Capítulo 02: Uma História de Dois Sapos
Uma mente ociosa é a sementeira do diabo.
Simon refletiu com tristeza sobre isso, uma das expressões favoritas de Raquel, enquanto olhava para a exibição de armaduras de cavalo que agora estavam espalhadas por todo o corredor do capelão. Um momento antes, estava pulando alegremente pelo longo corredor de ladrilhos que corria ao longo do comprimento externo da capela, a caminho de varrer os aposentos do Doutor Morgenes. Estava balançando a vassoura um pouco, é claro, fingindo que era a bandeira da Árvore e o Dragão da guarda erkyna do Preste John, e que os liderava para a batalha. Talvez devesse estar prestando mais atenção para onde balançava, mas que tipo de idiota penduraria uma armadura de cavalo no corredor do capelão, afinal? Desnecessário dizer que o barulho tinha sido feroz, e Simon esperava que o magro e vingativo Padre Dreosan descesse a qualquer momento.
Apressou-se para juntar as placas de armadura sujas, algumas das quais tinham se soltado das tiras de couro que prendiam o traje, Simon considerou outra das falas de Raquel... ‘O Diabo sempre encontra tarefas para mãos vazias’. Aquilo era besteira, é claro, e o deixava furioso. Não era o vazio de suas mãos, ou a ociosidade de seus pensamentos que o colocavam em apuros. Não, era o fazer e o pensar que o faziam tropeçar uma e outra vez. Se ao menos o deixassem em paz!
O padre Dreosan ainda não tinha feito sua entrada quando Simon por fim amontoou a armadura em um equilíbrio precário, logo a empurrando apressadamente para baixo da saia de um tapete de mesa. Ao fazê-lo, quase derrubou o relicário de ouro sobre a mesa, porém no fim... E sem mais contratempos, a armadura despedaçada desapareceu de vista, com nada além de um remendo de aparência um pouco mais limpa na parede para proclamar que o traje já existiu. Simon pegou sua vassoura e esfregou a pedra fuliginosa, tentando nivelar as bordas para que o ponto brilhante não fosse tão perceptível, então correu pelo corredor e saiu pelas escadas sinuosas do coro.
Emergindo mais uma vez no Jardim dos Setos, de onde havia sido tão brutalmente arrancado pelo Dragão, Simon parou por um momento para inalar o cheiro pungente da vegetação, para expulsar o último fedor de sabão de sebo de suas narinas. Seu olhar foi atraído por uma forma incomum nos galhos superiores do Carvalho do Festival, uma árvore antiga no extremo do jardim, tão retorcida e enrolada que parecia ter crescido por séculos sob uma cesta gigante. Ele cerrou os olhos, a mão levantada para bloquear a luz do sol. Um ninho de pássaro! E tão tarde no ano!
Foi por pouco. Ele largou a vassoura e deu vários passos para dentro do jardim antes de se lembrar de sua missão nas habitações de Morgenes. Se fosse qualquer outra tarefa, teria subido na árvore em um instante, contudo ver o doutor era um prazer, mesmo quando envolvia trabalho. Prometeu a si mesmo que o ninho não ficaria muito tempo sem ser examinado e passou pelos setos, entrando no pátio que se estendia ante o Portão Interno.
Duas figuras tinham acabado de entrar no portão e estavam vindo em sua direção; uma lenta e atarracada, a outra mais atarracada e mais lenta ainda. Era Jakob, o vendedor de velas, e seu assistente Jeremias. Este último carregava uma bolsa grande e pesada sobre o ombro e caminhava, se é que isso era possível, mais devagar do que o normal. Simon gritou uma saudação quando eles passaram. Jakob sorriu e acenou.
— Raquel quer velas novas para a sala de jantar. — gritou o vendedor de velas. — Então trouxemos as velas!
Jeremias fez uma cara azeda.
Um trote curto pelo gramado inclinado levou Simon até a enorme guarita. Uma lasca de sol da tarde ainda ardia acima das ameias atrás dele, e as sombras das flâmulas do muro ocidental caíam como peixes escuros na grama. O guarda de libré vermelho e branco, pouco mais velho que Simon, sorriu e assentiu enquanto o mestre espião passava, vassoura mortal na mão, cabeça baixa para o caso de a tirana Raquel espiar por uma das janelas altas da torre. Depois de atravessar a barbacã e se esconder a sotavento do muro alto do portão, diminuiu o ritmo para uma caminhada. A sombra atenuada da Torre do Anjo Verde atravessava o fosso; a silhueta distorcida do Anjo, triunfante em sua torre, jazia em uma poça de fogo na borda mais distante da água.
Já que estava ali, Simon decidiu, poderia muito bem pegar alguns sapos. Não demoraria muito, e o doutor frequentemente tinha uso para essas coisas. Não estaria escapulindo do trabalho, e sim expandindo a natureza do serviço. No entanto teria que se apressar, a noite cairia em pouco tempo. Já podia ouvir os grilos afinando laboriosamente para o que seria uma das últimas apresentações do ano que estava acabando e os sapos-boi começando seu contraponto abafado e barulhento.
Caminhando para dentro da água coberta de lírios, Simon parou por um momento para contemplar o céu oriental escurecendo para um violeta opaco. Ao lado dos aposentos do Doutor Morgenes, o fosso era seu lugar favorito em toda a Criação... Pelo menos de tudo o que tinha visto até então.
Com um suspiro inconsciente, tirou seu gorro de pano disforme e caminhou em direção à onde a grama do lago e os jacintos eram mais espessos.
***
O sol havia desaparecido por completo e o vento sibilava através das taboas que cercavam o fosso quando Simon chegou ao bastião mediano para ficar de pé, roupas pingando e um sapo em cada bolso, diante da porta dos aposentos de Morgenes. Bateu no painel robusto, tomando cuidado para não tocar no símbolo desconhecido escrito a giz na madeira. Havia aprendido por experiência própria a não colocar as mãos descuidadamente em algo do doutor sem pedir. Vários momentos se passaram antes que a voz de Morgenes fosse ouvida.
— Vá embora. — disse, em um tom de aborrecimento.
— Sou eu... Simon! — gritou este, e tornou a bater.
Houve uma pausa mais longa dessa vez, então o som de passos rápidos. A porta se abriu. Morgenes, cuja cabeça mal alcançava o queixo de Simon, estava emoldurado por uma luz azul brilhante, a expressão em seu rosto obscurecida. Por um momento, pareceu encará-lo.
— O quê? — disse, por fim. — Quem?
Simon riu.
— Eu, claro. Você quer alguns sapos? — o garoto puxou um dos cativos de sua prisão e o segurou por uma perna escorregadia.
— Oh. Oh! — o doutor disse, como se estivesse acordando de um sono profundo, balançando a cabeça. — Simon... É claro! Entre, garoto! Minhas desculpas... Estou um pouco distraído.
O doutor Morgenes abriu a porta o suficiente para Simon passar para o estreito corredor interno, então voltou a fechá-la.
— Sapos, é? Hmmm, sapos...
O doutor se adiantou e o conduziu pelo corredor. No brilho das lâmpadas azuis que ladeavam o corredor, a forma esguia do doutor, semelhante a um símio, parecia saltar em vez de andar. Simon o seguiu, seus ombros quase tocando as paredes de pedra fria de cada lado. Nunca conseguiu entender como salas que pareciam tão pequenas quanto as do doutor eram vistas de fora... Ele as olhava de cima das paredes do pátio e andava de um lado para o outro no pátio, como elas podiam ter corredores tão longos.
As divagações de Simon foram interrompidas por um repentino estrondo proveniente do final do corredor. Assobios, pancadas e algo que soava como o latido faminto de cem cães.
Morgenes pulou de surpresa e disse.
— Oh, pelo Nome do mais grandioso, esqueci de apagar as velas. Espere aqui.
O homenzinho correu pelo corredor, cabelos brancos e finos esvoaçando, abriu a porta no final apenas uma fresta, os uivos e assobios dobraram sua intensidade, e adentrou o cômodo em seguida. Simon ouviu um grito abafado.
O barulho horrendo cessou abruptamente, tão rápido e completamente quanto... Quanto...
“O apagar de uma vela.” pensou.
A cabeça do doutor saiu para fora, sorrindo, e acenou para que entrasse.
Simon, que já havia testemunhado cenas desse tipo antes, seguiu Morgenes com certa precaução até sua oficina. Uma entrada apressada poderia, no mínimo, fazer com que alguém pisasse em algo estranho e desagradável de se contemplar.
Agora não havia mais nenhum vestígio do que quer que tenha provocado aquele alvoroço assustador. Simon tornou a se maravilhar com a discrepância entre o que os aposentos de Morgenes pareciam ser... Um quartel de guarda convertido, talvez com vinte passos de comprimento, aninhado contra a parede emaranhada de hera do canto nordeste do bastião mediano... E a vista de dentro, que era de uma câmara de teto baixo, mas espaçosa, quase tão longa quanto um campo de torneio, embora não tão larga. Na luz alaranjada que filtrava da longa fileira de pequenas janelas com vista para o pátio, Simon olhou para o canto mais distante do cômodo e decidiu que seria difícil acertá-lo com uma pedra da porta de onde se encontrava.
Esse curioso efeito de alongamento, no entanto, era bastante familiar. Na verdade, apesar dos ruídos aterrorizantes, toda a câmara parecia como sempre, como se uma horda de vendedores ambulantes enlouquecidos tivesse montado uma barraca e então feito uma retirada apressada durante uma tempestade de vento selvagem. A longa mesa do refeitório que se estendia por toda a extensão da parede próxima estava cheia de tubos de vidro canelados, caixas e sacos de pano com pós e sais pungentes, bem como estruturas intrincadas de madeira e metal das quais dependiam retortas, frascos e outros recipientes irreconhecíveis. A peça central da mesa era uma grande bola de bronze com pequenos tubos angulares saindo de sua superfície brilhante. Parecia flutuar em um prato de líquido prateado, ambos equilibrados no vértice de um tripé de marfim esculpido. Os tubos soltavam vapor, e o globo de bronze girava lentamente.
O chão e as prateleiras estavam cheios de artigos ainda mais estranhos. Blocos de pedra polida, vassouras e asas de couro estavam espalhados pelas lajes, disputando espaço com gaiolas de animais... Algumas vazias, outras não... Armaduras de metal de criaturas desconhecidas cobertas com peles esfarrapadas ou penas desencontradas, folhas de cristal aparentemente transparente empilhadas de maneira aleatória contra as paredes de tapeçaria... E por toda parte livros, livros, livros, caídos meio abertos ou apoiados em pé aqui e ali pela câmara como borboletas enormes e desajeitadas.
Havia também bolas de vidro com líquidos coloridos que borbulhavam sem calor, e uma caixa plana de areia preta brilhante que se reorganizava sem parar, como se varrida por brisas desérticas não sentidas. Armários de madeira na parede de vez em quando deixavam entrever pássaros pintados que piavam impertinentes e desapareciam. Ao lado deles, pendiam mapas de países com geografia desconhecida, embora a geografia nunca tenha sido algo em que Simon se sentisse muito confiante. No geral, o covil do doutor era um paraíso para um jovem curioso... Sem dúvida, o lugar mais maravilhoso de Osten Ard.
Morgenes andava de um lado para o outro no canto mais distante da habitação, abaixo de um mapa estelar caído que ligava os pontos celestes brilhantes por uma linha pintada para tomar o formato de um estranho pássaro de quatro asas. Com um pequeno assobio de triunfo, o doutor de repente se abaixou e começou a cavar como um esquilo na primavera. Uma enxurrada de pergaminhos, flanelas pintadas com cores vivas e talheres e taças em miniatura de alguma mesa de jantar homunculada saíram voando por cima de sua cabeça. Por fim, se endireitou, erguendo uma grande caixa de vidro. Caminhou até a mesa, colocou a caixa de vidro encima e pegou um par de frascos de uma prateleira, segundo pareceu a Simon, ao acaso.
O líquido em um deles era da cor do céu do pôr do sol lá fora; fumegava como um incensário. O outro estava cheio de algo azul e viscoso que fluía bem devagar para dentro da caixa enquanto Morgenes virava os dois frascos. Misturando, os fluidos ficaram tão claros quanto o ar da montanha. O doutor estendeu a mão como um artista viajante, e houve uma pausa momentânea.
— Os sapos? — Morgenes perguntou, balançando os dedos.
Simon se aproximou, puxando os dois que havia capturado dos bolsos do casaco. O doutor os pegou e os jogou no tanque com um floreio. O par de anfíbios surpresos mergulhou no líquido transparente, afundou lentamente até o fundo e começou a nadar vigorosamente em seu novo lar. Simon riu tanto com surpresa quanto diversão.
— É água?
O velho se virou para olhá-lo com olhos brilhantes.
— Mais ou menos, mais ou menos... — agora Morgenes passava os longos e dobrados dedos pela franja rala da barba. — Então... Obrigado pelos sapos. Acho que já sei o que fazer com eles. Bem indolor. Podem até gostar, embora duvido que gostem de usar as botas.
— Botas? — perguntou-se Simon, porém o doutor já se afastar e remexia, dessa vez empurrando uma pilha de mapas de um banco baixo. Ele acenou para Simon se sentar.
— Bem, rapaz, o que gostaria de receber em trocar pelo seu dia de trabalho? Uma moeda? Ou talvez gostaria de ficar com Coccindrilis como um animal de estimação?
Rindo, o doutor brandiu um lagarto mumificado.
Simon hesitou por um momento sobre o lagarto, seria uma coisa adorável colocá-lo na cesta de linho para a nova garota, Hepzibah, encontrar... Contudo não. O pensamento das camareiras e da limpeza ficou em sua mente, irritando-o. Algo queria ser lembrado, no entanto Simon o empurrou de volta.
— Não. — negou por fim. — Eu gostaria de ouvir algumas histórias.
— Histórias? — Morgenes se inclinou para frente, intrigado. — Histórias? Seria muito melhor procurar o velho Shem nos estábulos se quiser ouvir essas coisas.
— Não desse tipo. — Simon se apressou a dizer. Esperava não ter ofendido ao ancião. Pessoas velhas eram tão sensíveis! — Me refiro a histórias sobre coisas reais. Como as coisas costumavam ser, batalhas, dragões, coisas que aconteceram!
— Aaahh. — Morgenes sentou-se, e o sorriso retornou ao seu rosto rosado. — Entendo. Você quer dizer essa história. — o doutor esfregou as mãos. — Assim é melhor, muito melhor!
Ele se levantou e começou a andar de um lado para o outro, evitando com ágeis passo todos os restos espalhados pelo chão.
— Bom, o que quer ouvir, rapaz? A queda de Naarved? A Batalha de Ach Samrath?
— Conte-me sobre o castelo. — disse Simon. — Hayholt. O rei o construiu? Quantos anos tem?
— O castelo... — o ancião parou de andar, levantou uma ponta de seu manto cinza gasto e brilhante e começou a esfregar, com ar distraído, uma das curiosidades favoritas de Simon: uma armadura, com design exótico e colorida em azul e amarelo brilhantes de flores silvestres, feita inteiramente de madeira polida.
— Hmmm... O castelo... — Morgenes repetiu. — Bem, essa é certamente uma história de dois sapos, no mínimo. Na verdade, se eu fosse contar a história toda, você teria que drenar o fosso e trazer seus prisioneiros verrugosos em carroças para merecê-lo. No entanto suponho que seja o esqueleto da história o que busca hoje, e de fato posso lhe dar isso. Espere um momento enquanto encontro algo para molhar minha garganta.
Enquanto Simon tentava permanecer tranquilo, Morgenes foi até sua longa mesa e pegou uma taça com um líquido marrom e espumoso. Ele cheirou desconfiado, levou-o aos lábios e bebeu um pequeno trago. Depois de um momento de consideração, lambeu o lábio superior e acariciou a barba com ar alegre.
— Ah, o Stanshire Negro. Não há dúvida sobre o assunto, cerveja é o melhor! Do que estávamos falando? Ah, sim, o castelo.
Morgenes limpou um lugar na mesa e então, segurando a taça com cuidado, saltou com surpreendente facilidade para se sentar, os pés de chinelo balançando meio côvado acima do chão, e voltou a tomar outro gole.
— Temo que essa história comece muito antes do nosso Rei John. Começaremos com os primeiros homens e mulheres a chegarem a Osten Ard. Gente simples, vivendo nas margens do Gleniwent. Eles eram, em sua maioria, pastores e pescadores, talvez expulsos do Oeste perdido por alguma ponte de terra que não existe mais. Aos mestres de Osten Ard causaram poucos problemas...
— Pensei que tivesse dito que foram os primeiros a chegar aqui? — Simon interrompeu, em oculta satisfação por ter pego Morgenes em uma contradição.
— Não. Disse que foram os primeiros homens. Os sitha eram os donos desta terra muito antes de qualquer homem andar sobre ela.
— Quer dizer que realmente era o Povo Pequeno? — Simon sorriu. — Assim como Shem Horsegroom conta? Pookahs e niskies e tudo mais? Isso é emocionante.
Morgenes balançou a cabeça e tomou outro gole.
— Não apenas eram, são... Embora isso vá além da minha narrativa, e eles não são de forma alguma ‘povo pequeno’... Espere, rapaz, deixe-me continuar.
Simon se curvou para frente e tentou parecer paciente.
— Sim?
— Bom, como mencionei, os homens e os sitha eram vizinhos pacíficos, ainda que houvesse uma disputa ocasional sobre pastos ou coisa do tipo, todavia como a humanidade não parecia uma ameaça real, o Povo Encantado era generoso. Com o passar do tempo, os homens começaram a construir cidades, às vezes a apenas meio dia de caminhada das terras sitha. Mais tarde, um grande reino surgiu na península rochosa de Nabban, e os homens mortais de Osten Ard começaram a olhar para lá em busca de orientação. Está seguindo a história, garoto?
Simon assentiu.
— Então. — um longo gole. — Bem, a terra parecia ser grande o bastante para todos compartilharem, até que o ferro negro chegou de além das águas.
— O quê? Ferro negro?
Simon ficou paralisado pelo olhar penetrante do doutor.
— Os marinheiros do oeste quase esquecido, os rimmerios. — prosseguiu Morgenes. — Eles desembarcaram no norte, homens armados, ferozes como ursos. Vieram em seus longos barcos-serpente.
— Os rimmerios? — Simon se perguntou. — Como o Duque Isgrimnur na corte? Em barcos?
— Os ancestrais do Duque eram grandes navegadores antes de se estabelecerem aqui. — afirmou Morgenes. — Mas quando chegaram pela primeira vez, não estavam procurando pastagens ou terras agrícolas, e sim saquear. Porém o mais importante é que trouxeram ferro... Ou pelo menos o segredo de moldá-lo. Fizeram espadas e lanças de ferro, armas que não quebrariam como o bronze de Osten Ard; armas que poderiam derrotar até mesmo a madeira encantada dos sitha.
Morgenes se levantou e encheu sua taça de um balde coberto em cima de uma catedral de livros ao lado da parede. Em vez de retornar à mesa, parou para tocar as dragonas brilhantes da armadura.
— Ninguém pôde contê-los por muito tempo, o espírito frio e duro do ferro parecia estar nos próprios marinheiros tanto quanto em suas lâminas. Muitas pessoas fugiram para o sul, se aproximando da proteção dos postos avançados da fronteira de Nabban. As legiões de Nabban, forças de guarnição bem organizadas, resistiram por um tempo. Contudo, ao final, também foram forçadas a abandonar a Marca Gelada para os rimmerios. Houve... Muita matança.
Simon se contorceu inquieto.
— E os sitha? Você disse que não tinham ferro?
— O ferro era mortal para eles. — o doutor lambeu o dedo e esfregou uma mancha na madeira polida do peitoral. — Nem eles conseguiram derrotar os rimmerios em batalha aberta, no entanto... — ele apontou o dedo empoeirado para Simon, como se esse fato o preocupasse de forma pessoal. — Os sitha conheciam sua terra. Estavam perto dela, uma parte dela, até... De uma forma que os invasores nunca poderiam estar. Mantiveram-se por um longo tempo, recuando aos poucos para posições de resistência. O principal destes, e a razão de todo esse discurso, era Asu’a. O Hayholt.
— Este castelo? Os sitha viviam em Hayholt? — Simon não conseguiu esconder a descrença em sua voz. — Há quanto tempo foi construído?
— Simon, Simon... — o doutor coçou a orelha e voltou para seu poleiro na mesa. O pôr do sol havia desaparecido por completo das janelas, e a luz da tocha dividia seu rosto em uma máscara de pantomima, meio iluminada, meio escura. — Pode ter havido, pelo que eu ou qualquer mortal podemos saber, um castelo aqui quando os sitha chegaram pela primeira vez... Quando Osten Ard era tão novo e imaculado quanto um riacho de neve derretida. O povo sitha de fato morou aqui incontáveis anos antes da chegada do homem. Este foi o primeiro lugar em Osten Ard a sentir o trabalho de mãos artesanais. É a fortaleza do país que comanda os cursos d’água, conduzindo o rebanho nas melhores terras de cultivo. O Hayholt e seus predecessores, as cidadelas mais antigas que jazem enterradas abaixo de nós, estão aqui desde antes das memórias da humanidade. Já era muito, muito antigo quando os rimmerios chegaram.
A mente de Simon girou enquanto a enormidade da declaração de Morgenes se assentava. O velho castelo pareceu subitamente opressivo, suas paredes de pedra uma gaiola. Ele estremeceu e olhou pelos arredores, como se alguma coisa antiga e ciumenta pudesse estar se aproximando com mãos empoeiradas.
Morgenes riu alegremente, uma risada muito jovem para um homem tão velho, e saltou da mesa. As tochas pareciam brilhar com mais intensidade.
— Não tema, Simon. Creio... E eu mais do que ninguém deveria saber... Que não há muito o que temer da magia sitha. Não hoje em dia. O castelo foi muito modificado, pedra sobre pedra, e cada palmo foi rigorosamente abençoado por cem sacerdotes. Ah, Judith e a equipe de cozinha podem se virar de vez em quando e encontrar um prato de bolos faltando, mas acho que pode ser atribuído tanto a jovenzinhos como a duendes...
Uma curta série de batidas na porta da câmara interrompeu o doutor.
— Quem é? — gritou.
— Sou eu. — disse uma voz triste. Houve uma longa pausa. — Eu, Inch. — concluiu.
— Pelos ossos de Anaxos! — xingou o velho, que preferia expressões exóticas. — Abra a porta, então... Estou velho demais para correr por aí atendendo tolos.
A porta se abriu para dentro. O homem emoldurado pelo brilho do corredor interno provavelmente era alto, porém sua cabeça abaixada e corpo curvado para a frente tornava difícil ter certeza. Um rosto redondo e inexpressivo flutuava como uma lua logo acima do esterno, coberto por cabelos pretos espetados como se houvessem sido cortados com uma faca cega e desajeitada.
— Sinto muito, eu... O incomodei, doutor, contudo... Você disse para vir cedo, não foi? — a voz era grossa e lenta como banha pingando.
Morgenes fez um gesto de exasperação e puxou uma mecha de seu próprio cabelo branco.
— Sim, disse sim, mas eu disse cedo, depois da hora do jantar, que ainda não chegou. De todo jeito não faz sentido te mandar embora. Simon, já conheceu Inch, meu assistente?
Simon fez um gesto educado. Tinha visto o homem uma ou duas vezes; Morgenes o fez vir algumas noites para ajudar, aparentemente com trabalho pesado. Na verdade não poderia ser por mais nada, já que Inch não parecia confiável para mijar no fogo antes de ir para a cama.
— Bem, jovem Simon, temo que terei de pôr fim a nossa conversa. — disse o velho. — Já que Inch está aqui, preciso aproveitá-lo. Volte logo, e lhe contarei mais, se quiser.
— Claro que sim. — Simon assentiu mais uma vez para Inch, que devolveu um rolar de olhos em suas costas. Ele havia alcançado a porta, quase a tocado, quando uma visão repentina brilhou em sua cabeça: uma imagem clara da vassoura de Raquel, caída onde a havia deixado, na grama ao lado do fosso como o cadáver de um estranho pássaro aquático.
Cabeça-Oca!
Ele não diria nada. Poderia pegar a vassoura no caminho de volta e dizer ao Dragão que a tarefa estava terminada. Raquel tinha muito em que pensar e, embora ela e o doutor fossem dois dos moradores mais antigos do castelo, era raro que interagissem. O melhor plano era bastante óbvio.
Sem entender o porquê, Simon se virou. O homenzinho estava examinando um pergaminho enrolado, curvado sobre a mesa enquanto Inch estava atrás dele olhando para nada em particular.
— Doutor Morgenes...
Ao som de seu nome, o ancião olhou para cima, piscando. Parecia surpreso que Simon seguisse estando na sala; Simon também estava surpreso.
— Doutor, eu fui um idiota.
Morgenes arqueou as sobrancelhas, esperando.
— Eu deveria varrido o cômodo. Raquel me pediu. Agora a tarde inteira passou e não fiz meu trabalho.
— Oh. Ah! — o nariz de Morgenes enrugou como se estivesse coçando, então um largo sorriso se abriu em seu rosto. — Varrer minha sala, hein? Bem, rapaz, volte amanhã e faça isso. Diga a Raquel que tenho mais trabalho para você, se ela tiver a gentileza de deixá-lo vir.
Morgenes voltou a se virar para seu livro, então olhou para cima de novo, estreitando os olhos, e franziu os lábios. Enquanto o doutor estava em pensamento silencioso, a euforia que Simon sentia mudou de repente para nervosismo.
“Por que ele está me encarando desse jeito?”
— Pensando melhor, garoto. — o homem enfim rompeu o silêncio. — Terei muitas tarefas para fazer com as quais você poderia me ajudar, e eventualmente precisarei de um aprendiz. Volte amanhã, como falei. Vou conversar com a Senhora das Camareiras sobre a outra.
Morgenes deu um breve sorriso e então voltou para seu pergaminho. Simon se deu conta que que Inch o encarava através das costas velho doutor, uma expressão ilegível se movendo sob a superfície plácida de seu rosto pálido. O garoto se virou e correu pela porta. A euforia o pegou enquanto saltava pelo corredor iluminado de azul e emergia sob um céu escuro e manchado de nuvens. Aprendiz! Aprendiz do doutor!
Quando chegou à guarita, parou e desceu até a beira do fosso para procurar a vassoura. Os grilos estavam bem no coral da noite. Quando por fim a encontrou, sentou-se por um momento contra a parede perto da beira da água para ouvir.
Enquanto a canção rítmica subia ao seu redor, correu os dedos pelas pedras próximas. Acariciando a superfície de uma tão lisa quanto um cedro polido à mão, e pensou.
“Esta pedra pode ter estado aqui desde... Desde antes de nosso Senhor Jesuris nascer. Talvez algum garoto sitha tenha se sentado aqui neste mesmo lugar tranquilo, ouvindo os sons da noite...”
“De onde veio aquela brisa?”
Uma voz parecia sussurrar, sussurrar, as palavras muito fracas para ouvir.
Talvez ele tenha passado as mãos por esta mesma pedra...
Um sussurro no vento: Nós a teremos de volta, homenzinho. Nós a teremos de volta...
Agarrando a gola do casaco com força contra o frio inesperado, Simon se levantou e subiu a encosta gramada, subitamente solitário por vozes e luz familiares.
***
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