
“Quantos anos têm esses avisos, de qualquer maneira?”
“Não vejo nenhuma data, contudo... Ouvi dizer que esta é a informação mais recente.”
Claro, só porque foi escrito não significa que estava correto. Uma grande companhia de bandidos poderia trabalhar em torno de uma base central de operações, entretanto havia outras que apenas vagavam sem base fixa. E se, por algum motivo, uma nova poça de mana se formasse em algum lugar, os monstros se reuniam nas proximidades.
Kasim bocejou.
“Não adianta quebrar cabeça pensando no que pode acontecer depois. Talvez devêssemos esperar para pensar no que fazer até chegarmos a Istafar. As imagens, os sons, a comida — tudo será diferente de Orphen e Yobem. Isso não te anima?”
“Isso é importante, eu concordo. Mas se estiver muito preocupado com essas coisas, pode acabar tropeçando quando menos esperar.”
“Hehe, então vou contar contigo para cuidar de nós. Você é o melhor homem para o trabalho.”
Essa era minha intenção desde o início, pensou Belgrieve. Rindo, ele voltou seus olhos para o mapa.
Kasim quebrou um pequeno galho e o jogou no fogo.
“Tudo bem, vamos pensar no que faremos em Istafar, Merry. É um lugar grande. Precisamos preparar algumas coisas antes de irmos para o Umbigo, e devemos fazer algumas compras também.”
“Sim, mal posso esperar! Que tipo de comida eles têm lá? Espero que tenham alguns doces gostosos.”
Kasim e Miriam conversaram alegremente sobre todos os tipos de coisas. Embora os olhos de Belgrieve permanecessem no mapa, antes que percebesse, estava prestando atenção à conversa.
Istafar era uma cidade importante no sul de Tyldes. Seu tamanho rivalizava com a metrópole central de Khalifa. Foi uma vez, aparentemente, a capital de sua própria nação até cair nas mãos dos invasores montados do Senhor da Guerra Yh'benado, considerado o guerreiro mais forte da história de Tyldes. Embora as antigas muralhas da cidade tenham sido em parte destruídas, algumas delas ainda permanecem de pé até hoje. É claro, foram reforçados desde então, e Istafar poderia mais uma vez operar como uma cidade fortificada. Ostentava poder militar e econômico grande o suficiente para se manter por conta própria e parecia operar de maneira semelhante a uma cidade-estado independente como Yobem.
Embora poucos soubessem sobre sua origem real, materiais raros do Umbigo da Terra costumavam acabar na cidade. Assim, a cidade ficou conhecida pela qualidade de seus acessórios e ferramentas encantadas. Eles tinham um preço alto, no entanto, dificilmente serviam para atrair o aventureiro comum. Mesmo assim, materiais de alta qualidade atraíram artesãos e mágicos habilidosos na esperança de estudá-los, fornecendo assim um novo estímulo para o comércio e a economia de Istafar.
O ar morno do meio-dia tornava-se gelado ao cair da noite. O sol de verão era forte durante o dia, mas, uma vez que se punha, o tempo ficava frio o suficiente para causar arrepios.
Angeline se mexeu, inclinando-se mais fortemente para Belgrieve. Belgrieve olhou para cima, para a escuridão além dos penhascos, que parecia ser um vazio, mas isso só fez com que parecesse ainda mais sufocante.
○
Houve um barulho quando a lenha reunida foi colocada de lado. O menino de cabelos louros bateu com as mãos para tirar a poeira.
“Essa quantidade deve durar até de manhã.”
“Sim, contanto que não queimemos muito de uma vez.” o garoto ruivo pegou uma isca e o fogo não demorou em ser aceso.
Já estava escuro. As pesadas nuvens no alto bloqueavam a visão da lua e das estrelas, mesmo através dos vislumbres do céu que podiam ver através das árvores. O ar estava estranhamente pesado e pegajoso, porém não parecia que iria chover. Era apenas a escuridão circundante que parecia pesar sobre eles.
Os quatro chegaram a uma floresta; seu trabalho era colher várias ervas, entre outros materiais. Graças à elfa, nunca se perderam entre as árvores — eles já haviam reunido uma boa quantidade e planejavam voltar depois de acampar durante a noite.
Quanto mais a escuridão os envolvia, mais tinham vontade de se agarrar à pequena e instável chama da fogueira. Depois que o jantar acabou, se amontoaram em torno da fogueira, as línguas de fogo bruxuleantes no meio deles lambendo a escuridão.
“A noite alguma vez te deixou ansioso?” a elfa perguntou, abraçando os joelhos.
Enquanto limpava a panela, o ruivo assentiu.
“Bem, sim.”
“Eu só estava pensando. De onde vem esse medo, de verdade?”
“O que foi, filosofia élfica ou algo assim?” o loiro perguntou. Um olhar inquisitivo pendia em seu rosto quando quebrou um galho fino, o fogo à sua frente crepitando como se fosse um eco.
“Não exatamente.” a garota elfa balançou a cabeça. “Só achei estranho ter medo do escuro.”
“Você acha? Quero dizer, você não sabe onde está, e parece que está sozinho no mundo.” explicou o garoto de cabelos castanhos.
O garoto ruivo olhou para trás, para sua própria sombra dançante que se estendia bem atrás dele. Além do mais, havia um bosque cerrado e, ainda mais longe, havia apenas escuridão pura. Imaginar todas as coisas que poderiam espreitá-los da escuridão era de fato assustador.
Contudo a garota elfa ainda balançou a cabeça.
“Isso não é ter medo do escuro, é ter medo do que o escuro traz. Não é a isto que estou me referindo. Eu quis dizer esse tipo de medo do... Próprio escuro. É estranho, não é? Quero dizer, todos nós viemos da barriga de nossas mães, e com certeza não há luz lá dentro.”
“Acho que nenhum de nós conhece a verdadeira escuridão, no entanto...” o loiro meditou.
“O que quer dizer?” o garoto de cabelos castanhos inclinou a cabeça com curiosidade.
Seu amigo cruzou os braços pensativo antes de se explicar.
“Quero dizer, se fechar os olhos, tudo o que verá é a parte de trás das pálpebras. Acho que só quem é cego conhece a verdadeira escuridão. Não, talvez não ver nada não seja tudo que existe na escuridão também...”
“Realmente... Hã. Talvez?” a elfa abraçou os joelhos e fechou os olhos. O garoto ruivo olhou para a noite, imerso em pensamentos. Talvez o loiro estivesse certo. Então, o que é a verdadeira escuridão? Vai mesmo além do que nossos olhos podem ver? perguntou a si mesmo.
A elfa suspirou.
“O que é de verdade? À noite, meus pensamentos saem em todos os tipos de direções estranhas.”
“Você certamente pode ser... Estranhamente pensativa.”
“Hmph, algo errado com isso? Achou que eu era uma cabeça-dura ou algo assim?” a garota elfa cutucou o ombro do garoto loiro.
Ele apenas riu e bagunçou o cabelo dela.
“Não seja tão sensível. Vamos deixar a preocupação para quando voltarmos à cidade. Por enquanto, vamos descansar para amanhã. E mesmo que esteja escuro, você nos leva juntos — não precisa ficar ansiosa.”
“Ahaha! Você não está errado... Hey, por quanto tempo vai acariciar minha cabeça?”
“Bom... É mais macio do que imaginei. Muito macio, na verdade. Então este é o cabelo élfico...”
“Hã? Sério? Posso sentir isso também?”
“Hey! Meu cabelo não é um brinquedo!”
A garota elfa se contorceu descontente enquanto os dois garotos acariciavam seu cabelo. Ela olhou para o garoto ruivo, o único que silenciosamente se manteve fora disso.
“Você quer... Tocá-lo também?”
“Hã? Não, eu... Realmente não...”
Um par de sorrisos irrompeu.
“Está tentando parecer legal.” os meninos de cabelos escuro e claro ecoaram em uníssono.
“O que?”
Ao ver a descompostura do garoto ruivo, as bochechas da elfa coraram, seus lábios ainda franzidos em um beicinho — ou talvez só parecesse assim para ele na luz fraca da chama. A garota se inclinou para frente, quase empurrando sua crina em sua direção.
“Aqui... Pode tocar se quiser.” “Uh...” seus olhos vagaram. Seu cabelo prateado brilhava à luz do fogo. Parecia que sua ansiedade pela noite havia se dissipado em algum lugar distante.
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