domingo, 11 de fevereiro de 2024

Boukensha ni Naritai to Miyako ni Deteitta Musume ga S Rank ni Natteta — Volume 11 — Capítulo 138

Capítulo 138: Ele se enfureceu, impulsionado por uma fomo e sede

Ele se enfureceu, impulsionado por uma fome e sede insaciáveis. Não importa quantos matasse, nunca poderia ficar satisfeito. Foi movido por instintos que sussurravam incessantemente para matar e consumir. Não sabia quanto tempo passou espreitando a escuridão. Não se lembrava de quando havia chegado lá pela primeira vez, nem mesmo fazia ideia do motivo pelo qual estava ali.

Apenas se mover era terrivelmente cansativo para o ser, então passava a maior parte do tempo enrolado como uma bola para descansar. Mas então seu nariz se animava sempre que sentia a presença de uma presa se aproximando. Então esperaria pela oportunidade perfeita para pegar seu alvo desprevenido — e, dessa forma, devoraria até o último pedaço, sem deixar um pedaço de carne ou uma gota de sangue.

A caça não era o seu forte. Não possuía a técnica para mirar nos pontos vitais de suas vítimas e matar com um só golpe. Isso era pouco preocupante quando ninguém conseguia realizar um ataque que pudesse prejudicar o corpo robusto do ser, e mesmo uma emboscada desajeitada terminaria em banquete. Às vezes, as presas que sobreviveram ao primeiro ataque do ser chorariam de dor, porém ele as comeria sem piedade de qualquer maneira. Não sentia emoções fortes em seu coração.

Não tinha ideia de quantas vezes o padrão se repetira, nem de quanta carne havia comido, nem de quanto sangue havia absorvido. Sua fome nunca poderia ser saciada, sua sede interminável — seu peito estava vazio de tudo, exceto da solidão.

O lugar estava escuro e o ar aqui estava parado e pesado. Não havia nada aqui além da escuridão fria e ominosa de uma piscina estagnada.

O ser não sabia quanto tempo se passou desde a última vez que matou, contudo, de repente, sentiu uma presença — o som de botas grossas batendo no chão e os sons de conversas animadas.

Seu corpo se agachou, todas as quatro pernas enroladas para atacar. A partir desta postura, poderia atacar seu alvo como uma flecha disparada.

Podia vê-los agora — presas jovens, um grupo de quatro. O garoto na frente tagarelava ansiosamente sobre alguma coisa — não dando nenhum sinal de notar o ser no escuro. Todos os bípedes que vagaram pelo seu domínio eram fracos e patéticos.

Estava pronto. O ser mediu a distância antes de saltar como sempre. Esse é o primeiro a cair, pensou. No entanto outro menino saltou por trás e empurrou o primeiro menino para fora do caminho.

Sua boca foi preenchida com gosto de sangue.


O bocejo de Angeline provou ser contagiante e logo se espalhou para Marguerite ao seu lado. Anessa começou a rir.


“Parece que vocês estão tentando competir pra ver quem consegue abrir mais a boca!”

“Hmm...” Angeline murmurou antes de tomar um gole de água com menta.

“Você parece com sono.” disse Miriam. “Ficou acordada até tarde?”

Angeline assentiu.

“Estava escrevendo uma carta para o pai... Mas sou péssima em escrever. Eu escrevia um rascunho, depois jogava fora e pensava mais um pouco...”

“Então acabou não terminando.” disse Marguerite.

“Ainda estou no meio disso.”

“O que está fazendo?”

“Está sendo muito exigente só com cartas.”

Todas as suas amigas olharam para onde ela estava sentada, encostada na lateral da carruagem, com cansaço. Angeline sempre queria escrever cartas, porém sempre que se sentava para fazê-lo, lutava para encontrar as palavras certas. Foi por essa razão que suas cartas para Belgrieve eram sempre simples e curtas. Tinha que passar por várias dezenas de rascunhos para produzir apenas algumas frases.

A carruagem balançou e sacudiu ao rolar pela estrada esburacada. A cobertura acima batia no ritmo do movimento da carruagem.

Tantas rodas rolaram por essa estrada simples e pavimentada que havia várias marcas esculpidas pelo percurso, causando solavancos irregulares aqui e ali. Cada vez que qualquer uma das quatro rodas da carroça rolava sobre um trecho acidentado da estrada, o impacto reverberava por todo o chassi¹, tornando impossível ficar sentado em paz por muito tempo.

Angeline inclinou-se para fora da carruagem e observou a passagem.

“Eles não podem consertar esses buracos...?”

“Não tenho certeza. Além de Maria, todos os outros que moram aqui são apenas simples agricultores.”

“Contudo alguns magos passam por aqui para tratar de negócios com aquela bruxa ou algo assim.” disse Miriam. Angeline deu uma boa olhada nos outros passageiros da diligência. Aparentemente, alguns deles eram magos.

Por fim, a aldeia apareceu. Era uma pequena cidade agrícola rural composta por fileiras de pequenos edifícios com telhados de casca de árvore e palha. No meio de tudo isso havia uma estrutura branca que se destacava das demais. O retiro de Maria ficava um pouco distante dali.

Angeline e os membros de seu grupo desembarcaram da diligência e ela olhou ao redor com indiferença. A maioria dos edifícios eram casas de madeira e pedra, no entanto algumas lojas novas tinham sido instaladas ao redor da estação rodoviária. Embora a principal fonte de rendimento da aldeia fosse a venda de produtos a Orphen, agora era suficientemente grande para manter estas lojas em funcionamento.

As quatro meninas foram para a casa de Maria. Havia algumas pessoas vagando pelas instalações quando chegaram — alguns eram magos e outros, aventureiros. Suas esperanças estavam escritas em seus rostos — todos queriam ganhar algo conhecendo a renomada Arquimaga Cinzenta, Maria. Entretanto ela se recusou a ver qualquer um deles.

Angeline e seu grupo abriram caminho no meio da multidão e se aproximaram da casa.

“Vovó!” Angeline gritou quando chegaram à porta.

“O que?” veio a resposta descontente do outro lado.

“É Angeline... Posso entrar?”

Não houve resposta. Tomando isso como aprovação, Angeline abriu a porta. O ar empoeirado inundou o interior, deixando os olhos de Marguerite girando.

“Whoa!”

“Oh, vamos lá! Quantas vezes tenho que te dizer para limpar, sua velha bruxa?” Miriam gritou exasperada antes de entrar correndo em casa. Sua mão agarrou Maria, que estava vestida com suas habituais vestes volumosas, e arrastou-a porta afora. Maria teve um ataque de tosse assim que foi lançada ao ar livre.

“Cough, gag! O que pensa que está fazendo? Pare de mexer por aí, sua gata estúpida! Está apenas levantando a poeira!”

“Estou surpresa que tenha conseguido empilhá-la tão alto.” disse Marguerite, que na verdade parecia um tanto impressionada ao espiar dentro da pequena cabana. Estava empoeirado, mas o cheiro de ervas e óleos perfumados predominava.

A espessa camada de poeira que cobria os aparatos experimentais e os grossos livros era visível mesmo na penumbra admitida pelas cortinas fechadas e pelo vermelho da lareira acesa. Ficou claro quais livros Maria estava lendo, já que esses eram os únicos que haviam sido espanados recentemente. Miriam puxou as cortinas e abriu todas as janelas, permitindo que a luz entrasse de uma só vez e o vento soprasse e levasse um pouco da poeira. A luz do sol tornou cada partícula ainda mais distinta. Todos os aventureiros e magos que assistiam do lado de fora olharam em estado de choque, imaginando o que havia acontecido.

Miriam pegou uma vassoura e começou a varrer a casa em frenesi enquanto as outras três meninas ajudavam Maria a chegar à sombra de uma árvore. O sol estava implacável agora, porém a luz que se filtrava pelas folhas era suave e gentil, pois lançava um padrão mutável e manchado em seus rostos toda vez que a brisa passava. Era verão agora.

Foi em um verão como este que meu pai me ensinou a tecer chapéus de palha, lembrou Angeline.

Maria se encolheu e, depois de resistir a outro ataque de tosse, estalou a língua irritada.

“Droga, justo quando eu estava meditando... Cada uma...”

“Desculpe, vovó. Contudo parece meio movimentado por aqui.” disse Angeline enquanto olhava ao redor. As mesmas pessoas que andavam próximos da casa agora as observavam à distância, no entanto fugiram o quanto antes quando Maria lançou um olhar penetrante em sua direção.

“Com os negócios crescendo em Orphen, há mais idiotas vindo para cá também. Já foi irritante o suficiente quando essa coisa foi colocada bem ao lado da minha casa...” Maria disse enquanto olhava para o prédio com paredes brancas.

Por vontade própria, alguns magos jornaleiros que tinham uma profunda admiração por Maria se uniram para erguer a estrutura. Servia como uma espécie de pequena escola para magos viajantes de todo o país. Devido ao contínuo boom econômico de Orphen, a pacífica morada de Maria recebia mais visitantes do que nunca.

“Estou pensando em me mudar neste momento.” Maria murmurou.

Anessa esfregou suas costas com um sorriso irônico.

“Você veio aqui porque queria uma vida tranquila. É bastante irônico.”

“Cough... É verdade.” Maria cobriu a boca e olhou para Angeline. “Então, por que vocês estão aqui? Veio apenas para brincar?”

“Poderia dizer que sim... Mas queria saber como estava indo sua pesquisa sobre demônios.”

“Nada mudou desde a última vez que perguntou. Não tenho material para trabalhar. Ainda estou analisando aquele demônio que derreteu, entretanto...”

“Eu também sou um demônio, sabe?”

“De novo com essa besteira.”

“Não, pode não ser besteira na verdade.” Marguerite se intrometeu.

Maria franziu a testa.

“Vocês estão todas trabalhando juntas para me pregar uma peça, hein?”

“Não, pra ser mais clara, isso tem a ver com Schwartz.” disse Anessa.

A expressão nos olhos de Maria mudou.

“Isso é verdade?”

“Sim. Lutamos contra seu grupo quando estávamos na capital.”

“Hey... Por que não mencionou algo tão importante da última vez, Ange?”

“Esqueci.” respondeu Angeline com naturalidade.

Maria, cansada, colocou a mão no rosto. Marguerite começou a rir de sua reação.

“Bem, isso muda bastante as coisas...” disse Maria. “Conte-me em detalhes — não, seria melhor esperar até que a casa esteja limpa.”

A casa ainda estava cheia de barulhos de batidas e sons da limpeza de Miriam. A rajada ocasional de ar empoeirado que soprava pelas janelas e portas era uma evidência de que havia recorrido à magia do vento.

“Ah, certo, o General Musculoso já se recuperou...”

“Tsk, então ele realmente melhorou... Cough... Eu devia ter substituído o seu remédio por veneno.”

“O veneno seria suficiente para matar o general?” Marguerite se perguntou.

“Bem... Eu duvido.”

Elas continuaram conversando preguiçosamente enquanto esperavam que Miriam terminasse, até que a garota colocou a cabeça para fora da porta.

“Está feito! Como consegue viver nessa sujeira? Como ignorou isso até ficar tão ruim?”

Maria levantou-se cansada e sacudiu a poeira.

“Silêncio, discípula estúpida. Por que não prepara um chá já que está com a mão nisso?”

“Hmph!” Miriam logo voltou para casa.

Anessa riu.

“Apesar de tudo, Merry ainda faz o que você manda.”

“Hmph. Ela era muito mais adorável quando era uma criança... Cough, cough!”

“Vovó, não pretende aceitar novos discípulos...?”

“Estou muito velha. Seria uma dor de cabeça neste momento. Mesmo que eu não tome nenhum, eles continuam vindo por conta própria.” Maria olhou outra vez para o prédio branco antes de se levantar com raiva e voltar para casa.

Embora ainda estivesse bastante bagunçado por dentro, todas as pilhas de livros foram devolvidas à estante, os béqueres e frascos foram reunidos em um só lugar, todas as superfícies foram limpas da poeira e parecia um pouco mais brilhante. Miriam estava vasculhando em frente à lareira para preparar o chá.

Maria sentou-se numa poltrona e respirou fundo.

“Então... Conseguiram matar aquele desgraçado do robe?”

“Não tenho certeza... Foi o Sr. Kasim quem o confrontou, então não sei ao certo o que aconteceu. Contudo não vi nenhum cadáver.” disse Angeline.

Maria suspirou.

“Então duvido. Houve uma vez, entrei para a equipe que eles montaram para caçá-lo... Cough. Pensei que o tinha matado naquela época.”

“No entanto ele voltou. Ele é imortal?” perguntou Marguerite.

Os olhos de Maria se estreitaram.

“Não sei dizer. Mas parece algo que poderia ter feito... Apenas me conte tudo em ordem. Meus pensamentos estão muito bagunçados agora.”

Anessa assumiu a liderança ao recontar a história enquanto suas amigas acrescentavam alguns detalhes ao longo do caminho. Começaram relatando sua jornada até a capital em busca da antiga companheira de grupo de Belgrieve, falaram sobre onde encontraram o príncipe impostor conspirando com Schwartz, e a longa batalha de Satie contra eles, e como ela certa vez participou de experimentos que culminaram no nascimento de Angeline.

Maria recostou-se na cadeira, com os braços cruzados, pensativa.

“Se quer esconder uma árvore, o melhor lugar é na floresta, não é? Não pensei que Schwartz seguiria estando na capital.” ela murmurou antes de olhar para Angeline. “Ange, ouviu alguma coisa da sua mãe? Que tipo de experimentos foram feitos e que método foi usado para dar à luz você?”

“Não. Eu não estava tão interessada...”

A cabeça de Maria pendeu cansada.

“É da sua origem que estamos falando, e ainda assim... Me sinto uma idiota por perguntar.”

“Bom... Quando falava a respeito desse assunto, minha mãe sempre parecia um pouco triste.”

“Entendo...”

“Qual era o objetivo dele, no final...? Dominação mundial?”

“Não me pergunte. É inútil. Só há uma coisa que o motiva: a sua sede de conhecimento.” explicou Maria, carrancuda. “Cough... Em última análise, tudo o que aconteceu na capital envolvendo o falso príncipe foi apenas por causa de seus experimentos. Nem uma única coisa mudou. Asqueroso... Cough, cough!”

Anessa esfregou suas costas.

“Qual era sua pesquisa original?”

“No início, acredito que foi necromancia. Quando estava no laboratório nacional, frequentemente conduzia cadáveres de bandidos dizendo que estava testando suas sequências de feitiços. A gota d'água que lhe rendeu um prêmio por sua cabeça foi um incidente em que converteu a população de uma cidade inteira em vis mortos-vivos. Ele tentou lançar o mesmo feitiço na capital também.”

“Necromancia...” Angeline cruzou os braços. O falso príncipe Benjamin era um necromante habilidoso. O poder que concedeu a Charlotte também foi o poder de manipular os mortos. Na época, pensava que era o tipo de coisa que os vilões faziam.

Miriam encheu outra vez a xícara de chá de sua mentora.

“Mas não era só porque Schwartz estava tentando alcançar o auge da necromancia, certo?”

“Não. Tenho certeza de que a necromancia é apenas outro meio de alcançar seu verdadeiro objetivo.”

“E o que seria?”

“Cough, wheeze... Como posso saber? Porém acho que tem algo a ver com Salomão.”

“Salomão, hein...”

O nome parecia ter surgido bastante e os sentimentos de Angeline sobre o assunto agora eram bastante complicados. Dizia-se que os demônios eram homúnculos criados por Salomão. De acordo com Satie e Byaku, Angeline também era um demônio — e, portanto, poderia traçar sua origem até Salomão. Ele aparentemente era um homem mortal, então, estritamente falando, Salomão poderia ser considerado seu pai. O pensamento era simplesmente um anátema para ela — era impossível para Angeline pensar em alguém que não fosse Belgrieve como seu pai. Não fazia muito tempo que refletia sobre as identidades de seus verdadeiros pais, contudo, neste momento, já não lhe importava nem um pouco.

“Salomão... Pensando bem, ouvi uma história estranha...” Angeline murmurou.

“Continue.”

“Bom, de acordo com o falso príncipe...”

Angeline explicou o que o impostor de Benjamin lhe contou quando o confrontou. Há muito tempo, Salomão trabalhou junto com Viena pelo bem da humanidade, lutando contra os antigos deuses. Todavia ele caiu em desespero quando percebeu a natureza da humanidade e se voltou para a conquista.

“Então Salomão era um cara legal?” Marguerite se perguntou.

Anessa balançou a cabeça.

“Não, eu não iria tão longe. Afinal, Salomão acabou governando este continente com mão de ferro.”

“Entretanto isso é mesmo verdade?” perguntou Miriam. “Quero dizer, pelo que Satie disse, os antigos deuses parecem ter existido, mas...”

“Está ficando complicado... Não há dúvida de que Schwartz está tentando fazer algo em relação a Salomão. Porém não vejo nenhuma conexão entre isso e os experimentos que está conduzindo. Não consigo imaginar como é que isto está relacionado com a tomada do poder. A maneira como está lidando com tudo é muito indireta.” Maria tomou um gole de chá antes de continuar. “Todavia isso é estranho. Eu estava ciente de experimentos para dar à luz demônios, contudo... Ange, por que você é humana? Tem certeza de que sua mãe é uma elfa, certo?”

“Sim... Também não tenho uma resposta para essa pergunta.”

“Tsk... Parece que terei que ir para Turnera...” Maria murmurou.

Os olhos de Angeline se iluminaram no mesmo instante.

“Você vai para Turnera?” ela perguntou ansiosa, inclinando-se para mais perto da mulher. “Claro, certo, vamos juntas, vovó! Estarei indo para lá no outono, então que tal vir comigo?”

“Estou brincando, idiota! Acha mesmo que eu faria uma viagem longa e irritante na minha idade?”

“Vai ficar tudo bem. Vou cuidar de você.”

“Silêncio! Droga, não deveria ter deixado isso escapar impensadamente...” Maria empurrou Angeline cansadamente enquanto a garota tentava segurar seus ombros. As outras três meninas riram.


O plano era construir a casa do oficial adjunto de frente para a praça. A fundação de pedra já estava colocada e a estrutura de madeira parecia mais completa a cada dia. Do amanhecer ao anoitecer, a vila vivia com os sons dos machados e das serras trabalhando na serraria.

A guilda, por outro lado, estava sendo planejada para ser construída perto da entrada da vila. Alguns dos aldeões estavam receosos de ter causadores de problemas reunidos no coração da vila, e as suas opiniões tinham levado a melhor. Não foi uma má ideia, visto que a masmorra também estaria fora da vila. Tal como acontece com o outro projeto, as obras de fundação já haviam sido feitas e a madeira estava empilhada próxima. Um aroma refrescante exalava da madeira recém-cortada.

Qualquer coisa nova que acontecesse em Turnera era motivo de certa excitação — entre os aldeões mais jovens, é claro, no entanto até os mais velhos também pareciam um pouco animados. O assunto da cidade parecia sempre girar em torno da masmorra e da guilda antes de passar para as pousadas e restaurantes que uma cidade em desenvolvimento precisaria. O clima na cidade parecia ser de esperança e ansiedade em igual medida.

Apesar do entusiasmo com a nova construção, o trabalho diário da vila continuou. A tosquia das ovelhas havia terminado e a maior parte do trigo colhido já havia sido processado. A grama continuaria a crescer cada vez mais nos campos, mesmo à medida que o trabalho agrícola prosseguia, de modo que a remoção de ervas daninhas se tornou uma tarefa diária. A mesa de jantar de verão era decorada em abundância com uma variedade colorida de vegetais de verão, mas tais bênçãos exigiam cuidados atenciosos e constantes durante cada ciclo de colheita.

Enquanto o resto da família trabalhava fora, Belgrieve sentou-se à mesa em sua nova casa olhando documentos.

Quando o mestre da guilda de Bordeaux, Elmore, passou por aqui, trouxe vários documentos que achou que poderiam servir como boas referências. Havia formulários de solicitação e aceitação, registros preenchidos com nomes de antigos aventureiros e até livros de contabilidade, ainda que de muito tempo atrás. Embora Belgrieve estivesse grato por tantas pessoas o estarem ajudando, também tinha a sensação inquietante de um fardo sobre seus ombros ficando cada vez mais pesado. Depois de analisar tudo, começou a refletir sobre a logística real do lado da administração da guilda. Resolveu fazer uma pausa para fazer exercícios — uma caminhada familiar era a coisa certa para se recompor depois de tanto estudo.

O sol do início do verão batia implacável no céu claro, iluminando o verde profundo das árvores e da grama. O cheiro da grama foi levado pela brisa enquanto ela ondulava através da roupa pendurada em varais. Belgrieve chutou o chão algumas vezes para verificar o ajuste de sua perna de pau antes de ir para o campo nos fundos. Uma nova cerca foi erguida no início da primavera e já estava coberta por vinhas macias pontilhadas com o que pareciam ser botões de flores. Ele lembrou que Charlotte comprou as sementes de um vendedor ambulante que passou pela cidade na primavera passada e as plantou ao longo da cerca. Elas pareciam estar crescendo bem.

Charlotte e Mit, que estavam colocando palha nas bases das mudas, ergueram os olhos do trabalho e acenaram para Belgrieve.

“Oi, pai.” disse Mit disse.

“Você terminou de ler?” Charlotte perguntou.

“Sim, pensei em fazer um pouco de exercício... Contudo como vocês dois estão trabalhando tanto, parece que não há nada para eu fazer.” brincou Belgrieve. As crianças se entreolharam e começaram a rir.

“Onde está Sa... Sua mãe?”

“Ela foi colher mirtilos com Byaku, Hal e Mal. Parece que vai fazer geleia à tarde!”

Mirtilos selvagens podem ser encontrados em arbustos pequenos. As pequenas frutas eram uma deliciosa mistura de sabores agridoces. A vila não cultivava os arbustos, uma vez que estes cresciam em abundância na natureza. Ao contrário dos mirtilos-vermelhos, eles podiam ser colhidos perto da vila, de modo que todos os aldeões conheciam bem o seu sabor.

Belgrieve ajudou Charlotte e Mit a colocar palha e remover quaisquer insetos agarrados às folhas das mudas, depois arrancou quaisquer ervas daninhas visíveis nas proximidades. O meio-dia logo chegou e ficou ainda mais quente lá fora.

Belgrieve enxugou o suor da testa com as costas da mão enquanto examinava todo o campo.

“Ficou muito mais arrumado. Que tal descansarmos um pouco?”

“Sim.”

“Está muito quente hoje.” observou Charlotte enquanto puxava o chapéu de palha sobre a cabeça e se virava para Belgrieve. “Você vai me ensinar a tecer um chapéu, não é?”

“Sim, assim que tivermos palha sobrando.”

Os chapéus de palha eram uma das várias coisas que podiam ser feitas de palha. Trabalhadores qualificados em palha faziam coroas de plantas silvestres para servir como faixas decorativas para chapéus depois que o produto básico estivesse completo. Alguns desses chapéus eram bons o suficiente para serem usados em cidades maiores também, então os vendedores ambulantes os compravam com prazer. Todavia a maioria dos aldeões contentava-se em fazê-los de forma simples e grosseira, para uso próprio.

Belgrieve sentiu uma sensação de nostalgia ao se lembrar de ter ensinado Angeline a tecer quando ela era apenas uma garotinha. Sua primeira tentativa foi desajeitada e deformada, mesmo assim a garota o usou em Turnera com orgulho. Ainda era uma lembrança vívida para Belgrieve.

Belgrieve atravessou o jardim onde pôde ouvir o som de respingos de água. Ele viu que Satie e os outros já haviam retornado e estavam lavando os mirtilos recém-colhidos ao lado do poço. Charlotte e Mit correram até eles com fogo nos olhos.

“Bem vindos de volta!”

“Wow, é muita coisa...”

Satie virou-se para os dois, sorrindo.

“Podemos ter pego um pouco demais. Aqui, pode comer um pouco.”

Havia um monte de mirtilos na cesta. Quando lavados e úmidos, brilhavam como pedras preciosas ao refletirem a luz do sol. As gêmeas já tinham manchas roxas ao redor da boca, e Charlotte e Mit logo as acompanhariam.

“Estou surpreso que tenha encontrado tantos.”

“Byaku os encontrou para nós. Certo?” Satie disse, olhando para o menino. Byaku virou-se taciturnamente.

“Nada mal.” disse Belgrieve, acariciando a barba. “Quando adquiriu uma habilidade como essa?”

“Como diabos vou saber.” disse Byaku. Com os olhos ainda desviados, ele jogou um monte de mirtilos em uma pia e começou a agitá-los na água. Ficou claro que estava envergonhado com o elogio. Belgrieve caiu na gargalhada com a demonstração de modéstia.

As crianças insistiram que poderiam cuidar da limpeza dos mirtilos, então Belgrieve deixou o trabalho em suas mãos e entrou em casa. Precisava fazer os preparativos para o almoço.

Depois de cuidar das chamas da lareira, Belgrieve colocou um pouco de carne moída seca e aveia em uma panela com água quente. Assim que começou a ferver, colocou algumas batatas em cubos e outras raízes e temperou-as com sal e ervas. Ele colocou a tampa na panela e abafou um pouco as chamas, depois parou um momento para recuperar o fôlego e enxugar o suor. Estava bastante quente para cozinhar. Belgrieve se virou para ver Satie terminando de amassar a massa do pão. Seu olhar parecia estar distante.

“Há algo de errado? Ficando cansada?”

“Hmm? Ah, não, não é isso.” Satie balançou a cabeça e bateu as mãos no rosto, depois se virou com um sorriso suave. “É divertido, sabe. Estou muito feliz desde que cheguei aqui.”

“Fico feliz em saber.”

Satie sorriu para ele antes de permitir que seu olhar e pensamentos vagassem mais uma vez. Parecia que ela frequentemente ficava com uma expressão distante no rosto desse jeito. Mesmo quando Belgrieve perguntava se havia algo errado, ela desviava as perguntas. Ele confiava nela o suficiente para saber que não havia nada malicioso em sua mente, mas mesmo assim estava um pouco preocupado.

“Não carregue tudo sozinha, ok? Não que eu esteja em posição de falar...”

“Hehe... Acho que está certo. Obrigado.” Satie respirou fundo antes de se levantar com entusiasmo. “Tudo bem, vamos fazer alguns pãezinhos fritos também. Poderia me passar a frigideira?”

“Está servirá?”

“Hmm, a maior, por favor.”

Foi então que Percival voltou.

“Esse é o almoço? Ah, Bell, preciso de você por um momento. O pessoal que foi para Bordeaux está de volta. Eles disseram que querem conversar sobre a construção.”

“Entendo. Posso deixar aqui para você então, Satie?”

“Claro. Volte logo.”

Há uma semana, Kerry, Barnes e alguns carpinteiros de Turnera partiram para Bordeaux após o término da tosquia. Eles queriam dar uma olhada em um prédio de guilda adequado com seus próprios olhos, sem mencionar algumas compras que poderiam fazer enquanto estivessem lá. Parecia que havia muito para aprender sobre a construção e voltaram com muito a dizer.

Belgrieve puxou conversa com Percival enquanto caminhavam até o local da construção da guilda.

“Hey, Percy...”

“Hmm?”

“Se Satie vier até você pedindo ajuda... Vai ajudá-la?”

Percival riu alto.

“Claro. Está falando como se não fôssemos amigos.”

“Haha! Tem razão... Bem, parece que Satie ainda está calada sobre alguma coisa.”

“Sobre os demônios, imagino.”

Belgrieve assentiu. Para realmente resolver a questão das gêmeas, Byaku e Mit — todos contendo um demônio — seria necessário rastrear Schwartz. Satie era a pessoa mais envolvida com sua organização e seria a mais capacitada para ajudar na tarefa. Todavia, a batalha com Schwartz na capital foi uma experiência muito traumática para ela. Mesmo que tivesse uma ideia geral do seu envolvimento, Belgrieve não estava interessado em tentar arrancar os detalhes mais sutis.

Percival coçou o queixo, pensativo.

“Aposto que Satie ainda não colocou seus pensamentos em ordem. Seria melhor esperar até que esteja pronta do que tentar pressioná-la para falar a respeito. Kasim também pensa o mesmo.”

Parecia que seus ex-membros de grupo também notaram que havia algo errado com o recente comportamento de Satie. Belgrieve sorriu e deu um tapinha nas costas de Percival.

“Como esperado do nosso líder.”

“Pode ter certeza.”

Já havia uma multidão reunida no canteiro de obras quando chegaram lá. Enquanto subiam, Kerry acenou.

“O mestre da guilda está aqui!” proclamou.

“É um pouco cedo para isso...”

“O que está dizendo? Mas, minha nossa, Bordeaux era sem dúvida um lugar grande! Eu aprendi muito!”

Kerry estava animado. Sua família estava entre as mais ricas de Turnera, e sua família sempre teve muitos trabalhos à disposição — então ele estava feliz com a perspectiva de assumir esse novo projeto.

Barnes pegou um papel que mostrava um esboço.

“Perguntamos um pouco. Este é o design que pensamos...”

Porém ele foi interrompido por outra pessoa.

“O que fazemos com a pousada? A guilda deveria direcionar os aventureiros para as pousadas, certo?”

“Vamos montar uma loja? Seria muito mais fácil se fosse um bar também... Vai ser dois pássaros com uma pedrada.”

“Não! Estou lhe dizendo, é muito cedo. Sequer começamos!”

“Vamos começar com a construção da guilda, de qualquer maneira. Não receberemos nem visitantes sem ela.”

“Isso é o que tenho dito! Todos podem, por favor, falar um de cada vez?” gritou Barnes, que estava irritado por ter sido interrompido.

“O que foi, idiota?” alguém interveio com raiva, causando mais uma discussão inútil. Parecia que todos tinham seus próprios pensamentos sobre o assunto e também suas próprias fixações.

Belgrieve sorriu ironicamente. Não parece que vão acabar antes da hora do almoço...



Notas:
1. Chassi, do francês chassis, é a estrutura de suporte de carga que serve como espinha dorsal do veículo. Pode ser feito de aço, alumínio, ou qualquer outro material rígido.

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