terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

The Dragonbone Chair — Volume 01 — Capítulo 01

TOMO UM: SIMON CABEÇA-OCA

Capítulo 01: O Gafanhoto e o Rei


Naquele dia, havia uma agitação desconhecida bem no fundo do coração adormecido de Hayholt, no labirinto desconcertante de passagens silenciosas e pátios cobertos de hera do castelo, nos buracos dos monges e nas câmaras úmidas e sombreadas. Cortesãos e servos arregalavam os olhos e sussurravam. Ajudantes de cozinha trocavam olhares significativos através das cubas de lavagem na cozinha fumegante. Conversas abafadas pareciam estar acontecendo em todos os corredores e pátios da grande fortaleza.

Poderia ter sido o primeiro dia da primavera, a julgar pelo ar de antecipação ofegante, mas o grande calendário na câmara desordenada do Doutor Morgenes mostrava o contrário: o mês era apenas Novender. O outono estava em pleno apogeu, e o inverno se aproximava devagar.

O que tornava este dia diferente de todos os outros não era uma estação, e sim um lugar, a sala do trono de Hayholt. Por três longos anos suas portas permaneceram fechadas por ordem do rei, e pesadas cortinas cobriram as janelas multicoloridas. Nem mesmo os criados da limpeza tiveram permissão de cruzar a soleira, causando à Senhora das Camareiras uma angústia pessoal infindável. Três verões e três invernos aquele quarto permaneceu intocado, porém hoje não estava mais vazio, e todo o castelo fervia com rumores.


***



Na verdade, havia uma pessoa no movimentado Hayholt cuja atenção não estava fixada naquele quarto há muito desocupado, uma abelha na colmeia murmurante cuja canção solitária não estava em sintonia com o zumbido maior. Aquele ser estava sentado no coração do Jardim de Setos, em uma alcova entre a pedra vermelha opaca da capela e o lado sem folhas de um seto esquelético, e esperou que não sentissem sua falta. Tinha sido um dia irritante até agora, as mulheres todas ocupadas, com pouco tempo para responder perguntas; café da manhã atrasado, e frio por consequência. Ordens confusas lhe foram dadas, como sempre, e ninguém tinha tempo a perder com nenhum de seus problemas...

E isso também era, pensou mal-humorado, bastante previsível. Se não fosse por sua descoberta desse enorme e magnífico besouro, que tinha vindo passeando pelo jardim, tão satisfeito consigo mesmo quanto qualquer aldeão próspero, então a tarde inteira teria sido uma perda de tempo.

Com um galho, alargou a pequena estrada que havia raspado na terra escura e fria ao lado do muro, contudo ainda assim o cativo não andava para frente. Moveu um pouco sua carapaça brilhante, no entanto o teimoso besouro não se mexia. Franzindo a testa, o garoto mordeu seu lábio superior.

— Simon! Onde, em nome da sagrada Criação, você estava?

O galho caiu de seus dedos nervoso, como se uma flecha tivesse perfurado seu coração. Pouco a pouco, se virou para olhar a forma iminente.

— Em lugar nenhum... — Simon começou a dizer, entretanto assim que as palavras passaram por seus lábios um par de dedos ossudos agarrou sua orelha e o fez ficar de pé bruscamente, enquanto gemia de dor.

— Não venha me dizer ‘em lugar nenhum’, jovem vagabundo. — Raquel, o Dragão, Senhora das Camareiras, rugiu bem na sua cara, uma justaposição possível apenas pela postura na ponta dos pés de Raquel e a inclinação natural do garoto para se curvar, pois a camareira chefe era um palmo mais baixa que Simon.

— Desculpe, senhora, desculpe. — Simon murmurou, notando com tristeza o besouro se dirigindo a uma rachadura na parede da capela e à sua liberdade.

— ‘Desculpe’ não vai te ajudar para sempre. — Raquel rosnou. — Todo mundo na casa está trabalhando para deixar as coisas prontas, menos você! E, pra piorar, eu tenho que perder meu valioso tempo tentando te encontrar! Como pode ser um garoto tão mau, Simon, quando deveria estar agindo como um homem? Como pode?

O garoto de quatorze anos, desengonçado e totalmente envergonhado, não disse nada. Raquel o encarou.

“Seu aspecto já é bastante triste...” ela pensou. “Com esse cabelo ruivo e aquelas manchas, mas quando aperta os olhos para cima daquele jeito e faz cara feia... Ora, a criança parece idiota!”

Simon, olhando fixo para sua captora, viu a respiração pesada de Raquel, exalando ar de novender com baforadas de vapor. Também estava tremendo, embora Simon não soubesse dizer se era de frio ou raiva. Na verdade, não importava. Só o fazia se sentir pior.

“Ainda está esperando por uma resposta, quão cansada e irritada ela parece!” ele se encolheu em uma postura ainda mais pronunciada e olhou para os próprios pés.

— Bem, você vai vir comigo. O bom Deus sabe que tenho coisas suficientes para manter um garoto preguiçoso ocupado. Será que não sabe que o rei saiu do leito de doente? Que foi para a sala do trono hoje? Você é surdo e cego?

Raquel agarrou seu cotovelo e o arrastou pelo jardim.

— O rei? Rei John? — Simon perguntou, surpreso.

— Não, seu garoto ignorante, Rei Pedra-na-Estrada! Claro, Rei John! — Raquel parou no meio do caminho para empurrar uma mecha de cabelo cinza para trás sob o barrete. Sua mão tremia. — Pronto, espero que esteja feliz. — falou. — Me deixou tão perplexa e irritada que fui desrespeitosa com o nome do nosso bom e velho Rei John. E ele tão doente como está.

Ela fungou alto e então se inclinou para dar um tapa forte na parte gorda do braço de Simon.

— Só venha.

A dama avançou com passos pesados, o garoto arrastado a reboque.



***



Simon nunca conheceu outro lar além do castelo antiquíssimo chamado Hayholt, que significava Fortaleza Alta. Era bem nomeado: a Torre do Anjo Verde, seu ponto mais alto, elevava-se muito acima até mesmo das árvores mais velhas e altas. Se o próprio Anjo, empoleirado no topo da torre, tivesse jogado uma pedra de sua mão verdejante, esta teria despencado quase duzentos côvados¹ antes de cair no fosso salobro e perturbado o sono do grande peixe lúcio que se agitava perto da lama centenária.

Hayholt era muito mais velho do que todas as gerações de camponeses erkynos que nasceram, trabalharam e morreram nos campos e vilas ao redor da grande fortaleza. Os erkynos eram apenas os últimos a reivindicar o castelo, muitos outros o chamaram de seu, porém nenhum conseguiu torná-lo totalmente seu. A parede externa ao redor da fortaleza extensa mostrava o trabalho de diversas mãos e épocas: a rocha e a madeira toscamente talhadas pelos rimmerios, os remendos aleatórios e as estranhas esculturas dos hernystiros, até mesmo o trabalho meticuloso em pedra dos artesãos nabbanos. Contudo, pairando sobre tudo, permanecia a Torre do Anjo Verde, erguida pelos imortais sitha muito antes de os homens chegarem a essas terras, quando todo o Osten Ard era seu domínio. Os sitha foram os primeiros a construir aqui, construindo sua fortaleza primitiva nos promontórios com vista para o Kynslagh e a estrada do rio para o mar. Eles chamaram seu castelo de Asu’a; se tivesse um nome verdadeiro, esta casa de muitos mestres, então Asu’a era esse nome.

Aquela ‘raça mágica’, os sitha, desapareceram agora das planícies gramadas e das colinas onduladas, fugindo para as florestas e montanhas escarpadas e outros lugares escuros inconvenientes para os homens. Os ossos de seu castelo, um lar para usurpadores, permaneceram para trás.

Asu’a, o paradoxo; orgulhoso, contudo decrépito, festivo e proibitivo, pelo jeito alheio às mudanças de inquilinos. Asu’a... Hayholt, erguia-se montanhosamente acima das terras distantes e da cidade, curvado sobre seu feudo como um urso adormecido com focinho de mel entre seus filhotes.



***



Muitas vezes Simon teve a sensação de ser o único morador do grande castelo que não havia encontrado seu lugar na vida. Os pedreiros rebocaram a fachada caiada da residência e escoraram as paredes em ruínas do castelo, embora o desmoronamento às vezes parecesse ultrapassar as restaurações, sem nunca pensar em como o mundo girava ou por quê. Os carniceiros e mordomos, entre alegres assovios, rolavam enormes barris e levavam carne salgada aqui e ali. Com o senescal do castelo ao lado deles, pechinchavam com os fazendeiros sobre as cebolas peludas e cenouras úmidas trazidas em sacos para a cozinha de Hayholt todas as manhãs. E Raquel e suas camareiras estavam sempre muito ocupadas, brandindo suas vassouras de palha amarrada, perseguindo bolas de poeira como se estivessem pastoreando ovelhas assustadas, murmurando imprecações piedosas sobre a maneira como algumas pessoas deixavam um quarto quando partiam e, geralmente, aterrorizando os preguiçosos e desleixados.

No meio de tal atividade, o desajeitado Simon era o lendário gafanhoto no formigueiro. Sabia que nunca chegaria a ser grande coisa, muitas pessoas lhe disseram isso, e quase todas eram mais velhas... E presumivelmente mais sábias, do que ele. Em uma idade em que outros meninos clamavam pelas responsabilidades da masculinidade, Simon seguia um desorganizado e um divagador. Não importava qual tarefa lhe fosse dada, sua atenção logo se dispersava, e sonhava com batalhas, gigantes e viagens marítimas em navios grandes e brilhantes... E, de alguma forma, as coisas quebravam, ou se perdiam, ou eram feitas de forma errada.

Outras vezes, não podia ser encontrado. Ele se esgueirava pelo castelo como uma esquálida sombra, conseguia subir em uma parede tão bem quanto os pedreiros e vidraceiros, e conhecia tantas passagens e buracos escondidos que o povo do castelo o chamava de ‘menino fantasma’. Raquel puxava suas orelhas com frequência e o chamava de cabeça-oca.



***



Por fim Raquel soltou seu braço, e Simon arrastou seus pés melancolicamente enquanto seguia a Senhora das Camareiras como um pedaço de pau preso na bainha de uma saia. Havia sido descoberto, seu besouro havia escapado e a tarde estava arruinada.

— O que devo fazer, Raquel? — murmurou apático. — Ajudar na cozinha?

A dama bufou com desdém e seguiu em frente, um texugo de avental. Simon olhou para trás com pesar para as árvores e arbustos protetores do jardim. Seus passos misturados ressoavam cheios de solenidade pelo longo corredor de pedra.



***



Simon fora criado pelas camareiras, todavia era evidente que nunca poderia fazer parte do serviço. Sua meninice à parte, era óbvio que Simon não era confiável para operações domésticas delicadas, um esforço concentrado havia sido feito para encontrar trabalhos adequados para o jovem. Em uma casa grande, e Hayholt era sem dúvida a maior, não havia lugar para aqueles que não trabalhavam. Encontrou um trabalho nas cozinhas do castelo, mas mesmo nesse trabalho pouco exigente não era de todo bem-sucedido. Os outros ajudantes de cozinha riam e cutucavam uns aos outros para ver Simon, até os cotovelos, na água quente, olhos semicerrados em devaneio alheio... Aprendendo o truque do voo dos pássaros ou salvando donzelas dos sonhos de animais imaginários enquanto seu bastão de esfregar flutuava pelo tanque de lavar.

Dizia a lenda que Sir Fluiren, um parente do famoso Sir Camaris de Nabban, tinha vindo para Hayholt em sua juventude para ser um cavaleiro, e tinha trabalhado um ano disfarçado nesta mesma copa, devido à sua humildade inefável. Os trabalhadores da cozinha o provocavam, ou assim dizia a história, chamando-o de ‘Mãos Finas’ porque o trabalho terrível não diminuía a fina brancura de seus dedos.

Simon só tinha que olhar para suas próprias unhas rachadas e mãos avermelhadas para saber que ele não era o filho órfão de um grande senhor. Era um ajudante de cozinha e um varredor de esquina, e era isso. Em uma idade não muito maior, todos sabiam, o Rei John havia matado o Dragão Vermelho. Simon lutava com vassouras e panelas. Não que fizesse muita diferença: era um mundo diferente e mais silencioso do que na juventude de John, graças em grande parte ao próprio velho rei. Nenhum dragão... Vivos, pelo menos... Habitava os corredores escuros e intermináveis ​​de Hayholt. Porém Raquel, segundo se dizia Simon, com seu rosto azedo e dedos terríveis e pinçados, se parecia bastante a eles.



***



Os dois chegaram à antecâmara diante da sala do trono, o centro da atividade desordenada. As camareiras, movendo-se quase correndo, saltavam de parede a parede como moscas em uma garrafa. Raquel estava de pé com os punhos nos quadris e inspecionava seu domínio, parecendo, pelo sorriso que apertava sua boca fina, achá-lo agradável.

Simon espreitou contra uma parede de tapeçaria, esquecido por um momento. Curvado, olhou pelo canto dos olhos para a nova garota, Hepzibah, que era gordinha e de cabelos cacheados e andava com um insolente balançar dos quadris. Passando com um balde de água chapinhando, ela captou seu olhar e revelou um amplo sorriso, entretida. Simon sentiu o fogo crepitando de seu pescoço em suas bochechas e se virou para cutucar a tapeçaria esfarrapada da parede.

Raquel não perdeu a troca de olhares.

— Que o Senhor te açoite como um burro, garoto, não te disse para começar a trabalhar? Vai, então!

— Em quê? Fazer o quê? — Simon gritou, e ficou mortificado ao ouvir a risadinha zombadora de Hepzibah flutuando do corredor. O garoto beliscou seu próprio braço em frustração, e doeu.

— Pegue esta vassoura e vá varrer os aposentos do doutor. Aquele homem vive como em um ninho de ratos, e quem sabe para onde o rei vai querer ir agora que acordou.

Estava claro pelo tom de Raquel o fato de que ser rei não amenizava a aversão generalizada que sentia pelos homens.

— Os aposentos do Doutor Morgenes? — Simon perguntou; pela primeira vez desde que foi descoberto no jardim seu ânimo se elevou. — Vou agora mesmo!

Ele agarrou a vassoura em uma corrida mortal e foi embora.

Raquel bufou e se virou para examinar a perfeição imaculada da antecâmara. Por um momento se perguntou o que poderia estar acontecendo atrás da grande porta da sala do trono, então descartou o pensamento errante tão impiedosamente quanto poderia espantar um mosquito pairando. Conduzindo suas legiões com palmas e olhos de aço, levou-as para fora da antecâmara e para outra batalha campal contra seu arqui-inimigo, a desordem.



***



Naquele salão além da porta, penduravam-se estandartes empoeirados, fileira após fileira ao longo das paredes, um bestiário desbotado de animais fantásticos: o garanhão dourado de puro sangue do Clã Mehrdon, o reluzente brasão do martim-pescador de Nabban, coruja e boi, lontra, unicórnio e basilisco... Fileira após fileira de criaturas silenciosas e adormecidas. Nenhuma corrente de ar agitava essas cortinas puídas; até mesmo as teias de aranha pendiam vazias e sem costura.

Entretanto, alguma pequena mudança havia ocorrido na sala do trono, algo vivia mais uma vez na câmara sombreada. Alguém cantava uma melodia tranquila na voz fina de um menino muito jovem ou de um homem muito velho.

No extremo mais distante do salão, uma enorme tapeçaria pendia na parede de pedra entre as estátuas dos Supremos Reis de Hayholt, uma tapeçaria com o brasão real, o Dragão e a Árvore. As estátuas sombrias de malaquita, uma guarda de honra de seis, ladeavam um enorme e pesado trono que parecia inteiramente esculpido em marfim amarelado. Os braços do trono eram salientes e articulados, o encosto coberto por um enorme crânio serpentino com muitos dentes cujos olhos eram poças de sombra.

Sobre e diante deste trono estavam duas figuras sentadas. A menor das duas figuras ia vestida com roupas multicoloridas e cantava; sua voz que flutuava ao pé do trono, fraca demais para soltar até mesmo um leve eco. Sobre este, curvava-se uma forma magra, empoleirada na beirada do trono como um raptor envelhecido, uma ave de rapina cansada e manca, acorrentada ao osso opaco.

O rei, três anos doente e enfraquecido, havia retornado ao seu salão empoeirado. Ele ouviu o homenzinho a seus pés cantar; as mãos longas e manchadas do rei agarravam os braços de seu grande trono amarelado.

Ele era um homem alto, outrora muito alto, contudo agora curvado como um monge em oração. Levava uma túnica azul-celeste larga e tinha uma barba como a de um profeta jesuriano. Uma espada repousava em seu colo, brilhando como se tivesse sido polida há pouco; em sua testa, havia uma coroa de ferro, cravejada de esmeraldas verde-mar e opalas.

O homenzinho aos pés do rei parou por um longo e silencioso momento, então começou outra canção.



Podem ser contados as gotas de chuva

quando o sol luzi no alto?

Pode ser nadado no rio

quando seu leito está seco?

Pode ser apanhado uma nuvem?

Não, não se pode...

E o vento grita ‘Espere’

enquanto a passa.

O vento grita ‘Espere’.

Quando a passa...



Quando a melodia terminou, o homem alto de túnica azul estendeu a mão e o bobo da corte a pegou. Nenhum dos dois disse uma palavra.

John, o Presbítero, Senhor de Erkynlandia e Supremo Rei de todo Osten Ard; flagelo dos sitha e defensor da verdadeira fé, portador da espada Cravo Brilhante, ruína do dragão Shurakai... O Preste John, sentado uma vez mais em seu trono feito de ossos de dragão, era muito, muito velho, e estava chorando.



***



— Ah, Towser. — balbuciou ao fim, sua voz profunda, contudo falha pela idade. — Deve se tratar de um Deus impiedoso para que me faça passar tão triste situação.

— Talvez, meu senhor. — o velhinho de gibão xadrez sorriu um sorriso amargo e enrugado. — Talvez... No entanto não cabe dúvida de que muitos outros não reclamariam de crueldade se esta os conduzira à sua posição na vida.

— É exatamente isso que quero dizer, velho amigo! — o rei balançou a cabeça com raiva. — Nesta idade enferma, todos os homens são nivelados. Qualquer aprendiz de alfaiate estúpido bebe mais da vida do que eu!

— Ah, meu senhor, meu senhor... — a grisalha cabeça de Towser balançou de um lado para o outro, mas os sinos de seu chapéu, há muito tempo sem badalo, não tilintaram. — Meu senhor, você reclama oportunamente, porém sem razão. Todos os homens chegam a esta situação, grandes ou pequenos. Sua vida foi maravilhosa.

Preste John levantou a empunhadura de Cravo Brilhante diante de si, segurando-a como se fosse uma Árvore Sagrada. Estirou as costas de uma mão longa e fina sobre os olhos.

— Você conhece a história desta lâmina? — ele perguntou.

Towser olhou para cima bruscamente, tinha ouvido inúmeras vezes a história.

— Conte-me, ó rei. — disse, tranquilo.

Preste John sorriu, embora seus olhos nunca deixaram a empunhadura envolta em couro à sua frente.

— Uma espada, pequeno amigo, é a extensão da mão direita de um homem... E o ponto final de seu coração. — ele levantou a lâmina mais alto, de modo que captou um brilho de luz de uma das pequenas e altas janelas. — Da mesma forma, o Homem é a boa mão direita de Deus, o Homem é o afiado executor do Coração de Deus. Compreende?

De repente, estava se inclinando, os olhos brilhantes como pássaros sob sobrancelhas desgrenhadas.

— Sabe o que é isso?

Seu dedo trêmulo indicou um pedaço de metal enferrujado e frisado preso ao cabo da espada com fio dourado.

— Conte-me, Senhor... — Towser respondeu, apesar de saber perfeitamente bem.

— Este é o único cravo da verdadeira Árvore da Execução que ainda resta em Osten Ard. — Preste John levou a empunhadura aos lábios e a beijou, então segurou o metal frio contra sua bochecha. — Este cravo veio da palma de Jesuris Aedon, nosso Salvador... De Sua mão...

Os olhos do rei, captando por um momento uma estranha meia-luz de cima, eram espelhos de fogo.

— E também há a relíquia, é claro. — ele disse depois de um momento de silêncio. — O osso do dedo do mártir Santo Eahlstan, o morto pelo dragão, bem aqui na empunhadura...

Houve outro intervalo de silêncio, e quando Towser olhou para cima, seu mestre estava chorando novamente.

— Que vergonha, que vergonha! — John gemeu. — Como posso viver de acordo com a honra da Espada de Deus? Com ​​tanto pecado, tanto peso, ainda manchando minha alma... O braço que uma vez feriu o dragão vermelho agora mal consegue levantar uma xícara de leite. Oh, estou morrendo, meu querido Towser, morrendo!

Towser se inclinou para frente, puxando uma das mãos ossudas do rei para fora do punho da espada e beijando-a enquanto o velho soluçava.

— Oh, por favor, mestre. — o bobo da corte implorou. — Não chore mais! Todos os homens devem morrer... Você, eu, todos. Se não formos mortos pela estupidez juvenil ou pela má sorte, então é nosso destino viver como as árvores: mais e mais velhos até que no fim cambaleamos e caímos. É o caminho de todas as coisas. Como pode lutar contra a vontade do Senhor?

— Mas eu construí este reino! — uma raiva trêmula tomou conta de John, o Presbítero, enquanto libertou sua mão do aperto do bobo da corte e a trouxe bruscamente para baixo no braço de seu trono. — Isso deve pesar contra qualquer mancha de pecado em minha alma, por mais escura que seja! Certamente o Bom Deus terá isso em seu Livro de Contas! Tirei essas pessoas para fora da lama, açoitei os amaldiçoados e furtivos sitha para fora do campo, dei ao campesinato lei e justiça... O bem que fiz deve ser tido em conta. — por um momento, a voz de John ficou mais fraca, como se seus pensamentos vagassem para outro lugar.

— Ah, meu velho amigo... — retomou com uma voz amarga. — E agora não posso nem andar até o mercado na Principal Avenida! Devo ficar na cama, ou arrastar os pés por este castelo frio nos braços de homens mais jovens. Meu... Meu reino jaz corrompendo na videira, enquanto servos sussurram e andam na ponta dos pés do lado de fora da porta do meu quarto! Tudo é pecado!

As palavras do rei ecoaram nas paredes de pedra da câmara e se dissiparam aos poucos entre as partículas de poeira rodopiantes. Towser voltou a tomar a mão de John e apertou-a até que o rei se recompusesse mais uma vez.

— Bem... — disse Preste John depois de algum tempo. — Meu Elias governará com mais firmeza do que eu posso agora, pelo menos. Vendo a decadência de tudo isso... — ele estendeu a mão como para abarcar a sala do trono. — Hoje decidi chamá-lo de volta de Meremund. Ele deve se preparar para tomar a coroa.

O rei suspirou.

— Suponho que devo deixar de lado meus lamentos próprios de mulheres e ser grato por ter o que muitos reis não têm: um filho forte para manter meu reino unido depois que eu partir.

— Dois filhos fortes, Senhor.

— Bah. — o rei fez uma careta. — Posso chamar Josua de muitas coisas, porém não acredito que ‘forte’ seja uma delas.

— Você é muito duro com ele, meu senhor.

— Bobagem. Acha que pode me instruir, bobo? Conhece o filho melhor do que o pai?

A mão de John tremeu, e por um momento pareceu que lutaria para ficar de pé. Finalmente, a tensão diminuiu.

— Josua é um cínico. — continuou o rei em uma voz mais baixa. — Um cínico, um melancólico, frio com seus súditos... E o filho de um rei não tem nada além de súditos, cada um deles um assassino em potencial. Não, Towser, ele é um esquisito, meu filho mais novo... Mais especialmente desde... Desde que perdeu a mão. Ah, misericordioso Aedon, talvez a culpa seja minha.

— O que você quer dizer, meu senhor?

— Deveria ter tomado outra esposa depois que Ebekah morreu. Tem sido uma casa fria sem uma rainha... Talvez isso tenha causado o estranho caráter do garoto. No entanto, creio que Elias não é assim.

— Há uma certa franqueza grosseira na natureza do príncipe Elias. — Towser murmurou, mas se o rei ouviu, não deu sinal.

— Dou graças a Deus por Elias ser o primogênito. Seu caráter é bravo e marcial... Creio que se fosse o mais novo, Josua não estaria seguro no trono.

O rei John balançou a cabeça com fria ternura ao assentir para suas próprias palavras, então tateou e agarrou a orelha de seu bobo da corte, beliscando-a como se aquele velho fosse uma criança de cinco ou seis anos.

— Prometa-me uma coisa, Towser...?

— O quê, senhor?

— Quando eu morrer... Sem dúvida em breve, não acho que vou sobreviver ao inverno... Você deve trazer Elias para esta sala... Acha que eles farão a coroação aqui? Não se preocupe, se fizerem, você deve esperar até que ela termine. Traga-o aqui e entregue-o Cravo Brilhante. Sim, pegue agora e segure. Temo que eu possa morrer enquanto Elias está em Meremund ou em algum outro lugar, e quero que ela chegue direto em suas mãos com minha bênção. Entendeu, Towser?

Com as mãos trêmulas, o Preste John empurrou a espada de volta para sua bainha trabalhada e lutou por um momento para desatar o boldrié em que estava pendurada. O nó foi preso, e Towser se ajoelhou para trabalhar no nó com seus dedos velhos e fortes.

— Qual é a sua bênção, meu senhor? — perguntou, a língua entre os dentes enquanto desfazia o emaranhado.

— Diga a Elias o que lhe contei. Diga que a espada é a ponta do seu coração e mão, assim como nós somos os instrumentos do Coração e Mão de Deus Pai... E diga que nenhum prêmio, por mais nobre que seja, vale... Vale... — John hesitou e levou os trêmulos dedos aos olhos. — Não, esqueça. Fale apenas o que eu lhe disse sobre a espada. Diga a ele.

— Assim o farei, meu Rei. — disse Towser. O bobo franziu a testa, embora tivesse resolvido o nó. — Ficarei feliz em realizar seu desejo.

— Ótimo. — Preste John recostou-se mais uma vez em seu trono de ossos de dragão e fechou os olhos cinzentos. — Cante para mim outra vez, Towser.

Towser cantou. Acima, os estandartes empoeirados pareciam balançar levemente, como se um sussurro passasse entre a multidão de observadores, entre as garças antigas e os ursos de olhos opacos, e outros ainda mais estranhos.



Notas:
1. Uma antiga unidade medida de comprimento, baseada no comprimento do antebraço que equivale a cerca de 42 centímetros.

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