Capítulo 137: O luar brilhante derravam-se sobre a grama orvalhada
O luar brilhante derramava-se sobre a grama orvalhada que encharcava as barras da calça da menina de seis anos enquanto caminhava por ela, de mãos dadas com o pai. Angeline e Belgrieve tinham saído para passear depois do jantar para aproveitar a noite clara de verão, que estava fria apesar do calor diurno. A carícia suave do vento encheu-a de um conforto indescritível que só sentia a esta hora do dia.
Os olhos de Angeline estavam colados no céu o tempo todo, fascinados pelo brilho da lua. Por vezes, tropeçava no terreno irregular ou nas pequenas pedras espalhadas pelo chão, mas desde que não soltasse a mão do pai, isso era o suficiente para se firmar e não cair. Essa foi uma constatação encantadora para a garota, então começou a se deixar pendurar de propósito na mão de Belgrieve, sem motivo algum. Já havia acontecido inúmeras vezes naquela noite.
“O que é isso? Você está tropeçando muito esta noite, Ange.” observou Belgrieve.
“Hehe...”
Angeline adorava as mãos do pai — eram ásperas, porém calorosas, e sempre a deixava à vontade sempre que ele segurava sua mão ou acariciava sua cabeça. Elas eram tão grandes que envolveriam totalmente sua mão e cobririam sua cabeça.
“A lua grande está linda.”
“Sim, também acho. Todo o orvalho também brilha.” a vista diante dos dois parecia ter sido salpicada de contas de prata líquida.
Belgrieve sorriu maliciosamente.
“Aqui.” ele disse, estendendo o braço na frente de Angeline. A garota agarrou-se a ele, radiante, enquanto era erguida até que seus pés ficassem pendurados acima do chão. Angeline estava em êxtase e gritou de alegria enquanto chutava as pernas no ar.
Depois de um momento, Belgrieve puxou-a para seu peito e Angeline colocou os braços em volta de seu pescoço com um bocejo.
“Vamos para casa.”
“Sim...” Angeline de repente sentiu sono. Um calor reconfortante irradiava das profundezas de seu corpo, e suas pálpebras pesadas foram fechas.
Colocando Angeline nos braços, Belgrieve se virou e começou a percorrer o curto caminho de volta para sua casa. O som do vento parecia acompanhar cada passo seu ao longo do caminho iluminado pela lua.
○
Nuvens assomavam no alto e o ar estava úmido e denso. Era como se a primavera estivesse aos poucos sendo afugentada pelo calor do verão, e quando Angeline estava ativa nesse clima, muitas vezes sentia tanto calor que tinha que tirar a roupa exterior.
As flores pararam de florescer nos campos nos arredores de Orphen, sendo substituídas por folhas verdes frescas que farfalhavam com a brisa. Não havia mais necessidade de se preocupar com as geadas do final da primavera — as noites apenas umedeciam o solo com o orvalho noturno. Os dias em que ela teria que vestir um casaco quando saísse estavam se tornando escassos.
Angeline embainhou a espada e puxou as roupas úmidas, que grudaram em sua pele.
“Está tão quente... Minhas roupas não param de grudar em mim.”
“Parece que estamos sentindo o vento sul hoje. Se aqui está assim, deve ser ainda pior em Estogal e na capital imperial.” observou Anessa. Ela geralmente era bastante meticulosa com essas coisas, contudo como não havia mais ninguém por perto além de suas companheiras, até ela abriu a gola e agitou-a para pegar um pouco da brisa fresca.
Marguerite, por sua vez, teve uma vida um tanto mais fácil — tudo o que precisava fazer era tirar o cardigã de pele para se refrescar, já que o resto da roupa consistia em um pano enrolado no peito e o short. Por outro lado, Miriam parecia estar quase derretendo ao cair pendurada em seu cajado.
“Tão quente...” ela gemeu.
“É porque você está usando um manto pesado...” Marguerite apontou.
Miriam tinha pelo menos tirado a capa que costumava usar por cima, no entanto seu cabelo e cauda já estavam bastante fofos por si só, e usava um manto tão grosso que não revelava nem mesmo os contornos de seu corpo. Era natural que estivesse sofrendo com esse calor. Mas Miriam odiava ser alvo de olhares maliciosos e não queria exibir nada de seu corpo, então, desde que não se tornasse completamente insuportável, se recusaria de maneira bem obstinada a vestir qualquer coisa mais leve.
“Não é como se estivéssemos no meio da cidade. O que há de errado em se despir?” Marguerite perguntou, enxugando um pouco de suor.
“Só estou usando calcinha por baixo do roupão! É claro que vou ficar envergonhada de sair assim!” Miriam gritou, estufando as bochechas.
Angeline riu.
“Então você tem um pouco de vergonha, Merry...”
“O que isso deveria significar? Aw, se eu soubesse que faria tanto calor, teria usado um robe de verão.” ela resmungou. Seu robe de verão tinha quase o mesmo design, porém era feito de um material mais fresco. Miriam havia presumido que ainda estaria um pouco mais frio lá fora.
Hoje, elas saíram devido a um pedido de investigação. Alguns monstros bizarros teriam sido avistados perto de Orphen, então o grupo de Angeline foi enviado para encontrá-los. Não demorou muito para que encontrassem as variantes mutantes, que se revelaram não muito fortes. Ainda assim, provavelmente seriam uma ameaça para civis ou aventureiros de baixo escalão.
Angeline olhou para o cadáver a seus pés. Era um rato grande, do tamanho de um cachorro. Todavia, sua cauda era bastante longa e tinha na ponta um enorme ferrão semelhante a um escorpião e (presumivelmente) venenoso. A matilha de vinte ratos escavou uma rede de túneis para seu ninho. O grupo de Angeline havia destruído a toca e se dividido para derrubar os roedores em fuga onde quer que surgissem.
Anessa cortou um dos rabos do rato, lidando com o ferrão com cuidado.
“Acho que é uma mutação de um rato blindado... Deveríamos levar pelo menos um deles de volta com a gente.”
“Sim — para o relatório e para uma investigação mais aprofundada...” Marguerite disse, cruzando as mãos atrás da cabeça.
“Sou totalmente a favor disso! Vamos pra um lugar agradável e refrescante!” Miriam exclamou, erguendo o punho com entusiasmo.
Assim, as quatro voltaram para a cidade. Era meio-dia, contudo estava nublado e a cidade parecia sombria. As garotas circularam até a entrada dos fundos da guilda e entregaram o cadáver do monstro a um funcionário da guilda. O funcionário logo escreveu alguns formulários e os entregou para serem levados à recepção, momento em que seu trabalho seria considerado concluído.
A guilda estava uma cidade fantasma quando foram até a entrada principal. Toda a agitação do início da manhã não estava em lugar algum, substituída por um cansaço apático devido ao calor inesperado. Todos pareciam estar sofrendo com o clima.
Angeline deixou os membros do grupo esperando no saguão enquanto se dirigia à recepção, onde Yuri a cumprimentou com um sorriso.
“Bem-vinda de volta, Ange. Você terminou rápido.”
“Não rápido o suficiente...” Angeline murmurou, depois colocou os documentos no balcão.
Yuri rapidamente olhou para eles.
“Sim... Isso deve bastar. Assine aqui, por favor.”
Angeline escreveu seu nome na linha no final do formulário e pronto.
“Está tão quente hoje...” ela gemeu, esticando os membros.
“Não é mesmo? Seria bom se estivesse um pouco mais seco, no entanto quando está tão abafado fica insuportável.”
“Hey, comparado à capital, isso não é nada.” Angeline olhou além de Yuri para ver Edgar atrás. Ele havia entrado na conversa de lá, onde parecia estar fazendo o trabalho de escritório.
“Senhor Ed, está de plantão hoje...?”
“Sim. Quanto mais nossa operação se expande, mais papelada há para fazer — vai entender.” Edgar tomou um gole de chá de ervas que já havia esfriado.
A guilda Orphen recentemente fez parceria direta com uma grande empresa mercantil, o que teve o efeito de dar nova vida à sua organização. O simples fato de não haver limite para a quantidade de materiais que a guilda estava disposta a comprar fez maravilhas para motivar seus aventureiros residentes. Desde então, também houve um aumento no número de novos recrutas, alguns dos quais eram muito promissores, se não tão excepcionais quanto Angeline quando ingressou.
Yuri suspirou.
“Entretanto também significa um aumento no número de crianças que correm e morrem ou sofrem ferimentos graves... O desejo é um motivador poderoso, mas é trágico se não houver nada para contê-lo.”
“É o que está acontecendo...?” Angeline perguntou, surpresa. De sua parte, quase não tinha qualquer interação com os escalões inferiores, então não sabia sobre esse lado das coisas.
Yuri assentiu.
“Houve um afluxo de pessoas desde que souberam que havia dinheiro para ganhar. É quando as crianças com talento, porém sem discernimento, começam a pegar trabalhos que os acidentes começam a acontecer. É bem deprimente para nós ver aqueles com futuros promissores desaparecerem dessa forma — desanimador.”
“É muito difícil impedir que os jovens sejam imprudentes.” acrescentou Edgar. “Quero dizer, éramos assim também.”
Yuri coçou a bochecha sem jeito.
“Porém quando você chega à nossa idade, apenas não consegue deixar de se preocupar com eles. Ainda mais agora que sabemos como era... Talvez fosse melhor se pudéssemos ensinar-lhes uma ou duas coisas, entretanto, o que é bastante frustrante, não temos mão de obra para fazê-lo.”
“Entendo o que quer dizer, contudo não tenho certeza se eles vão nos ouvir... Certo, seria preciso alguém como o Sr. Bell para que aqueles jovens tenham pelo menos uma esperança de ouvir. Afinal, foi o que funcionou com Ange.”
Angeline corou quando os dois adultos se viraram para ela. Desde a primeira vez que Angeline disse ao pai que queria se tornar uma aventureira, Belgrieve havia ensinado uma lição específica: nunca aja sem pensar. Como nem teria ocorrido à menina considerar levianamente as palavras do pai, memorizou obedientemente cada palavra de suas lições.
Angeline tinha uma intuição aguçada quando se tratava de coisas como sentir o perigo ou captar dicas minúsculas. Antes que algo ruim acontecesse, quase sempre podia senti-la primeiro. Esse talento natural, aliado à adesão aos ensinamentos de seu pai, a ajudou a escapar do perigo inúmeras vezes, mesmo quando na verdade não sabia o que estava por vir.
Yuri, irritada, apoiou um cotovelo no balcão e apoiou a cabeça.
“Sim... Talvez não tivéssemos que nos preocupar com os neófitos se tivéssemos um instrutor como Bell. Seria fantástico se houvesse alguém com esse tipo de caráter incontestável, alguém que os pequenos ouvissem de verdade. Melhor ainda se fosse o mestre da guilda.”
“Certo, o Sr. Bell está se tornando um mestre de guilda, hein... Pra ser honesto, estou com um pouco de inveja. Tenho a sensação de que ele será cem vezes mais confiável que Leo.”
“A guilda de Turnera aceita todos, você sabe...”
Edgar se inclinou na cadeira.
“Não nos tente. Leo já está falando sobre querer se aposentar pessoalmente em Turnera. Já estamos pisando em ovos por aqui... Meu Deus.”
Yuri deu uma risadinha.
“Ele está apenas meio sério, provavelmente; dizer essas coisas ajuda a distraí-lo.”
“Bem, sim, sei disso...” Edgar fez menção de tomar um gole de sua xícara outra vez, mas fez uma careta ao perceber que estava vazia.
A papelada foi enfim resolvida e Angeline voltou ao saguão para se reunir com suas três amigas para discutir o que fariam a seguir. Não demorou muito para que decidissem tomar bebidas e almoçar mais tarde enquanto o faziam — de preferência em algum lugar com magia para refrescar.
“Porém antes disso eu quero tomar um banho...”
“Ah, é uma boa ideia. Vamos ao que interessa, então.” disse Merry.
Seja pelo suor e pela sujeira do dia de trabalho ou apenas pelo ar úmido, a forma como as roupas grudavam era muito desconfortável. Um banho quente rápido seria refrescante.
Então elas seguiram caminhos separados por enquanto e concordaram em se encontrar de novo depois de se refrescarem e trocarem de roupa. Marguerite no início pretendia ficar na casa de Anessa e Miriam apenas por algum tempo, contudo depois que se tornou membro de pleno direito do grupo, não se sentiu mais motivada a encontrar outro lugar para morar. Angeline sozinha teve que se separar e ir para sua própria casa. Seu coração se encheu de nostalgia enquanto olhava para o céu cinzento acima, provavelmente por ter acabado de falar sobre Belgrieve.
“Eu me pergunto o que o pai está fazendo agora...”
Assim como Orphen, Turnera estaria vivenciando o início do verão agora. Ela se perguntou se a colheita do trigo já havia começado. Com certeza, eles já devem ter começado a tosquiar as ovelhas. É provável que as crianças mais impulsivas já estejam pulando no rio e voltando para casa tremendo de lábios azuis. No verão, as montanhas ficam cobertas de um lindo verde, no entanto há muito trabalho a fazer, muita coisa acontecendo. A mãe e o pai estão ocupados todos os dias com suas vidas como recém-casados?
Sempre que Angeline começava a pensar nessas coisas, sentia saudades de casa. Seu plano era voltar no outono, entretanto os pensamentos já fervilhavam em seu coração. Ela contentou-se com o pensamento de que quanto maior fosse a sua frustração por não poder vê-los, maior seria a sua alegria quando por fim se reencontrassem.
Angeline riu.
“Já estou em falta de fatherium...”
Houve momentos em que tais emoções a deixaram inquieta, mas agora sentia uma estranha felicidade. Talvez tivesse algo a ver com o fato de não estar se sentindo tão estressada. Comparado com antes, havia muito mais coisas divertidas para esperar em casa.
Não era apenas Belgrieve. Havia Satie e Graham, e ainda tinha irmãos e irmãs fofos para ver. Por enquanto, Percival e Kasim também seguiam estando em Turnera. Ela mal podia esperar para sentar em frente à lareira com todos e trocar histórias.
Angeline assentiu. Então farei o meu melhor por enquanto... Quanto mais trabalhasse, maiores seriam as recompensas — mais diversão teria quando finalmente voltasse. Angeline parou de repente e voltou por onde viera, rindo. Ela passou direto pelo beco que levava à sua residência.
○
Folhas frescas de grama farfalhavam com a brisa enquanto as ovelhas da vila pastavam sobre elas. Depois de todas terem sido reunidas para a tosquia, foram libertadas de volta nos campos, agora livres dos seus casacos pesados. Não importava quanta grama de verão as ovelhas comessem, nunca parecia haver menos grama. Os pastores brincavam dizendo que voltavam a crescer a cada mordida.
Kerry era o dono do maior número de ovelhas e todos os anos contava com a ajuda de muitos de seus vizinhos para ajudar na tosquia. A lã era um produto importante para a vila e um dos seus poucos recursos para o comércio externo. Turnera era conhecida pela qualidade de sua lã, proveniente de ovelhas muito bem alimentadas, e os vendedores ambulantes sempre ficavam felizes em comprá-la. Os veteranos riam dos jovens desajeitados e inexperientes sempre que uma ovelha escapava. Enquanto isso, as esposas e mães estavam em suas casas preparando as refeições, enquanto as crianças pequenas eram cuidadas pelos anciãos da vila. O clima era festivo por toda parte.
Percival observava a tosquia à distância, fazendo beicinho e com os braços cruzados. Kasim se juntou a ele, com uma expressão entretida no rosto.
“O que está fazendo aqui?”
Percival ficou de mau humor.
“Me disseram que não posso estar por perto porque assusto as ovelhas. Char foi bastante rígida com isso.”
Charlotte gostava de cuidar das ovelhas, então tinha sido muito rigorosa com Percival desde o momento em que ele as assustou com sua aura intimidadora.
Kasim riu.
“Bom, você é muito perigoso. Acho que é instinto.”
“Cale a boca... Bem, não estou preparado para esse tipo de trabalho de qualquer maneira, então não importa. Estou entediado.” Percival bocejou e olhou para o céu. “É agradável e pacífico por aqui. Não é uma coisa ruim que caras como nós não tenham nada para fazer.”
“Nesse ritmo, vai acabar como um caloteiro aproveitador.”
“Sim, você também. Não aja como se fosse melhor. Porém está tudo bem — nosso trabalho começará em breve.”
Eles estavam fazendo progresso constante na masmorra. Seren passava seus dias indo e voltando interminavelmente entre Turnera e Bordeaux enquanto se preparava para assumir um papel de liderança na vila, e sua casa estava quase concluída. Eles haviam decidido um local para a guilda e estavam no meio do estabelecimento das bases. Algum tempo atrás, o mestre da guilda de Bordeaux, Elmore, veio junto com Seren para ensinar Belgrieve sobre gerenciamento de guilda, com explicações detalhadas de como as coisas funcionavam em seu ramo.
A manutenção das estradas também estava melhorando, e o que antes era uma extensão de terra irregular foi pavimentado com uma linda estrada branca que se estendia do portão da frente da vila. Alguns dos jovens tinham conseguido empregos na construção e o ritmo da vida cotidiana na vila estava aos poucos tomando novas formas.
Kasim cruzou as mãos atrás da cabeça.
“Parece que todo mundo está dando tudo de si. E pensar que seremos nós que os manteremos sob controle...”
“Só para começar. Essas crianças aprenderam o básico com Bell desde pequenas, vão se acostumar com tudo em breve.”
“E então não teremos nada para fazer.”
“O que há de errado com isso? Seremos capazes de iniciar nossas próprias jornadas sem arrependimentos.” Kasim colocou o chapéu. “Está planejando procurar por aquele demônio de novo?”
“Sim.”
“Pra ser sincero... Não acho que você deva continuar tão fixado nesse assunto.”
“Sim, eu sei que você está certo. Contudo não acertei as contas com meu passado — não no sentido mais verdadeiro.” disse Percival, sua atenção atraída por um momento para a tosquia por uma repentina explosão de gritos e vivas. “É um lugar legal — lindo até. Posso me imaginar ficando aqui para sempre — até que a memória daquele dia volta de repente. Mesmo que tente deixá-la para trás, não consigo tirá-la da cabeça.”
“Então é assim... Acho que é por isso que você lutou lá por tanto tempo, afinal.” Kasim respirou fundo e colocou a mão na testa. “Não sei como dizer, no entanto... Bem, vai assustar as crianças se ficar carrancudo desse jeito.”
“Haha! Acho que sim. Preciso fazer algo a respeito das rugas que estou ficando na testa.” brincou Percival, seus dedos roçando as linhas profundas esculpidas em sua carne por uma vida inteira de raiva.
A conversa foi interrompida pela aparição de Hal e Mal, que correram até os dois.
“É o Percy. O que está fazendo?”
“Kasim também. Vamos jogar.”
“Whoa! Você não deveria se agarrar a mim desse jeito! Não sou como Percy ou Bell!” Kasim preparou as pernas para ficar de pé enquanto Mal atacava suas costas.
Percival riu com vontade.
“O que nosso arquimago está fazendo, perdendo para uma criança? Hey, tampinhas, venham aqui! Pendurar-se naquele mastro não pode ser divertido.”
“Yay!”
As gêmeas estavam agora penduradas nos braços de Percival. Percival fez o possível para entreter as crianças, girando e pulando.
Kasim encolheu os ombros, suspirando, antes de perceber Belgrieve vindo em sua direção. Parecia que ele havia terminado sua parte no trabalho do dia.
“O que é isso? Parece que vocês estão se divertindo aqui.”
“Hey, Bell. E quanto à tosquia?”
“Eu não deveria ajudar muito. Se não deixar trabalho suficiente para os jovens, os mais velhos começam a me repreender.” explicou Belgrieve.
Os adultos de meia-idade da vila já dominavam há muito tempo as diversas tarefas sazonais e, se assumissem o comando, o trabalho de fato seria feito muito mais rápido. Todavia se o fizessem, estariam privando a próxima geração da oportunidade de ganhar experiência com estes trabalhos, e talvez as gerações futuras acabassem por perder o conhecimento destas funções essenciais. Na idade de Belgrieve, era importante saber quando recuar.
Kasim riu e sentou-se no chão.
“Hora de passar a tocha, hein? Parece difícil.”
“Pode ser. Mas Turnera tem que continuar de alguma forma.”
O trabalho realizado na vila era o mesmo todos os anos. No início da primavera semeavam a maior parte das colheitas e, pouco antes do verão, plantavam as batatas. Algumas semanas depois, chegaria a hora de colher o trigo de inverno e tosquiar as ovelhas. Então chegaria o outono e colheriam o trigo semeado na primavera e o semeariam com o trigo da estação seguinte — e ao longo do caminho, suas várias outras colheitas seriam colhidas na estação correspondente. Depois, havia outras partes importantes do sustento da vila, como preparar cidra e fiar fios.
“Mesmo focando apenas no trigo, a forma como tudo é feito pode variar dependendo do cultivar, desde a semeadura, até a colheita, a debulha...”
“Heh. Surpreendentemente, há muito nisso.”
“E é assim para tudo que a vila faz. Pode parecer simples, porém é preciso muito conhecimento para manter tudo funcionando.”
“Hmm... Parece que sim.” Kasim assentiu, cruzando as mãos atrás da cabeça outra vez. “Nada é tão fácil quanto parece, então. E agora precisa começar a pensar na guilda também.”
Belgrieve deu um sorriso irônico.
“Sim... Estou muito desconfortável com isso. Não tenho experiência alguma.”
Belgrieve se aposentou no Rank E e passou o resto da vida cultivando no campo, apenas para de repente ser nomeado mestre da guilda. Era natural que se sentisse perdido.
Kasim riu.
“Você vai ficar bem, confie em mim.”
“Todos vocês continuam dizendo isso, contudo... Apenas não consigo enxergar dessa forma.”
“Não precisa enxergar. Apesar de tudo que acontece ao seu redor, você sempre sobrevive. Você é assim mesmo.” interrompeu Percival, ainda carregando uma gêmea em cada braço.
Belgrieve coçou a cabeça.
“Estou ansioso por fazer tudo sozinho. Com todos vocês aqui...”
“No entanto não poderemos ajudar em nada com a gestão, hehehe...”
“Mas ei, ainda tem a irmã mais nova da senhorita Bordeaux para ajudá-lo, então deve ficar bem. Essas irmãs são bastantes impressionantes mesmo na idade delas.” disse Percival, pontuando seu raciocínio levantando e abaixando os braços, provocando aplausos das gêmeas.
“Pai, Percy é incrível!”
“Ele é tão forte!”
“Haha... Sim, é. Estou feliz que vocês estejam se divertindo.”
Belgrieve sorriu para as gêmeas antes de se virar para observar os outros aldeões tosquiando. A essa altura, até Mit podia ser visto com uma tesoura na mão, trabalhando ao lado de Charlotte. Barnes assumiu a tarefa de controlar as ovelhas e, pouco a pouco, o trabalho foi sendo transmitido à geração seguinte. Belgrieve lembrou-se de quando Angeline ainda era jovem e tosquiou as ovelhas como as crianças estavam fazendo agora.
As gêmeas subiram dos braços de Percival até os ombros e desceram para um novo poleiro pendurado em suas pernas. Percival caminhou com elas mais uma vez, imutável.
“Ahh...” Kasim bocejou. “Olhe para esse cara, Percy está mesmo perdendo o controle. Talvez devesse apenas ficar aqui.”
“Estava falando sobre sua jornada de novo?”
“Sim. Disse que vai encontrar aquele demônio sombrio. Não acho que deva continuar obcecado com essa história... Mas não posso dizer que não o entendo.”
“Essa é difícil... Falando por mim, não perco mais muito sono por causa disso.”
“Tenho certeza. E Percy também sabe, porém para ele provavelmente não se trata mais de você. Conseguimos nos reunir de novo, contudo ele passou por muito sofrimento até chegar aqui.”
Acho que é verdade, pensou Belgrieve. Mesmo com um futuro radiante pela frente, Percival não conseguiu apagar o passado. No entanto se permanecesse atolado naquele tempo, não seria capaz de estender a mão e colher os frutos do seu futuro. Era com essa possibilidade que Belgrieve estava preocupado.
“Acho que vai ficar tudo bem...”
“Hmm?”
“Percy. Não está mais cego pela vingança. E é um cara esperto.”
“Sim, é no que quero acreditar também. Percy quer acertar as contas — mais consigo mesmo do que qualquer coisa.”
“Sim... Nosso líder é muito durão.”
“Hehehe! Não há dúvida acerca disso!” Kasim manteve os joelhos próximos enquanto balançava de tanto rir.
Uma brisa agradável e fresca soprava agora, entretanto com o sol no auge, ainda estava quente o suficiente para suar, mesmo quando estavam em repouso. O verão estava batendo na porta. A temporada não duraria muito em Turnera, então os aldeões sabiam que deveriam aproveitá-la ao máximo. Haveria muito que fazer, mas poderiam encontrar algumas compensações no tempo livre que tinham. Nadar no rio só era possível nesta estação e era muito mais refrescante do que se limpar com um pano úmido.
O som de um martelo batendo na madeira ecoava em algum lugar da vila, pontuando o barulho do balido das ovelhas e das cabras. Belgrieve estava voltando para assistir à tosquia no quintal de Kerry quando Satie saiu de casa de avental, a atividade chamando sua atenção.
“Wow, parece que nunca vai acabar. Eles estão trabalhando desde ontem e ainda há mais a ser feito.” ela parecia sinceramente surpresa.
“É porque temos muitas delas para cuidar. Porém quando todos nos reunimos, parece um festival, não é?”
Satie deu uma risadinha.
“Hehe... Acho que sim. Especialmente com Graham assim.”
Graham — que havia sido encarregado de cuidar das crianças pequenas — estava no momento com o cabelo preso em um coque e coberto com um lenço de bolso. Parecia nada mais do que uma governanta, e a visão de uma lenda viva para os elfos e para a humanidade, vestida daquela maneira e cercada por crianças, era divertida demais para Satie.
“Oh, será hora do almoço em breve. Você poderia avisá-los?”
“Ok, pode deixar... Estou realmente me acostumando a vê-la vestida assim.” observou Belgrieve.
Satie deu uma risadinha, levantando com delicadeza a bainha do avental.
“Eu sou mãe, afinal. Contudo todas as outras são muito habilidosas. Sinto que sigo tendo um longo caminho a percorrer para fazer mais do que apenas parecer bem.”
Satie estava se juntando com as outras senhoras da vila e ajudando de várias maneiras. Ela havia desenvolvido habilidades domésticas, no entanto as matronas da vila eram ainda mais hábeis do que ela. Satie ficou maravilhada ao ver como suas mãos nunca paravam por um segundo, mesmo enquanto se entregavam a uma conversa incessante que passava de um assunto para outro tão rapidamente que Satie mal conseguia acompanhar.
“Pensando bem, onde estão Hal e Mal? Graham está cuidando delas?”
“Não, estão brincando com Percy.”
Satie teve que reprimir o riso ao ouvi-lo.
“Essas duas gostam muito de Percy, não é? Todos os três têm um lado um pouco travesso, então acho que estão na mesma sintonia.”
“Talvez. Ele também tem muita força bruta para mostrar. Eu os vi montados em seus ombros há pouco.”
“Hehe... Isso é uma nota de ciúme paternal que eu ouço?”
“Na verdade. Elas brincam comigo tanto quanto ele. Apenas não consigo balançá-las como Percy faz.”
“Você é muito gentil, afinal.”
Belgrieve sorriu auto depreciativamente.
“O que uma coisa tem haver com outra?”
Satie riu maliciosamente e cutucou-o na bochecha antes de voltar para a cozinha, de onde podia ouvir o barulho dos talheres batendo. Já estava quase na hora do almoço.
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