Capítulo 113: As árvores em tons de sépia
As árvores em tons sépia espalharam suas folhas, formando pilhas por todo lado. As flores e os vegetais do jardim no final do quintal perdiam o vigor, as pontas dos caules caíam. Estava quase na hora de todos murcharem.
Da casinha confortável veio uma das gêmeas de cabelos pretos — Hal — com pressa. Ela entrou no campo, indo para o canto onde cresciam as ervas medicinais, e colheu algumas antes de retornar tão rápido quanto quando saiu.
A casa estava escura, exceto pela luz que entrava pelas janelas. Estava estranhamente empoeirado e cheio de uma atmosfera pesada que parecia como se o lugar tivesse envelhecido por várias décadas de repente. Enquanto Satie, a elfa, estava deitada na cama, a outra gêmea — Mal — ficou ao seu lado, enxugando seu rosto com uma toalha úmida. Hal colocou as ervas em uma panela de barro e perguntou.
“Como Satie está?”
“Nada bem.”
“Talvez ela tenha usado muita magia?”
“Talvez.”
Enquanto as gêmeas iam e voltavam, Satie soltou um pequeno gemido. Suas pálpebras se abriram um pouco.
“Eu adormeci...?”
“Tudo bem. Durma.”
“Estamos aqui. Não se preocupe.”
Hal correu para se juntar a sua irmã gêmea e as duas fixaram seus olhares preocupados em Satie.
Satie sorriu e deu um tapinha na cabeça delas.
“Obrigado. É bom ter ajuda confiável por aí.”
As gêmeas estufaram o peito e foram até o fogão de pedra para preparar sua mistura medicinal. Satie as observou por um breve momento, mas eventualmente caiu de volta na cama e olhou para o teto.
O rosto da filha do seu velho camarada passou pela sua cabeça. Sua visão estava turva com lágrimas antes que percebesse.
“Essa foi... A coisa certa a fazer?”
Não estava errada — pelo menos foi o que pensou. Se tivesse feito um pedido sincero de ajuda e a gangue voltasse a lutar contra Benjamin e Schwartz, talvez eles pudessem realizar muito mais do que ela poderia fazer sozinha.
Porém Satie entendia muito bem o quão aterrorizante seu inimigo de fato era. Ao longo dos muitos anos em que esteve envolvida nesta luta, houve várias vezes em que encontrou camaradas que ajudaram a sua causa. Nem um único permaneceu. Mesmo aqueles que pensou ter salvado inevitavelmente acabariam em uma sepultura prematura. Aconteceu uma e outra vez, e agora a semente do medo estava plantada firme em seu coração — temendo perder mais alguém.
Dito isso, Satie agora sabia que o primeiro companheiro que pensou ter perdido ainda estava vivo. Tal verdade lhe deu um pouco de alívio... Contudo era por esse exato motivo que tinha ainda mais medo de perdê-lo outra vez. Quando imaginou a dor de Belgrieve, sentiu que não poderia haver alegria no seu reencontro.
“Acho que sou apenas uma idiota, pura e simplesmente.” ela murmurou, fazendo uma careta para seus ferimentos. Algo desagradável havia invadido seu corpo e latejava dolorosamente. Era evidente que a espada de Hector estava revestida com algum tipo de magia. Em condições normais, Satie teria sido capaz de resistir com sua própria mana, no entanto mal tinha descansado desde a batalha em Findale. Para piorar a situação, reforçou a barreira e elaborou contramedidas assim que soube que havia sido adulterada. Tudo somado a mana que investia sem parar para manter esse espaço artificial. No final das contas, não tinha forças para se recuperar.
Claro, ainda tinha seus elixires que preparou, mas não tinha os ingredientes adequados para torná-los tão eficazes quanto precisava. Levou tudo o que tinha para manter seu estado atual.
Só vai piorar a partir daqui, pensou, cerrando os dentes. Essa percepção já lhe ocorrera várias vezes antes, e em todas elas ela estava em desacordo consigo mesma. Uma parte sua gostaria de ter pedido ajuda; a outra não suportava envolvê-los.
Naquele momento, um cheiro estranho e penetrante invadiu a sala. As gêmeas voltaram com um pote de barro.
“Está feito.”
“Satie, você está bem?”
Satie se levantou novamente.
“Estou bem. Obrigado.”
O que há de bom nisso, sua mentirosa? ela silenciosamente amaldiçoou a si mesma. Contudo não teve escolha a não ser sorrir.
○
A manhã parecia chegar de repente, à medida que a paisagem urbana além da janela passava de mal agraciada pelos primeiros raios do amanhecer para totalmente iluminada pelo sol nascente. Sua luz atravessava o fino véu de nuvens para preencher as vielas estreitas e escuras entre os edifícios imponentes e, ainda assim, os pedestres da manhã eram gelados por ventos fortes e uivantes.
Quando Belgrieve juntou todas as suas coisas e saiu do quarto, os comerciantes que acordaram cedo já estavam desfrutando do café da manhã com bastante ruído, restando apenas alguns bêbados no bar da noite anterior. Esta era a hora do dia em que o número de pedidos de bebidas seria ultrapassado pelos pedidos de comida, e, com exceção das elegantes senhoras e senhores que conseguiram beber a noite toda — que agora estavam grudados no topo de suas mesas — todos os outros pareciam estar se fartando de pão, sopa, mingau, carnes grelhadas e batatas cozidas no vapor.
Tomaremos um café da manhã leve antes de seguirmos para a villa do arquiduque... Belgrieve pensou. No entanto seus planos para o café da manhã foram suspensos quando ouviu alguém se levantar de uma mesa próxima e ir direto para o grupo de Belgrieve.
Belgrieve se virou e viu que era um dos Templários da noite anterior, caminhando cheio de coragem em sua direção. Parecia que ele estava os esperando por. Maitreya se apressou e mergulhou na sombra de Percival.
“A noite passada foi uma bagunça, hein?” o musculoso Templário pairava sobre Belgrieve com um toque de arrogância. Parecia ter cerca de trinta anos, sua pele era um pouco bronzeada e seu cabelo era de um tom castanho escuro.
“O nome é Donovan — Templário de Viena.”
“É um prazer. Meu nome é Belgrieve.” Belgrieve estendeu a mão para apertar a mão estendida do Templário.
Donovan então gesticulou para trás, os cantos dos lábios se curvando em um leve sorriso.
“Você tem sorte que aquele cara estava por perto. Deveria agradecer a Viena por isso.”
O garoto com orelhas de coelho, que havia invadido o quarto na noite anterior, permaneceu sentado à mesa, olhando indiferente para o espaço vazio.
“Sim, você tem meus agradecimentos.” disse Belgrieve ao garoto, sorrindo.
“Hey, Falka! O mínimo que pode fazer é responder!”
A pedido de Donovan, Falka com orelhas de coelho ergueu um pouco os olhos para encontrar o olhar de Belgrieve e ofereceu um pequeno aceno de reconhecimento. Essa parecia ser a extensão da resposta de Falka, então Belgrieve acenou de volta amigavelmente.
“Então, o que os Templários de Viena querem conosco?” Percival perguntou com evidente suspeita.
Donovan zombou.
“Eu ouvi sobre o que aconteceu... E vocês despertaram meu interesse. Especialmente você, Belgrieve. Essa espada nas suas costas... É uma arma e tanto.” disse Donovan, estendendo a mão sobre o ombro de Belgrieve em direção ao punho. Belgrieve o evitou por instinto.
“Oh, não é nada especial.” disse Belgrieve, dando um sorriso irônico.
“Não seja tão humilde. Sinto algo puro irradiando dessa lâmina... Deve ser uma espada sagrada, certo?” embora falasse com calma, Donovan tinha a aparência de uma fera observando sua presa. Belgrieve sabia que nada de bom resultaria disso.
“Desculpe. Estamos com pressa...” Belgrieve disse, forçando um sorriso enquanto baixava a cabeça.
“Não precisa ter medo — não quero te fazer nenhum dano. Só quero dar uma olhada na sua espada.”
Belgrieve estava prestes a ir embora quando Donovan o pegou pelo braço. Seu aperto não era forte, mas Belgrieve podia sentir sua força diminuindo — este homem tinha conhecimento preciso de onde aplicar pressão para obter o efeito máximo. Ele é um verdadeiro guerreiro, de fato.
Mesmo assim, Donovan, por sua vez, foi pego por Percival, que arrancou sua mão de Belgrieve.
“Não temos negócios com vocês. Se ficarem no nosso caminho, nós o derrubaremos, sejam Templários ou não.”
“Hmm, isso está ficando interessante...”
“Agora espere, espere!” Belgrieve exclamou enquanto se intrometia entre a dupla sedenta por sangue.
“Percy, qual é o sentido de entrar em uma briga aqui... Perdoe-nos, Sr. Donovan.”
“Haha, você conhece suas maneiras. Porém está apenas se preparando para o fracasso, empunhando uma arma além da sua estatura.”
As palavras do Templário pretendiam ser provocativas. Percival soltou um clique muito audível da língua em resposta.
Os Cavaleiros Templários eram uma classe privilegiada, em certo sentido. Eles tinham o apoio da poderosa Igreja de Viena; mesmo que pisassem no calo da aristocracia, ninguém ousaria falar contra eles.
Belgrieve considerou a situação em silêncio, contudo no final riu cansado e puxou a espada das costas, com bainha e tudo, e estendeu-a para Donovan. O Templário sorriu ao agarrá-lo pelo punho.
“Prudência é uma virtude... Hein?”
No momento em que Belgrieve a soltou, a lâmina atacou os braços de Donovan com um peso absurdo. Donovan imediatamente reuniu toda a força de seu corpo, no entanto não foi suficiente para manter a lâmina nivelada — esqueça de segurá-la, ele foi arrastado direto para o chão. Os outros clientes, que estavam dando olhares ocasionais para a disputa, agora encaravam fixos.
“Gah...” Donovan plantou os pés com firmeza e, segurando o cabo com as duas mãos, tentou levantá-lo de volta. Uma veia pulsava em sua testa, que escorria de suor frio, enquanto rosnava com os dentes cerrados. Todavia, a espada recusou-se a mover-se um centímetro do seu novo local de descanso no chão. Também não seria retirada de sua bainha.
“O que há de errado, Sr. Alto e Poderoso?” Percival gargalhou. “Ficando com os joelhos fracos?”
“Droga... O que está acontecendo?”
Depois de observar a luta de Donovan por algum tempo, Belgrieve pegou a espada pelo punho e segurou-a no alto como se não fosse nada. Donovan ficou pasmo com a façanha, abrindo e fechando as mãos agora vazias, que pareciam bastante entorpecidas.
“Me desculpe. Esta é uma espada que escolhe seu portador.”
“Entendo... Agora estou convencido.” Donovan lançou um olhar frio para Belgrieve. “Odeio admitir, mas é real.”
De repente, sem aviso, o Templário desviou-se para o lado. Belgrieve sentiu um arrepio percorrendo sua espinha e, antes que percebesse o que estava acontecendo, empurrou a espada embainhada para frente e sentiu um impacto — Falka havia se aproximado sem presença ou som, golpeando a grande espada com sua própria lâmina. Belgrieve podia sentir a mana expelida pelo choque das lâminas embainhadas, não diferente de se fosse aço nu. A colisão causou a expulsão do vento do solo ao redor de ambos, resultando em suas capas e mangas com babados ondulando em seu rastro.
Falka não tinha como alvo Belgrieve, por si só; parecia que pretendia travar as lâminas desde o início. Ele estava desenfreado e a força por trás do golpe foi muito maior do que seria necessária para matar Belgrieve. A mana que passou pela grande espada chegou ao punho e entorpeceu o braço de Belgrieve como um raio de eletricidade.
Belgrieve fez uma careta e a grande espada soltou um rugido enfurecido. Foi ecoado pela espada de Falka, que emitia um ruído sinistro e abafado. Enquanto sua mente lutava para acompanhar, sentiu um puxão por trás. Belgrieve rapidamente recuperou o equilíbrio quando Percival — que o tirou do meio de tudo — se aproximou. Embora Belgrieve não pudesse ver o rosto do amigo, a intensidade monstruosa que emanava de Percival era palpável.
Lentamente, Percival pegou a espada em seu quadril.
“Se é uma briga que você quer... Terei que intervir.”
“Não seja tão apressado. Tenho certeza de que nos veremos de novo.” com um sorriso destemido, Donovan virou-se. Falka manteve a mesma expressão ausente de sempre ao seguir seu parceiro porta afora. Enfim, o ar tenso que permeava o bar começou a se dissipar um pouco.
Estalando a língua, Percival virou-se para Belgrieve com uma profunda ruga na testa.
“Eu nunca suportaria aqueles Templários. Você está bem, Bell?”
“Sim, desculpe por isso...”
Ele acenou com a mão para livrar-se da leve dormência que ainda persistia antes de devolver a grande espada, que rosnava descontente, às suas costas.
Maitreya levantou a cabeça de trás de uma das mesas e olhou ao redor do bar.
“Eles se foram agora?”
“Sim...” Percival resmungou e cuspiu no chão. “Minha nossa. Tinha que ser agora, né? Não poderiam ter escolhido um momento pior para nos atacar.”
Percival jogou as malas nas costas.
“Vamos nos encontrar com os outros já.”
“Certo, vamos seguir nosso caminho.” disse Belgrieve com um suspiro. Parecia que a situação estava ficando ainda mais complicada, porém não podia se dar ao luxo de esperar que as coisas ficassem mais simples. Ele formou um punho com os dedos formigantes e levantou a cabeça.
“O que eles queriam...?”
“Quem sabe. Contudo estão de olho na espada do Paladino, isso é certo. Tenha cuidado, ok?”
Que problemático... Belgrieve coçou a cabeça. Ele teve a sensação de que eles sabiam de algo que não estava ciente. Os fios do destino se cruzavam em todas as direções e, para Belgrieve, parecia que estavam se emaranhando na trama. No entanto não poderia ceder à pressão — não agora. Belgrieve respirou fundo. Seus ouvidos estavam cheios do assobio do vento que soprava.
○
Angeline, que acordou antes do sol nascer completamente, sentiu-se bastante entediada ao sentar-se de pernas cruzadas na cama. A luz fraca que entrava por baixo das cortinas fechadas parecia ter um tom azulado, como se estivesse no fundo do mar.
Seu quarto tinha dois beliches e foi feito para abrigar quatro pessoas. Kasim disse que dormiria na sala comunal, amontoado com outros viajantes, enquanto Touya e Maureen reservaram um quarto para si. Sei que os dois são parceiros ou algo assim, mas um homem e uma mulher dormindo juntos no mesmo quarto é escandaloso, pensou Angeline, com as bochechas ficando um pouco vermelhas.
Seu grupo havia se separado na noite anterior e ido para suas respectivas camas, porém Angeline se sentiu inquieta por um motivo ou outro, e já era bem tarde quando por fim cochilou, apenas para acordar cedo também. Ela estava desprovida de compostura. Esse sentimento me lembra de quando eu estava começando, pensou Angeline, coçando a cabeça. Sua mão deslizou pelo cabelo preto para suavizar seu pequeno problema de cabeceira.
Do beliche acima podia ouvir sons leves de farfalhar.
“Ange? Tá acordada?”
“Sim... Você também, Maggie?”
O rosto invertido de Marguerite espiou Angeline, seu cabelo liso e prateado pendurado como cortinas.
“Vamos nos encontrar com Bell hoje, certo? Hehehe, mal posso esperar para ver o que acontece. Hey, como era Satie?”
“Bem, não a via muito... Porém era bonita e tinha olhos gentis.”
Os próprios olhos de Marguerite eram mais aguçados; por outro lado, os contornos suaves e curvos dos olhos de Satie deram-lhe uma primeira impressão mais suave — embora houvesse fogo por trás deles, evidenciando uma vontade forte. E, no entanto, aqueles mesmos olhos também estavam cheios de amor e carinho enquanto cuidava das gêmeas Hal e Mal.
Deixando de lado se Satie será minha mãe ou não, quero vê-la de novo, pensou Angeline enquanto apoiava o queixo nos travesseiros que segurava contra o peito. Quero o antigo grupo do pai reunido outra vez e quero ouvir as histórias que têm para contar. Quero ouvi-los em Turnera, se possível, em frente à lareira da nova casa. A cidra ficará especialmente deliciosa junto ao fogo.
Enquanto Angeline se perdia em suas imaginações, Marguerite desceu ágil do beliche de cima. A elfa olhou para Angeline por um momento e depois a cutucou.
“Tem certeza que dormiu o suficiente? Sua cabeça está nas nuvens.”
“Estou bem e você? Não está com sono?”
“De jeito nenhum. Quero ir lá e ir já.” disse Marguerite, esfregando as mãos com impaciência antes de esticar as costas e as pernas.
Eu gostaria de ser tão simples quanto Maggie... Angeline respirou fundo através do travesseiro, notando que este cheirava igual ao seu próprio cabelo.
Um tempo depois, Anessa e Miriam também acordaram. Elas estavam se preparando para ficar apresentáveis quando alguém bateu na porta. Angeline abriu e encontrou Kasim parado ali, parecendo sonolento.
“Oi, conseguiu dormir um pouco?” ele a perguntou.
“Um pouco... E você?”
“Não me sinto como se tivesse feito isso... Bem, tenho certeza que vou acordar enquanto caminhamos.” resmungou Kasim, que deu um grande bocejo e enxugou as lágrimas dos olhos. “Tudo bem, então irei para Salazar.”
“Sim, boa sorte.”
“Farei o que puder, contudo... Não espere muito. Até mais. Façam o seu melhor também.”
Kasim saiu com um aceno despreocupado de mão. No momento em que saiu, Touya e Maureen apareceram.
“Bom dia a todos.”
“Bom dia. Como estão seus ferimentos, Touya?”
“Estou bem. O elixir de Maureen ajudou.”
“Vamos nos apressar para que possamos ter uma boa refeição com a Sra. Satie.” declarou Maureen, cerrando o punho. Touya balançou a cabeça, sabendo que não havia como pará-la.
De sua parte, Angeline riu ao ver a cena e depois voltou para o quarto compartilhado.
“Anne, tudo bem?”
“Pronta para ir.” disse Anessa, jogando sua pequena bolsa por cima do ombro.
“Então vamos embora.”
Junto com Touya e Maureen, Anessa iria para a guilda dos aventureiros. No início, pensaram que iriam se separar após se reunirem com Belgrieve e Percival, entretanto o tempo era um recurso limitado. Não havia como saber quando de fato conseguiriam se reunir, então talvez fosse melhor reunir o máximo de informações possível para compartilhar quando eles voltassem a ficar juntos.
Miriam sorriu e, colocando seu grande chapéu, enfiou o dedo na bochecha de Anessa.
“Você vai ficar bem, Anne? Não se sentirá sozinha? Quer que eu te acompanhe?”
“Não, estou bem. Na verdade, estou mais preocupada com você.” respondeu Anessa, cruzando os braços na frente do peito com um sorriso irônico no rosto.
O grupo que ia ao encontro de Liselotte consistia em Angeline, Miriam e Marguerite. Mesmo que Belgrieve provavelmente se juntasse a elas depois, este era um grupo um tanto — ou melhor, consideravelmente — problemático no que diz respeito à Anessa.
Angeline fez beicinho.
“Está bem. Conversar com Lize é divertido. Anne é mais adequada para um lugar problemático como a guilda.”
“Esse não é o problema, é...? Bom, de qualquer forma, seu trabalho é ir até Lize, Ange. Então, só resta eu. Merry e Maggie não conseguiriam reunir nenhuma informação decente.” Anessa ignorou os protestos chorosos de Miriam e Marguerite para se dirigir a Angeline. “Começarei perguntando sobre quaisquer movimentos não naturais em torno do príncipe herdeiro ou se alguma coisa no império mudou há pouco tempo. Parece bom?”
“Sim, isso deve estar bem. Boa sorte, vocês três.”
“Sim, senhora. Pode contar conosco!”
“Srta. Angeline, a propriedade do arquiduque fica perto do palácio. Tome cuidado.”
“Sim. Estarei alerta. E com isso, o grupo de Anessa estava a caminho.”
Angeline trocou olhares com Miriam e Marguerite.
“Deveríamos... Ir também?”
“Parece o momento certo. Não adianta ficar sentado aqui.”
“Estou ansiosa para fazer qualquer coisa — não consigo me estabelecer aqui. Vamos, depressa.”
Depois de decidirem, pouco restou para Angeline dizer sobre o assunto. Assim, a última das três equipes deixou a pousada.
A capital imperial era um lugar animado pela manhã. Abaixo de cada beiral havia fileiras de barracas de comida enchendo o ar de vapor e aromas sedutores. O grupo de Angeline não encontrou alojamento no bairro residencial; esta era uma zona comercial, onde grandes lojas e fábricas se intercalavam com pousadas e bares que atendiam aos viajantes. Havia hordas de pessoas indo e vindo em todos os sentidos. Há lugares como este em Orphen também. Acho que algumas coisas permanecem iguais, não importa aonde vá, percebeu Angeline.
As três compraram comida no caminho e tomaram café da manhã enquanto caminhavam.
Gradualmente, a agitação do centro da cidade pareceu desaparecer à medida que os arredores foram substituídos por paredes recém-pintadas em branco puro e edifícios intrincadamente projetados com exteriores de tijolos de cores diferentes reunidos como murais. Elas haviam encontrado o caminho para as propriedades da nobreza da capital. Longe de seus alojamentos, o caráter da cidade mudou de animado para tranquilo.
De dentro de uma carruagem que passava por elas na estrada, uma jovem com um lindo vestido lançou lhes um olhar desconfiado. Miriam olhou ao redor, inquieta.
“Estivemos aqui ontem, porém... É mesmo estranho.” murmurou. “Por que é tão perturbador quando está tão silencioso?”
Angeline concordou.
“Eu te entendo... É impossível relaxar aqui.”
“Acham mesmo? Penso que é bastante bonito.” apenas Marguerite parecia perfeitamente à vontade. Pensando bem, essa moleca é na verdade da realeza, não é? Angeline refletiu enquanto avaliava a princesa elfa caminhando ao seu lado. Sim, não consigo vê-la assim.
De vez em quando, as três trocavam algumas brincadeiras enquanto caminhavam pela estrada um pouco inclinada. Depois de quase uma hora, estavam diante da villa do arquiduque, tão grande quanto da última vez que a visitaram. As garotas ficaram impressionadas com a ideia de algo tão vasto ser uma mera villa.
De qualquer forma, o arquiduque raramente sai de seu território. Não é um desperdício torná-lo tão grande? Angeline se perguntou. Contudo refletiu sobre o que Gilmenja lhe dissera antes: era uma forma de demonstrar poder e autoridade.
Depois de bater na porta, Sooty saiu para cumprimentá-las.
“Olá, Sooty.”
“Olá para você também. São só vocês três hoje?”
“Sim. Lize está ocupada?”
“Para ser honesta, Lize nunca está ocupada. Hoje ela foi convocada para um chá ou algo assim... Contudo quando souber que vocês estão aqui, tenho certeza que vai só pular e vir aqui. Bem, entrem.” disse Sooty, acenando para passarem pela porta.
Angeline observou a decoração que continuava tão vistosa como sempre. Depois de dar algumas voltas e subir um lance de escadas, foram conduzidos a uma sala no final do corredor.
Fuligem bateu na porta.
“Senhorita, a Srta. Angeline veio com suas amigas.”
“Hã? Ange? Espere, me de um segundo!”
Houve uma batida alta e passos pesados vindos de dentro antes que a porta fosse aberta e Liselotte explodisse correndo em suas roupas íntimas.
“Você veio de novo! Não sabe como estou feliz em te ver, Ange!”
“Lize... Está trocando de roupa?”
Pela porta aberta, Angeline pôde ver as criadas que a ajudavam, perplexas. Sooty colocou uma mão cansada na testa.
“Agora olhe aqui, senhorita... Só porque somos todas meninas aqui, isso não significa...”
“Ah, desculpe! Eu estava tão feliz.” disse Liselotte, envolvendo Angeline corada em um abraço. Uma das criadas chamou a atenção e correu até sua patroa para colocar um cobertor sobre os ombros da garota.
“É bom ser cheia energia.” Marguerite riu. “Se está se arrumando, deve estar indo a algum lugar, certo?”
“Bem, estou... Não que realmente queira...”
“Você tem que ir?” Miriam perguntou, inclinando a cabeça.
Liselotte enrolou o cobertor em volta do corpo. Ela deu um sorriso tímido e disse.
“Bem, se insistisse de verdade, talvez não precisasse, mas... Sou filha do arquiduque. Preciso ser adequada quando se trata dessas coisas.”
“Oh, vejo que enfim amadureceu um pouco. As maravilhas não param.” disse Sooty, parecendo muito entretida.
Liselotte estufou as bochechas taciturnamente.
“Quero dizer, Ange e todos os seus amigos são todos muito firmes e confiáveis. Preciso aprender com deles.”
“Está me fazendo corar...” Angeline coçou a bochecha, parecendo um pouco feliz. Ela sabia muito pouco sobre a sociedade nobre, então não entendia muito bem a importância de uma festa do chá, porém sentiu alguma alegria em saber que Liselotte havia amadurecido um pouco à sua maneira. Ao ouvir que era consequência de sua própria influência, não pôde deixar de se sentir um pouco exultante, mesmo que, em primeiro lugar, nunca tivesse tido a intenção de se apresentar como um modelo particularmente bom.
Liselotte, aparentando ter sido atingida por uma percepção repentina, olhou para Angeline com olhos tímidos e apologéticos.
“Então, bem... Sabe, isso significa que tenho que sair hoje...”
“Entendo... Não, não se preocupe. Estou aqui porque o pai disse que queria falar com você.”
“Seu pai? Ele está aqui?”
“Acho que está vindo para cá... Sei que pode ser um pedido presunçoso, contudo podemos esperá-lo aqui?”
Se Belgrieve esperasse falar com Liselotte, estaria indo para a mansão. Essa era a melhor aposta deles — não havia muito mais que pudessem fazer sem meios de contatá-lo.
Liselotte não demonstrou a menor relutância. Na verdade, seus olhos pareciam brilhar quando assentiu.
“Claro, claro! Devo voltar à noite, então ficaria muito feliz se pudessem esperar por mim também!” ela se virou para sua atendente. “Sooty, vamos para a Casa Berengaria hoje. Deveria estar bem ali.”
“Eu sei.”
“Então não precisa vir comigo. Fique com elas e atenda às suas necessidades.” Angeline levantou as mãos com pressa. “Não posso pedir que faça isso...”
“Está bem! De vez em quando, quero me livrar do meu cão de guarda irritante e abrir minhas asas.” disse Liselotte com um sorriso travesso. Ela se virou para Sooty de novo e mostrou a língua.
“Vejo que está com uma língua e tanto.” comentou Sooty com um encolher de ombros. “Bem, uma vez que já se decidiu, não adianta discutir. Farei o que diz — contundo vai levar outra pessoa junto, não é?”
“Sim, sim, claro. Obrigado, Sooty. É disso que gosto em você.” disse Liselotte, rindo. “Bom, então, Ange, Maggie, Merry, tenham calma.” disse ela. Então, voltou para o quarto e fechou a porta.
Angeline e suas amigas trocaram olhares.
Miriam sorriu.
“Ela é muito fofa, aquela Lize.”
“Hehehe, gosto de como fica na ponta dos pés.” acrescentou Marguerite.
“Eu me sinto aliviada...” Angeline disse, rindo, antes de voltar sua atenção para Sooty.
“Sinto muito por isso, Sra. Sooty... Obrigado.”
“Está bem. Na verdade, sou eu quem está abrindo minhas asas agora.” Sooty abriu os braços o máximo que pôde. “Agora, não adianta ficar parado no corredor. Sigam-me.” Angeline assentiu e ficou atrás de Sooty. Ela podia sentir o tapete macio amortecendo seus passos até mesmo através das solas dos sapatos. Ao passarem por uma janela, olhou para fora e viu nuvens sombrias lançando sua escuridão sobre a cidade. Parecia que estava prestes a chover.
Nenhum comentário:
Postar um comentário