Capítulo 119: A calçada estava úmida
A calçada estava úmida com finos riachos de água fluindo pelas partes inferiores, e o ar estava cheio de um barulho estrondoso enquanto uma gota após a outra caía, acumulando-se nas valas nas laterais das ruas. Cada vez que as solas grossas de Donovan batiam no chão, podia sentir a lama gelada misturada com a água abaixo, chapinhando em torno de seus pés.
“Parece que não vai ser tão fácil.” murmurou o Templário.
Embora Donovan fosse oriundo de uma das casas nobres de nível inferior do império, ele foi enviado ainda jovem para estudar em Lucrecia, de acordo com os desejos de seus pais, onde serviu por muito tempo como camareiro dos Templários. Muito mais tarde, se tornou um Templário.
Era um devoto de Viena — pelo menos tanto quanto o homem comum — mas era um novato cuja ambição superava as suas próprias lealdades. O seu trabalho incansável foi por fim recompensado com a oportunidade de se tornar o chefe de um ramo da igreja na capital imperial, embora acabasse por resultar em ele sendo arrastado para mais lutas pelo poder.
Porém Donovan era um homem ambicioso, talentoso o suficiente para sustentar suas afirmações, e nada se mostrou muito difícil para ele. Na verdade, nessa altura, já tinha conseguido estabelecer ligações com aqueles que puxavam os cordelinhos na sua própria terra, Lucrecia. Comparado com o que tinha enfrentado antes, era bastante simples permanecer um passo à frente de todos os outros nas lutas pelo poder da capital. Afinal, era o único que tinha ligações com o próprio príncipe herdeiro — e ter uma pessoa poderosa ao seu lado era sempre uma grande vantagem.
Mesmo assim, Donovan ficou ansioso. De fato, por trás da fachada pura e piedosa da igreja, travou-se uma guerra que era tudo menos pura. Ainda assim, eles seguiam tendo que fornecer superficialmente orientação justa aos crentes e punir os cruéis e perversos. E Schwartz, a Chama Azul da Calamidade, era o inimigo jurado da igreja.
Os demônios de Salomão — seu principal foco de pesquisa — eram grandes inimigos que já haviam sido selados pelos heróis escolhidos por Viena. Naturalmente, esses demônios ainda eram considerados abominações a serem tratadas à primeira vista. E não foi apenas o clero que acreditou nisso; o povo comum também tratava os demônios como uma praga. No que diz respeito à pesquisa de Schwartz e aos incidentes que causou no passado, não havia possibilidade de reconciliação com a igreja, e este já havia lutado inúmeras vezes com a Inquisição.
Contudo Schwartz estava em conluio com o príncipe herdeiro. Benjamin foi quem primeiro procurou Donovan com negociações sobre uma aliança, o que, na época, surpreendeu até mesmo Donovan. No entanto ele não hesitaria em correr riscos perigosos para promover as suas ambições. Com certeza Benjamin procurou Donovan porque já estava ciente de como o Templário reagiria.
Donovan tinha ligações com a Inquisição e, tal como Benjamin esperava, manteve os seus movimentos sob controle. Como Donovan — um Templário de renome — já estava estacionado na capital, conseguiu convencer os superiores de que nenhuma ajuda adicional era necessária e continuou a subir na hierarquia graças ao apoio generoso de Benjamin.
No entanto não havia como dizer quanto tempo isso iria durar. Como era senso comum para qualquer pessoa que entendesse as lutas pelo poder, o poder nunca foi estável. Sempre haveria aqueles esperando o momento certo para roubar tudo. Para evitar tal situação, era preciso de cada vez mais cartas para jogar, mais meios e mais chances de derrubar os novatos antes que eles pudessem chegar muito longe. Donovan precisava provar sua força e, para provar sua legitimidade, precisava da cabeça de um traidor herético e da espada sagrada empunhada pelo homem ruivo. Nunca esperou encontrar uma espada tão formidável em um bar na periferia da cidade. Mesmo dentro da cúria de Lucrecia, uma espada que contivesse mana tão pura seria, sem dúvida, reverenciada como um dos milagres de Viena.
Donovan olhou para Falka, que caminhava alguns passos atrás. Como esperava, o garoto seguiu com o olhar vazio de sempre. Ele primeiro obteve o homem-coelho como escravo; embora o sistema de escravidão tivesse sido proibido, tais negociações ainda eram conduzidas em segredo, a portas fechadas. Para qualquer outra pessoa, Falka era apenas seu assistente.
O garoto se movia com a graça de um homem besta e possuía uma habilidade surpreendente com a lâmina. Talvez não conseguisse falar, ou talvez só não quisesse — Falka nunca pronunciou uma palavra de qualquer maneira. Parecia entender o que lhe diziam, todavia sua cabeça estava sempre nas nuvens quando não estava lutando. Donovan suspeitava que fosse por isso que ele havia sido capturado tão facilmente pelo traficante de escravos, já que não resistiu. De qualquer forma, era um atendente com habilidades de primeira classe e que nunca agia fora de hora, e era o melhor guarda que Donovan poderia ter esperado.
E agora, o garoto empunhava uma espada amaldiçoada que o príncipe herdeiro havia o concedido. À medida que a usava para derrubar vários monstros e sugar sua mana, a lâmina aos poucos adquiriu um brilho sombrio. Embora Falka parecesse estar ficando mais forte, a expressão em seus olhos também estava começando a arder. Claro, continuava estando inexpressivo, mas era como se estivesse sempre ansioso por uma luta.
“Se eu pudesse obter aquela lâmina sagrada... Minha posição seria mais estável.” murmurou Donovan.
Ele era um Templário — afinal, um cavaleiro de Viena. Seria bastante desagradável se empunhasse uma espada amaldiçoada para sempre. Matar monstros estava lhe rendendo algum apoio público, porém bastaria um leve desastre para que sua posição desmoronasse sob seus pés. Essa era a natureza simples da autoridade, e não podia exibir orgulhosamente sua fraqueza.
Se tivesse uma espada sagrada, apenas empunhá-la lhe daria alguma legitimidade e lhe renderia mais apoio. Contudo se a espada escolhesse seu portador e não pudesse usá-la, a resposta seria simples: a espada amaldiçoada teria apenas que absorver sua luz sagrada.
A luz das lanternas brilhantes refletia-se no brilho úmido da calçada diante de Donovan. Enquanto afastava irritado a neve dos ombros, parou e se virou ao perceber de repente que Falka não o seguia mais.
“O que você está fazendo? Se apresse.”
No entanto Falka ficou imóvel, olhando em uma determinada direção. Parecia que ficaria congelado ali para sempre até que, de repente, começou a correr na mesma direção que estava olhando.
“Hey! Onde está indo? Falka!”
Falka não respondeu nem sequer olhou na direção de Donovan ao som de seus gritos frustrados. Assim, Donovan não teve escolha senão persegui-lo.
○
Cerca de uma hora se passou desde que Percival e Kasim partiram, entretanto Liselotte ainda não havia retornado. Marguerite andava inquieta de um lado para outro junto à parede.
“Acalme-se um pouco, Maggie.” disse Anessa, cansada.
“Como você espera que eu faça isso, hein? Droga, esperar não é meu estilo... Deveria ter ido com Percy...”
“Bom, ficar impaciente não vai te ajudar em nada.” disse Miriam gentilmente. “Que tal um pouco de chá?”
“Quantas xícaras já tomei? Hey, Bell, em vez de esperar por Lize, que tal irmos à festa do príncipe herdeiro?”
Belgrieve balançou a cabeça.
“Não podemos. Eles nem nos deixam entrar no palácio.”
“Por que está esperando permissão? O príncipe é só uma farsa — nós o pegamos e está tudo acabado. O show dele acabou. Esses guardas do palácio não são nada para nós, eu lhe garanto.”
Anessa suspirou.
“Até parece. Isso é estupido. Ouvi dizer que os guardas reais são tão habilidosos quanto os aventureiros de alto escalão, se não mais. Poderemos ser capazes de lidar com um ou dois, mas haverá dezenas deles.”
“Parece divertido para mim...”
“Ah, vamos, Maggie. Coma alguns doces e acalme-se já.” Miriam deu um pulo e correu para enfiar balas de açúcar na boca de Marguerite até que os olhos da elfa girassem e clamasse por misericórdia.
Por sua vez, Belgrieve olhava para seus dedos entrelaçados. Eu encontraria o príncipe herdeiro, e depois? Belgrieve ficou tão indignado que até assustou a si mesmo, porém apenas lançar essa raiva ao príncipe não resolveria nada. Pelo que sabiam sobre esse impostor, a discussão também não os levaria muito longe.
Havia uma chance de que o verdadeiro príncipe ainda estivesse vivo. Deveria começar a considerar como posso lidar com esse fato, pensou Belgrieve. Contudo foi tudo o que conseguiu. Sei que é porque minha filha está envolvida, no entanto estou deixando o sangue subir à cabeça... Seus olhos se fecharam.
Anessa notou Belgrieve fervendo em seus pensamentos.
“Senhor Bell? Está tudo bem?” ela perguntou com evidente preocupação em sua voz.
“Hum?” Belgrieve olhou para Anessa e sorriu. “Estou bem. Obrigado por perguntar.”
“Ange vai ficar bem.” insistiu Miriam, sentando-se no sofá. “Ela não perderá, não importa quem enfrente.”
“Você está certa... Também acho.”
Era difícil imaginar que Angeline entraria em território inimigo sem ter algo em mente. Havia uma chance de sua ação ter sido forçada — recusar o convite só teria piorado a situação deles — porém mesmo se fosse esse o caso, não iria apenas deixar seu inimigo derrubá-la unilateralmente. De qualquer forma, Angeline partiu porque tinha certeza de que ficaria bem. Havia até uma chance de ter se permitido ser capturada de propósito na esperança de ganhar alguma coisa. Afinal, sua filha era uma aventureira Rank S. Belgrieve sabia que era um erro alguém de seu nível miserável se preocupar com alguém como ela. Pelo menos era nisso que queria acreditar.
Contudo é claro que a preocupação dos pais desafiava essa lógica. O fato de não saberem quem ao certo era seu inimigo só piorou a sensação.
“Quanto pretende contar a Lize?” Anessa perguntou enquanto preparava outro bule de chá.
“Não quero envolvê-la muito. Lize é uma boa menina e muito sincera...”
Todos no grupo de Belgrieve sabiam da animosidade que existia entre François e Angeline. François era agora o capanga de Benjamin; era muito improvável que ouvisse uma palavra dos camaradas de Angeline ou de seu pai, no entanto talvez pudessem conseguir algo falando com ele através de Liselotte.
No entanto embora Belgrieve tivesse considerado essa possibilidade, detestava a ideia de envolvê-la. Estava até hesitante em contá-la sobre o fato de que o príncipe Benjamin era uma farsa. Sem dúvida não seria agradável descobrir que o homem que seu irmão servia era um impostor que estava tramando atos nefastos. Liselotte adorava de verdade o irmão e Belgrieve não queria trazer tristeza a essa garota inocente.
Em primeiro lugar, François sabe que Benjamin é um impostor? François só havia sido nomeado para esse cargo há pouco tempo, e isso foi depois que o príncipe foi substituído. Se estivesse servindo aquele homem alheio à sua verdadeira natureza, talvez estivesse disposto a cooperar com eles assim que soubesse a verdade. François jurou lealdade ao príncipe e ao império — não tinha obrigação de servir a alguma entidade desconhecida. Todavia, estava claro como o dia que se só dissessem tudo isso para ele, François riria em suas caras.
Então o que diremos para convencê-lo...? Belgrieve ainda estava pensando no assunto quando a porta se abriu. Sooty entrou com Liselotte ao seu lado. Assim que viu Belgrieve, seu rosto se iluminou.
“Você veio me ver, Bell!”
“Perdoe a intrusão, Liselotte.” Belgrieve sorriu e baixou a cabeça.
Oswald entrou no salão depois de Liselotte; seu olhar percorreu todos os aventureiros reunidos, aparentemente petrificado.
“Oh, o-oi...”
“Ozzie, por que está congelando? Eles são todos boas pessoas, não se preocupe.”
“N-Não estou com medo, Lize... Não, só um pouco surpreso... Nunca vi uma elfa antes.”
”Sério? Muito bem, então. Este é meu noivo, Oswald.”
Belgrieve levantou-se e cumprimentou-o respeitosamente.
“É um prazer te conhecer; meu nome é Belgrieve. Permita-me pedir desculpas pelo meu traje surrado.”
“Isso é muito educado da sua parte — ahem, não precisa ser tão formal comigo.”
“Muito obrigado, Oswald. Você ajudou minha filha na cidade do Estogal. Obrigado.”
“Hmm? Sua filha...?”
“Ozzie, Bell é o pai de Ange!”
“Hã? O-O pai da Valquíria de Cabelos Negros?”
“Haha... Por mais inacreditável que seja... Oh, e essas são suas amigas.” Belgrieve apresentou Anessa e as outras. Oswald olhou para os convidados incomuns com uma expressão vazia no rosto, que Liselotte observou com uma risada divertida até perceber que a própria Angeline não estava por perto.
Ela olhou ao redor do salão com curiosidade.
“Oh? Onde está Ange?”
“Bem, o príncipe — Sua Alteza a convocou.” explicou Miriam, tropeçando em suas palavras.
Os olhos de Liselotte se arregalaram, mas ela riu agradavelmente e correu até o sofá, onde se sentou.
“Sua Alteza está apaixonado por Ange, então! Porém eu entendo. Ange é linda. O que faremos se Ange acabar se tornando uma princesa?” Lize perguntou inocentemente, rindo outra vez. Sua atenção voltou para Belgrieve. “Seria incrível, certo, Bell?”
“Sim, seria uma honra... Se isso acontecesse, claro.” Belgrieve encolheu os ombros.
Por um momento, ninguém disse nada e Oswald correu para se sentar ao lado de Liselotte.
“E-Ela foi convocada pelo príncipe Benjamin?” ele perguntou. “Isso é incrível... Mas eles dançaram juntos no baile...”
“Um lindo homem para uma linda dama. Os dois combinam perfeitamente, hehe... Eu me pergunto o que estão falando agora. Hey, os doces não foram suficientes para saciá-los, certo? Sooty, poderia começar a preparar uma refeição? Diga-lhes para trazerem aqui, não para a sala de jantar.”
“O chefe de cozinha ficará incomodado.”
“Diga-o que pode ser algo simples. Uma daquelas refeições duras e cerimoniosas só cansaria todo mundo.” disse Liselotte, piscando.
Sooty se limitou a fazer uma reverência e saiu do salão.
“Hey, Lize. O príncipe herdeiro não é o tipo de cara que pode encontrar tão fácil assim, certo?” Anessa perguntou.
“Está certo. Ele está no topo sem dúvida... Porém uma vez que o conhece, é muito fácil conversar com o príncipe. Às vezes, aparece de repente em festas para surpreender as pessoas. Foi uma grande surpresa ontem, não é verdade?” Liselotte deu uma risadinha.
Pensando bem, a aparição de Benjamin ontem foi bastante repentina, lembrou Miriam. Seus olhos vagaram enquanto ela pensava naqueles eventos.
“Isso mesmo, ele realmente era bonito.”
“Contudo nunca se ouve rumores sobre a vida amorosa dele, certo, Ozzie?”
“De fato. O príncipe herdeiro costumava ser bastante... Social, no entanto agora não há uma palavra sobre essas coisas... É por esse motivo que estou tão surpreso que esteja interessado em Angeline.”
“Quero dizer, Ange é de fato linda. Acho que ela poderia ficar ao lado de Sua Alteza sem empalidecer em comparação! Certo, Bell?” Liselotte perguntou, olhando para Belgrieve mais uma vez.
Belgrieve retribuiu o sorriso e fechou os olhos. Eu teria gostado disso em qualquer outra circunstância... Suspirou.
Uma Marguerite um tanto desgrenhada, enfim recuperada do dilúvio de doces, juntou-se a eles e bebeu com força uma xícara de chá.
“Phew, já chega... Merry, vou me lembrar disso!”
“Hã? Mas não estava gostoso?”
“Muito doce! Urgh, minha boca está estranha... Preciso... Hey, me sirva outra xícara!” ela exigiu, estendendo a xícara na frente de Oswald.
“Ah, com certeza.” Oswald encheu-o freneticamente do bule. Ao mesmo tempo, inclinou a cabeça, murmurando. “Por que eu?”
“Hehe.” Lise riu. “Parece que meu marido cai em pedaços na frente de Maggie.”
Após algum tempo, Sooty voltou com um comboio de servos carregando comida. Havia carne e legumes ensanduichados entre pães e tortas pequenas, frios pequenos e legumes fatiados e espetos de frutos do mar grelhados. Foi uma variedade perfeita para petiscar nas pequenas pausas entre as palavras e, assim, a conversa continuou.
“Hey, hey. Lize, seu irmão é o capitão da guarda daquele cara elegante, certo?”
“Merry, querida, precisa chamá-lo de Sua Alteza — caso contrário, seria impróprio. Então, você quer dizer François? Sim, tem estado tão ocupado nesses últimos tempos que mal chega em casa. Vim aqui para vê-lo, porém ainda não consegui ter uma conversa longa e agradável com ele.”
“Entendo. Hmm...” Miriam murmurou, franzindo a testa enquanto continuava a beber chá.
Se François nem estiver vendo a família, será difícil para nós o contatarmos, pensou Belgrieve com a testa franzida.
Oswald encolheu os ombros.
“Bem, duvido que alguém esperasse que François fosse escolhido para o papel — nem o próprio. É natural que esteja ocupado, então. Só tivemos uma refeição leve juntos no primeiro dia em que chegamos à capital e nem o vi desde então.”
“Isso é porque você também está indo para todo lado, Ozzie. É uma festa do chá ali, uma reunião social aqui.”
“Esse é essencialmente o meu trabalho. Não é você quem está apenas se divertindo...? Contudo meu cunhado parecia um pouco pálido. Estou preocupado que esteja trabalhando demais.”
“François está com a saúde debilitada?” Belgrieve perguntou.
Oswald assentiu.
“Bom, pensei que sim, então perguntei. Pelo que disse, não é nada. Bem, como não estava tropeçando nem nada, então pode ter sido apenas minha imaginação.”
“O seu trabalho... Está indo bem?” Anessa perguntou.
Liselotte sorriu cheia de alegria.
“François disse que era muito difícil, no entanto que parecia valer a pena.”
Os olhos de Belgrieve estavam fechados enquanto trabalhava em seus pensamentos, entretanto seu foco estava perdido. Ele fez o possível para manter a compostura, todavia não pôde deixar de se preocupar com Angeline. Talvez tenha sido por essa razão que não tocou em nada da comida.
Foi nesse momento que a grande espada de Graham — que estava apoiada ao lado — de repente soltou um rugido. A cabeça de Belgrieve virou-se em direção ao corredor, onde ouviu um clamor estranho e vozes gritando.
“Isso será um problema.” e “Por favor, entenda.” — e então, uma enxurrada de passos, como se alguém estivesse correndo pelo corredor.
“Está muito barulhento.” observou Oswald com a testa franzida.
O instinto de Belgrieve lhe dizia que algo terrível estava para acontecer. Assim, se apressou para se levantar e arrancou a espada de onde estava.
“Senhorita! Afaste-se!” Sooty gritou. Ainda quando ela assumiu uma posição defensiva com seu porrete de ferro, a porta foi aberta com um chute e o Templário com orelhas de coelho entrou. Falka investiu direto contra Belgrieve, desembainhando sua espada com tremenda velocidade.
Ele é rápido!
Belgrieve não teve tempo de desembainhar a lâmina e fez menção de bloquear o ataque com ela ainda coberta. Porém antes do momento do impacto, outra espada mais fina interceptou a lâmina de Falka.
Marguerite interveio por trás e, com uma tremenda demonstração de força bruta, empurrou Falka para trás. Com movimentos flexíveis, Falka saltou para trás, aterrissando bem na frente da porta.
“Quem é você?” Marguerite exigiu enquanto cuspia um espeto de madeira no chão. Seu olhar encarou Falka.
Pela porta aberta, os guardas e criados espiavam ansiosamente o intruso.
A boca de Oswald se abriu e fechou de admiração; ele ficou completamente surpreso.
“U-Um Templário? Por que...?”
“Qual é o significado disto? Mesmo que seja um Templário, não significa que você possa agir com tão flagrante desrespeito!” Liselotte bufou e gritou com Falka. Contudo, Falka manteve a mesma expressão inescrutável ao se levantar de novo. Parecia estar cheio de aberturas, no entanto Belgrieve sabia por instinto que nada de bom resultaria de tentar explorar qualquer uma delas. O garoto exalava uma sede de sangue palpável o tempo todo.
Marguerite sorriu, com a espada em punho.
“Nada a dizer por si mesmo? Tudo bem... Estava ficando entediada de qualquer maneira. Quer uma briga? Vou te dar uma.”
Por um breve momento, pareceu que Falka estava radiante. Girando sua espada em um círculo, deu um passo e avançou com grande agilidade. Marguerite fez o mesmo e travou as lâminas com ele.
“Precisa de alguma ajuda, Sra. Maggie?” Sooty gritou, brandindo seu porrete de ferro.
“Não, estou bem! Apenas tire Lize daqui e rápido!”
“Justo o que eu gostaria de ouvir! Por aqui, senhorita!”
“O que é isso...? O que está acontecendo...?” Liselotte parecia assustada e confusa enquanto ela e o igualmente perplexo Oswald se arrastavam ao longo da parede até chegarem à porta.
Belgrieve observou-os partir antes de retirar a espada de Graham da bainha. A lâmina brilhou deslumbrantemente, sua voz estridente ficando mais forte. A espada parecia lívida.
“Anne, Merry. Vocês duas ajudam a proteger Liselotte.”
“Hã? Mas...”
“Merry, vai ser difícil se movimentar por aqui. É melhor irmos embora.”
Um salão estreito não era um campo de batalha vantajoso para arqueiros ou magos. Embora Miriam já tivesse seu cajado preparado para apoiar Marguerite, as palavras de Anessa a convenceram a seguir Liselotte com relutância.
Falka, com suas pernas poderosas, saltava por todo lado como uma lebre selvagem, às vezes ricocheteando nas paredes enquanto atacava sem parar Marguerite de todas as direções imagináveis. Porém, Marguerite não foi desleixada — ela lidou esplendidamente com a amplitude irrestrita de movimento de seu inimigo, desviando e bloqueando qualquer ataque invasor e lutando em igualdade de condições. Não que estivesse tendo uma vida fácil; Marguerite começou o duelo com um sorriso no rosto, entretanto agora sua expressão estava tensa.
A mesa e os sofás tombaram, espalhando comida pelo chão.
Lutando para descobrir onde ele se encaixava em todo esse caos, Belgrieve gritou.
“Maggie, você está bem?”
“Cuidado, Bell! Há algo estranho com a espada desse cara!”
No pouco tempo que Marguerite tirou os olhos de seu oponente, Falka mudou de repente seu rumo e atacou Belgrieve. Belgrieve o pegou com a grande espada. A pura mana sagrada parecia explodir contra a energia distorcida com a qual entrou em contato; a espada sagrada rugiu com raiva enquanto a espada de Falka soltou um gemido sinistro.
“Grr... É uma espada amaldiçoada, pelo que me lembro...”
O rosto quase sempre inexpressivo de Falka estava começando a mostrar sua alegria enquanto lançava um golpe após o outro com satisfação. Belgrieve estava se mantendo firme, no entanto parecia que estava ficando mais cansado cada vez que travavam as lâminas.
Certo, Percival disse que a espada drena a mana daqueles que corta, lembrou Belgrieve. Na verdade, testemunhou a lâmina absorvendo um amaldiçoado na pousada. Evidentemente, mesmo que a espada não fizesse contato com seu corpo, poderia eliminar a mana que estava derramando em sua espada.
Depois de algumas trocas, Marguerite saltou para arrastá-lo.
“Afaste-se, Bell! Esse cara é um inimigo perigoso para você!”
“Desculpe por isso...” embora Belgrieve estivesse frustrado, fez o que ela instruiu. Sua técnica era um problema, mas o mais importante, não conseguia girar a enorme espada do lado de dentro da casa. Belgrieve recuou com cautela para fora do alcance de suas lâminas.
Foi então que ele ouviu um zumbido estranho, distinto do ritmo constante da chuva caindo. O que poderia ser? Os pensamentos de Belgrieve foram interrompidos quando outra pessoa entrou no salão com passos trovejantes — era Donovan, o Templário. Uma veia latejava em sua testa e seu rosto estava vermelho de raiva.
“O que você fez, Falka, seu idiota?” ao som do descontentamento de Donovan, Falka estremeceu e depois parou. Como uma criança cuja travessura veio à tona, ele timidamente se virou para Donovan. Donovan marchou rápido e firme em sua direção, sem hesitar nem um segundo, derrubou-o com um soco.
“Foi sua sede de sangue...? Que vergonha me causou... Na mansão do arquiduque, nada menos!” as orelhas de coelho de Falka caíram.
Donovan examinou o local frustrado, apenas para arregalar os olhos ao avistar Belgrieve.
“Então é isso que está acontecendo...”
“Nos encontramos outra vez. Não pensei que o encontraria assim.” as palavras de Belgrieve foram corteses, porém seus olhos permaneceram penetrantes enquanto encarava Donovan de frente. Não pôde evitar deixar uma pitada de cinismo em seu tom.
De repente, o zumbido que ouvira antes se tornou ainda mais alto. Era como se sons de pessoas resmungando tivessem sido acrescentados. Agora, uma porção de espaço vazio próximo parecia se torcer e dobrar, e então, algo foi projetado ali. Esta era a magia de transmissão.
“Ah, muito bem. Enfim consegui.”
“Kasim?” a imagem estava confusa e embaçada, contudo Belgrieve conseguiu distinguir Kasim.
“Bell? Venha aqui um pouco. Acho que podemos ter uma pista. Oh, certo. Por enquanto, parece que Ange está bem. Não precisa se preocupar.”
“Sério? Entendi.” imediatamente, seu peito ficou mais leve e a tensão desapareceu de seus ombros.
Kasim olhou em volta com uma expressão interrogativa.
“Hã? O que está acontecendo aí?”
“Não, está bem. Você nos quer na casa do Salazar, certo? Estaremos aí em breve.”
“Sim. No entanto, bem, está ficando um pouco complicado...” antes que Kasim pudesse terminar, a imagem desapareceu, deixando o mesmo espaço vazio de antes.
“Você vai?” Marguerite perguntou.
“Sim. Se eles nos deixarem ir sem lutar.” Belgrieve olhou com expectativa para os Templários.
Donovan franziu a testa.
“Não tenho motivos para detê-lo aqui... Peço desculpas pela exibição vergonhosa desse idiota.”
“Seria melhor se desculpar com a filha do arquiduque, e não comigo.” disse Belgrieve sem rodeios enquanto embainhava a espada que seguia rosnando.
Marguerite olhou entre os dois Templários, parecendo confusa.
“O quê, você os conhece?”
“Acabamos nos cruzando ontem.” disse Belgrieve, olhando para o corredor.
Não parecia que alguém havia se ferido. Liselotte, que voltou para dar uma olhada, entrou furiosa com os ombros retos. Ao mesmo tempo, Anessa e Miriam correram em direção a Belgrieve.
“Só porque é um Templário não significa que pode agir de forma tão impudente! Qual era sua intenção aqui?” Liselotte exigiu enquanto se aproximava deles.
Donovan caiu de joelhos no ato e abaixou a cabeça.
“Fomos insolentes... Meu nome é Donovan, e este é Falka... Ajoelhe-se, seu idiota!” com Donovan uivando para ele, Falka logo imitou a mesma postura.
Cruzando os braços e estufando as bochechas, Liselotte continuou.
“Sir Donovan, os Templários da capital encorajam tal violência sem sentido? Estes são convidados do arquiduque!”
“Não tenho desculpa... Por favor, perdoe-nos.”
“O que é toda essa comoção?” uma voz gritou do corredor.
Liselotte se virou, seu rosto imediatamente se iluminando.
“Ah, irmão!”
Lá estava François, franzindo a testa. Belgrieve examinou seu rosto com os olhos semicerrados — e François olhou de volta, um pouco assustado.
“Você é...”
“Você... Eu não o vi em Findale?”
“O que estão fazendo aqui...? O que aconteceu com a garotinha?” François entrou no salão com irritação sincera, apenas para a grande espada soltar um rugido ainda mais forte do que antes. Assustado, François parou, com o rosto rígido.
“Hmm...”
“Irmão, já conhece Bell? É o pai de Ange.”
“A Valquíria de Cabelos Negros...?” François olhou para Belgrieve, que assentiu sem palavras. “Portanto, a intenção de toda a família é ficar no meu caminho. Seu...”
“Irmão, você veio na hora certa. Essas pessoas de repente invadiram a mansão e fizeram uma bagunça. Parecem que são Templários.” explicou Liselotte, apontando com raiva para Donovan e Falka.
François observou os dois Templários antes de suspirar.
“Eu conheço os dois. Ambos são cavaleiros esplêndidos. Tenho certeza de que sentiram algo suspeito e não tiveram tempo de se explicar.”
“Hã? Mas...”
“Lize, se considera a si mesma filha da nobreza, deve ter cuidado com quem se associa. Entre alguns aventureiros obscuros vindos sabe-se lá de onde e uma dupla de nobres Templários sancionados pela igreja, nem precisa pensar em quem deve confiar.”
“Isso não faz sentido! Quero dizer, eles bagunçaram o salão do nada!”
“Eu sou o dono desta propriedade! Estou dizendo para não se preocupar.”
“F-François...”
“Venham comigo, vocês dois... E, Lize, mantenha suas tendências selvagens sob controle.” e com isso, François virou-se.
“Sir François.” disse Belgrieve, dando um passo à frente.
François parou e virou-se de novo com suspeita nos olhos.
“O que?”
“Está orgulhoso do trabalho que faz?”
François o observou por um momento, contudo no final saiu sem dizer uma palavra, levando consigo os dois Templários.
Marguerite bateu os pés.
“O que há com esse idiota? Primeiro leva Ange embora e agora está encobrindo nossos inimigos!”
“Sinto muito, Maggie. Meu irmão tem sido muito mau.”
“Ah, não, eu não estava com raiva de você...” Marguerite começou a entrar em pânico ao ver o quão desanimada Liselotte havia ficado.
Miriam correu e deu um tapinha na cabeça de Liselotte.
“Está tudo bem, ok? Obrigada, Lize.”
“É verdade, você não fez nada de errado. Não precisa se preocupar com nada.” acrescentou Anessa, colocando a mão em seu ombro.
Liselotte baixou a cabeça.
“Desculpe. Bell, vocês vão ir para onde Kasim está?”
“Sim. Desculpe por sair logo depois de lhe causar tantos problemas...”
“Não, está bem. Vocês não fizeram nada. Bem, sabe... Estou me sentindo um pouco desanimada, então vou descansar... Por favor, não se preocupe com o que meu irmão disse. Sooty, poderia acompanhá-los até a porta?” o bom humor de Liselotte foi arruinado por completo. Com Oswald conduzindo-a pela mão, ela saiu do salão.
Sentindo-se estranha, Sooty coçou a bochecha.
“Deveríamos ir embora, então? Hoje foi um dia agitado.” ela finalmente comentou.
Os criados começaram a arrumar o local enquanto o grupo se dirigia para a sala da frente.
“Senhor Bell.” Anessa deu um suave sussurro. “Já se encontrou com François antes?”
“Sim. Quando procurávamos Satie em Findale... Que lamentável. Não há dúvida de que me ve como um inimigo. Mesmo com a intercessão de Liselotte, duvido que conseguiremos conversar sobre qualquer coisa...”
“No entanto o Sr. Kasim parece ter encontrado algo, certo?” Miriam sugeriu. “Tenho certeza de que o Sr. Percy também terá algum tipo de pista.”
“Acho que sim... Por enquanto, vamos nos apressar. Sooty, se Percy aparecer...”
“Devo encaminhá-lo para Salazar, correto? Vou passar a mensagem.”
“Obrigado por tudo... Tudo bem, mostre o caminho.”
Havia todo tipo de coisas atormentando seus pensamentos, mas por enquanto, estava preocupado demais com Angeline para fazer qualquer outra coisa. Sou inútil assim, ele percebeu. Porém não posso evitar. Sou o seu pai. Até para Belgrieve esse pensamento parecia uma desculpa, contudo continuava a ocupar um canto de sua mente.
Do lado de fora da porta da frente, o som da chuva ainda ressoava alto.
○
Se Satie ficasse deitada por muito tempo, suas costas começariam a coçar — talvez devido a feridas que desenvolveu quando se movia antes. Além do mais, seu antebraço direito estava começando a ficar dormente e quase não tinha nenhuma sensação nas pontas dos dedos.
Ao olhar para o teto de madeira, Satie sentiu como se estivesse vendo o mundo do outro lado de uma cortina fina e nebulosa. O teto estava empoeirado e muito mais sujo do que lembrava.
Satie se contorceu até se sentar. As cores da luz que entrava pela janela haviam desaparecido, no entanto, infelizmente para ela, não estava com muito sono. O sono que estava tendo era breve e superficial, e só serviu para deixá-la mais cansada.
“Ow...” Satie agarrou seu ombro. O sangramento havia parado, todavia ainda doía. Sua mana não havia se recuperado muito, o que a fez se sentir mal. Sua visão estava desfocada e teve que fechar os olhos — entretanto era como se tudo dentro de sua cabeça continuasse girando.
Mesmo assim, se levantou da cama. Suas pernas instáveis levaram-na até o quintal, onde a luz sépia desbotada brilhava sobre seu corpo. No campo, no final do quintal, podia ver as gêmeas, Hal e Mal, rastejando pelo chão como se procurassem algo entre as fileiras de vegetais secos.
A mana exausta de Satie estava com certeza tendo um impacto negativo neste espaço artificial. As árvores ao redor começaram a perder as folhas, e as gramíneas e ervas daninha sem nome no quintal começaram a murchar e morrer, assim como os vegetais no jardim. O ar havia perdido a umidade e estava ficando seco e empoeirado. Até a casa deve ter envelhecido muitos anos ao mesmo tempo, a julgar pelos sons agourentos que estava fazendo.
Isso é ruim, pensou Satie, cerrando os dentes. Talvez ficar escondida aqui tenha sido um esforço infrutífero, mas se partisse em seu estado atual, não sabia quem mais seria capaz de proteger as gêmeas.
No momento em que Hal e Mal a notaram encostada na porta, elas correram até a elfa.
“O que está fazendo?”
“Você precisa dormir!”
As duas acenaram com as mãos, os punhos cheios de pedaços de ervas medicinais que mal conseguiram reunir antes que fosse tarde demais. As garotas levaram Satie de volta para a cama.
Com uma risada perturbada, Satie ficou deitada de costas mais uma vez. Mesmo um gesto tão pequeno a encheu de mais felicidade do que poderia suportar. Assim, obedientemente ficou ali e olhou para o teto uma vez mais. Seguia não estando com sono, porém era menos cansativo deitar-se. Contudo sua cabeça estava cheia de um estado de alerta detestável e se sentia bastante inquieta. Quando fechou os olhos, se viu olhando para os padrões de luz projetados em suas pálpebras.
De repente, Satie se lembrou da garota de cabelos pretos que encontrou por acaso. A garota, que se apresentou como Angeline, afirmou ser filha de Belgrieve. Certamente, ela podia ver alguém criado por Belgrieve crescendo com uma personalidade notável como essa. Era adorável, no entanto também tinha uma luz forte nos olhos.
“Ele deu ouvidos às minhas palavras e foi para casa...? Sim, duvido muito.”
Os padrões de luz dançando em suas pálpebras transformaram-se em imagens dos meninos de suas memórias. Apesar do que havia dito a Angeline, era impensável que eles fossem embora como pedido — nem Percival, nem Kasim, nem Belgrieve.
“Éramos muito jovens...” Satie murmurou para si mesma.
Eles tiveram sua cota de brigas, todavia ainda mais risadas. Cada um teria jogado fora sua vida pelo outro, e Satie levou isso a sério. Entretanto se perguntou como poderia enfrentar seu velho amigo que havia perdido uma perna. Com certeza não teve uma resposta para isso quando era criança.
Assim que Belgrieve soubesse de sua situação por Angeline, saberia muito bem como as coisas eram perigosas. Mas desistiria depois disso?
“Não iria... Quero dizer, Bell está sempre se preocupando com outras pessoas.” murmurou Satie. Era mais cauteloso do que qualquer outra pessoa, porém, ao mesmo tempo, sempre colocaria a segurança dos outros acima de si mesmo. Sua cautela foi por causa deles.
Na maior parte do tempo era tão manso, contudo quando decidia fazer alguma coisa, era o mais teimoso de todos... Satie riu.
Quando estavam apenas começando, Percival, seu líder, sempre pedia o impossível. E Satie, estimulada por sua curiosidade sem limites, faria quase o mesmo. Kasim acharia engraçado e embarcaria sem questionar. Todos tinham talento — Percival e Kasim, é claro, e Satie não achava que estava muito atrás dos dois. Então, ainda que tentassem desafiar o impossível, achava que se sairiam bem.
Agora, tão distante daquela época, Satie ria e pensava, foi muito louco da nossa parte.
Sempre que todos atacavam algo, Belgrieve dava um sorriso perturbado, no entanto os acompanhava de qualquer maneira. Todavia se ele determinasse que era muito perigoso, não importa quanto Percival ou Satie reclamassem. Belgrieve não os deixaria seguir em frente, não importa o quê. Quando seus camaradas estavam em perigo, jogava fora qualquer preocupação com sua própria segurança e pulava direto no fogo. Foi assim que Percival foi salvo.
Ele sobreviveu. Isso já é mais que suficiente para mim. Por que teve que vir até aqui?
Satie se sentiu infeliz. Belgrieve deveria ter encontrado sua felicidade em algum lugar distante, e se sentia deplorável por ele estar mais uma vez enfrentando o perigo por sua causa. Ela se odiou ainda mais por se sentir um pouco feliz com a ideia.
Se tivesse de verdade os melhores interesses dele em mente, teria o rejeitado com muito mais firmeza. E, mesmo assim, um pedaço de seu coração ainda esperava que a salvasse. Rejeitar Angeline como fez estava começando a parecer uma desculpa covarde. Não havia como Belgrieve voltar atrás só porque o havia dito — uma parte sua sabia disso muito bem.
“Eu sou egoísta...” murmurou, rolando na cama. A ferida no ombro latejava de dor.
De repente, Satie sentiu uma distorção no espaço. Seus olhos se arregalaram quando instintivamente se levantou. Ela podia ouvir as gêmeas gritando no quintal. Num instante, seu corpo estava cheio de poder e seu ferimento não a incomodava mais, enquanto saiu correndo de casa.
“Hal! Mal!"
No pátio, se deparou com um homem de túnica branca. Dois corvos jaziam a seus pés, inertes e aparentando estarem mortos.
“Schwartz!”
“Você se divertiu brincando de casinha?” Schwartz olhou para os dois corvos com zombaria.
Com os olhos bem abertos, Satie avançou, movendo-se com tão grande agilidade que era como se estivesse patinando no chão. Eram movimentos impensáveis para alguém com um ferimento tão grave. Mas Schwartz nem sequer recuou — apenas levantou a mão direita e lâminas invisíveis cruzaram-se e travaram-se entre os dois. Por baixo do capuz, o olhar penetrante de Schwartz a penetrou.
“Onde está a chave?”
Satie permaneceu em silêncio, lançando uma série de ataques com sua própria lâmina invisível. Porém, nem um único golpe passou pela guarda de Schwartz. Uma brisa começou a soprar ao redor deles, levantando folhas mortas no ar.
“Que luta fútil...” Schwartz recuou meticulosamente meio passo, movendo os dedos devagar. No momento seguinte, Satie sentiu um golpe intenso nas costas. Seu corpo desabou como se alguém a tivesse prendido no chão. A grama seca arranhou sua pele, causando uma coceira terrível. Apesar de suas melhores tentativas de se mover, era como se algo estivesse pesando sobre ela.
Mais uma vez, Schwartz falou friamente.
“Onde está a chave?”
“Eu a quebrei há muito tempo. Melhor do que entregá-la para vocês.”
“Entendo.”
Schwartz baixou o braço. Mais uma vez, um tremendo impacto balançou seu corpo.
“Gah!”
“Mulher tola!”
A visão de Satie começou a escurecer.
“Urgh... Hal... M... Al...”
Parado diante de seu corpo imóvel, Schwartz observou o ambiente. Todas as folhas que mal estavam agarradas aos galhos começaram a se espalhar de uma só vez, enquanto toda a vida parecia se esvair bem diante de seus olhos.
Schwartz apontou a mão para Satie, contudo ela havia sumido — sua forma desapareceu como uma miragem. Ele pegou os dois corvos caídos e balançou o braço, e também desapareceu, assim como Satie. E então não havia ninguém. Com um barulho enorme e discordante, a casa desabou sobre si mesma.
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