Capítulo 112: Resumindo, isso é o que o pai deve estar pensando
Resumindo, isso é o que o pai deve estar pensando, pensou Angeline enquanto estufava o peito com altivez.
“Se esse Benjamin for falso, sua posição como príncipe herdeiro é ilegítima.”
“Sim, então?”
“Se pudermos expor esse fato, poderemos impedir seus esquemas.”
“Como planeja fazê-lo?” curiosa, Marguerite perguntou com a cabeça inclinada.
Os olhos de Angeline vagaram.
“Hmm... Dizendo ao imperador que ele é uma farsa?”
Anessa suspirou e balançou a cabeça.
“Oh, vamos lá, como devemos fazer isso? Em primeiro lugar, o imperador não é o cara mais fácil de se ver...”
“E não vamos esquecer — você está praticamente proclamando que seu talentoso filho é uma farsa. É bem provável que vá apenas irritá-lo.” acrescentou Touya, fazendo Angeline fazer beicinho.
Miriam deu uma risadinha.
“Bom, este não é o trabalho certo para Ange — pensar nessas coisas, quero dizer.”
“Está bem. Tenho certeza de que o pai fará alguma coisa.” declarou Angeline. Ela sentou-se e afundou-se mesquinhamente na cadeira.
“Mas, sabe... Nunca dissemos a Bell onde nos encontrar. Mesmo que venham para a capital, como vai ser?” Marguerite perguntou. Ela balançou para frente e para trás na cadeira, as pernas raspando no chão.
“Pelo que disse, sua intenção é falar com Lize. Se não souber onde estamos, começará indo para a villa do arquiduque, imagino...”
“De qualquer forma, teremos que esperar até amanhã para vê-lo.”
“Isso mesmo. Embora poderíamos ter evitado todo esse problema se o velho Salazar tivesse se esforçado um pouco mais.” disse Kasim, coçando a barba. Assim que a comunicação com Belgrieve foi interrompida, Salazar caiu no sono em seguida, esparramando-se bem no centro do círculo mágico. Ao que tudo indicava, havia gasto muita magia e não acordava, não importa o quanto eles o sacudissem ou batessem. Por fim desistiram, deixando-o como uma causa perdida.
Embora o encontro inesperado de Angeline com Satie a tivesse deixado bastante nervosa, agora que podia sentar e relaxar na pousada, havia se acalmado bastante. Considerando que Belgrieve havia manifestado seu desejo de se encontrar com Liselotte, Angeline queria ir para a mansão do Arquiduque Estogal assim que a ligação fosse interrompida, porém Kasim a disse para esperar. Ele não se importava com o fato de ela estar tão entusiasmada, contudo não queria que Angeline trouxesse detalhes desnecessários e complicasse as coisas. Ainda era cedo para solicitar a cooperação de Liselotte.
Assim, reservaram um tempinho para discutir tudo em grupo e voltaram para a pousada. De qualquer forma, seria melhor esperar até que se reunissem com Belgrieve para que tivessem alguém com cabeça fria para mediar à discussão.
“Meu Deus... Nunca pensei que teria que ser eu quem manteria vocês sob controle. Não é para mim.” reclamou Kasim, soltando um grande bocejo e cruzando as mãos atrás da cabeça.
“Bem, você é o mais velho aqui. É lógico.” disse Miriam.
“Claro, sou o mais velho... No entanto ninguém além de Bell consegue manter essa ali na coleira.”
Marguerite deu um pequeno sorriso em resposta ao olhar penetrante de Kasim e cutucou-o.
“Oh, cale a boca. Estou bem ciente disso.”
Kasim tirou o chapéu e girou-o no dedo.
“Dito isso.” Continuou. “As coisas estão acontecendo mais rápido do que imaginei. É um verdadeiro incômodo, sério. Nem processei tudo ainda.”
Eles vieram para a capital na esperança de encontrar alguma informação sobre Satie, apenas para encontrar a própria mulher. Além do mais, havia uma grande chance de que tivessem que travar as lâminas com o príncipe herdeiro. Angeline lembrou-se do sorriso triste que viu no rosto de Satie quando se separaram — tão triste que não suportou olhar para ele.
“Pelo que ouvi, nossos inimigos serão formidáveis, certo? Hehehe, justo quando estava ficando entediada.” declarou Marguerite, batendo o punho na palma da mão aberta.
“Pensando bem, Touya, você disse que estávamos enfrentando alguém que conhecia, certo? Quer dizer aquele cara de preto? Com o rosto cheio de cicatrizes e um alfanje quebrado?” perguntou Angeline.
Touya fechou os olhos.
“Certo.”
“Uma cicatriz e um alfanje quebrado.” repetiu Kasim pensativo. “Soa familiar... Está falando sobre o Carrasco?”
Touya assentiu.
“O próprio. Hector, o Carrasco.”
“O Carrasco...” os olhos de Anessa se arregalaram. “Não é um aventureiro Rank S?”
“Ele é um aventureiro...?” disse Angeline.
“É sim.” disse Kasim, baixando a cabeça em reconhecimento. “Ouvi dizer que é frio e cruel, mas incrivelmente habilidoso também. Aventureiros lutam contra monstros, na maioria das vezes, porém seu caso é particular, pois fez seu nome como um caçador de recompensas exterminando bandidos e, bem, há muitos rumores ruins a seu respeito...”
“Como o quê?” Marguerite perguntou, curiosa.
“Dizem que está em busca de sangue. O tipo que massacra bandidos mesmo depois que eles largam as armas e se rendem. É apenas um boato, contudo dizem que até massacrou os reféns uma vez. O assassinato indiscriminado foi o que lhe rendeu a reputação de Carrasco. Coisas desagradáveis.”
Kasim contou tudo em tom jovial e provocador, no entanto Angeline refletiu com a testa franzida. Ela também eliminou tropas de bandidos — quando salvou Seren, por exemplo. Entretanto, esses bandidos não se renderam, e resistiram até o fim. Não havia escolha senão matá-los. Angeline não sabia o que teria feito se estivessem à sua mercê, mas nunca gostou de matar pessoas. Certamente não pessoas indefesas — só de pensar lhe dava arrepios.
Miriam franziu a testa.
“Estamos fazendo de alguém assim um inimigo? Acho que vamos lutar com ele, então...”
“É possível. Duvido que seja viável resolver isso sem lutar...”
“Eu cuido dele.” disse Touya. “Todos os outros podem se concentrar em algo mais importante.”
Angeline balançou a cabeça gentilmente.
“Eu não acho que você possa fazer isso sozinho... Lá atrás...”
“Não vou perder desta vez. Não importa o que aconteça.” Touya insistiu com uma terrível expressão desesperada no rosto.
Kasim cutucou-o na bochecha.
“É ainda menos provável que ganhe com uma determinação tão cega. Não subestime seu oponente.”
“Como estão conectados exatamente?” Anessa sondou. “Quero dizer, você parece obcecado.”
Touya fechou os olhos.
“Há algum tempo... Ele matou alguém precioso para mim.”
Angeline prendeu a respiração e Maureen olhou para Touya com preocupação.
Touya abriu os olhos e sorriu.
“Está tudo bem. Não vou atacá-lo de forma imprudente. Posso lhe prometer isso.”
“Touya...”
“Estou bem, Maureen. Não me olhe assim.”
Por um tempo, todos ficaram em silêncio. Angeline não tinha ideia do que dizer a Touya, nem ninguém.
“Bell... Apresse-se. Não fui feito para lidar com essas coisas.” Kasim murmurou baixinho, espalmando o rosto.
Marguerite virou a cadeira para sentar-se de costas e apoiou o queixo nos braços cruzados no encosto.
“Digamos que deixemos os detalhes mais sutis para Bell. Seguimos não podendo evitar a batalha por completo, certo? Então, é melhor sabermos o máximo que pudermos sobre o inimigo. O Carrasco é um espadachim?”
“Ele usa uma espada, todavia também é versado em magia negra. Pode convocar mortos-vivos das sombras para lutar em seu lugar e dar presença às sombras para usá-las como seus próprios braços e pernas.”
“Wow, parece um adversário difícil...”
“Contudo é útil saber o que estamos enfrentando. Seria perigoso desafiá-lo de outra forma.” disse Anessa. Ela pegou seu arco e começou a inspecioná-lo.
Essa visão foi um lembrete repentino para Angeline, que pegou sua bolsa e tirou suas ferramentas de manutenção de espada. Sua mão espalhou óleo no aço descoberto e limpou-o com cuidado usando um pano. A perspectiva de enfrentar um oponente poderoso tornava muito mais perigoso negligenciar sua arma. Estaria colocando sua vida em risco se o fio da lâmina fosse menos afiado no momento crucial.
Ter outra coisa em que se concentrar a ajudou a recuperar a compostura. Acho que ainda estava nervosa, percebeu Angeline. Ouvir a história de Touya foi um lembrete poderoso de que todos pareciam ter seus próprios fardos para carregar.
Por um tempo, Kasim ficou sentado com os braços cruzados, imerso em pensamentos.
“Agora, vamos descobrir o que sabemos juntos.” disse ele, desviando enfim os olhos de suas reflexões.
“Deixando de lado os ressentimentos pessoais, temos o objetivo comum de ajudar Satie. Estamos todos de acordo?”
Todos assentiram. Na verdade, embora o seu inimigo fosse formidável, o seu objetivo final não era de fato derrubar o Império Rodesiano. Um confronto com Benjamin e Schwartz parecia inevitável, no entanto esse não era o objetivo.
Os olhos de Anessa vagaram, uma expressão conflituosa no rosto.
“Pelo que Ange e Touya disseram, Satie está em desacordo com o príncipe herdeiro e Schwartz há muito tempo. Mesmo se conseguirmos tirá-la da cidade, eles poderão nos perseguir, a menos que resolvamos os problemas subjacentes...”
“Aposto que sim. Teremos que enfrentá-los. Mas enquanto esmagarmos o chefão, não teremos que perder nosso tempo lutando contra mais ninguém. Chegar lá exigirá um pouco de planejamento.”
“Certo, basta derrubar essa farsa, e o Schwartz também, e poderemos evitar outras brigas desnecessárias.” disse Miriam.
Angeline olhou para a lâmina polida da espada antes de embainhá-la e colocá-la de lado.
“Espero... Poder encontrar Satie de novo.” então poderemos trabalhar juntos adequadamente e lutar lado a lado... ela pensou, suspirando.
“Outra dimensão, hein...” Touya cruzou os braços, olhando para baixo. “Tenho a sensação de que Salazar poderá fazer algo a respeito.”
“Tem certeza que devemos confiar nesse cara? Ele continuou divagando sobre quem sabe o quê. Com todas as suas reclamações inúteis, demorou muito até que finalmente nos conectasse com Bell.”
“É útil tê-lo a bordo, contudo não se pode esperar muito dele.” concluiu Kasim, vestindo o chapéu mais uma vez.
Mesmo que derrotassem Benjamin e seus comparsas, seria inútil se Satie ainda se recusasse a encontrá-los. Eles também não podiam deixar Benjamin chegar até Satie primeiro. Angeline segurou a cabeça, refletindo sobre o que deveria fazer.
“Precisamos começar... Coletando mais informações.” concluiu ela.
“Parece correto. Touya, você pode conseguir algumas informações na guilda, certo?” disse Anessa.
Touya assentiu.
“Não sei se será útil, no entanto posso reunir algumas informações aí. Talvez eu tenha que pagar algum dinheiro, no entanto.”
“Então precisaremos ir até a mocinha e a guilda. Talvez devamos nos separar.” sugeriu Maureen.
Angeline logo concordou com esta proposta — com tantas pessoas com quem trabalhar, seria muito mais eficiente separar-se. Seu inimigo não iria só ficar sentado os esperando, então agora não era hora de levar as coisas devagar e com firmeza.
“Para começar...” disse Kasim, apoiando a bochecha. “Vou conversar um pouco mais com Salazar — talvez consiga uma linha direta com Satie.”
“Então precisamos de uma equipe para a villa do arquiduque, uma equipe para a guilda e... Kasim.”
“Uh-huh. Tem certeza de que não ficará solitário, Kasim? Posso me juntar a você se quiser.” Marguerite provocou.
“Tá, não se superestime, menina.”
“Precisaremos de Ange na casa do arquiduque. Ela é nossa melhor aposta para convencer Lize.”
“E encontrará Bell lá se tudo der certo.” acrescentou Miriam provocativamente.
Angeline estufou as bochechas.
“É apenas uma coincidência. Encontrar-se com Lize é uma tarefa importante.”
“Tão importante quanto encontrar Bell, até.”
“Cala a boca, Maggie!”
“Precisaremos de Touya e Maureen na guilda, então deve resolver tudo... E nós, Merry?”
“Vamos ver. Talvez queiramos ficar com Ange, já que somos membros do seu grupo.”
“Não acha que o Sr. Percival é suficiente nesse aspecto? Já que ambas as equipes poderiam entrar em um cenário de combate, deveríamos mantê-lo equilibrado, suponho. E será melhor ter alguém que entenda claramente o objetivo conosco.” disse Touya.
De fato, aqueles que compreenderam firmemente esse objetivo foram Belgrieve, Kasim e Percival. Afinal, estavam lá para rever sua antiga companheira. Eles teriam que esperar até encontrarem Belgrieve para discutir os detalhes. Parecia que Belgrieve estava vindo com uma ajudinha de alguém, e havia uma chance de seu grupo se reunir com Ishmael e obter sua cooperação também. Ainda não havia como dizer como as coisas iriam acontecer.
Angeline indicou seu consentimento antes de colocar as mãos na mesa.
“Uma coisa é clara. Teremos que levar a sério amanhã.”
“Tudo bem! Que tal uma bebida para nos animar, então? Há um bar do outro lado da rua, certo?”
“Vamos, vamos. Estou morrendo de fome.” declarou Marguerite, levantando-se de um salto.
Maureen fez o mesmo logo depois. A cabeça de Touya pendeu cansadamente, enquanto Angeline e seus membros do grupo riram da demonstração de entusiasmo antes de se juntarem a elas.
○
Belgrieve não poderia dizer que dormiu profundamente desde que foi para a cama mais cedo. Seu corpo havia relaxado, mas parecia que sua mente estava acelerada o tempo todo. O menor som foi suficiente para despertá-lo.
Ele sabia que havia fechado os olhos há algum tempo, porém agora que os abriu de novo, ficou claro que o mundo lá fora ainda estava velado pela escuridão. Não havia o menor sinal de luz solar fora das cortinas grossas. Maitreya estava murmurando para si mesma enquanto dormia, e podia ouvir o som dela rolando. E no momento em que começou a prestar atenção ao leve clamor do bar do primeiro andar que permeava as tábuas do piso, foi como se as distrações tivessem tomado conta de seus ouvidos e se recusassem a perder o controle.
Sei que estou com sono, sem dúvida, pensou Belgrieve, um tanto irritado com sua incapacidade de adormecer. Nesse ritmo, isso vai atrapalhar o que tenho que fazer amanhã.
Esta era uma pousada barata, é certo, contudo os cobertores eram de qualidade aceitável, o travesseiro era macio e os lençóis eram sedosos. Na verdade, era bastante confortável deitar-se de bruços com o rosto apoiado neles. No entanto, tudo isso não foi suficiente. Parecia que seu desespero para dormir só estava tornando mais difícil para fazê-lo. Estava andando em círculos.
Estou muito velho para ficar tão inquieto... Belgrieve pensou consigo mesmo enquanto se virava de lado.
A cama vizinha estava vazia. Parecia que Percival ainda não havia retornado. Eu o disse para não beber muito, mas talvez não tenha passado tanto tempo. Talvez o tempo esteja passando muito mais devagar do que pensei.
Belgrieve tornou a se virar, desta vez com o rosto para cima, e olhou para o teto de madeira. A escuridão indefinida acima permitia que as vigas de madeira se destacassem de forma distinta. Ele fechou os olhos mais uma vez.
Por trás das pálpebras, vislumbrou Satie. Ele, Kasim e Percival — todos envelheceram. Entretanto Satie é uma elfa. Com o passar dos anos, sua aparência não teria mudado tanto quanto dos demais, com certeza. Ela ainda teria seu cabelo prateado e sedoso; seus olhos esmeralda, com seu brilho travesso; seus braços ágeis — tão pálidos quanto porcelana branca — descendo até as pontas dos dedos delgados; e sua risada estrondosa e inocente... Embora essas fossem memórias de mais de vinte anos atrás, elas ainda voltavam com uma clareza surpreendente.
Pensando bem, houve uma vez em que a ouvimos gritar quando estava tomando banho no rio. Nós três corremos até lá com armas nas mãos... Então descobrimos que ela tinha acabado de pisar em um sapo na água. Todos nós rimos disso. Belgrieve fechou os olhos freneticamente, então só viu por um breve instante, todavia a imagem de seus membros brilhantes e molhados, louros e lindos, ficou gravada em suas retinas muito depois daquele momento.
Eu era tão jovem, pensou com um bocejo. Ele puxou as pernas para poder colocar a coberta sobre si mesmo. As lembranças eram calorosas e reconfortantes; parecia que sua consciência estava derretendo devagar.
No entanto, no momento em que sentiu que poderia enfim adormecer, a grande espada apoiada na parede começou a rosnar de forma audível. Belgrieve se levantou de repente. Estava certo de que sentiu algo no canto escuro.
De repente, sentiu uma dor aguda na perna direita. Sua mão estendeu-se por instinto, mas não agarrou nada — Belgrieve já havia removido a prótese da perna de pau. Esta era uma dor fantasma. Sua perna de pau, que estava apoiada na cama, fez barulho ao cair no chão.
“Ugh...” Belgrieve segurou o coto, cerrando os dentes. Suor começou a brotar em sua pele apesar do frio persistente. Por que isso tinha que acontecer agora, num momento como este?
“O que? E agora?” Maitreya, ainda enrolada debaixo das cobertas, levantou a cabeça para ver o que estava acontecendo. Seus olhos se fixaram no canto do quarto, uma expressão de choque se espalhando por seu rosto.
“Uma maldição!”
Naquele mesmo canto, havia uma figura sombria com uma capa esfarrapada, sentada sobre as patas traseiras. Às vezes, os contornos de seu corpo ficavam borrados como névoa, pedaços seus se quebrando em gotas pretas antes de se juntarem ao resto do corpo. Parecia estar murmurando algo baixinho.
“Frio... Frio...”
Maitreya saltou da cama e mergulhou sob as cobertas de Belgrieve. Ela agarrou a sua manga e puxou-a.
“Por que está parado? Você vai morrer!”
“Espere... O que é aquilo...?”
“É um amaldiçoado. Uma maldição mortal com forma física... Benjamin ou Schwartz, um deles deve ter enviado para me matar...”
O rosto de Belgrieve se contorceu com as dores fantasmas quando estendeu a mão, mal conseguindo pegar a perna de pau. Porém, a dor perfurou sua perna até o topo de sua cabeça. Ele poderia suportar apertando a prótese, contudo não estava em condições de recolocá-la.
Maitreya encarou-o frenética, seus olhos por vezes fitando o amaldiçoado. Ele avançava devagar, pouco a pouco, enquanto rastejava pelo chão. Os rugidos da espada de Graham ficaram cada vez mais ferozes e, mesmo através da bainha, ficou claro que a lâmina estava brilhando.
“A influência da espada sagrada está o retardando...?”
“Maitreya...” Belgrieve por fim conseguiu prender a perna, no entanto a dor não diminuiu. Ele falou em meio à imensa dor. “A espada...”
“E-Eu não posso... Sou uma diabrete. Não posso tocá-la.”
A grande espada pulsava com a mana purificadora de monstros de um elfo e aparentemente não era adequada para Maitreya. Belgrieve amaldiçoou suas próprias inadequações e sua incapacidade de agir em um momento tão crucial.
Naquele momento, a porta se abriu e alguém entrou no quarto. Em um piscar de olhos, uma espada branca deslumbrante apunhalou o amaldiçoado. Houve um som peculiar, como se a própria realidade estivesse distorcida, antes que o amaldiçoado se transformasse em pó preto, que por sua vez foi sugado pela espada.
Belgrieve sentiu sua dor fantasma diminuir aos poucos. Sua respiração foi contida para aguentar, e só agora podia fornecer aos pulmões o ar de que precisavam. Seus ombros subiam e desciam a cada respiração. Embora não soubesse o que havia acontecido, estava vagamente consciente de que o perigo havia passado.
“Bell!” Belgrieve olhou para ver Percival atravessando a porta.
“Um amaldiçoado? O que aconteceu?”
“Percy...? Fomos atacados, mas... Não foi você quem nos salvou?”
Belgrieve tinha certeza de que foi Percival quem correu, porém parecia que não era o caso. Percival olhou em volta com curiosidade.
“Ele se levantou de repente e subiu correndo as escadas até o segundo andar. Algo parecia errado, então eu o segui...”
Percival apontou com a cabeça para o menino com orelhas de coelho, que mantinha um olhar distraído onde a maldição havia desaparecido. Belgrieve já o tinha visto uma vez — era o Templário de Viena que estivera no bar. Suas mãos ainda seguravam o punho da espada firmemente. O metal da lâmina tremeluziu em preto algumas vezes antes de retornar à cor do aço frio. Mais uma vez, a grande espada de Graham rosnou.
Tão furtivamente quanto pôde, Maitreya se escondeu atrás de Belgrieve, colocando o lençol sobre a cabeça para esconder as orelhas. Belgrieve se moveu para ajudá-la a permanecer invisível antes de falar.
“Você nos salvou. Como podemos agradecer?”
O garoto não disse nada enquanto se virava para olhar para Belgrieve. Sua expressão estava vazia, como se nada lhe interessasse.
Belgrieve também ficou em silêncio, sem saber o que dizer a seguir. Depois de alguns momentos, o garoto piscou e suas orelhas tremeram. Então, embainhou a espada em seu quadril e saiu do quarto. Só depois que o menino foi embora a grande espada finalmente ficou em silêncio. O único som que restou foi o leve clamor do bar, que parecia vir de um mundo distante.
“Para um homem que serve a deusa, ele carrega uma espada perigosa.” murmurou Percival, olhando para a porta agora vazia.
Firmando a respiração, Belgrieve levantou a cabeça.
“Perigosa? Como assim?”
“Essa é uma espada amaldiçoada, se é que alguma vez vi uma. Presumo que absorva a mana de qualquer inimigo que corte. Ela tem uma presença sinistra — o completo oposto da espada do Paladino. Nunca pensei que veria um Templário carregando algo assim por aí.”
Depois de vasculhar ao redor com nervosismo, Maitreya correu até Percival e vestiu sua camisa.
“É perigoso aqui.” disse ela. “Precisamos sair ou seremos atacados outra vez.”
“Não seja estúpida. Se eles quisessem mesmo nos apagar, não teriam enviado aquela coisinha. Deve ter estado aqui por outra coisa. Não precisa se preocupar.”
“Você não tem nenhuma evidência disso. Fomos salvos por coincidência porque o Templário veio para cá.”
“Se ele não tivesse vindo, eu teria vindo. Não sou bom o suficiente para você? Hã?”
“Não foi o que eu quis dizer... Ah, não há como argumentar com você.” Maitreya franziu os lábios.
Sentando-se na cama, Percival olhou para Belgrieve.
“É sua perna?”
“Dor fantasma. Acontece de vez em quando... Já faz um tempo que não fica tão ruim.”
“Entendo... Vá dormir. Estou aqui. Não precisa se preocupar.”
“Não estou preocupado... Mas não acho que conseguirei dormir por um tempo.” disse Belgrieve, dando um sorriso irônico. Ele foi até a beira da cama para poder colocar o pé no chão. Estava bem acordado agora e sabia que a sonolência o escaparia, não importa quanto tempo permanecesse na cama.
“Mesmo assim, é melhor ficar deitado do que sentado.” disse Percival, encolhendo os ombros. “Quer que eu cante uma canção de ninar para você?”
“Haha, não é uma má ideia... Então, qual é a sua opinião sobre o assunto, de verdade? Acha que eles sabem onde estamos?”
“Não sei dizer. Talvez estejam observando para ver o que faremos... Bem, não estou tão preocupado com isso. E você?”
Belgrieve coçou a barba.
“Estamos em seu território. Não sei se estou pensando muito fundo a respeito, porém acho que é seguro presumir que sempre saberão onde estamos. Da minha parte, acho perigoso presumir que eles não têm informações sobre nós.”
“Entendo. Bem, parece correto pra mim. Estou de acordo — vamos em frente. Sim, vamos fazer isso. Agora vamos embora!” Maitreya entrou na conversa.
Os olhos de Percival se estreitaram enquanto dirigia um olhar de soslaio para Maitreya.
“Oh, não tenho tanta certeza. Se fossem sérios, o ataque já teria ocorrido há muito tempo. Se fosse para ser um assassino, estão realmente nos subestimando. Seja lá o que for, não vejo razão para ter medo.”
“Hmm... Bem, duvido que correremos muito perigo enquanto você estiver por perto.”
“Alguém entende! Ficar nervoso assim é apenas uma perda idiota de tempo e energia. É preciso dormir sempre que houver a oportunidade.”
“Por favor, leve isso a sério...” Maitreya implorou. “Minha vida está em jogo aqui!”
“Vejo que gosta mesmo de opinar sobre tudo. Não pode se acalmar um pouco?”
A resposta de Maitreya foi atacá-lo com os punhos, então Percival respondeu na mesma moeda. Ele estendeu a mão grande e, agarrando-a pela cabeça, manteve-a afastada com o braço esticado. A diabrete só conseguiu gritar de frustração.
De sua parte, Belgrieve não tinha tanta certeza se tinha sido um ataque direcionado ou não, contudo agora que estavam tão perto do inimigo, era apenas uma questão de tempo até que suas forças colidissem. De fato não havia tempo para vadiar. Ele suspirou baixinho. Precisamos nos encontrar com Ange e rápido.
Belgrieve ainda não sentia sono, no entanto se deitou e olhou para o teto. Não querendo repetir o que acabara de acontecer, desta vez deixou sua prótese colocada. Enquanto isso, Percival levantou-se da cama e sentou-se numa cadeira. Pegando uma garrafa de destilado que normalmente guardava consigo, serviu-se de um pequeno copo, tomando pequenos goles. Maitreya pareceu perdida por um momento, mas no final, ela se resignou a se esconder sob as cobertas da cama e se enrolou como uma bola mais uma vez.
Belgrieve fechou os olhos. Era possível ouvir sua própria respiração e as batidas de seu coração. Ouvia o som áspero quando a cadeira de Percival se movia, o som do copo sendo colocado sobre a mesa e o som da garrafa sendo engolida sempre que Percival enchia o copo de novo. Podia ouvir Maitreya se revirando por algum tempo, porém logo a ouviu cochilar também.
Ela é irresoluta, contudo ousada das maneiras mais estranhas, observou Belgrieve. Ele se encontrou relaxando um pouco. Talvez a presença do Percival aqui esteja me deixando à vontade.
No entanto, ainda estava bastante inquieto e não conseguiu evitar quando sua mente começou a ponderar todo tipo de coisas. Seus pensamentos corriam de uma noção para outra, até que enfim a conexão de um pensamento para outro passou de vaga a inexistente.
Que estranho... E com esse último pensamento, Belgrieve estava dormindo. Na próxima vez que acordou, Percival estava roncando em sua cadeira e uma luz fraca penetrava no quarto através das cortinas.
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