Capítulo 124: Raios de luz
“Tantas almas com características de heróis se reuniram, mas o fluxo de eventos não cresceu de forma significativa. Isso significa que esse ponto não era o ponto terminal.”
“Porém foi um ponto de passagem, com certeza! De fato! Oh, Chama Azul, que fluxo você ve com esses olhos? O caminho para Salomão ainda está muito longe para ser visto ou está mais perto do que imaginamos? Independentemente disso, não tenho dúvidas de que essa garota está no centro deste vórtice.”
“O método que Salomão usou para abrir um buraco no espaço não era de natureza mágica. Presumo que o maior fator foi uma explosão de emoções fortes, não muito diferente da loucura... Sua batalha contra o mal nada mais foi do que um único fator. Se assim for, explicaria por que nada resultou deste incidente.”
“O caminho que leva até isso também é importante! Um vórtice é apenas um fluxo em espiral e, embora seus movimentos possam parecer que carregam coisas no mesmo lugar eternamente, a velocidade pode ser aumentada por mudanças tanto a jusante quanto a montante. Uma brecha no espaço, através de explosão e intensificação! Os incríveis poderes de Salomão e o lamento de sua alma devem ter se tornado um momento crítico em grandes eventos!”
“Talvez... Possamos recriá-lo em menor escala com seres inferiores. Muito menor, apenas com relações interpessoais...”
“O que pretende fazer agora?”
“Terei que continuar observando o fluxo. O que precisamos é de um empurrão no momento certo. Vou precisar julgar quando acontecerá.”
“Você também precisa da chave. Ainda não foi perdida. Ela pode ter as qualidades de uma heroína, contudo uma única elfa não seria capaz de quebrá-la! Não deixe o fluxo o engolir, Chama Azul — meu amigo!”
“Quem está chamando de amigo? Estou indo embora. Fique aqui agindo como um observador para sempre, pra mim pouco importa.”
○
Raios de luz perfuraram o véu de névoa matinal, fazendo brilhar o solo úmido abaixo. Embora as poças fossem escuras e marrons, suas superfícies brilhavam como espelhos imaculados quando iluminadas.
Deixando seus camaradas cansados para trás em seu quarto, Belgrieve saiu para o pátio da pousada. Ele sentou-se em um barril sob o beiral e respirou fundo o ar da manhã. Seus olhos observavam os viajantes madrugadores saindo, tendo terminado os preparativos. Podia ouvir as carroças se acotovelando e os cascos dos cavalos batendo contra o pavimento de pedra.
Belgrieve olhou para todo movimento com um estado de espírito sonhador. Por hoje, pelo menos, sentiu que poderia abrir mão do treinamento matinal — e mesmo assim, ainda acordava no mesmo horário por hábito. Seu corpo estava abatido e estava com muito sono, no entanto também achou que seria um desperdício apenas voltar a dormir.
Preciso agir de acordo com a minha idade, pensou, torcendo a barba, apenas para sentir alguém cutucando seu ombro.
“Você acorda cedo, Senhor Ogro Vermelho.”
“E você? Tem certeza de que não deveria estar dormindo?”
Satie riu enquanto se sentava ao lado de Belgrieve.
“Eu me senti um pouco nervosa. Sei que deveria estar muito cansada, mas... Sabe.”
“Hahaha! Me sinto da mesma forma. Porém não parece certo acordar diante de todos os jovens.”
“Hehe... Assim faz parecer que Percy e Kasim também são jovens.”
“Eles podem ser... Ainda são crianças no coração.”
“Então tem dois filhos enormes, hein? Isso parece estranho, vindo de um pai de verdade.”
Os dois trocaram um olhar e caíram na gargalhada.
Depois da longa batalha da noite anterior, o grupo voltou para a pousada antes de sair para comemorar em um bar que seguia animado. O reencontro dos quatro velhos amigos foi brindado, não apenas pelos próprios antigos aventureiros, como por Angeline e seus camaradas que se alegraram como se fosse o seu próprio reencontro.
Havia muito que conversar e todos sentiram que poderiam ficar acordados para sempre, entretanto tinham acabado de passar por uma luta de vida ou morte, então, assim que o álcool entrou em seus sistemas, todos logo apagaram como uma luz. Mesmo esses aventureiros do mais alto calibre não conseguiram vencer as tentações do sono.
A noite chegou e passou, e agora Belgrieve estava sentado ao lado de Satie em frente ao quintal encharcado de chuva. Ele encostou as costas na parede atrás.
“François vai ficar bem?”
“Ele parece acreditar que é um morto-vivo, todavia se fosse de fato, não poderia ter mantido esse nível de consciência. É possível que tenha sido corrompido pela necromancia enquanto estava em estado de quase morte, ou algo parecido. Acho que vai dar certo.”
“Entendo... É bom saber.”
Então Liselotte não terá que ficar triste... Belgrieve deu um leve sorriso.
“Mas não voltará a ser como era antes. Não foi o controle da mente, e sim a necromancia que o moveu. Significa que a grande maioria da carne de seu corpo deve estar morta. Há uma grande chance de alguns de seus membros terem perdido toda a sua energia vital, e não será surpreendente se tiverem que ser amputados.”
“Hmm... Enquanto seguir com vida, vai dar certo. Mesmo sem perna.”
Satie deu uma risadinha.
“Vindo de você, é bastante persuasivo... Tendo conseguido recuperar tanta mobilidade com essa sua prótese.”
“Haha! Eu me sinto um pouco mais confiante ao te ouvir dizer isso.”
“Sua filha Ange é uma aventureira Rank S; Maggie é a princesa da Floresta Ocidental; e você estudou a espada sob o comando do Paladino em sua cidade natal. Minha nossa, vejo que teve todos os tipos de aventuras enquanto eu não estava olhando, Bell.”
“Não, tenho estado principalmente cuidando dos meus campos em casa... Por sua vez, você não mudou muito, parece a mesma de antes.”
As bochechas de Satie incharam.
“Hmm? Está dizendo que sou infantil?”
“Não, de jeito nenhum. Só estou falando da sua aparência...”
Satie caiu na gargalhada ao ver o pânico de Belgrieve e bagunçou seu cabelo.
“Sério, está tão sério como sempre, Bell. Bom menino, bom menino...”
“Por favor, não me provoque...”
“Sua mudança foi para melhor, Bell. Essa barba te cai bem.” Satie sorriu enquanto beliscava e puxava sua barba.
Sua risada foi um pouco tensa.
“Acha mesmo?”
“Sim, lhe dá alguma seriedade. Kasim também tem uma, porém precisa cuidar um pouco mais — só o faz parecer desalinhado.” depois de comentar, Satie apontou para o próprio queixo. “Como é ter uma barba, afinal? Se sente diferente em ter uma?”
“Bom, como devo dizer? Depois de adquirir o hábito de mexer nela, não poderá voltar atrás. Claro, pode raspar, contudo algo parece estranho sem ela.”
“Entendo, entendo...” Satie murmurou, sorrindo brilhantemente enquanto começava a chorar. Suas lágrimas foram enxugadas com as costas dos dedos, contudo estas apenas continuaram escorrendo até que, por fim, a elfa começou a soluçar.
Belgrieve ficou surpreso, no entanto deu um tapinha em suas costas.
“Você está bem?”
“Sim... Bem, sabe — estou muito feliz por podermos conversar sobre essas coisas triviais outra vez... Percy e Kasim podem sorrir de novo... É com certeza tudo que eu poderia ter pedido...”
Suas palavras fizeram Belgrieve sentir uma sensação sufocante no peito. Seus olhos se fecharam e acariciou suas costas.
“Você passou por uma situação difícil. Tem lutado com esses caras esse tempo todo, certo?”
“Acho... Que sim...”
“Ainda é difícil falar a respeito...? Pode ser doloroso, mas quero saber o que aconteceu.”
Satie fungou, esfregando as costas das mãos nos olhos incessantemente.
“Não, não se preocupe. Acho que é algo que tenho a dizer — algo que preciso resolver sozinha também.” Satie respirou fundo e soltou o ar. “Naquela época... Foi na época em que me tornei Rank A, se bem me lembro. Percy enfim havia feito a curva e estávamos brigando dia após dia. Olho por olho, como dizem. De qualquer forma, no fim foi demais para mim e eu fugi. Nada de bom aconteceria se ficasse por mais tempo, pensei... Percy se desculpou ontem à noite, na verdade. Isso nem me incomodava mais, porém ele consegue ser estranhamente justo e franco com essas coisas.”
Satie soltou uma leve risada e continuou.
“Pensando nisso agora, éramos todos crianças naquela época. Apenas crianças, vivendo em um mundo pequeno...”
“Bom, se rastrearmos tudo, é porque saí sem dizer uma palavra...”
“Hey, amigo. Vamos continuar assim, ok? Está tentando me fazer te repreender ou algo assim?”
“Ah... Desculpe.”
“A questão é... Fomos todos honestos e sérios. Você, é claro, e Percy, e Kasim, e eu também. Então, todos nós nos convencemos de que tudo era culpa nossa, respectivamente. Isso era o quanto nos amávamos.”
“Sim... Está certo. Pode ser o caso.”
“Na verdade... Acho que preciso me desculpar com você, Bell.”
“Por quê? Não acho que tenha feito nada de errado.”
“Desenvolvi um sentimento de culpa por conta própria. Pedir desculpas pode ser apenas para minha auto satisfação... Vou continuar a história, ok? De qualquer forma, saí do grupo, entretanto não consegui desistir da sua perna.”
Depois que Satie deixou Orphen, ela passou primeiro pelo leste de Tyldes para chegar a Keatai. Os países a leste possuíam uma magia diferente da do oeste, e Satie raciocinou que poderia encontrar uma dica ali. Mas, no final das contas, foi um beco sem saída.
Aos poucos, voltou para o oeste — passando por Khalifa, Istafar e contornando todas as outras grandes cidades de Tyldes. Em seguida, seguiu para o sul, para Bhagwan, o centro de Dadan, e também para Lucrecia. No final das contas, acabou na capital imperial da Rodésia. Satie enfrentou muitos perigos em suas viagens e aprimorou suas habilidades em esgrima e magia ao longo do caminho.
“Muitas vezes lutei contra monstros, porém quase não fiz nenhum trabalho como aventureira. Não tentei subir na hierarquia e só trabalhei quando meu dinheiro estava acabando. Quero dizer, apenas ser uma elfa já era o suficiente para me destacar, e seria um saco se tivesse algum olhar desnecessário sobre mim... No final, até fui e devolvi minha licença.”
Satie colocou os calcanhares no aro do barril e abraçou os joelhos contra o peito.
“Ainda se lembra? Houve um tempo em que conversamos sobre por que queríamos ser aventureiros.”
“Sim... Porque não conseguimos pensar em mais nada para fazer. Isso é o que nós dois dissemos.”
“Bem, depois daquele grande fracasso... Parecia que eu tinha acabado de perder todos os sonhos que tinha de ser uma aventureira. Contudo não significava que queria voltar para minha terra natal. De qualquer forma, queria encontrar algo que deveria estar fazendo. Talvez consertar sua perna fosse a única coisa ao qual pudesse me agarrar.”
“Entendo. Não tenho qualquer receio de você por isso.”
“Foi quando... Conheci Schwartz na capital.”
“Schwartz...?” Belgrieve franziu a testa.
Ele era a Chama Azul da Calamidade, um dos líderes deste incidente ao lado do príncipe impostor. Embora pareça ter desaparecido enquanto lutava contra Kasim, era difícil imaginar que alguém tivesse conseguido derrubá-lo.
Satie abraçou os joelhos e soltou um suspiro sibilante.
“Naquela época, não sabia nada sobre o quão perigoso Schwartz era. Nós, elfos, não estudamos muito sobre o que acontece no mundo humano. Eu tinha ouvido falar de seu título — Chama Azul da Calamidade — no entanto não o levei a sério. Quero dizer, quão assustador poderia realmente ser?”
“O que uniu vocês dois...?”
O sorriso de Satie era autodepreciativo.
“Foi Schwartz quem me procurou e perguntou se eu queria trabalhar para ele.”
“Então...”
“Isso mesmo. Foi temporário, mas ajudei na pesquisa deles por um tempo.” Satie fechou os olhos, como se estivesse cansada de tudo. Belgrieve esperou quieto que ela continuasse.
“É irônico, todavia foi graças a essa parceria que aprendi a fazer todo tipo de coisa. Descobri sobre os resquícios dos deuses antigos e como usá-los para formular meu próprio espaço, como me teletransportar, como criar uma pseudo persona — aprendi tudo com eles.”
“Resquícios dos deuses antigos?”
“Sim. Foram eles que governaram esta terra antes de Salomão. Salomão os destruiu, mas os restos de seu poder ainda permanecem sem vontade de guiá-los. Pode usá-los oferecendo um pouco de mana.”
“Soa perigoso.”
“Tudo bem se usar só um pouco, como fiz. São os restos inofensivos de seu ser — assim que parar de fornecer mana, apenas pararão de emprestar poder. Isso é tudo que existe para fazer.”
Segundo Satie, se ela deixasse a área ao redor da capital por muito tempo, não seria mais capaz de se teletransportar ou manter seu espaço alternativo.
“Desde que me voltei contra Schwartz, tive que sair por aí atrapalhando seus experimentos. Não poderia sair da área de qualquer maneira. Então, tirei proveito da situação.”
“Entendo... Então você ficou sozinha esse tempo todo?”
“Eu tinha aliados de vez em quando. Na maior parte, eram pessoas que resgatei. Porém só os alcancei depois dos experimentos, e nunca sobreviveram por muito tempo...” disse Satie, fungando. “Schwartz era um homem cauteloso. Era raro que se mostrasse, mesmo para aqueles que o ajudavam em suas pesquisas e experimentos. Todos aqueles que cooperaram com ele pareciam ter objetivos diferentes também. Alguns estavam planejando dominar o mundo, enquanto outros estavam apenas tentando progredir no mundo. Havia alguém que também estava tentando realizar uma vingança pessoal.”
“Então, muitas pessoas embarcaram nos esquemas de Schwartz para atingir seus próprios objetivos pessoais?”
“Exato. E Schwartz deixou-os fazer o que quisessem. Todos esses interesses individuais se cruzaram e se chocaram e formaram uma confusão. Em última análise, todos nós tínhamos apenas uma vaga ideia do que toda a organização estava tentando realizar. É por esse motivo que não conheço todo o escopo dos experimentos e não sei quem estava se passando pelo príncipe. Para começar, pensei que estávamos pesquisando os demônios de Salomão apenas para o avanço da magia. Pesquisar Salomão e seus demônios é completamente tabu no que diz respeito à igreja de Viena, por essa razão não poderíamos fazê-lo de maneira pública. É por isso que pensei que estávamos trabalhando nas sombras — não por causa de algo nefasto.”
Satie prendeu a respiração. Ela enxugou as lágrimas nos cantos dos olhos.
“Hey, Bell. Você ouviu um pouco sobre os experimentos que estavam conduzindo, não é?”
“Pelo que me lembro... Estavam tentando fazer com que os demônios renascessem como humanos.” Belgrieve aprendeu isso há um ano com Byaku. O próprio Byaku era uma criança nascida através desse processo. Contudo, para que o experimento fosse considerado um sucesso, a presença do demônio teria que ter desaparecido por completo da consciência da criança. A mente da criança estaria sob controle total enquanto mantivesse os poderes do demônio e, assim, seria possível controlar os demônios que haviam enlouquecido com a perda de seu mestre, Salomão.
“No entanto os demônios podem assumir todos os tipos de formas, certo? Conheço um que se transformou em anel, e é provável que a espada de Falka fosse um também. Na verdade, existe algum sentido em torná-los humanos?” Belgrieve perguntou.
Satie assentiu.
“Está certo. Na verdade, mesmo algumas das crianças que foram rejeitadas como fracassadas tinham vontades próprias, verdadeiras e independentes. Não como demônios, mas como novos indivíduos — mesmo que esses indivíduos não fossem exatamente humanos.”
“Hal e Mal, certo?”
“Sim. Elas não são fofas?”
As gêmeas que Satie cuidava também eram crianças nascidas com almas de demônios. Entretanto, seus corpos eram ainda mais instáveis que os de Byaku. Em vez de nascerem como humanos, assumiram as formas originais de seus demônios — a saber, a de corvos. Era mais preciso dizer que eram corvos que aprenderam a assumir a forma humana. Embora Schwartz tivesse colocado por um tempo os dois sob seu controle, elas agora dormiam profundamente no quarto.
“Sei que as meninas passaram por uma experiência dolorosa, mas sempre quis mostrar a essas crianças o mundo exterior... Acho que deu certo...” a expressão de Satie suavizou-se apenas para rapidamente ficar tensa outra vez. “Não sei se o objetivo de Schwartz é criar perfeitamente um humano a partir de um demônio. Presumo que aquele homem tem um ponto de vista diferente sobre a pesquisa mágica de qualquer pessoa no mundo...” Satie enterrou o rosto nos joelhos apoiados.
“Você está... Bem?” Belgrieve colocou a mão em seu ombro e deu um tapinha gentil. Satie estremeceu por um tempo antes de enfim levantar a cabeça.
“Havia todo tipo de gente lá. Pessoas do oeste, leste e sul. Homens-besta também. Todo bom experimento tem muitos casos de teste.”
“Satie?”
“E eu... Era o objeto elfo deles, Bell.” Satie olhou para Belgrieve em lágrimas. “Eu também dei à luz um demônio.”
Antes que Belgrieve pudesse pensar em algo para dizer, Satie continuou, as palavras saindo de sua boca.
“Quando percebi, minha barriga estava estranha. Porém não sabia por que era assim. Estava assustada. Não sabia o que fazer, contudo meu estômago estava inchando...”
“Satie, está tudo bem. Se for doloroso continuar...”
“Não, agora que chegamos até aqui, vou contar tudo. Resolvi dar à luz, não importa o que acontecesse, no entanto odiava a ideia de dar aquela criança a eles mais do que qualquer coisa. As falhas foram eliminadas e revertidas para núcleos demoníacos. Então pensei sobre isso — eles não tinham como saber se foi um fracasso ou um sucesso logo após o nascimento, e também não era como se estivessem vigiando de perto tudo e qualquer coisa que eu fizesse. Então usei esse tempo para fazer um contrato com os resquícios do deus antigo. Foi assim que consegui o poder do teletransporte.”
O teletransporte poderia levar o usuário a qualquer lugar que conhecesse. Embora não fosse completamente impossível se teletransportar para lugares desconhecidos, havia o risco de se deformar em paredes, árvores ou pessoas, ou em desfiladeiros profundos ou lugares altos. Era bastante perigoso tentar e, portanto, era raro alguém usá-lo para ir a qualquer lugar que não conhecesse muito bem.
“Todavia pensei que não conseguiriam encontrar a criança se eu não soubesse onde ela estava. Eles me mantinham sob controle e havia uma chance de conseguirem rastrear minha mana. Por mais que me frustrasse, não pude ir com minha criança. Também perderia meu poder se me afastasse muito da capital por muito tempo. Fiz uma aposta — por sorte, o teletransporte foi um sucesso. Era uma floresta. As folhas de outono eram lindas e podia ver a fumaça da chaminé subindo ao longe, então tive certeza de que havia pessoas por perto. Mas estava prestes a perder a capacidade de me teletransportar de volta e estava com medo de despertar suspeitas, então voltei em seguida para o laboratório...”
Satie baixou a cabeça.
“E não voltei lá desde então. Não queria que descobrissem e, mesmo que quisesse procurar minha criança, levaria apenas alguns minutos para perder os poderes do deus antigo — teletransporte e construção espacial. Talvez pudesse só ter fugido, porém não poderia apenas abandonar todos os outros que estavam sendo experimentados. Mesmo agora, não sei o que aconteceu com todos... Sinto muito, Bell — há muito tempo estou tão focada em lutar contra Schwartz que nem tive tempo para pensar sobre você.”
“Uma floresta outonal...” Belgrieve murmurou.
Ao vê-lo cair em pensamentos silenciosos, Satie soltou uma risada impotente.
“Você me odeia agora, não é? Me desculpe, depois de ter vindo até aqui para me salvar, esse é o tipo de pessoa que sou...”
“Não, você está enganada.” disse Belgrieve, olhando-a nos olhos. “Satie, acha que sou alguém que te desprezaria por algo assim?”
“Hmm... Não, eu não.”
“O bebê tinha orelhas pontudas como as de um elfo?”
“Hã? Não — talvez tenha sido a influência do demônio, contudo o bebê parecia um humano normal...”
“A cesta foi tecida com videiras de glicínias?”
“O que...?”
“Foi colocado na sombra de um matagal? E embrulhou a criança em um pano... Com uma coroa de alecrim, raminhos de avelã secos e um ramo de urtigas?”
“Isso... Como...?” os olhos de Satie se arregalaram de surpresa. Belgrieve tinha uma expressão exausta no rosto, no entanto sorriu ao pousar a palma da mão na bochecha de Satie e acariciá-la suavemente.
“Fui eu quem pegou a criança, Satie. Ange é sua filha.”
“E-Ela definitivamente tinha cabelo preto, mas... Hein? Mas... Isso...”
Sua boca se movia sem emitir palavras até que caiu em uma quietude silenciosa e atordoada — e então começou a chorar lágrimas que escorreram por seu rosto em grandes gotas.
Ela se agarrou a Belgrieve, enterrando o rosto em seu peito.
“Então milagres realmente existem, Bell...”
“Sim... Existem.”
Belgrieve passou a mão pelos cabelos prateados dela.
○
Em uma sala vistosa e ornamentada do palácio, que por acaso pertencia ao príncipe herdeiro, Benjamin raspou a barba e colocou sua aparência em ordem. Estava deitado na cama enquanto examinava a montanha de papelada que se erguia ao seu lado. Seu corpo ficou emaciado durante os longos anos de confinamento, porém recuperou um pouco de vigor nos últimos dias de recuperação.
Houve uma batida na porta, que atendeu, e François entrou usando uma bengala como auxílio. Ele tinha a mesma expressão amarga de sempre, contudo sua tez anormalmente pálida e cerosa haviam recuperado um pouco de cor.
“Não exagere, Sua Alteza.”
“Não estou exagerando em nada. Ve como estou deitado? Ainda assim, parece que todos os tipos de coisas entram neste negócio de governança.” refletiu Benjamin enquanto colocava o documento em suas mãos sobre uma pilha bastante robusta de papéis finalizados do outro lado da cama. “Já fiquei para trás; preciso me atualizar, não é? No entanto aquele impostor de fato produziu alguns resultados fáceis de ver, entretanto seus métodos foram bastante contundentes. Do jeito que as coisas estão agora, veremos algum retrocesso em alguns anos.”
“Não é tarde demais para corrigir o curso. Mas as coisas vão ficar complicadas... Você deve começar recuperando sua saúde.”
“Conto com sua ajuda para trabalhar um pouco também. Como está sua perna?”
Inquerido por Benjamin, François acariciou sua perna esquerda, que estava firmemente fixada no lugar com suportes de madeira.
“É estranho — está aqui, embora não sinto nenhuma sensação disso... Porém depois de ver alguém se mover tanto com uma perna de pau, não posso reclamar.”
“Hahaha — verdade! O Ogro Vermelho, hein... Era um grupo estranho. Eu teria adorado se tivessem ficado na capital para me ajudar.”
“Não pode confiar em aventureiros humildes para sempre. Mostre alguma dignidade como nobre.”
“Que homem desonesto, minha nossa! Sei que você está realmente grato. Se fingir assim, Angeline ficará com raiva de novo. Ela não te bateu também?”
“Não... Pensando bem, ouvi dizer que você propôs casamento a Valquíria de Cabelos Negros.”
Não poderia ter havido uma tentativa mais flagrante de mudar de assunto, contudo foi bem eficaz. Benjamin desviou os olhos sem jeito, com um sorriso amargo no rosto.
“Nunca vi um rosto com tanto desgosto antes. Aquela garota destruiu por completo meu espírito de luta. Meu status como príncipe herdeiro e minha beleza diabólica não têm absolutamente nenhum valor para ela.”
“Bem, ela nada mais é do que uma aventureira. Não deixe isso te afetar.”
“O que teria acontecido sem aquela aventureira?” outra voz respondeu.
Maitreya sentou-se com arrogância no sofá. Ao sei lado havia uma pilha de papéis nos quais já havia terminado de fazer os cálculos.
“Sua...” François disse, franzindo a testa.
“Tem alguma reclamação comigo?”
François suspirou e fechou os olhos.
“Não...”
Benjamin gargalhou.
“Tem certeza que não se arrepende de ter ficado para trás, Maitreya?”
Maitreya pegou um pedaço de doce açucarado da mesa e jogou em sua boca.
“Sou uma garota da cidade. Por que iria querer brincar com terra no campo? Estou aqui te ajudando, então devo esperar um pouco de gratidão. É o que o coelho disse também.”
Numa cadeira ao lado da cama de Benjamin estava Falka, tendo perdido um dos braços. Seu uniforme dos Templários foi trocado pelo traje de uma guarda imperial. Agora que Donovan estava morto e a espada amaldiçoada não exercia mais influência sobre ele, Falka era realmente obediente. Mesmo sem um braço, ainda era mais forte na esgrima do que um soldado comum, então Benjamin o nomeou guarda. O garoto seguia propenso a distrações e mantinha a paz, no entanto não parecia relutante em fazer o trabalho.
“Sim, sim, estou grato.” Benjamin riu e se espreguiçou. “Eles já devem ter partido. Não achei que recusariam uma despedida.”
“Haveria um grande alvoroço se Vossa Alteza organizasse tal despedida. Por enquanto, lembre-se de que seremos ridicularizados se não crescermos o suficiente para surpreendê-los quando nos encontrarmos na próxima vez. Não é hora de lamentar nossa separação.”
“Hmm, então pretende vê-los de novo, hein?”
“Não... Na verdade não...”
François desviou o olhar enquanto Benjamin pegava outro documento.
“Mas tem razão. Se eu fizer isso, talvez Angeline aceite minha proposta na próxima vez.”
“Está confiante de que pode ser um homem melhor que o Ogro Vermelho?” perguntou Maitreya.
Os olhos de Benjamin vagaram inquietos.
“Provavelmente... Talvez...”
“Que piada.” Maitreya pegou outro doce. Ela jogou-o para o alto e Falka habilmente o pegou na boca. “Esqueça aquela magrela. E quanto a mim? Imperatriz Maitreya, a Grande — soa muito bem.”
“François, poderia me passar aquele bilhete da líder do ramo, Aileen?”
“Não me ignore!”
Naquele momento, houve uma batida na porta.
“Sua Alteza! Estou aqui para visitar!” veio a voz enérgica de Liselotte do outro lado.
Benjamin rapidamente corrigiu sua postura e deu um tapinha na cabeceira da cama.
○
Quase duas semanas depois da batalha, depois de tratados os ferimentos e atendidos vários outros assuntos, os membros do grupo partiram para seus respectivos destinos. Sua estadia na capital não foi longa, porém aproveitaram um pouco para passear enquanto puderam. Por sua vez, Belgrieve e os outros membros do seu grupo não pretendiam ficar mais lá.
Angeline e Satie deram-se as mãos enquanto saltavam para cima e para baixo.
“Mãe! Mãe!”
“Oh, Ange, minha filha!”
Kasim assistiu com uma expressão curiosa no rosto.
“Elas fazem isso sempre que podem, contudo estou feliz que estejam se divertindo. O que está acontecendo mais?”
“Bem, é uma filha que encontrou uma mãe, e uma mãe que encontrou uma filha... No entanto é chocante que tenha realmente acontecido aqui. Hey, Bel. Você é muito encantador, sabia?” provocou Percival.
“Hey, vamos, pare de puxar meu cabelo... Hein? Falou alguma coisa?”
Hal e Mal pegaram carona nos ombros de Belgrieve. As gêmeas estavam ambas vestidas com pesados casacos de inverno.
“Paaaaai...”
“Isso é uma barba.”
Elas alegremente puxaram o cabelo e a barba de Belgrieve.
“Meu Deus...” Percival encolheu os ombros. “Já se tornou pai de novo em tão pouco tempo. Não adianta te provocar.”
“Bom, não parece que eles sejam recém-casados neste momento. Os dois cresceram e, bem... O que fazemos, Percy? Nós dois somos os únicos pirralhos que sobraram.”
“Não seja estúpido. É só você.”
“Hã? Tá falando sério?” Kasim deu uma risada provocativa enquanto cruzava as mãos atrás da cabeça. “Agora é hora de dizer adeus à capital. Com tudo o que aconteceu aqui, estou exausto, sério. Vamos com calma por um tempo.”
Percival assentiu.
“Sim... Parece que algum peso foi tirado dos meus ombros.”
Seus quatro cursos separados na vida retornaram todos a um único caminho. Não que não restassem algumas pontas soltas curiosas, mas seus longos dias de batalha estavam enfim chegando ao fim.
“Estou preocupado com Schwartz, porém... O que acha? Espera que ele nos ataque outra vez?”
“Quem sabe? Se ele vier atrás de nós, nos poupará o trabalho de procurá-lo.”
“Hehehehe... Eu gosto dessa parte sua.”
“E Turnera tem o Paladino, certo? É muito mais seguro lá do que na capital... Mal posso esperar para conhecê-lo.” disse Percival, rindo.
A expressão de Kasim ficou um pouco tensa.
“Estou te implorando, não destrua a vila.”
“Está me confundindo com um monstro ou algo assim?”
Kasim casualmente desviou os olhos.
Enquanto Belgrieve estava envolvido em uma luta acirrada contra a ofensiva das gêmeas, Satie terminou de pular com Angeline. Ela pareceu se lembrar da presença dele, aproximando-se e levantando Hal e Mal dos ombros.
“Hey, nada de intimidação o pai, ok?”
Belgrieve, livre das gêmeas, revirou os ombros.
“Obrigado.”
“Meu Deus, você realmente é adorado pelas crianças, Bell... Hmm? Prefere que eu te chame de querido?”
“Não, não se preocupe com isso. Você fica inquieta quando me chama assim, certo?”
“Ahaha! Certo — natural é melhor. Agora, criança maior, cuide dessa criança menor para mim.”
“Ok, hehe. É a vez da sua irmã mais velha...” Angeline, que estava se apegando rapidamente a Satie, tirou Mal de suas mãos.
Enquanto observava do lado de fora, Miriam deu uma risadinha.
“Sua família cresceu outra vez, Ange.”
“É felicidade demais para mim... Neste momento, sou invencível!” Angeline declarou enquanto esfregava a bochecha na de Mal.
“Wah!” Mal gritou, contorcendo-se como se a carícia fizesse cócegas.
Anessa cruzou os braços.
“Mas isso é incrível. O que pensávamos serem dois eventos diferentes se uniram como um só.”
“Certo? Estou com um pouco de inveja aqui.” disse Marguerite rindo. Para a princesa elfa que não se dava bem com sua família, tais visões eram claras indutoras de inveja.
“Porém, em vez de mãe e filha, se parecem mais com irmãs...”
“Com certeza. Satie é bem jovem.”
Naturalmente, foi uma grande surpresa descobrir que Angeline era de fato a filha biológica de Satie, contudo Angeline aceitou esse fato com grande prazer. Ela entendeu que não havia sido descartada por ressentimento e foi uma alegria saber que sua mãe verdadeira tinha sido uma das antigas companheiras de Belgrieve. E mais do que tudo, teve uma boa impressão da própria Satie. Aquela sensação nostálgica que sentiu quando abraçou Satie antes — percebeu que era provável que fosse seu corpo se lembrando do calor de sua mãe.
Claro, esse resultado significava que Angeline era na verdade um demônio. No entanto, eles já estavam cuidando de Mit e Byaku, que eram ambos de natureza demoníaca, então Belgrieve e Angeline pareceram aceitar a revelação com calma — o que, por sua vez, deixou Satie como a única surpresa com tudo.
No final das contas, Belgrieve e Satie acabaram se casando. Ambos tinham mais de quarenta anos, cada um criou os filhos sozinho e ambos se acalmaram mentalmente. Apesar de serem recém-casados, não havia nenhuma paixão ardente, mas sim o ar calmo de um casal que estava casado há muitos anos.
“Hey, parece que todo mundo está aqui.” alguém disse. Belgrieve se virou para ver Maureen conduzindo Touya. Os dois vieram se despedir deles.
Belgrieve sorriu.
“Oh, que bom que conseguiram... Vocês realmente nos ajudaram. Obrigado, de verdade.”
“Eu deveria ser o único a dizer isso. Acho que posso mudar um pouco agora.” disse Touya.
Percival estreitou os olhos.
“Então o que vai fazer? Vai ficar assim?”
“Acho que irei visitar o túmulo da minha mãe. E seu túmulo, já que estou nisso... Pretendo retornar seu nome pessoalmente.”
“Entendo. Bem, acho que essa é a sua maneira de consertar as coisas.”
“Sim.”
“Hã? Do que você está falando?” Angeline perguntou, com uma expressão bastante confusa no rosto.
Touya olhou para Angeline antes de se virar para Belgrieve com um sorriso triste.
“Estou feliz por ter conhecido todos.”
“Iremos para Orphen um dia desses. Por favor, mostre-nos todos os bons lugares para comer, ok?”
“Maureen, olhe aqui...” Touya resmungou, colocando a mão na ‘sua’ testa.
Todos riram enquanto trocavam palavras de despedida.
Angeline colocou a mão no ombro de Touya e segurou-a com força.
“Fique bem. Nos encontraremos de novo, com certeza.”
“Sim, digo o mesmo. Valorize sua mãe e seu pai, ok?”
“Não precisa me dizer duas vezes...” Angeline se gabou, estufando o peito.
Apoiando-se em seu cajado, Miriam disse.
“No final, acho que nunca vimos Ishmael.”
“Talvez ele tenha ficado ocupado.” Anessa assentiu. “Porém tenho certeza de que ele está bem.”
“Hey, Touya — se ver Ishmael, diga-o que mandei um oi, ok?”
“Ahaha! Entendi — vou passar a mensagem.”
A luz do sol estava quente, contudo a brisa já trazia as marés do inverno. Um Milhafre-preto solitário grasnou enquanto desenhava um círculo no ar.
Satie arregaçou as mangas.
“Tudo bem, este será meu último teletransporte. Aproximem-se, pessoal.”
“Você realmente ficará bem, Satie?”
“Vou ficar bem. Essa cena ainda está vivamente gravada em minha mente.” Satie sorriu e entoou com suavidade um breve feitiço. Todo o mundo ao seu redor tremeu e oscilou. Touya e Maureen ficaram indistintos e desapareceram, e então eles também desapareceram. Houve uma sensação estranha e flutuante antes de tudo ser tingido de branco puro e o grupo ser enterrado em algo frio.
“Whoa! O que é isso?” Percival gritou alarmado quando algo caiu sobre ele com um som suave e esmagador.
Angeline riu.
“É só neve, Sr. Percy.”
Uma grande pilha caiu de uma árvore no alto, caindo direto sobre sua cabeça.
Enquanto Percival ignorava, Kasim riu.
“Wow, isso é incrível. Não gostaria de ficar preso aqui.”
“Não precisa se preocupar. Conheço o caminho.” Belgrieve caminhou pela neve que chegava até os joelhos. Ele podia ver um céu fechado através das brechas nas árvores que se transformaram em nada além de feixes de galhos nus. Apesar de toda a neve que caiu, ela não estava caindo no momento. Um vento muito mais frio do que qualquer outro que soprasse na capital acariciava sua pele, entretanto esse frio o enchia de pensamentos sobre casa.
A neve era profunda e Belgrieve avançou devagar devido à falta de sapatos de neve, mas tal situação só lhe deu mais tempo para determinar o caminho.
Quando se virou, sua família e companheiros sorriram para ele em meio ao frio e seguiram seu exemplo. Foi uma sensação bastante peculiar, no entanto sentiu que era natural quando sua expressão relaxou.
Eles gradualmente se aproximaram da aldeia. Além de uma planície de branco puro, casas familiares estavam amontoadas umas nas outras. Foi como se as colunas de fumaça subindo das chaminés o recebessem de volta.
A viagem acabou. Ele estava em casa.
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