Capítulo 139: A frieza da neve macia
A frieza da neve macia podia ser sentida até mesmo através das roupas de Belgrieve e tinha a propriedade de restringir seus movimentos — quanto mais se esforçava, pior era.
O medo e o pânico roubaram-lhe a compostura. A cada golfada do ar terrivelmente gelado seu corpo se recusava a obedecer à sua vontade. Ele teve um ataque de tosse. Sua respiração era tão superficial que temia que seus pulmões estivessem congelados. Conseguiu segurar sua espada, mas sua mão estava toda dormente e se viu incapaz de retirá-la da bainha. Flocos de neve dançavam no céu branco perolado acima, e seus cílios estavam pesados pelo gelo. Até o ato de piscar produzia uma dor leve e latejante.
“Agh... Raaaah!” gritou Belgrieve para se levantar. Seu tronco foi erguido com força e, com o pé esquerdo apoiado no chão, conseguiu levantar o joelho direito.
“Pai!” gritou sua filha de sete anos, lutando para atravessar a neve e chegar ao seu lado. As crianças de neve brincavam na agitação que as cercava, rindo do esforço dela.
“Ange, se afaste!” Belgrieve comandou, porém sua voz soou estrangulada. Seu corpo estremeceu como se tentasse se livrar da neve e do gelo. Ao exalar profundamente, encarou o ser diante de seus olhos. Ela o olhou com olhos frios e transparentes como gelo. Belgrieve por fim desembainhou a espada e assumiu uma postura en garde¹, contudo seu corpo estava rígido e a ponta da lâmina oscilava um pouco.
“Espere! Espere!” desesperada, Angeline tropeçou em direção a seu pai, deslizando na frente de Belgrieve.
“Ange!”
“Pare! Não seja mau com o pai!” ela disse enquanto abria os braços. Belgrieve estendeu a mão e a abraçou.
“Ange, não adianta... Depressa, volte...” seus lábios estavam dormentes e ele se esforçou para pronunciar suas palavras.
Os olhos do ser se estreitaram, avaliando-o, enquanto olhava para Angeline.
“HMMM...” sua voz era cristalina como cacos de gelo brilhantes. Sua expressão nunca mudou, nem seus lábios se moveram, no entanto as palavras de fato vieram dela. A entidade voltou sua atenção de Angeline para Belgrieve.
“TRANSEUNTE... SE APRENDEU SUA LIÇÃO, POR FAVOR, ABSTENHA-SE DE REPETIR ESTA TOLICE.”
Com isso, ela lhe deu as costas e foi embora. O frio penetrante diminuiu aos poucos, assim como a dor que atormentava seu corpo. Com as crianças de neve ainda rindo dele, Belgrieve a observou sair, estupefato.
“E-Espere... Você não é... Um monstro?”
O rosto da entidade voltou-se ligeiramente para Belgrieve.
“OS TRANSEUNTES... ME CHAMAM DE DAMA DO INVERNO.”
“Dama do Inverno...”²
O vento forte espalhou neve no ar. Belgrieve fechou os olhos contra o frio repentino e segurou Angeline em seus braços para protegê-la do impacto. Quando a nevasca cedeu e seus olhos tornaram a abrir, a mulher já não estava em lugar nenhum. Apenas as vagas vozes ecoantes das crianças de neve permaneciam no ar frio do inverno.
Angeline ficou com os olhos arregalados por um momento antes de se dissolver em lágrimas e esfregar o rosto no peito de Belgrieve.
Belgrieve deu um tapinha gentil nas costas dela e se perguntou se tudo tinha sido um sonho.
○
Percival caminhava à frente e escutava com atenção, mas parou e se virou nesse ponto da história.
“Então, o que aconteceu depois?”
“Bem, fomos para casa. Depois que a tensão do momento desapareceu, fiquei gelado até a medula e Ange acabou pegando um resfriado.”
“Parece um desastre.”
Belgrieve riu.
“Não — tivemos sorte de termos saído vivos. Devo agradecer a Ange por isso.”
Se Angeline não estivesse lá, eu provavelmente estaria congelado — não estaria aqui hoje, vivo e bem.
Percival gargalhou.
“Parece que Ange está sempre te salvando.”
“É verdade. Essa garota é boa demais para mim.”
“O que está dizendo? Ela é assim porque você é o seu pai.” interveio Kasim. Ele os acompanhou.
Percival esticou os braços acima da cabeça.
“Me pergunto o que essas garotas estão fazendo agora... Acho que é bem provável que estejam trabalhando duro para atender aos pedidos da guilda.”
“Talvez. Ange estava bastante animada para voltar no outono, então é provável que esteja trabalhando duro agora para merecê-lo.”
“Hehehe... É bom ter energia enquanto ainda se é jovem.” refletiu Kasim, brincando com seu chapéu. “Mas Dama do Inverno, hein? Quando eu morava nas ruas, ouvi um conto de fadas contado por uma das outras órfãs, porém nunca acreditei que existisse de verdade.”
Belgrieve riu.
“Pois é. É por esse motivo que eu e qualquer outra pessoa a confundiríamos com um monstro e atacaríamos. Ouvi falar de alguns aventureiros que ficaram congelados por causa de seus enganos.”
“Não há ninguém vivo que possa enfrentar uma estação em si — nem mesmo um Rank S. Ela está muito acima de qualquer Rainha do Gelo.”
“Falando agora... E quanto às rainhas do gelo, Percy?”
“Lutei contra uma quando estava vagando pelo norte de Keatai. Era linda de se ver, contudo tão brutal quanto possível. Tive alguns problemas.”
Dado que ele venceu mesmo apesar disso, seu apelido de ‘Lâmina Exaltada’ não era apenas para se mostrar.
Eles retomaram a caminhada novamente.
“O caminho está começando a subir. Estamos chegando perto da montanha?” Kasim perguntou, com um grande bocejando.
“Sim, já estamos no sopé da montanha.” Belgrieve puxou um cachecol fora de época e colocou-o no pescoço. As árvores por aqui eram tão vibrantes e verdes quanto as mais próximas de casa, e ainda assim o ar estava revigorantemente frio. A grama que crescia em outros lugares havia encolhido e murchado ali, com as pontas murchando.
Já era início do verão, contudo nos últimos dias eles tinham passado por uma série de dias estranhamente frios e parecia que uma brisa fria descia da montanha. Antes que alguém percebesse, a antiga encosta verdejante da montanha estava agora coberta de neve, e o céu azul claro estava marcado por nuvens pesadas que pairavam sobre o cume, lançando a sua escuridão sobre aquele pequeno pedaço de terra. Ainda assim, o frio espalhou-se até Turnera e os aldeões foram obrigados a tirar as roupas de inverno dos armários. Não estava frio o suficiente para que a geada se instalasse, no entanto estava frio o suficiente para fazer os aldeões estremecerem com suas roupas de verão de mangas curtas e interromper o crescimento das colheitas de verão. As flores desabrochando do tomate caíram da videira antes que qualquer uma delas pudesse dar frutos.
Se fosse apenas um fenômeno natural, não havia nada que pudessem fazer. Entretanto não havia graça em ficar sentado esperando o frio passar, então Percival disse que iria investigar e, sem nada melhor para fazer, Kasim foi junto. Belgrieve serviu como guia, pois sabia tudo o que havia para saber sobre a floresta e a montanha vizinhas de Turnera.
“Se Satie viesse seria como se o grupo estivesse reunido outra vez.” refletiu Kasim enquanto passava por cima de uma árvore caída.
“Ela não parece mais muito interessada nesse tipo de coisa. Agora está mais preocupada em cuidar das crianças do que sair para um passeio rápido pela natureza.”
Belgrieve assentiu.
“Sim.”
Os quatro não eram mais jovens; não podiam apenas sair andando por capricho como costumavam fazer. Mesmo assim, ele ficou muito feliz em viajar com seus antigos companheiros de grupo mais uma vez. Talvez os garotos continuassem sonhadores, não importa quantos anos tivessem.
Kasim cruzou as mãos atrás da cabeça.
“Satie seguiu em frente e se tornou adulta. Parece um pouco solitário.”
“Eu te entendo. Mas não podemos só nos apegar ao passado para sempre... Não que esteja em posição para falar.”
“Hehehe... Você é autoconsciente, pelo menos.”
“Essa foi desnecessária.”
Os três homens seguiram em frente e simplificaram sua jornada com brincadeiras inúteis. Percival e Kasim estavam acostumados a aventuras e acompanharam o ritmo de Belgrieve como se não fosse difícil — como se aquele lugar remoto e implacável fosse seu próprio quintal.
Ultimamente, Belgrieve tem passado todo o seu tempo pesquisando a masmorra, ou melhor, o gerenciamento da guilda. Não era ruim com trabalho administrativo; apenas não estava acostumado. Depois de passar tanto tempo olhando para aquelas letras minúsculas, a vontade de sair de casa tornou-se irresistível, então essa caminhada montanha acima o deixou à vontade.
Seren havia se programado para aparecer novamente em breve. Sua nova casa já tinha telhado e as paredes estavam sendo revestidas com bastante gesso. Era muito cedo para se mudar, entretanto logo começaria a trazer seus pertences aos poucos. Kerry tinha um armazém vazio, então era para lá que suas coisas iriam por enquanto, até que a mansão estivesse concluída e pudesse ser habitada.
Além de assumir as funções de chefe, Seren também começaria a estabelecer várias instalações ao redor da vila e, embora parecesse bastante confusa a princípio, a garota estava aos poucos entrando no ritmo das coisas. Ela sempre foi uma pessoa esperta, então, uma vez a bordo, progrediu em grande velocidade com seu trabalho.
De qualquer forma, os dias passavam a um ritmo vertiginoso. Mas, no que dizia respeito à Belgrieve, os dias de caminhada ao redor da montanha pareciam muito mais naturais para ele. Mesmo com todas as suas novas responsabilidades, ainda era um garoto do interior no coração.
A elevação aumentou gradualmente. A atmosfera estava gelada e as folhas brotando das árvores pareciam murchas e sem ânimo. Até a fauna parecia estar à espreita com a respiração suspensa — eles não conseguiam ouvir nenhum som de animal agora. A respiração dos três saía em lufadas de ar gelado em meio a esse silêncio misterioso, em forte contraste com a luz quente do sol acima.
Percival parou e olhou em volta.
“A temperatura caiu consideravelmente. Estamos perto do nosso destino?”
“Sim.”
“Se for um monstro, será um problema... Porém se for a Dama do Inverno, acha que podemos negociar?”
“Difícil de dizer. Ela é a própria natureza, então... Bem, vou tentar conversar.”
“Bater uma conversinha com um espírito do mais alto grau? Hehehe! Você não sabe quão ciumento os arquimagos ficariam se soubessem de tal evento.”
“Você também é um arquimago.”
“Não porque quero.”
“De qualquer forma, vamos continuar um pouco mais. É provável que comece a nevar quando chegarmos mais perto.”
Depois de mais uma hora de escalada, encontraram uma leve agitação. Os flocos de neve aumentaram aos poucos de tamanho, e os três estavam no meio de uma tempestade de neve antes mesmo de perceberem que estava chegando. O céu estava cinza e grandes flocos de neve caíam sem parar. O vento não estava forte, contudo significava apenas que os flocos de neve caíam com maior densidade. Suas cabeças e ombros logo ficaram cobertos de neve e tiveram que se sacudir com força para removê-la.
“Isso é difícil. É como se o inverno estivesse concentrado nesta pequena área.”
“Percy, conhece algum monstro que possa mudar o ambiente nesse grau? Como a Rainha do Gelo, talvez?”
“Eles existem; a Rainha do Gelo com certeza poderia fazer algo assim... No entanto, então, seria estranho que parasse na montanha. A essa distância de Turnera, uma Rainha do Gelo sem dúvida teria descido a montanha e atacado.”
“Então a possibilidade de ser a Dama do Inverno é maior. Felizmente, ela é alguém com quem podemos conversar.”
“Sim, eu acho que sim.” mas a carranca de Belgrieve permaneceu. Teria se sentido muito mais aliviado se este incidente fosse causado por um monstro. Não era natural que a manifestação do inverno aparecesse aqui nesta estação. Se tudo fosse obra de um monstro, então apenas teriam que derrotá-lo — e com Percival e Kasim ao seu lado, essa de fato seria uma opção viável. Todavia, se o nosso oponente for um grande espírito que ultrapassa a compreensão humana e, além disso, se houver alguma causa não natural para agir agora...
Belgrieve balançou a cabeça.
“É inútil pensar demais...” de qualquer forma, não saberiam até que a encontrassem. Talvez fosse apenas uma condição climática anormal, afinal. Não adiantava presumir o pior e ficar ansioso.
Enquanto caminhavam pela neve que agora subia quase acima de seus tornozelos, os três ouviram uma voz clara cantando e, além da neve que caía, puderam ver várias pequenas figuras vagando como se estivessem dançando.
Kasim semicerrou os olhos.
“Oh, wow. Crianças de Neve?”
“Sim — Crianças da Neve.”
Isso quase garantiu a presença da Dama do Inverno. Belgrieve sentiu-se um pouco sombrio enquanto avançava.
Tomando cuidado para que a ponta da perna de pau não caísse em nenhum terreno irregular sob a neve, ele se aproximou. As figuras das crianças de neve, que antes eram meras sombras, lentamente se distinguiram. Pareciam ser crianças de sete ou oito anos de idade, vestindo roupas brancas fofas e chapéus de pele combinando. Elas dançaram irradiando alegria, flutuando acima do solo sem nunca tocá-lo, nunca se dignando a olhar na direção dos três intrusos.
“Seria uma bela visão se não fosse ao início do verão.” murmurou Percival.
Kasim sorriu, resignado.
“Bom, não podemos fazer nada a respeito... É ela?”
Um pouco mais adiante, puderam ver uma figura visivelmente maior. Era alta e esbelta, e usava roupas brancas e um chapéu de pele assim como as crianças de neve, porém a aura que emanava não era tão gentil, mesmo enquanto brincava com seus longos cabelos prateados. Dama do Inverno ficou ali em silêncio, com o rosto ligeiramente inclinado para cima enquanto olhava para a neve que caía.
O trio permaneceu tão silencioso quanto à mesma. A Senhora que estava à sua frente era tão bonita de se ver que se viram olhando com a respiração suspensa. Não que estivessem cativados, contudo estavam sem palavras.
Assim, o silêncio persistiu. Apenas as vozes cristalinas das crianças atravessavam a neve que caía para chegar aos seus ouvidos. De repente, Percival soltou um espirro alto e Kasim caiu na gargalhada.
A Dama do Inverno olhou para eles com uma pitada de surpresa.
“NOS ENCONTRAMOS DE NOVO, TRANSEUNTE.”
Sua voz não estava mais severa do que o normal. Belgrieve relaxou um pouco e sorriu.
“Você não mudou nem um pouco, Dama do Inverno. Estou um pouco surpreso em vê-la aqui nesta temporada... Contudo foi apenas um capricho?” Belgrieve perguntou.
Dama do Inverno olhou-o sem expressão.
“SIMPLESMENTE VIEMOS AQUI PASSEANDO NA BRISA FRIA.”
“Hã? Significa que é apenas um clima anormal?” Percival raciocinou.
Dama do Inverno não o reconheceu. Seu olhar se voltou para o céu mais uma vez, como se quisesse dizer que a conversa havia terminado — que já haviam encontrado a resposta.
Belgrieve sentiu-se completamente esgotado e censurou-se por ter se preocupado tanto com a situação.
“Parece que fique preocupado sem motivo, afinal.”
“O que há de errado, Bell?” Kasim perguntou, olhando confuso para Belgrieve e cutucando seu ombro.
“Não, não é nada... Bela Dama, estou certo em presumir que você só veio aqui por acaso?”
“NÃO TEMOS VONTADE PRÓPRIA. APENAS CONFIAMOS NO FLUXO.” disse a Dama do Inverno, seus olhos voltando-se para Belgrieve mais uma vez. “DITO ISSO, VOCÊ DEVE VERDADEIRAMENTE GOSTAR DE CAMINHAR NO FRIO.”
“Não exatamente...” Belgrieve coçou a cabeça sem jeito. Estou começando a me sentir um pouco envergonhado...
Kasim coçou a barba, rindo.
“Bem, é uma coisa a menos para se preocupar. Então, Senhora, quanto tempo planeja ficar aqui?”
“ISSO NÃO CABE A MIM DECIDIR.” a Dama do Inverno respondeu-lhe sem rodeios.
Estava ficando cada vez menos claro para Belgrieve se a Senhora só acompanhava a estação ou se era de fato a personificação do próprio inverno.
Inverno, hein... Belgrieve refletiu. De repente, se lembrou da última vez que a encontrou.
“Minha Senhora, você me avisou uma vez sobre ‘aqueles que tentaram controlar até mesmo o inverno’. A quem se referia?”
A Dama do Inverno o encarou.
“SIM, É VERDADE. NÃO SEI SEUS NOMES, NO ENTANTO HÁ ALGUNS QUE TENTARAM TAL COISA HÁ MUITO TEMPO.”
“Não acha que ela está falando sobre Salomão?” Kasim disse com indiferença. “Não é de conhecimento público, entretanto alguns textos antigos dizem que Salomão tentou desenvolver feitiços para controlar o tempo e o clima. Não poderia ser isso que quis dizer?”
“Hmm? Então é sobre Salomão?” Percival perguntou, sua descrença perturbando sua respiração e obrigando-o a respirar com o sachê.
De fato parecia uma história absurda — porém Belgrieve ficou perturbado ao ouvi-la vindo não de um humano, mas do próprio espírito do inverno.
“Mas ela não avisou Bell há um tempo atrás? Fomos e esmagamos aqueles caras que tentaram mexer com a criação de Salomão, então esse problema não foi resolvido?”
Pensando bem, o culto de Charlotte e as ambições do falso príncipe foram frustrados, e Angeline destruiu o demônio em Orphen. Se estes foram os acontecimentos sobre os quais a Dama do Inverno me avisou, então o problema certamente já passou.
“Isso significa que o aviso foi útil?”
Belgrieve viu que Dama do Inverno estava inclinando a cabeça.
“NÃO SEI NO QUE ESTÁ PENSANDO, CONTUDO O FLUXO DE EVENTOS NÃO MUDOU, TRANSEUNTE.”
“Então... Algo ainda vai acontecer?”
Antes que a Dama do Inverno pudesse responder, de repente olhou para cima — um vento forte começou a soprar do leste, para aparente deleite das crianças de neve. Dama do Inverno flutuou no ar, o cabelo balançando ao vento.
“É HORA DE IRMOS. ATÉ A PRÓXIMA.”
A neve dançava e girava ao redor dela, pintando tudo o que podiam ver com um branco imaculado.
“Hey, não poderia ser um pouco mais clara? O que vai acontecer?” Percival gritou. Todavia sua voz foi abafada pelo vento uivante. As risadas brincalhonas das crianças de neve foram desaparecendo aos poucos e, quando a nevasca passou, as figuras da Dama do Inverno e suas crianças não estavam mais à vista. A neve caindo do céu plúmbeo ficou mais fraca e parecia que iria diminuir em pouco tempo.
Percival coçou a cabeça com força e derrubou a neve que cobria seu couro cabeludo.
“Droga, ela continuou falando bobagens enigmáticas e foi embora. É por isso que odeio lidar com espíritos...”
“Bem, pode ser muito mais estranho quando a espécie dela se digna a explicar as coisas de forma inequívoca. No entanto o que nos reserva...?” Kasim se perguntou, cruzando os braços.
Belgrieve coçou a barba.
“Acha que é sobre o reavivamento de Salomão?”
“Talvez... Acha que estão fazendo progressos dos quais não temos conhecimento?”
Percival estalou a língua em desgosto.
“Seja qual for o caso, acho irritante ficar sentado esperando que a crise chegue até mim.”
Belgrieve pensou no assunto por mais um momento, mas logo se voltou para seus amigos.
“Por enquanto, vamos voltar. Essa neve fora de estação deve derreter logo, agora que o sol pode chegar até ela. Podemos ter uma avalanche.”
“Soa bem ruim. Tudo bem, vamos indo.” a capa de Percival brilhou atrás dele quando se virou.
“Assim que voltarmos... Precisaremos reunir todos para discutir esse assunto.” disse Kasim.
“Sim, Graham pode saber de alguma coisa... Embora eu espero que estejamos apenas pensando demais nisso.”
“Se estivermos, podemos só rir mais tarde.”
“Tem razão.” Belgrieve assentiu. “A questão urgente é voltar a Turnera antes que sejamos engolidos por uma avalanche.”
Kasim riu.
“Entendido. Não tropece, Bell.”
Percival liderou o caminho mais uma vez, tossindo. A viagem de volta montanha abaixo foi solene, cada um deles refletindo sobre o que tinham visto.
○
“Achoo!” a jovem espirrou alto, fungando. O olhar de Angeline seguia desfocado e estava com febre. Belgrieve torceu a toalha que havia colocado em sua cabeça e serviu uma xícara de chá de ervas.
“Você está bem?”
“Sim... E você, pai?”
“O pai está bem. Aqui, é remédio.”
Angeline sentou-se obedientemente na cama e bebeu o remédio com uma careta. Logo depois, se deitou e puxou as cobertas até a boca. Seus olhos se fecharam e a garota caiu em um sono profundo.
Belgrieve recuperou o fôlego antes de beber ele mesmo o que restava do remédio.
“Minha nossa...”
Belgrieve se sentia um pouco febril, porém não conseguia dormir quando sua filha estava resfriada. O frio gélido que emanava da Dama do Inverno era de fato assustador. A lareira estava acesa e deveria estar quente na casa, contudo seu corpo ainda sentia calafrios. Depois daquele encontro casual que quase o deixou morto, os dois retornaram direto para casa. Não demorou muito para que Angeline estivesse com febre e fosse para a cama.
A entidade que confundiu com um monstro se provou ser algo muito além. Colocando a mão no peito, sentiu que seu coração ainda estava acelerado. Seus instintos lhe disseram a verdade — não importa o quanto tivesse lutado, nunca teria sido páreo para a Dama. E, no entanto, correu desesperada e imprudentemente em sua direção para proteger sua filha.
Todavia no final foi sua filha quem o salvou.
“Aquela era a Dama do Inverno dos contos de fadas...?” murmurou.
Belgrieve conseguia se lembrar vagamente de histórias de muito tempo atrás, quase esquecidas agora. Terei que perguntar ao ancião da vila a respeito na próxima vez que tiver oportunidade.
Seu corpo estremeceu. Ele teimosamente se agarrou à consciência com Angeline em tal estado, mas sabia que entraria em colapso ao seu lado se baixasse a guarda por um segundo sequer.
Belgrieve colocou lenha no fogo e manteve as mãos perto das chamas. Uma faísca voou com um estalo alto, o único som que se ouviu quando a neve caiu do lado de fora de sua janela. Ele derramou um pouco de licor destilado no chá de ervas quente e tomou goles lentos da mistura. Seu corpo aqueceu, mesmo que apenas um pouco.
De repente, ouviu Angeline se virando na cama. Belgrieve se levantou e colocou as cobertas sobre a menina. Ela murmurou algo baixinho enquanto se aconchegava alegre no travesseiro. A visão fez Belgrieve abrir um sorriso.
“Eu deveria fazer uma sopa.” ele despejou água em uma panela vazia e a suspendeu sobre as chamas antes de adicionar algumas batatas cortadas em cubos finos e carne seca. O vento forte sacudia as janelas — não parecia que o inverno iria acabar tão cedo.
Notas:
1. Em guarda, em francês no caso do capítulo, então optei por manter o original de novo (o termo já tinha aparecido antes no capítulo 125).
2. Uma continuação dos eventos apresentados no capítulo 09 da light novel.
***
Para aqueles que puderem e quiserem apoiar a tradução do blog, temos agora uma conta do PIX.
Chave PIX: mylittleworldofsecrets@outlook.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário