sábado, 18 de novembro de 2023

Boukensha ni Naritai to Miyako ni Deteitta Musume ga S Rank ni Natteta — Volume 09 — Capítulo 124.5

Capítulo Extra 124.5: Passos

Esta foi a primeira vez que ele passou tanto tempo em uma carroça frágil. Embora um pano tivesse sido estendido sobre o chão duro de madeira, seu traseiro ainda doía. Cada vez que acontecia uma pausa, o garoto ruivo descia para esticar o corpo e eliminar a rigidez das pernas e quadris. O menino há muito desejava fazer essa viagem, mas já estava pensando duas vezes. Porém, quando imaginou o mundo desconhecido que o esperava pela frente, parecia que seu cansaço havia desaparecido.

As árvores ficaram todas amarelas e vermelhas no caminho que saía de Turnera e já haviam começado a espalhar suas folhas. Turnera sempre foi um dos primeiros lugares do ducado a ver o inverno, e como já havia rajadas de vento em Turnera, talvez essas paisagens de outono fossem naturais apenas mais ao sul. Talvez a neve em Turnera já tivesse começado a grudar. Parecia que estava viajando para o sul junto com o inverno.

Em Rodina, a cidade vizinha, o garoto foi atingido pelo fedor de porco mais forte que já havia sentido antes. Depois, em Bordeaux, viu campos de trigo muito mais extensos do que todos os de sua vila. A visão do trigo que mal começava a brotar fez com que o menino sentisse mais uma vez saudades de casa, contudo balançou a cabeça. Era muito cedo para isso.

Ele pegou carona em uma caravana de quatro carroças, cada uma dirigida por um comerciante. Os cinco aprendizes dos mercadores também corriam e havia seis aventureiros contratados como guardas. Três dos aventureiros viajaram com as carroças enquanto os outros exploravam os arredores a cavalo.

O menino ainda não era um aventureiro, então não se contava entre eles. Mesmo assim, foi-lhe pedido que se sentasse mais próximo do chefe da caravana. Talvez devam proteger o comerciante se for necessário, raciocinou. Nesse caso, serviria mais como isca do que como guarda. Não que alguém tivesse falado a respeito, contudo o menino entendia muito bem. É provável que foi assim que conseguiu um grande desconto na tarifa da viagem.

Um homem — provavelmente o líder dos aventureiros — também estava sentado perto do garoto. Também encarregado de proteger a cabeça da caravana, era um homem de meia-idade com um olho e barba, e sua posição era ao que parecia AA. Este falava pouco e tinha um brilho penetrante nos olhos que fazia as pessoas fugirem, no entanto depois que soube que o menino desejava se tornar um aventureiro, compartilhou algumas histórias de tudo o que havia vivido em seus dias.

A carroça saltou ruidosamente com um barulho alto depois que uma das rodas bater em uma pedra grande. O garoto fez uma careta e esfregou a parte inferior das costas.

O homem riu.

“Ainda não está acostumado?”

“N-Não, ainda não.”

“Você ficará, depois de algum tempo.”

O comerciante-chefe de rosto corado riu.

“Você é jovem; vai se acostumar em pouco tempo. Se for um aventureiro, será difícil trabalhar se ficar cansado a cada viagem de carroça.” disse de maneira seca.

O menino ficou inquieto, mas assentiu.

O comerciante sorriu e jogou uma fruta seca na boca.

“Está planejando trocar essa sua espada por uma melhor?”

“Ainda não sei.”

“Bem, acho que tem algum tempo para pensar a respeito. Porém está confiando sua vida a essa espada, e tenho certeza de que aquelas que encontrará em Orphen terão desempenho superior a qualquer uma que conseguir em Turnera. Na verdade, posso escolher uma para você, se quiser.”

“Não, hmm...”

“Pare de provocar o jovem.” disse o aventureiro, cansado.

“Eu sei, eu sei.” disse o comerciante, gargalhando. “Contudo deve estar pensando a mesma coisa. Acha que ele pode subir na hierarquia com essa espada?”

“Todos nós temos nosso próprio caminho. O garoto precisa descobrir por si mesmo à medida que ganha experiência. Não é apenas algo que muda porque alguém manda.”

“Que desmancha-prazeres — quer saber, tanto faz.”

“Hmm, se chegar o momento, vou ter certeza de procurá-lo antes de qualquer outra pessoa.” disse o menino num tom sério, baixando a cabeça.

Tanto o comerciante quanto o aventureiro pareceram surpresos com a resposta, no entanto o comerciante logo caiu na gargalhada.

“Tem certeza que quer ser um aventureiro? Um rapaz honesto assim? Hey, por que não desiste disso e trabalha para mim? Ser um comerciante não é de todo ruim.”

“Não, uh, eu...”

“Ahahahaha! É uma piada, uma piada! Bom, vá em frente e suba na hierarquia. Quando atingir o grande momento, poderá se tornar um frequentador assíduo da minha loja, por que não?”

“S-Sim, claro.” o garoto estava prestes a mergulhar em um mundo desconhecido para ele. Até hoje, a pequena vila tinha sido o seu mundo inteiro, e agora estava inteiramente entre estranhos. E mesmo assim, sentiu uma estranha sensação de alegria enquanto se dirigia para algo que nunca havia experimentado em seus quinze anos de vida.

Um dos aprendizes inclinou-se para fora da carroça à frente deles.

“Quase lá, chefe.” gritou.

“Entendi. Prepare-se, garoto.” disse o líder dos aventureiros. O comerciante também começou a trabalhar, inclinando-se na frente da carroça e emitindo várias ordens. O menino verificou suas malas e ajustou a espada na cintura.

“Não tenha pressa.” o homem sussurrou para ele.

“Hã?”

“Pode subir do Rank E para o Rank D em um espaço de tempo curto. Entretanto não tenha pressa. Aquelas pessoas que se esforçam demais e avançam rápido demais são as que morrem cedo — se quiser chegar lá um dia, então deve primeiro ganhar tudo o que puder em sua classificação atual.”

O menino assentiu.

“Sim senhor.”

O homem fechou o único olho que lhe restava.

“Perdi o outro olho quando era Rank D. Fui um pouco imprudente. Por sorte, sobrevivi, todavia às vezes sinto falta de todas as paisagens que veria com os dois olhos. Se não quer sentir os mesmos arrependimentos, então não tenha pressa.”

Essas palavras pesaram muito sobre o menino e a alegria em seu coração se acalmou um pouco. Ele graciosamente agradeceu ao aventureiro.

Por fim, a caravana passou pelos portões da cidade e o garoto logo ficou impressionado com a paisagem — prédios altos, um número surpreendente de pessoas e o barulho avassalador que os acompanhava. O ar empoeirado misturava-se com aromas bizarros que lhe eram estranhos. Pessoas vestidas em estilos que nunca soube que existiam. Cada pequena coisa era nova aos seus olhos e deixava uma impressão marcante.

Na praça onde se reuniam todas as carroças e carruagens, o menino desembarcou. Foi aqui que eles se separaram — a caravana seguiria para o sul sem ele.

O comerciante deu uma risada alegre e deu um tapa no ombro do menino.

“Vá então. Boa sorte! Se o destino quiser, nos encontraremos de novo.”

O menino baixou a cabeça.

“Obrigado por tudo.” disse com um olhar de soslaio para o líder dos aventureiros. O homem estava discutindo com os outros aventureiros sob seu comando e não olhava em sua direção.

Não querendo atrapalhar, o menino se virou para sair, apenas para ouvir a voz do homem caolho chamando por trás.

“Não morra.” falou.

A cidade era uma confusão imensa de pessoas. Turnera nunca esteve tão lotada, nem durante seus festivais. Esgueirando-se sem jeito por entre essas pessoas, o garoto sentiu-se oprimido pela paisagem urbana em constante mudança enquanto se dirigia para a guilda dos aventureiros.

A guilda era um edifício grande; suas paredes brancas brilhavam a luz do sol poente. Embora parecesse tão imaculado e radiante de longe, quando se aproximou, pôde ver que as paredes apresentavam arranhões, cortes e lascas de todos os tamanhos — mas isso só aumentava de alguma forma a dignidade solene do lugar.

Estava tão lotado por dentro quanto por fora, e ninguém prestou atenção no jovem quando entrou. Afinal, havia um fluxo interminável de pessoas indo e vindo. O garoto ficou grato pelo anonimato — na verdade não gostava de chamar atenção para si mesmo. Havia muitas pessoas que provavelmente eram aventureiros circulando no saguão.

Alguns usavam armaduras e empunhavam espadas e lanças, enquanto outros usavam vestes pesadas. Não era nada que não tivesse visto antes — aventureiros passavam por Turnera de vez em quando — porém ver tantos amontoados fez o coração do garoto disparar ao perceber que seria um deles de agora em diante.

Inconscientemente, seu passo tornou-se cauteloso e discreto enquanto se dirigia ao balcão. Uma recepcionista o recebeu com um sorriso suave.

“Olá. Como posso ajudá-lo hoje?”

“Hmm, eu quero me tornar um aventureiro.”

Por um momento, o olhar da recepcionista foi penetrante enquanto ela o avaliava, mas logo estava sorrindo novamente. Pegando uma folha de papel, a recepcionista a colocou sobre o balcão ao lado de uma caneta de pena.

“Por favor, preencha este formulário então.”

O menino sabia ler e escrever, porém não usava essas habilidades no dia a dia, e isso era um pouco estressante. Com mão cuidadosa e deliberada, preencheu cada entrada.

“Está bom desse jeito...?”

“Deixe-me dar uma olhada.” a recepcionista examinou o formulário, confirmando cada caixa uma por uma. “Sim, deve bastar. Você começará no Rank E. Embora esteja restrito no nível de dificuldade das solicitações que pode atender, contanto que continue trabalhando duro, aumentará sua classificação. No interesse da segurança e da eficiência, recomendamos fortemente que participe de um grupo, embora não exijamos que o faça. Se desejar, pode receber algum treinamento básico de um instrutor certificado pela guilda por uma taxa nominal. Por favor, não hesite em usar nossos serviços.”

A recepcionista passou a explicar várias outras coisas, e o menino ouviu tudo, com o rosto tão sério quanto possível. Assim que a explicação foi feita, a recepcionista deu uma risadinha.

“Você é muito sério.”

“Perdão?”

“Para a maioria, essa conversa entra por um ouvido e sai pelo outro.”

“Sé-Sério?”

É assim que os aventureiros deveriam ser? ele se perguntou, coçando a bochecha. O garoto se sentiu um pouco envergonhado por temer estar se expondo como um garoto do campo.

A recepcionista olhou-o enquanto continuava rindo.

“Boa sorte, uh...” ela olhou para a papelada. “Senhor Belgrieve.”

O menino — Belgrieve — assentiu timidamente.


“Hey, o que pensa que está fazendo?” o homem gritou quando Belgrieve o agarrou por trás. Ao se virar, libertou-se do aperto de Belgrieve e agarrou-o pelas lapelas. “Por que me impediu?” o homem exigiu. “Eu estava tão perto de derrubá-lo!”

“É uma armadilha! Se esticasse sua espada, teria disparado suas agulhas venenosas!”

“Cale a boca! Se eu apenas cortasse aquela coisa, teria todos os materiais de que precisava. Agora estou de volta à estaca zero!”

“Contudo você estaria morto, então...”

“Morto? Por favor! Você trouxe alguns antídotos, não é?”

“Para um veneno diferente. Essas agulhas contêm uma neurotoxina. Te disse para estocar o remédio, no entanto você disse que era um desperdício de dinheiro...”

“Estou farto de sua ladainha, moleque!”

Belgrieve foi sacudido por uma dor repentina na bochecha e pelo calor gradual que se seguiu ao golpe no rosto.

“É o suficiente. É frustrante ficar com um covarde assim. Todos os outros pensam o mesmo. Este é o seu último dia conosco, entendeu?”

O homem empurrou Belgrieve e saiu furioso com o resto do grupo. Os outros olharam para Belgrieve, entretanto seus olhos não tinham qualquer piedade. Na verdade, eles pareciam um pouco aliviados.

A vida na cidade grande era completamente diferente daquela que Belgrieve conhecia em Turnera. Para começar, o que quer que quisesse fazer, o dinheiro era uma necessidade absoluta. Precisava de dinheiro se quisesse dormir em uma cama adequada, e também precisava dele para comer. Como Belgrieve não tinha o suficiente para alugar uma casa, se acomodou em uma pousada barata e se concentrou em empregos que envolviam em maior parte a coleta de ervas para ganhar seu sustento.

Ele se esforçou para encontrar qualquer pedido de caça que pudesse atender. Em primeiro lugar, não havia muitas caçadas para aventureiros de Rank E. Pelo que ouviu, aceitar esses empregos era uma maneira rápida de subir ao Rank D, todavia Belgrieve, lembrando-se do conselho do homem caolho, não conseguia aceitar um sempre que acontecia. Em casa, tinha um pouco de orgulho de seu braço que segurava a espada, mas assim que começou a morar em Orphen, não demorou a percebeu que havia inúmeras pessoas melhores do que ele. Não era hora de ser precipitado; precisava aprender tudo o que pudesse.

Mesmo assim, ao ver jovens aventureiros não mais velhos do que ele assumindo vigorosamente aqueles trabalhos de caça, uma parte sua não pôde deixar de se sentir um pouco impaciente. Eu deveria ser capaz de fazer isso, pensava. Porém seu lado racional aconselhava paciência, e essas duas partes entraram em conflito, levando a muitos dias de inquietação.

Havia um quadro de avisos na guilda que os grupos usariam para recrutar novos membros. Estava repleto de panfletos cheios de nomes e informações de contato — ou melhor, na maioria das vezes apenas o endereço da pousada em que o grupo estava hospedado. Aqueles que desejam ingressar em um grupo ou procuram alguém para ingressar no grupo existente pegariam um nome no quadro e começariam a partir daí. Dito isto, todas as partes recrutadoras tinham certas condições que aceitariam. Por exemplo, eles especificaram que os candidatos deveriam ter um determinado rank ou que fossem lutadores de retaguarda, como magos ou arqueiros. Em casos incomuns, alguns até especificavam idade e sexo.

Acontece que muitos desses grupos consistiam em grupos de amigos que haviam saído de casa juntos. Juntar-se a esses grupos depois do fato exigiu um pouco de coragem, mas Belgrieve sabia que não estava em posição de se preocupar com essas coisas. Dessa forma, fez o possível para entrar em contato com um grupo que procurava um lutador de vanguarda e enfim obteve a oportunidade de enfrentar monstros.

Porém embora tenha sido bem recebido no início, sua natureza cautelosa e o comportamento e conhecimento que adquiriu em uma tentativa desesperada de ser útil saíram pela culatra. Gradualmente, começaram a condená-lo ao ostracismo e, no final, acabou sendo expulso do grupo.

“Contudo se ele tivesse morrido... Seria o fim.” murmurou Belgrieve.

Belgrieve se perguntou como todos os outros tinham tanta confiança de que sairiam ilesos, independentemente da situação. Era muito fácil chutar o balde — mesmo na segurança de Turnera, alguém que estava feliz trabalhando ao seu lado num dia poderia ser morto pela queda de uma árvore no dia seguinte. Belgrieve lembrou-se disso acontecendo com alguém que conhecia. A vida é passageira — por que todos têm tanta certeza de que sempre sairão vitoriosos?

Os novatos aventureiros foram todos apressados. Havia três tipos de aventureiros: aqueles que seguiam o fluxo, aqueles que precisavam de dinheiro e aqueles que sonhavam em alcançar posições mais altas. Nenhum destes gostava de ficar na base da escada por muito tempo. Belgrieve sentiu o mesmo, contudo as palavras do homem de um olho só foram gravadas em seu coração. Além do mais, poderia moderar suas ambições — e foi dessa forma, talvez, que alimentou a discórdia entre ele e os outros aventureiros.

Eles viajaram para uma cordilheira a cerca de uma hora de Orphen. Não era muito perigoso, no entanto ainda era um habitat para monstros, e os civis costumavam ficavam bem longe. O sol estava se pondo e o vento estava bastante frio; passar a noite aqui seria imprudente. Belgrieve levantou-se e limpou a sujeira das roupas. Sabia que tinha um corte em algum lugar dentro da boca quando cuspiu no chão e sua saliva ficou listrada de vermelho.

“Ah...” o que vou fazer a partir de amanhã? Belgrieve se perguntou. Já havia aprendido os limites do que poderia fazer sozinho, então teria que encontrar outro grupo. Entretanto se fosse o seu comportamento e a sua personalidade que afastavam as pessoas, talvez tivesse de começar por mudar isso. Sim — posso ir junto com os outros e correr para a batalha sem pensar duas vezes, sem hesitar com o medo de me machucar, colocando minha vida em risco...

Belgrieve balançou a cabeça.

“Não, não posso. Isso simplesmente não vai resolver.”

Entre os escalões superiores de aventureiros — aqueles que estavam preparados para lutar contra dragões e arquidiabos — talvez funcionasse. Contra tais inimigos, não havia escolha senão se arriscar com a morte se houvesse alguma chance de vitória. Todavia o que um aventureiro Rank E consegue arriscando sua vida contra monstros de baixo escalão? Seria uma história diferente se estivesse protegendo uma cidade ou vila. Mas qual é o sentido de arriscar um braço, uma perna, um olho ou até mesmo a vida por um trocado?

“Não fui feito para este trabalho... Minha nossa...” Belgrieve disse de forma autodepreciativa e riu. Este era o seu sonho; deveria estar sorrindo. Em vez disso, a paisagem ao seu redor parecia estranhamente turva.


O cabelo louro do menino balançava ao vento. Ele o deixou crescer por mera indolência e não tinha nenhum apego especial a isso. No começo, fazia cócegas quando roçava sua testa e nuca, porém já estava acostumado.

O menino estava afiando uma lâmina barata. Se não pudesse comprar um bom fio de ponta, teria que fazer uma boa o suficiente por conta própria. Não que tivesse uma pedra de amolar de boa qualidade, contudo se investisse tempo suficiente, até mesmo uma espada barata valeria alguma coisa. Infelizmente, também significava que teria que afiá-la de novo e após cada confronto.

O menino nasceu, filho do chefe de uma pequena aldeia. Todos lá trabalhavam nos campos, criavam gado e por vezes caçavam para viver. Tinha sido uma vida pacífica, com exceção dos monstros ocasionais que surgiam. Embora a cidade fosse pequena, tinha uma pousada e um bar frequentado por qualquer aventureiro de passagem e, pelo preço certo, lidariam com esses monstros de maneira confiável.

A terra era fértil e, desde que alguém estivesse disposto a fazer o trabalho, o solo lhes renderia recompensas. Em suas vidas diárias, eles cuidavam de seus campos, disputavam gado e faziam orações à Todo-Poderosa Viena em todas as refeições. Era o tipo de aldeia pequena e tranquila que se pode encontrar em qualquer lugar.

Só que o menino não estava satisfeito com aquela vida. Não desprezava uma vida tão pacífica, mas ressentia-se de que todos tratassem esse modo de vida como uma coisa natural e como iriam impingi-lo a ele tão bem como uma coisa natural. Por ser filho do chefe, foi tratado como tal, e seus pais acreditavam de todo o coração que o garoto deveria herdar o cargo. Eles o repreendiam duramente sempre que expressava seu desejo pelo mundo exterior.

Seus pais e os outros moradores lhe diziam.

“Você viverá aqui e morrerá aqui. Esse é o seu destino. Um agricultor não deve ter metas muito altas.”

E quem decidiu isso? o menino lamentou. Minha vida é minha. Não pertence a mais ninguém. A chama da rebelião ardia em seu coração, atiçada por cada bronca e sermão, até a noite em que por fim pegou todas as suas coisas e foi embora.

Depois de viajar por alguns dias, chegou a Orphen, um lugar do qual só tinha ouvido falar nas histórias. Quando viu a cidade pela primeira vez, ela era tão grande que o garoto ficou tonto, contudo seu coração pulou de alegria. Tudo parecia tão radiante aos seus olhos.

O menino olhou para sua espada afiada da frente para trás. A lâmina brilhava e refletia a luz da lâmpada.

“Tudo bem.” ele embainhou a lâmina, deitou-se na cama e olhou para o teto. Cada vez que a lâmpada piscava, as sombras que projetava iniciavam sua dança sinuosa.

Amanhã seria um trabalho de caça conjunta. Alguns aventureiros e grupos abaixo do Rank C foram reunidos para subjugar um surto anormal de monstros humanoides. Mesmo agora, os monstros estavam cercando uma masmorra, cercados por aventureiros de alto escalão que os vigiavam de perto. A guilda organizou a caça conjunta para dar aos aventureiros de baixo escalão um pouco de experiência de combate, para que os aventureiros de alto escalão não participassem da ação. Era um pouco irritante saber que a oportunidade lhe fora apresentada em uma bandeja de prata, entretanto cavalo dado não se olha os dentes.¹

O menino sabia que tinha alguma habilidade da qual se orgulhar. Quando olhou para outros espadachins de sua idade, estava confiante de que poderia derrotar todos com facilidade. Mas sabia que podia ser obstinado e que tendia a ter uma visão limitada quando se concentrava demais em uma coisa. Essas características causaram conflitos em todos os grupos em que esteve antes — o que, inevitavelmente, o deixou sem meios de subir de classificação. O que o tornou um dos poucos aventureiros solo a se juntar à caçada.

“Não há ninguém meio decente?” o menino cruzou uma perna sobre a outra enquanto estava deitado ali. Deixando de lado seus próprios defeitos de personalidade, ninguém em nenhum dos grupos em que esteve antes chamou sua atenção. Claro, eram todos inexperientes, porém esse não era o problema. Todos eles geralmente almejavam o topo, contudo ou estavam avançando de maneira precipitada ou apenas tratando isso como uma espécie de jogo. O garoto queria subir ainda mais alto. Sonhou com as histórias de heróis que ouviu do povo errante, dos menestréis e dos aventureiros viajantes. Queria travar lâminas com dragões e demônios e todos os tipos de terrores.

Se ao menos houvesse alguém que pudesse me guiar até lá. Ele fechou os olhos — embora estivesse confiante com sua espada, estava bem ciente de suas próprias falhas. No entanto, considerava que sua força estava ligada às suas falhas. Quando chegou a hora de superar as adversidades, sabia que poderia seguir em frente sem um pingo de hesitação. Para ser gentil, ele era inabalável –— mas, de maneira menos gentil, faltava-lhe julgamento.

Se eu tivesse um companheiro que pudesse analisar a situação e entender o momento certo... pensou o menino. Estava ciente estreita e sabia que seria difícil consertá-la agora. Precisava de alguém que pudesse fazer bom uso de seus pontos fortes, e então seria capaz de se soltar sem se preocupar. Estou esperando demais...? Essa preocupação permaneceu em sua mente sem resposta enquanto adormecia.

O dia seguinte chegou e, com a lâmina afiada na mão, o menino partiu para o ponto de encontro. Muitos aventureiros já estavam reunidos lá quando chegou. Logo, um alto escalão afiliado à guilda assumiu o comando e começou a orientá-los.

Embora os aventureiros de baixo escalão estivessem em busca de sangue, os de alto escalão que estavam de prontidão ao seu redor (na eventualidade de algo dar muito errado) estavam calmos como poderiam estar. Eles olharam para os neófitos², seus rostos representando a compostura — só isso foi suficiente para mostrar a diferença de classe.

Basta observarem. Eu estarei onde vocês estão algum dia.

O garoto de cabelos louros olhou em volta. Eles estavam nas planícies e geralmente havia boa visibilidade, mas não era um terreno perfeitamente plano – havia colinas e depressões em alguns lugares também. Ao longe, ele podia ouvir os rosnados e rosnados de muitos demônios – e eles também podiam ouvir os aventureiros.

Eventualmente, a batalha começou. Os aventureiros avançaram, lutando para serem os primeiros a atacar os monstros. Por sua vez, as criaturas avançaram, tão sedentas de sangue quanto seus caçadores. Foi apenas momentos depois que os lutadores de vanguarda de cada lado colidiram que o campo de batalha se tornou um corpo a corpo caótico. O ar estava cheio de gritos e berros, cânticos e o som de metal batendo em metal.

O garoto aceitou tudo com um pouco de cansaço enquanto mantinha distância da briga, despachando apenas os monstros que conseguiam passar pelos furiosos. Esses caras são ainda piores do que eu, pensou. Ele entendeu o desejo destes aventureiros de fazerem nomes para si mesmos, todavia uma vez que se transformou nesse tipo de caos, não havia mais como saber o que estava acontecendo. A formação em que o comandante os colocou no início foi desperdiçada por completo.

“É assim que pareço aos olhos dos outros...?”

Era como se os novatos estivessem furiosos enquanto avançavam. Foi um pouco deprimente pensar a respeito, percebendo que não era muito melhor do que os demais. O garoto enfrentou um goblin que se aproximava e fez uma careta após seu terceiro ataque, havia gastando um bom tempo afiando a lâmina, entretanto o fio de corte foi perdido em pouco tempo.

“Não... Não é bom!” de repente, um garoto ruivo próximo gritou e saiu correndo para o outro lado da unidade. “Por aqui! Eles estão vindo!”

O garoto loiro olhou para o ruivo sem expressão, apenas para então notar um contingente de monstros que havia se separado da força principal e feito um amplo desvio. O exército aventureiro que só sabia avançar estava prestes a receber um forte golpe no flanco.

Os aventureiros próximos gritaram e assumiram uma formação defensiva em pouco tempo. Estavam um passo atrás, claro, contudo não seriam pegos de surpresa.

Então aquele garoto ruivo percebeu o ataque furtivo no meio dessa caótica luta livre... O garoto sorriu. Não posso deixá-lo escapar.

Logo, a batalha acabou. Os aventureiros tiveram o apoio de aventureiros de alto escalão, então foi uma vitória esmagadora. Atravessando a multidão enquanto todos voltavam para a guilda, o garoto de cabelo cor de palha procurou o garoto de cabelo ruivo.

“Cale-se! Não precisamos de membros inúteis! Suma daqui!” alguém gritou com raiva.

Quando se virou para olhar a comoção, viu o garoto ruivo encolhendo os ombros, cansado. O garoto ruivo ajeitou as malas nas costas e fez menção de seguir seu caminho, então o garoto ruivo virou-se e seguiu outro caminho.

“Hey!” ele gritou.

O garoto ruivo parou e se virou, mas não parecia ter certeza de que era ele quem estava falando. Depois de olhar ao redor com curiosidade, seus olhos se voltaram para o menino de cabelos cor de palha.

“Está falando comigo?”

“Sim. Você é realmente incrível.”

“Eu sou? O que quer dizer?”

“O que quero dizer? Bem... Aquele ataque furtivo. Estou surpreso que tenha o notado.”

“Sim... Bem...” o garoto ruivo tropeçou desajeitado em suas palavras.

Não tenho dúvidas. Ele é um cara legal e ridiculamente habilidoso. Com certeza chegaremos ao topo se nos juntarmos. O garoto loiro deu um alegre sorriso.

“Gostei de você! Que tal se juntar ao meu grupo?”

“Hã? Hum, seu grupo?”

“Isso mesmo! Eu vi o que aconteceu, minhas desculpas, porém você está sozinho, certo?”

“É verdade...” o garoto ruivo coçou a cabeça. “Contudo já estive em vários grupos até agora e todos me expulsaram. Não sei se posso atender às suas expectativas.”

“O que está dizendo? Sem dúvida teria havido mais vítimas se não tivesse notado aquela emboscada! Eu estava olhando. Foi muito impressionante! Junte-se a mim, sim?”

Por um breve momento, os olhos do garoto ruivo vagaram em perplexidade, no entanto após algum tempo assentiu com um sorriso estranho no rosto. O garoto loiro riu alto antes de estender a mão.

“Meu nome é Percival.” falou. “Percy, se preferir. Não vou perder para ninguém na esgrima. Prazer em conhecê-lo.”

“Sou Belgrieve. É um prazer, Percy.”

Belgrieve ofereceu timidamente a mão, entretanto quando Percival a aceitou, seu aperto foi firme.


As ruas de Orphen estavam lotadas de multidões barulhentas e exuberantes indo e vindo, enquanto carroças e carruagens chacoalhavam ao longo das estradas maiores. O pavimento de pedra refletia a luz do sol naquele dia seco e empoeirado.

Depois de se juntar ao grupo de Percival, a primeira surpresa de Belgrieve foi saber que o outro garoto também estava sozinho. Belgrieve presumiu que haveria outros, considerando como o loiro a chamou de ‘grupo’.

“Vamos começar a formar o grupo agora. Você é o primeiro.” explicou Percival sem nenhum pingo de vergonha.

Percival era diferente de qualquer pessoa em qualquer um dos grupos em que Belgrieve esteve até agora. Afinal, foi aquele quem procurou Belgrieve, tendo visto algum valor em suas habilidades. Foi uma sensação um pouco estranha começar com uma avaliação tão alta, e tal situação fez com que Belgrieve se sentisse um pouco desconfortável no geral.

No dia seguinte à formação do grupo, Percival mudou suas coisas para um quarto da pousada onde Belgrieve estava hospedado. Como um rapaz frugal, Belgrieve escolheu uma pousada que fosse o mais barata possível e ao mesmo tempo tivesse comodidades aceitáveis. Ao vê-lo, Percival ficou encantado por ter encontrado o que considerou uma melhora.

Agora os dois poderiam morar próximos um do outro e Belgrieve estava um pouco impaciente. Todavia Percival era um livro aberto; o garoto era alegre e cheio de risadas, e sempre era divertido conversar com ele. Não demorou muito para que Belgrieve abrisse seu coração e começasse a pensar que era uma bênção que ambos tivessem formado um grupo, afinal.

Depois de discutirem algumas coisas, eles não demoraram a começar a travar as lâminas. Belgrieve se viu completamente derrotado, surpreso com as capacidades de Percival.

“Você é forte...”

“Eu não te falei? Não vou perder para ninguém com uma espada.” Percival sorriu enquanto girava sua espada de madeira outra vez. “Seu básico é muito bom, mas te falta confiança. Não há vigor em sua espada.”

“Sim, estou ciente...” Belgrieve deu um sorriso irônico enquanto recuperava sua espada de madeira, que havia caído no chão.

Percival bocejou.

“Agora, que tal irmos para a guilda? É hora deste grupo fazer sua estreia.”

“Somos só nós dois... E nós dois somos espadachins.”

“Hey, não se preocupe. Você cuida das minhas costas, eu cuido das suas. E é isso.”

Com isso, Percival foi embora. Vai ficar tudo bem mesmo? Belgrieve se perguntou enquanto seguia em frente.

Considerando o resultado final, o primeiro pedido da dupla teria obtido uma pontuação absolutamente terrível. Eles partiram em uma caçada aos monstros a pedido de Percival, porém encontraram mais inimigos do que esperavam. Embora tivessem conseguido derrotá-los, a batalha ficou tão desesperada que, no final, quase nenhum material utilizável poderia ser retirado dos cadáveres. Para piorar a situação, alguns dos monstros tinham carapaças bastante duras, e a espada barata de Percival acabou quebrada em duas.

As habilidades de Percival eram esplêndidas. O garoto avançou sem o menor sinal de hesitação e se comportou de maneira brilhante ao despachar um monstro após o outro. Contudo, estavam atrás das peles dos monstros, e Percival as despedaçou. No final das contas, o pedido não pôde receber nota de aprovação e, com a destruição de sua espada, não era exagero dizer que foi um grande fracasso.

“O fio estava horrível. Sempre foi. É por isso que tive que colocar força extra e cortá-los várias vezes para matá-los.” Percival falou como desculpa quando eles retornaram à pousada.

Belgrieve suspirou.

“Você quer completar o trabalho ou apenas quer espancar os monstros? Qual é?”

“O trabalho, é claro. Ainda estamos no fundo do poço e não podemos subir se não trabalharmos.”

“Então não vai acontecer assim. Você é habilidoso o suficiente. Se devemos coletar peles, tente arrancar suas cabeças com um golpe ou faça outra coisa que os deixe um pouco mais limpos. Com isso dito, vamos comprar uma espada melhor que a sua atual. É um desperdício se suas ferramentas estão te impedindo de usar suas habilidades.”

“Certo, o próximo vai dar certo, marque minhas palavras. Que tal uma bebida para nos animar?”

“Não até substituirmos sua espada. E nenhum pedido de caça por enquanto — nós temos que ganhar algum dinheiro primeiro.”

“Hã? Não pode só me emprestar sua espada?”

“Então... O que eu devo fazer?”

“Oh, certo. Entendi. Não há escolha então.”

Os dois estavam focados em economizar os fundos necessários, no entanto com Belgrieve assumindo o comando, conseguiram concluir diligentemente uma quantidade razoável de trabalho — embora todos consistissem na coleta de ervas e outros materiais de forma segura. Percival resmungava baixinho, mas de qualquer maneira ele não tinha espada para usar e sabia que Belgrieve tinha razão. Apesar de suas reclamações, fez sua parte com diligência.

Eles passaram algum tempo fazendo esses trabalhos, e faltava apenas mais um pouco até que Percival pudesse comprar uma espada nova. A dupla visitou vários ferreiros para fazer algumas inspeções preliminares.

“Enfim terei minha arma de volta. Meu Deus, estou entediado com todos os trabalhos de coleta.”

“Porém você se tornou bastante habilidoso nisso. Estou surpreso, de verdade. Estava convencido de que sua habilidade pra coleta seria péssima.”

“Sim, bem, sabe como é. Você também é incrível. Era o que estava fazendo antes de vir para cá?”

“Bom... Era uma pequena vila. Todo mundo aprendeu a colher ervas lá... E no seu caso?”

“O mesmo. Entretanto saí porque odiei.”

Houve um momento de silêncio. Estava claro que nenhum dos dois queria falar muito sobre casa. Contudo pouco antes de o clima ficar estranho, um grito alto quebrou o silêncio.

“Espere! Seu maldito pirralho!”

Quando Belgrieve se virou para olhar, viu um menino vestido com trapos sujos sair correndo do um beco próximo, seu cabelo castanho esvoaçando atrás. Um homem de meia-idade de avental o perseguiu, ofegante.

“Alguém pegue esse pirralho! O moleque jantou e saiu correndo!”

“Hmm, interessante. Acha que receberemos uma recompensa?” Percival perguntou enquanto corajosamente se colocava no caminho do menino. Estava sem sua espada, no entanto Percival também seguia sendo bastante habilidoso no combate corpo a corpo.

“Vamos, baixinho! Desista se não quiser se machucar!”

Os olhos do garoto de cabelos castanhos se arregalaram por um breve momento, todavia rapidamente formou um sorriso próximo ao escárnio. Seu braço balançou como se estivesse jogando uma bola sem jeito.

“Whoa!”

De repente, uma massa de mana azul clara atacou Percival. Tendo sido pego de surpresa e atacado de frente, seu corpo foi jogado para o lado da estrada. Quando o garoto de cabelos castanhos passou correndo, encarou Percival com um olhar zombeteiro e mostrou a língua para Belgrieve, que estava parado observando, atordoado. E então se foi.

“Bala Mágica... Naquela idade...” Belgrieve murmurou para si mesmo antes de recuperar o juízo e correr para o lado de Percival. “Está tudo bem, Percy?”

“Ow, ow... Nunca teria imaginado que o garoto era um mago.” Percival esfregou a cabeça enquanto se levantava aos poucos. “Ele é muito habilidoso se conseguiu me derrubar daquele jeito. Gostei. Hey, vamos procurar aquele garoto. Vou colocá-lo no grupo.”

“Eh?”

“É um pirralho de favela, pelo que pude ver. Teria parecido um pouco mais arrumado se fosse de um orfanato e também não parecia um aventureiro. Se puder usar uma magia tão forte na sua idade, sem dúvida vai ser um figurão no futuro. Temos que pegá-lo antes que outro o faça.”

“Não, espere um segundo...”

“O que? Foi você quem disse que precisamos de um lutador de retaguarda.”

“Precisamos, mas... Está falando sério? Nem sabe que tipo de pessoa aquele garoto é.”

“Oh, pare de reclamar. Você se juntou ao meu grupo antes de saber que tipo de pessoa eu era, certo? É tudo a mesma coisa. Confie em mim.”

Belgrieve suspirou sarcasticamente e coçou a cabeça. Sabia que não havia como parar Percival quando ficava assim.

“Certo. Bem, seu juízo de caráter é bom, então deixarei por sua conta.”

“Tudo bem. Agora que isso está resolvido, precisamos começar a rastreá-lo!”


O menino nunca tinha visto o rosto de seus pais. Sua lembrança mais antiga era de estar deitado em uma cabana em ruínas, em meio a todo o lixo que ia parar na favela. Havia muitos adultos nas favelas, porém havia o mesmo número de crianças. Alguns foram abandonados lá quando bebês, enquanto outros ficaram na miséria depois de perderem os pais.

Havia todos os tipos de adultos lá também. Alguns deles não puderam trabalhar depois de sofrerem ferimentos graves; outros eram ex-aventureiros sem casa para onde voltar. Havia criminosos que escapavam à lei, magos escondidos, servos banidos pelos seus antigos senhores e prostitutas que acolhiam clientes em pequenas tendas insalubres. Todos os tipos de vidas se cruzaram naquele lugar.

O menino presumiu que seu cabelo castanho escuro vinha de um de seus pais, contudo ninguém por perto tinha ideia de quem eles eram. Na época em que o velho que o pegou ainda estava vivo, sempre abria bem a boca desdentada e ria quando o assunto era tocado.

“Você foi jogado fora, pura e simplesmente assim.” dizia. “Em uma noite de inverno. Estava nevando muito, sabe — teria morrido congelado se eu não tivesse te encontrado.”

“Sim, já ouvi. Não pode me contar algo novo?” O menino ergueu os olhos do grimório que estava lendo e, frustrado, encostou-se na parede.

O velho era um bêbado que tinha o hábito de vasculhar o lixo da cidade em busca de qualquer coisa que chamasse sua atenção. Sua vida era ganha vendendo objetos para lojas de penhores ou, na falta destes, implorando. O homem o criou, todavia o menino não gostava muito dele. Então, quando o velho morreu, o menino não ficou particularmente triste. Odiava vasculhar lixeiras e odiava mendigar. Em vez de pegar as sobras de alguém, queria ganhar algo com suas próprias forças.

Havia muitos criminosos nas favelas. A maioria cometia pequenos crimes para sobreviver, no entanto as crianças da sua idade tinham uma visão meio romântica do crime. Roubavam ou deixavam de pagar as contas como se fosse algum tipo de competição. É claro, esse garoto fez o mesmo. As outras crianças construíram seus próprios grupos, como fazem as crianças, entretanto o menino era tímido por natureza e não se juntou a nenhum deles. Mesmo na sociedade infantil, aqueles que se destacavam eram condenados ao ostracismo. Como não tinha amigos entre as outras crianças, tinha certeza de que viveria a vida inteira sozinho.

O que mudou seu destino foi um único livro que roubou de uma barraca à beira da estrada. Em outras ocasiões teria vendido um livro como esse, mas o garoto se viu folheando as páginas, atraído pelo seu conteúdo. Ler e escrever foi uma coisa que aprendeu com os adultos que moravam nas favelas, para poder decifrar as páginas, de uma forma ou de outra. E quanto mais lia, mais ficava fascinado pelo profundamente misterioso mundo da magia. O menino leu de frente para trás repetidas vezes, participou de sessões práticas autodirigidas e por fim aprendeu a usar feitiços simples. Depois que isso aconteceu, o mundo começou a parecer diferente aos seus olhos.

O menino fechou o grimório e saiu. O chão de terra batida era irregular, marcado por poças de lama em alguns lugares. Estava sujo, fedorento e empoeirado, tanto que o arrastou de volta à realidade, vindo do mundo de magia fantástica pelo qual acabara de vagar.

Foi aqui que ele nasceu e foi criado, mas não era o seu lar. Dito isto, não tinha ideia de como viver em outro lugar. Mergulhar na magia era a única diversão que tinha, e promoveu seus crimes para testar seus feitiços. Isso foi algo que o garoto achou bastante interessante — era divertido provocar os adultos estúpidos com magia.

“Aventureiros, hein?” o menino murmurou.

Ele se lembrou dos meninos — ambos apenas dois ou três anos mais velhos que ele — que haviam tentado abordá-lo outro dia. Um deles tinha uma espada, então é provável que fossem aventureiros.

O garoto já esteve na guilda antes. Não havia restrições ao registro de aventureiros, e não era raro que órfãos nas favelas conseguissem algum trabalho dessa forma. O menino havia chegado ao ponto em que poderia fazer isso.

Porém ainda que as crianças da favela se registrassem na guilda, não havia muito trabalho para as crianças que não tinham armas adequadas. Nos escalões mais baixos, até mesmo os aventureiros adultos lutavam para encontrar trabalho. A competição entre as crianças era mais acirrada com opções mais limitadas. Muitos dias, eles não conseguiam encontrar nenhum trabalho. Assim, nunca se considerou um aventureiro.

Claro, o garoto não queria viver uma vida de crime se pudesse evitá-la, contudo considerando sua educação e personalidade, era igualmente indiferente em relação aos trabalhos de coleta de ervas e limpeza da cidade. Sua timidez também o impediu de pedir instruções a alguém. No final, sentiu que não poderia viver sem roubar e fraudar.

Quem está pensando que é, parado ali como se fosse um herói da justiça? A expressão do menino relaxou e caiu na gargalhada. Com a minha magia, mesmo um aventureiro com uma espada não é páreo para mim.

No entanto havia um limite para o que poderia fazer com um único grimório. Quanto mais mergulhava no mundo da magia, mais sua curiosidade florescia — a tal ponto que continuar a viver dessa maneira agora parecia terrivelmente insatisfatório.

“Te achei!”

O menino se encolheu com a voz repentina e estrondosa. Ao se virar na direção da voz, viu um garoto com cabelos louros correndo em sua direção com um olhar alegre no rosto.

“Agh!” é aquele garoto de ontem! Eu não pensei que iria me perseguir aqui! O menino foi pego de surpresa, entretanto não iria apenas se deixar ser capturado, então começou a fugir freneticamente.

“Não corra! Apenas venha comigo!”

“N-Não chegue mais perto!” o menino correu o mais rápido que seus pés permitiram, mas o garoto que o perseguia estava em um ritmo anormal. Era como se fosse a personificação da vontade de persegui-lo e capturá-lo.

Quer dizer, eu acabei de derrubá-lo uma vez. É muito imaturo da sua parte guardar um rancor tão forte, pensou o garoto de cabelos castanhos enquanto cerrava os dentes. Ele se perguntou o que o estaria esperando se fosse capturado — uma surra dos aventureiros, ser entregue aos soldados, ou ambos, talvez. Fosse o que fosse, sabia que não seria nada bom. Claro, poderia usar magia, porém não era otimista o suficiente para acreditar que sairia ileso de uma luta contra um aventureiro ativo — nada menos que um espadachim.

Usando seu amplo conhecimento dos becos, o garoto de cabelos castanhos disparou para a esquerda e para a direita, por vezes disparando balas mágicas até que por fim se livrou do garoto de cabelos loiros. Assim que percebeu que estava seguro, caiu de joelhos. Ele ouviu as batidas de seu coração enquanto estabilizava a respiração.

“Huff, huff... Caramba, que cara...”

Depois de se recompor, ficou na ponta dos pés enquanto voltava para sua cabana.

Dois dias se passaram e, errando por excesso de cautela, o menino manteve-se discreto o tempo todo. Não furtou nenhum bolso nem comeu e fugiu. Na verdade, não conseguia sequer tentar. Tinha a sensação de que aquele garoto loiro iria aparecer no momento em que fizesse alguma coisa, e isso o deixava muito ansioso.

Era raro o menino de cabelos castanhos se comportar tão bem, e as crianças da favela começaram a sussurrar entre si. Os rumores da perseguição já se espalharam por toda parte.

“Ele perdeu a coragem, quem diria.”

“Hmph! Pra quem agia todo confiante e poderoso antes, só porque podia usar um pouco de magia. Alguém deveria pegá-lo e entregá-lo aos soldados.”

A fofoca maliciosa tendia a chegar ao seu alvo. Provocado por todos os sussurros infundados, o menino finalmente saiu. Quem perdeu a coragem, hein?

Agora que estava do lado de fora outra vez, as favelas eram as mesmas de sempre. Não havia ninguém o esperando, nem havia soldados em patrulha. O garoto zombou, sentindo-se um idiota por ter ficado com medo. O que devo aprontar para compensar o tempo perdido?

Ele foi para o mercado. Como sempre, o mercado da cidade estava lotado de gente. Isso tornou muito mais fácil de operar.

Enquanto caminhava, abrindo caminho entre as barracas, seus olhos se fixaram em uma barraca que vendia itens encantados. Eles pareciam ter vários grimórios em estoque. Embora estivesse com fome, sua curiosidade venceu seu estômago. O garoto examinou a mercadoria, lançando vários olhares fugazes para o sujeito corpulento que administrava o lugar. O homem estava cochilando sonolento, suas pálpebras travando uma batalha perdida. Que descuido, pensou o menino enquanto pegava um grimório e fingia continuar examinando as outras mercadorias enquanto se esgueirava furtivo na sombra de outro cliente. Pouco a pouco, foi se distanciando da barraca. Agora só faltava correr.

Foi moleza. Enfim posso aprender alguns feitiços novos, pensou, com um leve sorriso se espalhando por seu rosto. Sua alegria logo se transformou em surpresa quando o grimório em suas mãos de repente brilhou com uma luz roxa, que então assumiu a forma de uma corda para amarrar suas pernas. O garoto caiu no chão e a corda se esticou para amarrar o resto de seu corpo.

“Isso é muito problemático, querido cliente. Você precisa pagar pela mercadoria.” o lojista de antes se aproximou com um sorriso. Contudo seus olhos não eram nem um pouco joviais. “Só idiotas roubam itens mágicos. Não considerou que poderia haver um feitiço para capturar ladrões?”

O menino se contorceu e se mexeu.

“E-Espere, espere! Eu não estava tentando roubá-lo nem nada!”

“É o que todos os ladrões dizem.” olhando para o menino com olhos frios, o lojista gesticulou com o dedo. O menino gritou quando a corda mágica se contraiu. “Agora o que fazer com você? Posso entregá-lo aos soldados assim.”

“M-Me desculpe, sério! Vou devolvê-lo! Na verdade, basta pegar!”

“O que fazer, o que fazer... Esse é um livro muito caro que pegou. Não suporto a ideia de suas mãos sujas o terem tocarem.”

O menino pôde ver um soldado em patrulha vindo em sua direção naquele exato momento. Seu rosto ficou nublado de desespero ao pensar que seria capturado por algo tão estúpido. Quando o lojista estava prestes a chamar o guarda, o garoto ouviu uma enxurrada de passos e então — o garoto de cabelos louros irrompeu em cena.

“Hey, espere um pouco! Não posso permitir que arraste esse garoto pra prisão!”

“Urgh... Você!”

“Enfim te encontrei. O que está fazendo, imbecil?”

O garoto loiro olhou cansado para o garoto de cabelos castanhos. Ele se contorcia desesperadamente tentando escapar, no entanto isso parecia cada vez mais improvável agora. Estava preso entre a cruz e a espada.

“Quão persistente ainda vai ser? Só te bati um pouco...”

“É exatamente por esse motivo! Não vai fugir desta vez!”

“Whoa, pare! Pare!”

Ainda no chão, o menino tentou se curvar e contorcer o corpo como um camarão para fugir, todavia seus esforços foram inúteis.

O dono da loja de magia olhou para o loiro em dúvida.

“Quem é você? Um amigo desse moleque?”

“Não, não é assim. Olha, importa mesmo quem eu sou? Apenas perdoe-o, por favor. Se ajudar, até comprarei aquele livro lá.”

“Hã? Por que...?”

Vendo o garoto de cabelos castanhos surpreso, o lojista olhou para o garoto de cabelos castanhos e coçou seu queixo.

“Se vai comprar, que assim seja. Também não quero problemas. No entanto é muito caro.”

“De quanto estamos falando?” quando o lojista sussurrou o preço, o menino empalideceu. “Tanto...?”

“É demais para você? Bem, então o moleque vai para a prisão. Hey, guarda!”

Quando o lojista começou a chamar o guarda outra vez, o garoto ruivo interveio.

“Aqui.”

“Hum? Oh... Oh!” a expressão do lojista mudou enquanto contava o dinheiro que lhe foi entregue. Ele ficou de bom humor com seu sorriso profissional em plena exibição. “Esse valor é mais do que o custo do grimório. Tem certeza?”

“Considere uma compensação pelos problemas pelos quais você passou. Em troca, por favor, perdoe esse cara e esqueça o que aconteceu.”

“Oh, eu vou, vou mesmo. Oh, que bom dia!” com um movimento do dedo do lojista, a luz roxa se dissipou. Então, voltou para sua barraca com passos saltitantes.

O garoto de cabelos castanhos ficou atordoado por algum tempo antes de abraçar o grimório contra o peito.

“Hmm, por que...?”

“Seu palhaço. Não posso recrutá-lo para o meu grupo se for mandado para a prisão.”

Os olhos do garoto de cabelos castanhos viraram quando o garoto de cabelos louros lhe deu um tapa na cabeça.

“Grupo? O que está falando? Não sou um aventureiro...”

“Então torne-se um. Foi por esse motivo que fui te procurar outro dia, mas você fugiu. Graças a essa trapalhada, não tenho feito nada além de te procurar nos últimos dias. Nem sequer fiz nenhum trabalho.”

“Que... Quero dizer, tinha certeza que queria me pegar e me entregar...”

“Por que faria algo tão estúpido?” perguntou o garoto de cabelos cor de palha, indignado.

“Percy.” o garoto ruivo interrompeu exasperado. “Qualquer um correria se os perseguisse tão obstinadamente. Te avisei antes.”

“Oh, cale a boca. O que devo fazer? A culpa é dele por fugir.”

“Está sendo irracional de novo...”

“Mesmo assim, estou surpreso que tenha tanto dinheiro assim, Bell.”

“Esse foi o orçamento para sua espada.”

“O que?” o garoto loiro se virou para o amigo. “Por que o usou, então?”

“Quero dizer, sua intenção era recrutar o garoto, certo? Se não pagasse, o jogariam em uma cela.”

“Bem, entendo o que quer dizer... Porém não significa... Minha espada...” todo o seu zelo de antes pareceu desaparecer, e vendo o garoto de cabelos cor de palha tão desanimado, o garoto com cabelos castanhos não pôde deixar de rir. O motivo de sua alegria franziu a testa antes de ir em sua direção e bater em sua cabeça.

“Ow! O que está fazendo?”

“Cale-se! No fundo, a culpa é sua, idiota! Você vai trabalhar duro em nosso grupo! Não fuja!”

“E-Entendi... Contudo... Está bem comigo?”

“Não iria tão longe se não estivesse. Pode ficar com aquele grimório, então aprimore um pouco suas habilidades. Seremos aventureiros de alto escalão algum dia. Se não conseguir nos acompanhar, ficará para trás.”

O garoto de cabelos castanhos olhou para o garoto ruivo, confuso.

“É-É verdade?”

“Haha! Talvez consigamos chegar lá se o tivermos por perto.” disse o garoto ruivo, encolhendo os ombros.

O garoto de cabelos castanhos olhou para os dois, inquieto.

“Hmm... Obrigado por me salvar e tudo mais. Meu nome é Kasim. Prazer em conhecê-los.”

“Kasim, hein? Sou Percival. Me chame de Percy.”

“Eu sou Belgrieve. É um prazer, Kasim.”

Os dois deram um tapinha no ombro dele e Kasim deu um sorriso tímido.

Percival ergueu o braço.

“Tudo bem! Agora que temos um novo membro, vamos brindar!”

“Não... Como acabei de dizer, nossa carteira está vazia. Não poderemos beber por um tempo.”

“Hã?”


O território élfico era vasto, abrangendo toda a parte norte do continente, da costa leste a oeste. A maior parte consistia em florestas, uma densa mortalha de árvores. Também fazia frio durante a maior parte do ano e a neve era uma visão muito comum.

Como seria de esperar, este era o lar dos elfos, mas como raça, eles não se uniram em massa para formar países. Em vez disso, tendiam a ter assentamentos menores que pontilhavam suas vastas terras, às vezes indo e vindo entre eles. Cada clã tinha seu próprio governante, porém não havia um rei que unisse todo o território. Por mais extensa que fosse a terra, havia muitos climas e ambientes diferentes, o que criava culturas substancialmente diferentes entre os assentamentos.

O assentamento onde a menina nasceu ficava na base de uma montanha no território élfico oriental. Um frio cortante descia em cascata pelas encostas das montanhas, e a neve estava sempre presente nas encostas, mesmo no meio do verão. O assentamento era bem próximo do mundo dos humanos e, de vez em quando, ela ia ao mercado dos humanos para vender mercadorias.

Embora os elfos dessem muito crédito à espiritualidade, não eram ascetas. Eram seres físicos com necessidades materiais; se não comessem, morreriam de fome e precisariam de roupas para sobreviver aos elementos. Podiam se sustentar em grande parte através da caça, coleta e agricultura, contudo algumas coisas só podiam ser obtidas de outras formas. Com isso dito, seu comércio se dava em maior parte com outros elfos.

Os humanos salivariam por todos os materiais encontrados no território élfico. Na verdade, em terras humanas, esses materiais raros só poderiam ser encontrados em áreas selvagens inexploradas ou nas profundezas das masmorras. No entanto eram fáceis de encontrar no norte élfico; havia muitas folhas de rúmen para remédios e até densos bosques de árvores ohma, das quais derivavam os elixires. Os elfos colhiam folhas e seiva e negociavam com os humanos sal, ferro, tecidos, trigo e vegetais.

O mercado estava na fronteira. A espaçosa praça era ladeada por diversas barracas ocupadas por vendedores ambulantes e caravanas de gente errante, vendendo mercadorias de todo o país. Havia música, canto e dança, e era sempre tão animado quanto um festival sempre que a garota estava lá. As barracas dos elfos eram tão animadas quanto — os mascates humanos estavam todos interessados em comprar produtos que somente os elfos poderiam obter, e os elfos lidavam com eles o dia todo.

Em meio a toda essa agitação, a garota puxou um capuz sobre a cabeça e escapou furtivamente de sua trupe élfica. Ela se esgueirou no meio da multidão, dando cada passo com cautela enquanto se dirigia ao posto de controle. A garota estava cansada de sua vida em território élfico. Dia após dia, confrontava seu eu interior em meditação antes de se esforçar modestamente em seu trabalho. Era uma vida que nenhum outro elfo questionaria, todavia para a garota era muito chato e tedioso de suportar.

Desde o início, abrigou em seu coração um vago descontentamento com esse estilo de vida tradicional. Não entendia por que ser uma elfa deveria determinar como vivia sua vida. Tais pensamentos ardiam constantes em sua mente e lançavam longas sombras sobre sua vida diária. A última gota que a convenceu a partir foram as histórias heroicas de um de seus irmãos. Dos elfos, um herói conhecido como Paladino apareceu, ganhando fama e glória por toda parte. No momento em que soube de sua história, um desejo por terras distantes brotou em seu coração. No começo era pequeno. Entretanto cada vez que via todos os tipos de pessoas no mercado, o broto crescia cada vez mais.

Ela teve suas reservas, é claro, mas seu desejo e curiosidade acabaram vencendo. Com certeza as árvores cobertas de neve não poderiam ser tudo o que havia no mundo. A menina queria ir para algum lugar distante e apenas estar em outro lugar. Estava confiante em suas habilidades com espadas e feitiçaria que havia desenvolvido como caçadora. Amparada pela imprudência que vinha de sua juventude, enfim acabou por partir.

Além do posto de controle, atravessou a estrada da montanha Keatai e, enquanto seus olhos refletiam as intermináveis planícies esmeraldas de Tyldes, seu coração batia acelerado no peito. Quero ir ainda mais longe, percebeu.

Ela não tinha nenhum motivo específico — era apenas o que desejava. Isso mesmo... Para onde foi o Paladino em suas aventuras? Era um país ocidental, se não me engano. O mundo lá é bem diferente do que é no Oriente. Se chegar lá, talvez finalmente pareça que já fui longe o suficiente.

A menina continuou sua jornada para o oeste, às vezes de carroça e outras a pé. Aprendeu a ganhar dinheiro com a espada e logo depois aprendeu o sabor do álcool. Cada dia era repleto de novas experiências e, para o bem ou para o mal, seu coração nunca conheceu descanso.

O fato de ser uma elfa chamava a atenção, é claro, e muitas vezes se via sendo perseguida por pessoas peculiares, porém sempre conseguia abrir caminho em qualquer problema. Esta também foi uma experiência nova, sem dúvida, contudo quando chegou à fronteira de Tyldes e Estogal já estava cansada de lidar com humanos.

“Ow, ow, ow! Hey, eu desisto, desisto!” o homem gritou enquanto seu braço era torcido em uma direção não natural. Seu corpo se contorceu para fugir. Tudo isso aconteceu porque você continuou me seguindo quando te disse para parar, pensou a garota elfa.

“Pare de choramingar, sério.” disse, zombando.

Os elfos já foram descritos como os amados de Viena e quase todos possuíam belas feições. E porque raramente apareciam diante dos humanos, eram objeto de adoração excessiva entre os humanos e tinham expectativas excessivas colocadas sobre eles. Por outro lado, algumas pessoas desprezavam os elfos e os desafiavam de maneira arrogante. De qualquer forma, foi um incômodo para a garota. Afinal, só me veem como uma elfa.

Essa situação a irritou. Sua esgrima e lançamento de feitiços eram de primeira linha. As habilidades que a levaram a atravessar o país oriental não eram brincadeira. E, mesmo assim, cada pessoa que conheceu se aproximava dela sem demonstrar qualquer interesse em suas habilidades. Todos esses homens tinham segundas intenções claras. A garota se perguntou se todos achavam de verdade que não notaria.

“Que estúpido.”

Ela percorreu todo o caminho até a extremidade ocidental do continente, no entanto era tudo igual. Até onde preciso ir antes de parecer que cheguei de fato a algum lugar? A garota soltou um suspiro antes de olhar para cima e voltar sua atenção para o que estava ao seu redor. Por enquanto, teve que continuar trabalhando para se sustentar.

Embora estivesse farta de todas as pessoas que conhecia, as cidades e vilas que esses mesmos humanos construíram eram tão grandes que inspiravam admiração para a garota. Os assentamentos élficos eram bem pequenos, a menos que o rei do clã residisse lá, e a população era muito pequena em qualquer caso. Por outro lado, muitos humanos se reuniram para viver em suas cidades. Os edifícios eram altos e robustos e seus designs eram variados. Orphen era a maior cidade que já visitara. Seus olhos giraram com a grande quantidade de pessoas ao redor, e a paisagem urbana complicada era labiríntica para um elfo.

De alguma forma, a jovem elfa foi até a guilda e, como a própria cidade, era maior do que qualquer guilda em que já estivera. Seu coração batia forte quando passou pela porta. Em seguida, todos os olhos se fixaram em sua direção — elfos eram raros, é claro. Ela se acostumou com os olhares, entretanto não significava que gostasse.

Agora, para a mesa... Pensou, antes que o caminho fosse bloqueado por um homem alto.

“Hey, você é uma elfa, certo? É uma aventureira?”

“Sou. O que isso importa para você?”

O homem trocou alguns sussurros com as pessoas atrás dele — seus camaradas, talvez — antes de se voltar para a garota.

“Você está sozinha, pelo que posso ver. Se quer ser uma aventureira nesta cidade, é melhor estar em um grupo. Que tal, quer...”

“Espere.” antes que o homem terminasse, outro homem se intrometeu pela lateral. “Nada de bom virá de se envolver com esse cara. Estará mais segura conosco.”

“O que diabos disse?”

“Senhorita, não deveria considerar esses caras pelo valor nominal. Nosso grupo é o melhor.” antes que a menina percebesse o que estava acontecendo, um jovem estava ao seu lado, segurando sua mão casualmente.

A garota imediatamente o ignorou e mostrou a língua.

“Eu recuso! Tente outra pessoa!”

“O quê, é assim que responde à minha gentileza?”

“Ninguém te chamou. Sai fora!”

“O que foi isso, hein?”

A situação foi piorando cada vez mais até que, no fim, se transformou em uma briga.

Como isso aconteceu? ela se perguntou, um pouco confusa enquanto evitava os punhos balançando dos aventureiros furiosos. Estava se esquivando para que eles não a esbarrassem quando de repente alguém puxou seu braço.

“Hã?”

“Por aqui!”

“Eh? Whoa!”

Tudo estava acontecendo tão de repente que não conseguia processar o que estava acontecendo. Seu braço foi puxado por um caminho sinuoso em meio à multidão e, uma vez livre, viu que era um garoto loiro que agarrou sua mão com firmeza. Além do mais, o menino era bastante forte. A garota foi arrastada diretamente para um garoto ruivo de olhos arregalados e outro garoto de cabelos castanhos.

“Vamos fugir! Reunião encerrada, encerrada!”

“C-Certo... Não, espere! O que está fazendo com ela?” o garoto ruivo gritou de surpresa.

O garoto de cabelos louros sorriu.

“Não parecia certo deixá-la no meio de toda essa confusão.”

“Agora olhe aqui... Não, agora não é hora de reclamar.”

A garota ainda estava tentando descobrir o que estava acontecendo. Enquanto piscava confusa, o garoto de cabelos castanhos estendeu a mão e tocou sua bochecha. Ele começou a beliscar e esfregar.

“Hmm, isso é algo. A pele dela é macia como seda.”

“Hey, pare de cutucar. Quem diabos são vocês?” a menina finalmente conseguiu perguntar.

Todavia sem lhe dar atenção, o loiro continuou puxando-a.

“O que importa? Vamos sair daqui.”

Assim, a garota elfa foi libertada da guilda. Ela ofereceu uma ligeira resistência, todavia ainda estava muito nervosa e o menino era muito forte para que conseguisse escapar. Eventualmente, eles chegaram a um lugar remoto. Era um terreno baldio e, embora houvesse prédios ao redor, tinha uma visão desobstruída do céu e do sol escaldante acima.

Todos correram todo o caminho até lá, então a elfa estava um pouco sem fôlego. A garota ofegou, colocando a mão no peito para se firmar. Suas respirações superficiais aos poucos recuperaram o ritmo constante.

“Está tudo bem?” alguém perguntou.

Olhando para cima, viu o garoto ruivo observando-a com preocupação. À medida que sua respiração se acalmava, sua mente também se acalmava. Pelo que sabia, esses meninos eram aventureiros. Era bastante óbvio, visto que estavam na guilda. Então, estão tentando me convencer a participar do seu grupo também... A constatação a deixou de mau humor na hora.

“O que você quer?” perguntou friamente.

O garoto ruivo pareceu surpreso, mas o garoto loiro não se intimidou nem um pouco. Acenando com a mão, respondeu.

“Acabei de te salvar. Você teria saído bastante mal se tentasse enfrentar todos.”

“Hmph. Não pedi para ninguém me salvar.” respondeu sem rodeios antes de se virar para o outro lado. Estaria bem sozinha...

A testa do garoto de cabelos cor de palha se inclinou em uma carranca.

“Hã? Qual é a dessa sua atitude?”

“Sei bem o que está querendo — nem tente me deixar em dívida com vocês. Você acabou de se aproximar de mim porque sou uma elfa, certo? Vocês são todos tão estúpidos. Se quiser me recrutar, pelo menos o faça depois de ver o quão forte sou.”

“Quem diabos quer te recrutar? Nem tem músculos nesses seus braços esguios.”

Aquilo instantaneamente a deixou boquiaberta. Ela olhou indignada para o menino e gaguejou.

“O-O que disse? Isso é conversa fiada quando todos vocês parecem tão fracos que seriam derrubados por uma leve brisa!”

“Eu? Fraco? Agora disse isso!” o loiro pegou a espada em sua cintura. A garota agarrou o próprio punho de sua espada também.

“Quer tentar? Muito bem, vou tirar esse olhar arrogante do seu rosto.”

“Hey, esperem, esperem! Acalmem-se, os dois!” o garoto ruivo se interpôs com pressa entre eles, apenas para ser empurrado com força para o lado — não apenas pela garota, como também pelo garoto.

O garoto de cabelos cor de palha uivou.

“Afaste-se. Essa garota estúpida precisa aprender uma lição.”

“Essa é a minha fala. Seu amigo aqui precisa de uma surra ou nunca aprenderá.”

Os dois puxaram as espadas ainda embainhadas dos cintos e atacaram uns aos outros ao mesmo tempo. Seu golpe alto atingiu o garoto na cabeça. Minha vitória... Ou assim pensou, quando uma dor surda reverberou pelo centro de seu corpo. Ela caiu no chão, contorcendo-se de dor enquanto o menino segurava sua cabeça.

“Agh...” o menino gemeu.

“Ugh...” a garota gemeu de volta.

Ela ergueu o rosto com lágrimas nos olhos. A dor era insuportável. Esta foi possivelmente a primeira vez que sofreu um contra-ataque tão severo desde que deixou o território élfico.

O garoto de cabelos castanhos segurou a barriga de tanto rir. Enquanto isso, o garoto ruivo suspirou cansado.

“O que estavam tentando provar?” perguntou.

“B-Bell, pegue o remédio para caroços...” o garoto de cabelo palha gemeu.

“Você colhe o que planta... Meu Deus.”

O garoto ruivo tirou um frasco de remédio da bolsa. Deixou um pouco escorrer para um pano antes de pressioná-lo contra a cabeça do amigo. Então, com o frasco ainda na mão, virou-se para a garota.

“Você também. Dói, certo?”

“N-Não...”

“Pare de agir durona... Fui eu quem te acertou. Deve doer... Bom, você não foi tão ruim assim. Achei que fosse uma coisinha fraca, porém é uma ótima lutadora de espadas. Certo, Bell?”

“Sim, foi esplêndido. Desde o momento em que desembainhou a espada até o momento em que atacou, foi tudo um movimento suave e fluido.”

“E-Entendo...” as bochechas da garota coraram um pouco enquanto abaixava a cabeça. Já fazia muito tempo que ninguém a elogiava por sua esgrima.

O garoto ruivo se aproximou timidamente dela.

“Então, uh, acho que deveria usar um pouco de remédio. Para o seu próprio bem.”

“Estou bem... Não é nada.”

“Não, vai doer por algum tempo se não tratar. Os ataques de Percy são um negócio sério.”

A garota se mexeu, contudo acabou enrolando um pouco a camisa para expor o ferimento. Já havia se transformado em um hematoma roxo devido ao sangue que se espalhava sob sua pele.

“Pode aplicá-lo para mim?”

“Hã? Eu?”

A garota assentiu.

“Sim.”

A boca do garoto ruivo estava aberta, no entanto reuniu sua determinação. Ele molhou um pano com um remédio e pressionou-o nervosamente contra a pele dela. A pomada estava fria para sua surpresa e causou uma forte sensação de ardência. A menina não conseguiu conter um “Eep!” o que fez com que o garoto ruivo recuasse.

“De-Desculpe. Doeu?”

“Não, está bem. Poderia fazer uma compressa com o remédio?”

“S-Sim. Essa é uma ideia melhor.”

O menino se apressou em juntar uma compressa úmida e colocou-a no quadril da garota. Não foi forte o suficiente para fazer a dor desaparecer por inteiro, entretanto diminuiu um pouco. A garota soltou um suspiro de alívio e sentou-se em um tronco próximo.

“Vocês são aventureiros?”

“Sim. Você também? Bem, estava na guilda, então deve ser.” disse o garoto loiro de onde estava sentado no chão. A garota assentiu.

Cruzando os braços, o garoto de cabelos castanhos entrou na conversa.

“Uma elfa aventureira? Achei que só existiam em contos de fadas.”

“Quer dizer o Paladino?”

“É, esse mesmo.”

“Então conhecem sobre ele.” a garota se viu abrindo um sorriso. Um garoto que parecia mais jovem que ela sabia sobre o herói élfico. Por alguma razão, isso a deixou muito feliz.

O garoto de cabelos castanhos esfregou as mãos de maneira tímida.

“Já o conheceu? Hmm... O Paladino, quero dizer.”

“Não, nunca. Mas me tornei uma aventureira porque o admirei.”

“Então está almejando ser uma Rank S também?” perguntou o garoto de cabelo palha.

“Também? Parece que temos algo em comum, então.”

“Claro. Vamos subir cada vez mais alto. Vou ver um mundo novo lá do topo.”

Um novo mundo; uma visão distante... A elfa tentou acalmar as batidas de seu coração, porém sua respiração ficou ofegante e sentiu suas bochechas esquentarem. Se eu ficar com eles, então talvez...

O garoto ruivo parecia preocupado.

“Está tudo bem? Está se sentindo doente?”

“Não, não é isso.” a menina hesitou um pouco antes de dizer. “Hum... Me desculpe por tirar conclusões precipitadas. Se estiver tudo bem, posso me juntar ao seu grupo?”

“Hã? Você?”

“Também quero ver um novo mundo. Eu... Posso?”

Os meninos trocaram alguns olhares. No fim, o loiro estava pronto para responder. Ele estendeu a mão, um sorriso afetado no rosto.

“Percival. Me chame de Percy.”

“Sou Kasim. P-Prazer em conhecê-la.” disse o garoto de cabelos castanhos enquanto se escondia timidamente atrás das costas do garoto ruivo.

A elfa sorriu e apertou a mão de Percival.

“Percy e Kasim. Então você... Ah, obrigado pelo remédio. É Bell, certo?”

“Sim. Belgrieve, para ser mais preciso. Contudo Bell serve.”

Os quatro estavam conversando normalmente momentos antes, no entanto de repente todos estavam nervosos. Que estranho... A garota deu uma risadinha. Esses foram seus primeiros amigos — seus primeiros camaradas — desde que saiu de casa. Talvez tenha conseguido ir um pouco mais longe dali, refletiu.

“Meu nome é Satie. É um prazer conhecê-los.”


Não muito tempo atrás, parecia que seus dias em Orphen haviam se estabelecido em uma regularidade cinzenta, entretanto, aos poucos, seus dias foram coloridos com todos os tipos de tons frescos. O novo grupo de quatro pessoas encheu Belgrieve com um estranho senso de solidariedade e confiança, diferente de qualquer grupo ao qual havia aderido antes. Quando se tratava de Percival, o líder, ou de Kasim, o mais jovem, ou de Satie, a elfa, todos tinham suas peculiaridades que os tornavam difíceis de lidar. Mas, quando todos se reuniam para fazer alguma coisa, era mais divertido do que qualquer coisa que pudesse imaginar, e adorava compartilhar esse momento juntos.

O que não significava que tudo foi fácil. Percival era propenso a ataques violentos e Satie podia ser tão imprudente quanto. Eles competiriam entre si por isso e aquilo, complicando as coisas ainda mais do que antes. Kasim também adorava suas travessuras e, quando Percival e Satie se empolgavam, o garoto não demorava a ficar ao lado dos dois, incentivando suas bobagens.

Era função de Belgrieve restringi-los, regulá-los e mantê-los sob controle. Alguns poderiam dizer que não havia mais ninguém para fazer o papel, porém no que dizia respeito à Belgrieve, havia assumido por conta própria esse papel. Seus três camaradas eram de fato habilidosos. Tendo feito alguns trabalhos juntos e participado de alguns treinos leves, Belgrieve estava convencido. Tinha visto muitas pessoas mais habilidosas do que ele desde que chegou a Orphen, contudo esses três eram mais promissores do que todos os outros.

Essa certeza o levou a um lugar sombrio, pois sabia que nunca poderia esperar alcançá-los. No entanto Belgrieve nunca teve uma avaliação muito elevada de si mesmo; estava só convencido de sua falta de potencial, como se fosse um fato óbvio da vida. Depois de aceitar isso, sabia que precisava encontrar algo que pudesse fazer e dar o melhor de si. A confiança que os outros três depositaram nele para essas tarefas foi sua graça salvadora. Na verdade, eram os mesmos papéis que uma vez lhe foram atribuídos quando esteve em grupos anteriores, entretanto agora realmente os considerava seu dever. Isso lhe deu uma leve sensação de inferioridade, todavia também ficou feliz em poder ser de ajuda.

“Ah, droga, um conseguiu passar! Você consegue pegá-lo, Bell?”

Um eingal estava saltando em sua direção depois de escapar de Percival. Era um monstro parecido com um cervo, do tamanho de um cachorro grande. Ao contrário de sua aparência delicada, era uma fera feroz que não hesitaria em empalar qualquer um com seus chifres robustos.

Belgrieve preparou sua espada e interceptou o ataque do monstro. Poderia detê-lo, mas foi incapaz de estripá-lo enquanto passava — como Percival e Satie conseguiram. Ele conseguiu desviar habilmente sua força, mantendo-o no lugar enquanto gritava para Kasim na linha de fundo.

“Kasim!”

“Pode deixar!”

Belgrieve se apressou em se esquivar quando um raio de magia voou vindo de suas costas. O raio tingiu o eingal, fazendo-o tombar. Sem perder tempo, Belgrieve enfiou a espada em sua garganta. O eingal se debateu, porém logo ficou imóvel.

“Esse é o último?” Belgrieve perguntou, examinando a área enquanto recuperava o fôlego. Dos cinco eingals que encontraram, três caíram e dois correram. Percival e Satie conseguiram, cada um, eliminar um por conta própria.

“Hehehehe.” Kasim riu, aproximando-se com um sorriso. “Boa coordenação, certo? Não sou útil?”

“Claro que é. Me salvou ali.” disse Belgrieve enquanto pegava uma corda. “Vou começar a esfolar os corpos. Poderia me ajudar a pendurá-los?”

“Uh, o trabalho físico está um pouco fora da minha área... Ah, Percy está vindo, viu?”

“Hmm...” Belgrieve olhou para ver Percival se aproximando enquanto embainhava sua espada.

“Deixamos alguns escaparem. Bom, ainda temos o suficiente para concluir o pedido.”

“Sim. Vou começar a esfolá-los. Me de uma mão aqui.”

“Pode deixar.”

Enquanto lidavam com o primeiro eingal, Satie voltou apressada. A garota parecia bastante animada e, mesmo depois que seus pés pararam de se mover, seus braços ainda balançavam.

“Finalmente algo aventureiro! É assim que deveria ser!”

“Não fique satisfeita com isso. Este é apenas o começo.” disse Percival, embora também estivesse sorrindo. Depois de tantos pedidos de coleta, esta era a tão esperada chance de lutar contra os monstros.

Belgrieve sacou sua faca de caça. Fígado de Eingal tinha sido o item solicitado — ao que parecia era um reagente usado em poções mágicas — e a guilda também compraria peles, carne e chifres. O fato de que uma quantia poderia ser ganha fora do pedido em si era o que tornava a caça aos monstros tão lucrativa.

Satie se juntou ao grupo logo depois que Percival comprou sua nova espada, então eles ficaram falidos por um tempo. Os quatro vinham trabalhando em trabalhos menores para economizar dinheiro e terminar de montar o restante do equipamento aos poucos. Cada um tinha equipamentos diferentes de que precisavam — mesmo que Kasim pudesse trabalhar em maior parte apenas com as roupas do corpo e Satie não precisasse de muito mais do que já tinha, ainda havia muito para comprar. Os elixires podiam estar além do seu orçamento, contudo reuniram muitos remédios, bem como bombas de fumaça e bombas de luz, entre outras ferramentas diversas que poderiam ajudar em caso de emergência.

Até que tudo estivesse em ordem, Belgrieve evitou que assumissem tarefas perigosas da melhor maneira possível, e não havia bebedeiras alegres no bar. Além das escassas reuniões onde todos compartilhavam uma garrafa de cerveja barata, não havia nenhuma comemoração. Os outros três poderiam reclamar, no entanto essa era a única coisa que não iria ceder.

Depois de muitas reviravoltas, seus equipamentos estavam em ordem e por fim tiveram sua primeira batalha real como um grupo.

Pedidos que exigiam batalhas com monstros costumavam pagavam melhor do que outros. Em vez de economizar aos poucos, quase todos os jovens aventureiros sonhavam em apenas crescer de uma só vez, e muitos aceitariam empregos além de suas habilidades e, como resultado, morreriam. A equipe da guilda, por sua vez, tentou moderar um pouco suas ambições, todavia os aventureiros foram os responsáveis finais pelo que acontecia em campo.

Belgrieve temia que o seu grupo pudesse acabar numa estatística terrível, por essa razão preparou-se minuciosamente a um nível que se poderia chamar de excessivo. Quando olhou para Percival e Satie, que poderiam enfrentar um eingal sozinhos, se perguntou se algo disso era mesmo necessário. Mas o descuido era uma coisa perigosa.

Ele se lembrou das palavras do aventureiro caolho e balançou a cabeça, apertando a faca com força.

Ao desmontar habilmente o cadáver de Eingal, percebeu que seus camaradas ficaram em silêncio de repente. Estranho, pensou Belgrieve. Ao olhar para cima, viu que os outros três o estavam encarando.

“O que foi?”

“Uh, bem... Se juntarmos a recompensa e o dinheiro que receberemos dos outros materiais, teremos um pouco de excedente, certo?”

“Esperançosamente.”

“Teremos lucro, hein...” disse Satie.

“Certo, enfim teremos dinheiro que podemos usar.” disse Kasim.

Belgrieve examinou quieto as entranhas do eingal. Tomou cuidado ao embrulhar o fígado em um pano e colocou outra camada de papel untado com óleo sobre o órgão. Só depois disso abriu a boca.

“Tudo bem. Vamos ao bar hoje.” seus três rostos tensos abriram sorrisos.

“Tudo bem! Conseguimos a aprovação da carteira do nosso grupo! Vamos beber hoje!”

“Bebam com moderação, ok...” Belgrieve os advertiu, porém os três já estavam entusiasmados sem ele.

“Hehehe, mal posso esperar! Nunca estive em um bar de verdade antes.”

“Qual deles devemos atacar? Vou precisar perguntar por algum lugar bom, só que barato. Conhece algum, Bell?”

“Bom, se estiver bem em um lugar como um restaurante que também serve bebidas, eu conheço um lugar barato.”

“Hehe! É ótimo saber. Você sabe o que é bom, Bell! Eu te amo!”

Sem avisar, Satie o abraçou por trás e Belgrieve quase perdeu o equilíbrio.

“Hey, estou segurando uma faca aqui!”

“Desculpe!”, no entanto embora ela tenha se desculpado, Satie continuou rindo enquanto beliscava suas bochechas. Então, circulou até a frente e tirou uma faca do cinto.

“Deixe-me ajudá-lo. Sei o que estou fazendo.”

“Oh, obrigado. Percy, Kasim, vocês podem ficar de vigia?”

“Entendi. Vamos terminar o quanto antes. Há bebidas esperando por mim.”

“Agora que isso está resolvido, vou trazer os outros cadáveres.”

E com isso Kasim e Percival foram embora. Belgrieve olhou de soslaio para os dois antes de segurar a faca e voltar para o eingal que havia sido dissecado pela metade.


Só assim, seus dias finalmente começaram. Os quatros estavam atendendo a um fluxo constante de pedidos e também conquistaram o direito de entrar nas masmorras. Kasim aprendia novos feitiços todos os dias, enquanto Percival e Satie ficavam mais fortes com a competição entre si. Todos estavam a poucos passos de alcançar o Rank D. Belgrieve era arrastado com frequência de um lado para o outro pelos outros, entretanto gostou tanto do grupo que achou tudo muito divertido. Fazia apenas meio ano desde que se conheceram, todavia era quase como se fossem amigos de infância.

Com o passar dos dias, cada um deles teve uma boa ideia da personalidade do outro. Mas, estranhamente, nenhum deles quis falar da sua terra natal. Todos fugiram de onde deveriam estar. Em vez de refletir sobre o passado, se concentraram com cuidado no que o futuro lhes reservava.

A princípio, Belgrieve pensou que algum dia retornaria a Turnera. No mínimo, quando ganhasse o suficiente para viver de maneira confortável, pensou que não seria tão ruim trazer algumas histórias para casa. Agora que tinha amigos tão fiéis, porém, jogou esse sonho fora — esse pensamento nem sequer lhe ocorreu. Sentia seus limites como aventureiro, mas ainda queria viver com alguma ligação com seus companheiros.

De qualquer forma, tudo estava muito distante. Seguia se sentindo inferior, contudo Belgrieve mal tinha dezesseis anos. Um lado seu sabia que não tinha talento, no entanto outra parte sua seguia esperando que pudesse ter algo que o permitisse subir mais alto. Assim, nunca perdia um dia de treinamento com sua espada, embora nunca tivesse tido chance contra Percival ou Satie.

“Achoo!” Satie espirrou enquanto caminhava ao seu lado.

“Você está bem?”

Ela fungou.

“Sim. Eu deveria estar em casa no frio...”

“É mais quente aqui comparado ao território élfico, certo? Porém talvez seja exatamente isso — seu corpo não está acostumado com o clima daqui, então está propensa a ficar doente.”

“Talvez sim. Como devo dizer? Baixei a guarda porque estava muito quente.”

Desta vez, eles fizeram uma longa viagem para uma cidade que ficava a dois dias de distância de Orphen de carruagem. Embora fosse um lugar pequeno, tinha uma masmorra e Percival disse que queria explorá-la. Contudo a viagem os deixou cansados e não puderam mergulhar de cabeça assim que chegaram. Os quatro chegaram à cidade à tarde e concordaram em passar o resto do dia se recuperando antes de partirem no dia seguinte, o que significava que teriam meio dia de descanso. Quando o almoço terminou, Percival caiu em um sono profundo em seu quarto alugado, enquanto Kasim mergulhava no grimório mágico que trouxera. Belgrieve saiu para dar uma caminhada e Satie o acompanhou.

Naturalmente, ela atraiu um pouco de atenção como elfa, no entanto Satie estava acostumada com isso agora e poderia lidar com qualquer um que tentasse implicar com ela. Como homem, eu deveria protegê-la? Belgrieve se perguntou. Todavia Satie era mais forte que ele, então não teve coragem de perguntar. Mesmo agora, Satie estava a uma curta distância, acenando irritadamente para um homem — um aventureiro, pela aparência.

“Hey, o que isso importa? Você poderia ir junto um pouco.”

“Já tenho o suficiente para fazer, muito obrigado. Um conselho: ninguém gosta de um homem muito persistente.”

Entretanto o homem não recuou.

“Quero dizer, você está sozinha, não está? É perigoso para uma elfa delicada ficar sozinha.”

Satie pareceu irritada por um segundo, mas seu rosto logo exibiu um sorriso travesso. Depois, saltou até Belgrieve e voltou, arrastando-o consigo.

“Que pena, não estou sozinha. Tenho um companheiro bem aqui.”

“Hey, espere...” Belgrieve ficou perplexo enquanto Satie abraçava firmemente o seu braço.

Companheiro? Quer dizer naquele sentido?

“Hã? N-Não, aquele cara de aparência sombria não poderia ser...”

“O que foi isso? Não vá insultar meu homem. Retire o que disse!”

Em uma clara explosão de raiva encenada, Satie saltou com agilidade e respondeu ao homem com um chute. O homem recuou antes de fugir.

“Hehehe!” Satie deu uma risadinha. “Foi divertido.”

“Satie...” Belgrieve suspirou cansado e baixou a cabeça. Porém em vez de ficar irritado, foi mais para esconder a vermelhidão em seu rosto. Satie sorriu enquanto olhava em seus olhos. Era como se pudesse ver sua totalidade refletida naquelas íris esmeraldas.

“Envergonhado, Bell?”

“Por favor, não me provoque...”

“Tão fofo como sempre, entendo.”

Satie riu enquanto se espreguiçava e depois deu um tapinha na cabeça de Belgrieve. Não sou páreo para ela, pensou Belgrieve com um sorriso irônico.

Era uma cidade pequena, então não era preciso caminhar muito para passar pelos arredores. Além da cidade havia uma planície aberta pontilhada de muitas pedras. Pedregulhos de todos os tamanhos brilhavam a luz do sol, elevando-se acima da grama que já havia começado a ficar marrom. Ao se aproximar de uma pedra, achou-a ligeiramente quente ao toque, tendo passado o dia tomando banho de sol. A área estava estranhamente quente, apesar do vento forte. Os dois sentaram-se, encostados na pedra. O céu estava claro e azul, embora houvesse pequenas nuvens felpudas no céu ocidental, fluindo aos poucos em direção a eles.

“Talvez eu vá dormir assim.” disse Satie.

"Por que não dorme?”

“Então não poderei dormir à noite.”

Tem razão, pensou Belgrieve enquanto pegava seu cantil e lhe servia uma xícara de chá quente.

“Obrigado. Está tranquilo aqui, embora haja uma masmorra. Deve estar no lado oposto da cidade.”

“Sim. Pelo que parece, um antigo cemitério se transformou em masmorra. Acha que é subterrâneo?”

“Hmm... Enfrentaremos principalmente mortos-vivos, então.”

“É o mais provável. Peguei bombas de luz extras e um pouco de água benta também. É uma masmorra de baixo nível, então não deve ser tão difícil.”

“Contudo não existem certezas nas aventuras, certo?”

Belgrieve coçou a bochecha sem jeito. Isso se tornou um bordão seu nos últimos tempos. Satie riu e tomou um gole de chá, depois suspirou.

“Adoro a ideia de mergulhar em uma masmorra e lutar contra monstros, no entanto também gosto de momentos como esse. Deixei o território élfico porque odiava o quão silencioso era, mas é estranho...”

“Acho que está perfeitamente bem. Cada lugar tem seus pontos bons e ruins. Não há necessidade de se fixar nos detalhes.”

“Você é muito maduro, Bell.” disse Satie, abraçando os joelhos contra o corpo. Sua voz ficou um pouco mais suave. “Eu, sabe... Quando estou obcecada, bem no meio de uma corrida em direção a alguma coisa, tenho medo de sentar e me acomodar assim. Quando minha cabeça está fria e começo a pensar, começo a me perguntar por quanto tempo conseguirei continuar desse jeito.”

“Sério?” Belgrieve perguntou.

Satie pareceu um pouco ofendida.

“Agora olhe aqui, não sou barulhenta o tempo todo porque quero. É assim que sou.”

“Isso não torna as coisas menos problemáticas para mim.”

“Hehe... Porém apesar de tudo, você sempre perdoa. É por isso que gosto de você.” Satie cutucou-o gentilmente no ombro.

Quando o diz tão fácil assim, só me confunde mais, Belgrieve pensou com um sorriso irônico. Ele tomou um gole de chá para si.

“Também gosto desses momentos.” comentou. “Não fico ansioso. Só espero poder trazer esse momento de paz para o futuro comigo. Algo parecido.”

Depois de olhar para Belgrieve sem expressão por um momento, Satie riu e recostou-se na pedra.

“Sua idade é mesmo igual a de Percy? Está muito acomodado. É como se fosse nosso pai.”

“Ainda que me diga...” Belgrieve coçou a cabeça. Duvido que algum dia serei pai de qualquer maneira...

O sol se pôs lentamente e o vento estava ficando ainda mais frio, então os dois se levantaram e voltaram para a pousada. Quando voltaram para a habitação, encontraram Kasim jogando xadrez com Percival, que havia acordado.

“Bem vindos de volta. Vocês deram uma olhada na masmorra com antecedência?” Percival perguntou.

“Não, estávamos apenas dando um passeio. Trouxe um jogo de xadrez?”

“A pousada emprestou.” explicou Kasim. “É uma boa maneira de matar o tempo.”

“Quem está ganhando?” Satie perguntou, inspecionando o quadro.

“Eu.” disse Kasim.

“Não se precipite. Sou eu.” rebateu Percival.

Satie perguntou.

“Quem está jogando com qual?”

“Eu sou preto.” respondeu Kasim.

“Então Kasim vai vencer. Hey, deixe-me tentar também.”

“Assim que esta partida terminar.”

Percival permaneceu firmemente sentado, entretanto Satie agarrou seu ombro e começou a balançá-lo para frente e para trás.

“Já está praticamente perdido. Vamos, Percy, vá embora.”

“É verdade, Percy é tão fraco que é chato. Assuma o seu lugar, ok?”

“Que tal vocês respeitarem um pouco o seu líder? Droga, apenas façam o que quiser.”

Então Percival trocou de lugar com um beicinho na cara e Satie ocupou o lugar vago em frente a Kasim. Eles começaram a alinhar suas peças de novo. Belgrieve riu enquanto tirava as ferramentas da mochila e verificava cada uma delas cuidadosamente.

Percival apareceu ao seu lado.

“Precisa ser tão minucioso?”

“Às vezes, as garrafas estão quebradas ou as bolsas estão rasgadas. Eu gostaria de manter as ferramentas que usamos com mais frequência no topo da sacola. Além do mais, terei que distribuir as bombas de luz e a água benta entre nós.”

“Você deveria ficar com a maioria das bombas de luz, sempre as usa no melhor momento e dá os melhores sinais. Com os outros, não consigo fechar os olhos a tempo.”

“Vou fazê-lo. Não podemos usar óculos escuros quando estamos no subsolo.”

Percival sorriu de repente.

“Meu Deus, estou feliz por tê-lo no grupo. Não há muitos caras por aí que fazem seu trabalho tão bem.”

“A-Acha mesmo?” as mãos de Belgrieve continuaram a trabalhar enquanto sentia uma mistura de timidez e vergonha.

O tempo estava bom no dia seguinte. Belgrieve praticou com sua espada de manhã cedo e depois inspecionou suas coisas. Após o café da manhã, o grupo saiu da pousada. Havia uma pequena filial de guilda bem ao lado da masmorra, e era frequentada por aventureiros que estavam empenhados em sondar suas profundezas. Depois de preencher os formulários, eles ficaram na entrada.

“Tudo bem, aqui vamos nós.” Percival colocou a mão no punho da espada. Satie e Kasim assentiram com entusiasmo.

“Estarei na frente como sempre. Depois Satie, Kasim e por fim Bell assumirá a retaguarda. Podemos mudar nossa formação conforme necessário. Quer dizer alguma coisa, Bell?”

“Pode ser estreito, então tomem cuidado para não batermos um no outro. Não balancem muito suas espadas.”

“Hey, hey, quero experimentar um feitiço de busca.”

“Vá em frente. Contudo se for apenas um teste, não confie demais no resultado.”

“Hey, Bell, se golpes amplos não são bons, devo me concentrar em estocadas?”

“Se possível. Contudo também não seja obstinado a respeito. É inútil se seus movimentos ficarem desarticulados como resultado. Tente se adaptar à situação. Tenha uma boa noção do que está ao seu redor e ficará bem. Acho que é tudo. Percy?”

“Ok, aqui vamos nós.”

Percy entrou com passos confiantes. Ele foi seguido por Satie e depois por Kasim. Belgrieve observou suas costas por trás. Desde que o grupo foi montado, ele estava sempre cuidando de suas costas. No entanto agora, isso o encantou.

“O que há de errado?”

“Nada.” sua evidente risada lhe escapou. Os membros do seu grupo encararam-no com curiosidade antes de se virarem de volta.

A masmorra estava escura, mas a luz de sua lanterna refletia nas paredes, iluminando uma boa distância à frente. Percival estava conversando sobre algo com Satie. Kasim colocou as mãos atrás da cabeça enquanto caminhava, observando o ambiente.

Belgrieve manteve sua mente no que poderia estar por trás deles. Muitos aventureiros frequentavam o local, então havia muitos passos no chão. Os antigos foram rebocados pelos novos. Entre todos esses passos, os dele eram claramente discerníveis.



Notas:

1. Provérbio que significa, de forma geral, que ao recebermos um presente, devemos mostrar satisfação mesmo que não seja do nosso agrado.
2. Termo para designar um principiante, alguém que começou há pouco tempo e encontra-se perto de passar por uma provação.

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