Capítulo 114: A fachada do grande edifício
A fachada do grande edifício tinha pesadas portas duplas de ferro, que pareciam sólidas e resistentes. Uma porta estava gravada com o brasão do império, enquanto a outra tinha o símbolo da guilda. As portas estavam abertas e um fluxo interminável de aventureiros, jovens e velhos, passava por elas. Esta era a guilda dos aventureiros da capital.
Anessa, que foi guiada por Touya e Maureen, ficou impressionada com sua escala. Mas não é tão grandioso quanto sempre imaginei, pensou ela.
Foi sem dúvida enorme, assim como a abundante massa de aventureiros. Porém, isso não foi diferente das guildas de outras grandes cidades.
Quero dizer, não deveria haver algo especial? Por que parece que estou na guilda de Orphen ou Istafar? Anessa reclamou.
Evidentemente, Anessa expressou de maneira despercebida alguns de seus pensamentos em voz alta, enquanto Touya sorria e oferecia uma explicação.
“Há mais edifícios de guildas por toda a cidade. Eles são todos tão grandes quanto este. Este é o quarto ramo.”
Devido à vastidão da capital, eram necessárias diversas instalações para a gestão e emissão de pedidos, e cada filial tinha a sua própria cadeia de comando. Aquele que Touya e Maureen escolheram era apenas um de vários. Cada filial não tinha um mestre de guilda ou qualquer outra estrutura administrativa comum a outras guildas. Em vez disso, outra agência unificou a gestão das filiais das guildas na cidade. Além do mais, a guilda administrava um mercado onde os aventureiros podiam vender materiais de masmorras e monstros, uma área de treinamento e muitas outras instalações semelhantes.
Entendo, então é assim que é, Anessa percebeu. Este edifício gigantesco é apenas a ponta do iceberg. E se todos os outros estiverem tão lotados quanto... Ela suspirou de admiração.
“Incrível... Essa é a guilda central.”
“Dito isso, raras vezes é preciso ir a outros prédios para fazer alguma coisa.” Maureen interrompeu, enchendo o rosto com um doce coberto de açúcar que comprou em uma barraca.
Os três se apressaram para entrarem no vasto saguão, saindo das nuvens pesadas que pairavam no céu e pareciam prestes a chover a qualquer momento.
Embora estivesse lotado lá dentro, não era tão ruim que Anessa não conseguisse andar no meio da multidão. Os outros ramos da guilda serviam para espalhar todos os aventureiros da cidade, embora estivesse chocada por ainda haver tantas pessoas por aí, mesmo considerando isso.
Anessa notou o toque distinto do design imperial ao redor e, apesar da multidão, as coisas pareciam mais organizadas do que a guilda de Orphen. Agora que estou no centro de tudo, até Orphen — a maior cidade do norte — parece um lugar atrasado, pensou Anessa com um sorriso irônico.
“Vou dar uma palavra.” Touya disse enquanto ia para o fundo. Anessa ficou com Maureen, então elas se sentaram em algumas cadeiras.
“Pensando bem, onde é sua casa? Vocês dois moram na capital, certo?”
“Sim, é bem perto daqui. Já estamos fora há um tempo, então preciso arrumar um pouco... Quando passei por aqui outro dia, acabei deixando minhas malas. Lidar com toda aquela poeira vai ser horrível.” reclamou Maureen, tirando uma pequena fruta de um saco de papel. A fruta redonda, vermelho-clara, era coberta por uma casca dura e espinhosa e era pequena o suficiente para caber na palma da mão.
“Aqui, pra você.”
“Oh, o-obrigado. O que é...?”
“Fruta do mouro. É só tira a casca assim.” Maureen perfurou a camada externa com a unha antes de retirá-la habilmente para revelar uma carne branca e suculenta, em desacordo com sua impressão inicial desgrenhada.
“Eu nunca vi essa fruta em Orphen...”
“Oh, sério? São muito boas e têm um sabor único.” Maureen colocou a fruta descascada na boca. “Sim, delicioso. Ah, tenha cuidado — o caroço é grande.”
Anessa tentou imitar a demonstração de Maureen de descascar a casca, contudo acabou com suco de fruta pegajoso em todo o dedo, que ela se apressou em lamber. Era doce com uma fragrância peculiar. Quando mordeu a carne, o cheiro ficou mais forte e, quando seus dentes cortaram a grande semente no centro, ficou ainda mais forte.
Sua inexperiência com essa fruta significava que tinha que descascá-la com cuidado todas às vezes, e esse ato repetitivo resultava em uma espécie de transe. Maureen e Anessa desfrutaram em silêncio de seus lanches até Touya chegar.
“Ah, fruta do mouro. Posso pegar uma?”
“Com quem acabou conversando? Bem, primeiro, você chegou a algum lugar?”
“Sim, você verá, e sim.”
Touya descascou a fruta como já havia feito centenas de vezes antes e jogou-a na boca. Depois de mastigar um pouco, cuspiu a semente de volta na mão.
“Delícia. Por enquanto, vamos indo.”
As cascas espalhadas sobre a mesa foram colocadas no saco de papel antes que eles se levantassem, e o trio circulou passando pelo balcão da recepção. Ao contrário do resto do edifício, o espaço através da porta dos fundos era principalmente para funcionários e, dessa forma, não era tão barulhento. Havia várias portas em ambos os lados do corredor, cada uma parecendo levar a um pequeno escritório. Seu caminho os levou a passar por uma pessoa carregando uma pilha de formulários e outra carregando uma cesta cheia do que pareciam ser escamas de dragão, e de dentro de um dos escritórios, puderam ouvir alguém sendo reprimido por uma voz através de um cristal de comunicação.
Touya parou em frente a uma das portas, certificando-se duas vezes da placa de identificação antes de bater.
“Entre.” uma voz lenta respondeu do outro lado.
Anessa olhou para a placa, notando que o ocupante do escritório se chamava ‘Vice-mestra de filial’.
“Perdoe-me.”
“Faz muito tempo que não nos vemos, Touya, querido. Fico feliz por vê-lo de volta.”
Anessa entrou depois de Touya e Maureen. Logo depois da porta, ela se viu diante de uma mesa de escritório com uma mulher — talvez com vinte e tantos ou trinta e poucos anos — sentada atrás na cadeira. Seu cabelo era de um tom profundo de verde-alga, que tinha sido deixado crescer tão longo e tão bagunçado quanto possível, até mesmo cobrindo seu rosto e obscurecendo um de seus olhos. Aquele que estava visível parecia mal acordado e desprovido de motivação.
Touya deu um sorriso cansado.
“Eu vim ontem, mas você estava fora.”
“Oh, querido, veio?”
“Hum, esta é Anessa. Ela faz parte do grupo da Valquíria de Cabelos Negros, uma arqueira de Rank AAA... certo?” Touya perguntou, ao que Anessa assentiu.
A mulher assobiou, aparentemente impressionada, e se levantou, revelando que não usava nada além de uma camisa larga que ia até um pouco acima dos joelhos. Com um grande salto, ultrapassou a mesa e pousou bem na frente de Anessa, depois segurou a mão de Anessa entre as suas.
“Estou honrada em conhecer um membro do grupo da renomada Valquíria de Cabelos Negros. Meu nome é Aileen. É um prazer.”
“Eu sou Anessa — e também, Sra. Aileen... Você é a vice-mestra do ramo?”
“Algo parecido. Sou a segunda pessoa mais importante da quarta filial.” disse Aileen com um sorriso preguiçoso. “Bem, entrem, entrem.” Disse Aileen, conduzindo-os em direção a algumas cadeiras reservadas para visitantes.
Maureen mexeu no saco de papel.
“Aileen, quer algumas frutas de mouro?”
“Oh, quero, quero. Cara, não sabe o quanto estou feliz por tê-lo confiando em mim.”
“Sério, do que está falando...” Touya disse, antes de continuar com uma voz mais baixa. “Este lugar é seguro?”
Os olhos de Aileen se estreitaram um pouco.
“É um desses tópicos?” ela sussurrou de volta.
“Bem, não é algo que eu gostaria que fosse tornado público.”
“Entendo, entendo. Bem, parece que vai demorar um pouco. Que tal darmos um passeio? O trabalho administrativo está me afetando na verdade.” Aileen falou em voz deliberadamente alta antes de enfiar uma das frutas na boca e vestir um casaco que estava pendurado na parede.
“Aqui não adianta, então?” Anessa perguntou com cautela.
“Bom, sabe como são as coisas. Grandes organizações tendem a ter suas algemas.”
Os olhos de Anessa percorreram a sala. Estamos sendo monitorados? imaginou. Talvez fosse apenas paranoia, porém sentiu uma vaga sensação de estar sendo observada por alguém.
Assim, os quatro saíram da sala e seguiram por um corredor para sair da guilda. A essa altura, já havia começado a chuviscar levemente — não chegava a uma chuva torrencial, todavia também não era o tipo de clima adequado para um passeio tranquilo. Mesmo assim, Aileen caminhava num ritmo relaxado.
“Você terminou o pedido de Salazar?”
“Sim, sem problemas... Mas eu o encontrei. Na capital, de todos os lugares.”
“Oh, isso é complicado, amigo... Esta conversa se trata desse assunto?”
“Não de tudo. É um pouco complicado — não consigo resumir em poucas palavras.”
“Entendo.”
A chuva parecia estar caindo com mais força, pouco a pouco. Os quatro aceleraram o passo, seguindo Aileen, e entraram em um café de frente para a rua principal.
“Grupo de quatro.” disse Aileen ao maître¹. Eles foram levados para o fundo do café, passando por uma divisória que dava a sensação de que tinham seu próprio quarto privado. Aileen tirou o casaco e se espreguiçou.
“Aqui vamos nós. Não deve haver nenhum problema com o que você diz aqui.”
Entendo, então é esse tipo de café... Anessa pensou, balançando a cabeça para si mesma. Ela sentou-se à mesa redonda e Aileen sentou-se à sua frente.
“Anessa, hein? Como devo chamá-la?”
“Meus amigos me chamam de Anne.”
“Anne, então. Muito legal. Veio de Orphen, certo? Leo está bem?”
“Leo... Oh, o mestre da guilda? Ele sempre trabalha até a exaustão, porém está indo muito bem. Você o conhece?”
“Sim, ele esteve aqui na capital por um tempo, há muito tempo. Mais recentemente, houve aquele surto de monstros em massa ou algo desse tipo, e ele arrastou Gil e Ed embora, me deixando sozinha aqui. Até o Yuri se foi... Podia ter me chamado também, sabe...”
Pensando bem, Gilmenja e Edgar estavam trabalhando na capital como aventureiros ativos, lembrou Anessa. Yuri parecia conhecer Aileen também. É um mundo surpreendentemente pequeno em que vivemos.
Chá e doces foram trazidos à mesa, para alegria de Maureen.
“Os biscoitos aqui são deliciosos.”
“Não são? Não consigo viver sem doces.”
Maureen e Aileen entusiasmaram-se com os doces.
Touya ergueu a testa.
“Posso começar a falar?”
“Vá em frente.”
Os sons do café vazavam apenas levemente além da tela.
Touya limpou a garganta antes de começar.
“Sra. Aileen, o que pensa do Príncipe Herdeiro Benjamin?”
“Ele é muito legal, não é? Quero me casar com ele para que possa me mimar pelo resto da minha vida.”
“Não, não é isso que eu quero dizer... Não acha que há algo de antinatural?”
Aileen mexeu o chá com movimentos espirais da colher.
“Hehehe... Seria sobre o príncipe ser uma farsa?” Aileen riu do choque de olhos arregalados de Touya e Anessa. “Está escrito em todos os seus rostos. Vocês seriam espiões terríveis.”
“Você já sabia?” Anessa perguntou.
O olhar de Aileen vagou um pouco.
“Sim... Esses rumores circulam desde sempre. O príncipe mudou muito em relação a como costumava ser... Contudo não há nenhuma evidência, e é óbvio que está melhor do que era antes, então ninguém de fato investiga o assunto.”
Touya olhou para Anessa. Ela refletiu um pouco sobre as coisas antes de reunir sua determinação.
“O príncipe é falso, um verdadeiro impostor.” declarou.
“Ah, eu sabia.”
“Não demorou muito para te convencer.” observou Maureen.
Aileen apoiou a cabeça com uma das mãos.
“Bom, isso explicaria muita coisa. Ou é esse o caso ou ele está sendo manipulado... É chato se envolver com esse tipo de coisa, então só me faço de boba.”
“Então há algumas coisas não naturais que notou, hein?”
“Houve muita pressão sobre a guilda. Fui rebaixada para o quarto ramo antes que isso acontecesse, então não sei muito, no entanto não tenho dúvidas de que estava tramando algo nos bastidores.”
“Entendo...” Anessa murmurou pensativa.
Aileen encolheu os ombros.
“Estão hesitando com alguma coisa?”
“Bem, não ‘hesitando’ na verdade... Hmm... É complicado. O príncipe pode ser uma farsa, entretanto é um excelente governante para o povo.”
“Excelente, hein...” Aileen repetiu. Ela riu enquanto levava a xícara de chá aos lábios. “É verdade, a capital e seus arredores prosperaram, mas a divisão entre os estratos sociais é muito grande, sabe. As estradas principais estão todas bem conservadas e muito movimentadas, porém as favelas estão ainda piores do que nunca. E sabe como ele posicionou aqueles soldados ao longo da estrada há algum tempo? Custou bastante, para que saibam, e o orçamento está bem apertado.”
“Mas a ordem pública melhorou.”
“Sim, melhorou. Contudo, apenas de Findale até a capital. As pequenas aldeias fora da estrada estão a desaparecer uma a uma. Aposto que os monstros e bandidos expulsos da via principal foram direto para elas. Claro, pode chamar de política de capital em primeiro lugar, no entanto é muito cruel empurrar todo o nosso infortúnio para o campo.”
Aileen disse tudo alegremente e depois deu uma boa risada. Anessa ficou um pouco surpresa e perplexa. Por falta de resposta ao que ouvira, tomou um gole de chá.
“Oh, desculpe, desculpe, acabei trazendo algo não relacionado. Então, o que há sobre essa conversa do príncipe herdeiro? Partindo de algumas pistas de contexto, este é um tópico arriscado.”
“Hector está do lado dele.” disse Touya.
Isso pareceu ser uma surpresa para Aileen. Seu copo congelou a meio caminho de sua boca.
“Touya, querido... Devo entender que se tornou inimigo do príncipe?”
“Por associação.”
“Até a Chama Azul da Calamidade está ao seu lado, ao que parece. É bem incrível.” Maureen gargalhou.
Após a fala de Maureen, a atitude irreverente de Aileen pareceu se dissipar por completo. Seus ombros afundaram e ela soltou um suspiro profundo.
“Que tal me contar tudo em ordem? Anne aqui tem algo a ver com esse assunto, certo?”
“Sim.” respondeu Anessa. “Na verdade, diria que fomos nós que arrastamos esses dois para a nossa confusão.”
“Deixe-me pedir outro prato.” Maureen entrou na conversa. Anessa e Touya olharam para a bandeja de doces, agora vazia, que havia sido devorada antes que qualquer um deles percebesse. Seus ombros caíram.
○
Elas foram conduzidas a um quarto de hóspedes diferente daquele do dia anterior. Este era um salão bem conservado e decorado com bom gosto. É estranho como mantêm este salão limpo e arrumado quando duvido que seja usado com frequência, pensou Angeline.
Depois de mostrar o salão as três, Sooty saiu para preparar o chá. Enquanto esperavam, Angeline sentou-se em um sofá incrivelmente confortável, enquanto Miriam foi até a janela, fazendo uma careta ao ver além.
“Sabia que algo estava errado quando meu cabelo começou a ficar crespo. Vai chover.”
“Que coisa. Não havia uma única nuvem esta manhã, então não trouxe nenhuma capa de chuva. O que faremos se começar a chover?”
“Se acontecer, vamos pegar algo emprestado de Lize... De todo jeito, vamos ter que esperar aqui até a noite de qualquer maneira.”
Quando o pai vai chegar? Angeline se perguntou enquanto afundava de volta no sofá. Ela não sabia nada sobre Maitreya e não tinha a menor ideia de que ele já havia chegado à capital através do teletransporte dela.
Depois de algum tempo, Sooty voltou com duas criadas carregando um jogo de chá, que trabalharam com agilidade e precisão para servir os convidados. Angeline descobriu que uma xícara fumegante de chá perfumado foi servida em pouco tempo.
Sooty olhou pela janela.
“Parece que vem chuva.”
“Sim. Lize ficará bem?”
“Oh, tenho certeza que vai. A festa de hoje será realizada ali perto. E há uma coisa sobre os nobres que os torna tão chatos: mesmo que ande apenas alguns quarteirões, ainda terá que andar em uma carruagem sofisticada como demonstração de riqueza.”
“Hmm...” entendo, parece plausível, pensou Angeline. Na época em que compareceu ao baile, havia ficado toda confusa do início ao fim. Foi lá que aprendeu que o poder ia além do poder das espadas e da magia.
Miriam passou as mãos pelos cabelos.
“Porém está mesmo bem? Não é mais um motivo para estar a acompanhando?” perguntou.
“Bem, pode ser que seja, contudo acho que este é um bom momento para respeitar o crescimento da senhorita como pessoa. Até levou um atendente diferente, pelo que vi. Uma verdadeira nobre, nascida e criada.”
“Então por que é você quem geralmente está junto de Lize?”
“Lido com seu lado moleca. Uma ex-aventureira como eu não vai entender a etiqueta nobre e todas essas coisas complicadas, certo? Pra ser franca, na maioria das vezes sou eu quem aprende com a senhorita.” disse Sooty, rindo.
Depois que a conversa começou, não parecia mais que elas estavam apenas esperando o tempo passar. As quatro conversaram sobre todo tipo de coisas enquanto saboreavam o chá.
Após algum tempo puderam ouvir um barulho de tamborilar vindo da janela. Angeline se virou e viu água escorrendo pela vidraça. A tempestade enfim havia chegado e estava sendo espalhada pelo vento no vidro. Estava caindo com mais força do que ela esperava.
“Whoa, está chovendo horrores. Bell vai ficar encharcado quando chegar aqui.”
“Espero que seja apenas uma garoa passageira...”
Angeline não se importava com a chuva. Embora os invernos de Turnera tenham sido abençoados com neve abundante, não choveu muito no resto do ano. Pensando agora, aquelas garoas suaves que salpicavam a terra pareciam tão bonitas quando ela era criança.
No entanto, Angeline sentiu que havia algo estranho nessa chuva. Não sabia bem o quê, mas fez seu coração ficar inquieto. Talvez fosse apenas o tamborilar áspero das gotas.
De repente, houve uma batida na porta. Sooty levantou-se na hora.
“Senhor Bell, talvez?” Miriam se perguntou, olhando para cima.
“Não é um pouco cedo?”
Sooty abriu a porta e Angeline se levantou.
“Pai?” chamou — apenas para cerrar a boca logo depois.
Era o terceiro filho do Arquiduque Estogal, François, quem entrava. Tinha o cabelo castanho escuro preso para trás e a sua tez era de uma estranha palidez. Seu rosto era o epítome do descontentamento.
“Bom, me desculpe. Não sou seu pai.”
“O que você quer?”
“Hmph... Insolente como sempre, pelo que vejo. Vocês, aventureiros, todos vocês...” François franziu a testa enquanto dava uma olhada ao redor do salão. “Parece que o Destruidor de Éter não está aqui.”
“Se quer dizer alguma coisa, diga. Tenho certeza de que não está aqui para tomar chá.”
“Sua Alteza está te convocando.” declarou François sem rodeios. “Venha comigo.”
Angeline tinha ouvido algo sobre François se tornar o capitão da guarda real de Benjamim. Foi por isso que havia ido para a capital e Liselotte veio junto. O fato de François estar aqui significava que, sem dúvida, veio por ordem direta de Benjamin.
Agora o que fazer...? Angeline se perguntou, atormentada pela incerteza. Toda essa situação é muito suspeita. Devo ir junto agora? Benjamin é um príncipe e, se eu não seguir suas ordens, será fácil para me prender. Isso restringiria drasticamente meus movimentos, e não seria apenas comigo — afetaria todos nós. Pode até causar problemas para Lize também. Era o que estavam planejando?
Ir com ele seria perigoso, mas a desobediência trazia o risco de piorar a situação. Na verdade, talvez eu possa tirar vantagem disso enfrentando um pouco de perigo aqui. Talvez possa obter algo valioso concordando com essa situação.
Angeline zombou.
“Somente eu?”
“Sim. Só você. Vamos.”
“Hum, Lorde François, Angeline é convidada da Senhorita Liselotte, pelo que estou ciente.” disse Sooty.
“Silêncio. Nunca lhe dei permissão para falar.” rosnou François em uma reprimenda fria.
Sooty franziu os lábios, parecendo bastante perturbada. Angeline lançou um olhar para Miriam e Marguerite, que estavam relaxadas no sofá.
“Volto em breve. Se o pai vier, digam a ele para não se preocupar comigo.”
“Tem certeza? Posso te acompanhar.” sugeriu Marguerite, levantando-se em seguida.
Porém Angeline ergueu a mão para impedi-la.
“Não quero deixar nossa maga sozinha. Por favor, Maggie...”
“Bem... Tenho certeza que você consegue se virar.” Marguerite concedeu antes de se sentar e cruzar as mãos atrás da cabeça.
Miriam torceu as mãos se desculpando.
“Ange...”
“Não faça essa cara, Merry... Precisa passar o meu recado para o pai, ok?”
“Entendi... Tome cuidado.”
Angeline assentiu antes de colocar a mão no ombro de Sooty.
“Desculpe por ter que fazer isso, contudo poderia contar a Lize?”
“Entendido.”
“Essa farsa já acabou?” François estava parado na porta, parecendo entediado. “É bem insolente de sua parte se acha que Sua Alteza se dignaria a prejudicar você entre todas as pessoas.”
“E não me lembro de ter lhe dado permissão para falar...” Angeline retrucou, apontando o dedo diretamente para o nariz de François.
Ele piscou repetidamente com o golpe, parecendo surpreso por alguns momentos. No entanto logo estalou a língua e girou nos calcanhares.
“Venha.”
Angeline saiu em silêncio do salão. A porta se fechou atrás dela.
Do lado de fora da janela, a chuva continuava a cair. Talvez tivesse começado a se misturar com granizo, pois havia ruídos de algo duro e fino batendo na vidraça. O uivo do vento também estava aumentando.
O corredor parecia muito mais longo do que antes, e o silêncio de François só tornou a viagem muito menos agradável. Angeline poderia pelo menos ter se divertido se ele a amaldiçoasse para que pudesse responder na mesma moeda. Incapaz de aguentar mais o silêncio, Angeline falou.
“Então, você foi promovido.”
Os ombros de François reagiram, todavia seus passos não pararam, e seguiu sem palavras.
“Está ressentido comigo?” Angeline perguntou, tentando uma abordagem diferente.
“Imagino que sim.”
Na verdade, ela recebeu uma resposta desta vez, no entanto algo parecia errado. Os olhos de Angeline se estreitaram enquanto pensava no que poderia ser.
“Não tem certeza?”
“Não, eu te odeio. Devo te odiar. Achei que só viveria para um dia me vingar... Mas é estranho. Achei que sentiria instantaneamente vontade de matá-la assim que te encontrasse de novo, porém, não é o caso. Sendo sincero, não sinto nada.”
Sem aviso, François parou e, se voltando para trás, agarrou Angeline pelo pescoço.
Seus dedos ossudos estavam surpreendentemente frios, contudo Angeline encarou-o, mantendo-se o mais calma que pôde. Não havia sentido um pingo de intenção assassina.
François ficou em silêncio por alguns momentos. Por fim a soltou, parecendo resignado, e soltou um suspiro profundo.
“Está vazio. Sua Alteza me selecionou pessoalmente para esta posição, contudo ainda não consegui nada significativo. Fracassei em quase todos os trabalhos que me encarregou. Me considerava uma pessoa excepcional. Parece que me enganei.”
“No entanto Lize ficou muito feliz, sabe? Ela me disse que estava orgulhosa de seu irmão mais velho.”
“Hmph... Ela está tentando me conquistar agora? É inútil. Tentei matar todos os membros da casa do arquiduque, incluindo-a também. Não pode haver entendimento mútuo entre nós.”
“Sabe, pensei isso da última vez que nos encontramos, mas você tem bravatas demais. Está se esforçando para escolher uma vida que com certeza nunca irá desfrutar — nem um segundo sequer. Qual é o objetivo?”
“Cale-se. Você nunca entenderia.”
“Sendo sincera não quero entender. Entretanto o fato de estar falando sobre essas coisas significa que quer que alguém tente entender, certo?”
François cerrou os lábios e acelerou o passo. Angeline deu com os ombros e continuou a segui-lo. Ela o detestava, todavia sentia uma estranha simpatia ao captar esses vislumbres de vulnerabilidade. Havia também o fato de que Liselotte adorava de todo coração seu irmão — uma parte de Angeline queria que o afeto familiar de Liselotte fosse retribuído.
Porém o que devo dizer? Isso era algo que Angeline não sabia muito bem. Estava confiante de que poderia brandir uma espada melhor do que a maioria, contudo era péssima quando se tratava de escolher as palavras certas para dizer. Se ao menos o pai estivesse por perto...
Eles deixaram a villa e embarcaram em uma carruagem com destino ao palácio real. Durante o passeio, Angeline tentou puxar conversa mais algumas vezes, contudo François não quis agradá-la. Quando chegaram, a carruagem passou direto pelo portão da frente e deu a volta até os fundos.
Com a chuva forte, não perderam tempo correndo para dentro. Em contraste com a entrada frontal vistosa e ornamentada, a área posterior era muito menos ornamentada. Era assim também na propriedade do arquiduque, lembrou Angeline. Já fazia quase um ano, no entanto a memória estava estranhamente vívida em sua cabeça. Aquela confusão com François naquela época também aconteceu atrás da mansão.
Enquanto seguiam por uma passagem longa e escura, Angeline avistou uma porta de ferro. Tinha uma aparência muito austera e pesada, e na escuridão circundante parecia ainda mais agourento.
François agarrou a maçaneta e abriu a porta. Houve um som estridente e ensurdecedor quando girou as dobradiças.
“Entre.” insistiu. Angeline obedeceu.
Era um pátio, mas os altos muros que o cercavam por todos os lados faziam com que parecesse opressivo. Quando ela olhou para cima, viu uma pesada cortina de nuvens bem acima e pôde ouvir as gotas de chuva caindo, porém nenhuma delas caiu neste espaço. Que curioso... Angeline refletiu. De repente, sentiu alguém se levantar no centro do pátio. Foi o Príncipe Herdeiro Benjamin, que a recebeu com um largo sorriso.
“Hey, estou feliz que tenha vindo, Angeline.”
“Eu respondi ao seu chamado...” disse Angeline, inclinando a cabeça em uma demonstração teatral de cortesia.
Notas:
1. Na hotelaria e gastronomia, o maître é o responsável por organizar estabelecimentos comerciais como hotéis, restaurantes e, cruzeiros.
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