domingo, 23 de fevereiro de 2025

Slayers — Volume 05 — Capítulo 23

Capítulo 23: Para onde eles foram? Uma perseguição caótica

“Iluminação!” Zelgadis liberou uma bola de luz que libertou minha sombra presa.

Livre do feitiço de Gilfa agora, corri até Zelgadis, que, se você está se perguntando, eu conhecia de algumas aventuras passadas. Certo feiticeiro o fundiu com um golem de pedra e um daemon contra sua vontade. Presumi que seguia em sua busca para recuperar sua humanidade, mas aqui estava o homem.

“Obrigado, Zel. Há quanto tempo. O que está fazendo aqui, afinal?”

“Essa é minha pergunta. E por que está vestida assim? Onde está Gourry?”

“Que tal deixarmos o tempo da história para mais tarde?”

“É melhor.”

“Ora, ora... Se não é Zelgadis.” vazou a voz de Gilfa.

“Vocês dois se conhecem?” perguntei.

“Nós nos conhecemos.” Zelgadis respondeu, seus olhos ainda fixos no homem-besta.

“Estou surpreso que tenha me seguido até aqui. Essa é uma daquelas ‘rivalidades predestinadas’ sobre as quais tanto se ouve falar? Ah, e devo avisá-lo... Embora seu corpo seja feito de pedra, Vedul é forte o suficiente para matá-lo com um golpe.”

“Estou bem ciente.” Zelgadis disse, caminhando com calma em direção à sua espada do outro lado do salão.

Vedul começou a se mover, e aproveitei a oportunidade para lançar o feitiço que estava entoando.

“Iluminação!”

Minha intenção era cegá-lo, é claro... Resistência mágica não faria nada contra uma luz brilhante no rosto. E enquanto Vedul evitava minha explosão de luz, Zelgadis correu loucamente para sua espada!

Merda! Vedul vai pegá-lo antes de alcançá-la!

O homem-besta ansiava pela oportunidade. Sem alarde, ele desceu sua espada sobre o desequilibrado Zelgadis. Porém quando o fez...

“Iluminação!” Zel se virou e lançou outro orbe de luz no rosto do desavisado homem-besta.

“Gwahh!”

Aquele acertou em cheio! Vedul continuou a atacar apesar de suas retinas queimadas, contudo não teve chance de acertar Zelgadis, que se esquivou do golpe sem esforço, pegou sua espada e saltou em Vedul!

“Cuidado! Vedul...”

Gilfa tentou avisar seu amigo, só que antes que pudesse terminar...

Crrk! Zelgadis havia escapado do ataque e perfurado sua espada direto na garganta do homem-besta!


Seu corpo caiu silenciosamente... E então ele deu outro golpe em Zel!

“O quê?” Zelgadis arfou, forçado a abandonar sua lâmina e recuar.

Vedul colocou a mão na espada atravessando seu pescoço e a arrancou, jogando-a para o lado e saltou para trás.

O que... Os olhos de Zel se arregalaram. Os meus também. Tinha acabado de ver Vedul ter sua garganta atravessada. Não importa o quão forte fosse, aquele golpe tinha que ser fatal. Até poderia ter considerado se fosse um ataque de última hora, mas a força por trás...

Enquanto nós dois estávamos em choque, o homem-besta fugiu por uma das passagens.

“Que diabos?” Zel murmurou.

“Ele tem coragem... Eu admito isso.” falei.

“Vou segui-lo de qualquer maneira. Quando um inimigo está vulnerável, você acaba com ele. Certo?”

Vedul correu mais para dentro do prédio. Onde quer que estivesse indo, poderia encontrá-lo sem problema...

“Vou junto. Esses caras sequestraram um membro da minha equipe, uma garota chamada Amelia.”

“Acha que ela é a responsável pela explosão?” Zelgadis perguntou.

“Sim!” dei uma resposta firme.

Estava apostando que Amelia percebeu que o selo de Mazenda foi rompido, aproveitou para usar sua magia para abrir um buraco na parede e escapar... Porém mudou de curso quando viu Klotz e seus capangas voltando para o complexo do culto. Agora devia estar presa lá dentro tentando lutar para sair. Zelgadis deve ter testemunhado a explosão também, chegando na cena não muito depois de mim.

“Então estamos de acordo. Vamos.”

Assenti com a cabeça, e nós dois corremos atrás de Vedul.

———

Rastrear o homem-besta provou ser bastante fácil, pois um rastro de sangue tingindo o chão nos levou direto a ele. O rastro se espalhou para o corredor ao lado de uma escada, que levava mais fundo na instalação... E na entrada estava Vedul.

Seu corpo se virou devagar ao sentir nossa chegada. Ele enrolou um pano em volta do pescoço para tentar estancar o sangramento, contudo seus olhos estavam nublados e sua boca entreaberta. Seu rosto era claramente o de um homem morto, e mesmo assim... Continuava se movendo. Estava começando a me assustar, de verdade.

Com passos instáveis, se virou para nós e, com algum esforço, preparou sua lâmina. Esperava que tivéssemos uma chance de perguntar sobre Amelia, no entanto... É, é pouco provável, né?

“Você parece estar sofrendo, Mestre Vedul.” disse Zelgadis, sua espada ao seu lado enquanto se aproximava aos poucos do homem-besta. “Não se preocupe. Vou colocá-lo para descansar em breve.”

Como se em resposta às suas palavras, ouvi o canto baixo de um feitiço sem fonte certa... Gilfa!

“Não vou deixar que fique no meu caminho!” Zelgadis gritou, avançando com força total em Vedul. Mas...

“Zel, tenha cuidado!”

A sombra do homem-besta enrijeceu, então lançou uma dúzia de lâminas negras em direção a Zelgadis!

“Tch!”

Zel conseguiu desviar de cada uma com sua espada, entretanto foi forçado a recuar. Não faço ideia se as lâminas das sombras eram poderosas o suficiente para perfurar a sua pele de pedra, embora não tinha nenhum interesse em descobrir. Precisávamos parar Gilfa, todavia eu ainda não sabia onde o maldito estava!

“Entendi...” Zel murmurou. (Não tenho certeza do que ‘entendeu’ ao certo, porém um canto de seus lábios havia se torcido em um sorriso). Logo depois, seu rosto se virou para mim e perguntou. “Você pode fazer algo sobre as sombras com sua magia?”

“Não tenho muito para combater um mestre das sombras.” respondi com um leve encolher de ombros. “Um feitiço de Iluminação pode vencer uma simples Captura de Sombra, contudo o que está fazendo é muito mais poderoso do que isso...”

“Que pena... No entanto nós vamos nos virar de alguma forma.”

Com essas palavras, Zelgadis tornou a atacar o homem-besta. A sombra inchou uma vez mais para atacar... E dessa vez se transformou em um padrão de grade que se ergueu entre Zel e seu alvo. Estava tentando pegá-lo?

“Hah!”

Zelgadis ignorou e continuou com sua investida. Todavia, de repente, a sombra se transformou de uma mera rede em espinhos no chão! E Zel estava perto demais para parar a tempo! Por sorte naquele momento...

— Quebra de Fluxo!

A luz inundou a área por um instante e, quando recuou, a sombra que Gilfa controlava desapareceu sem deixar vestígios.

Zelgadis voou para frente! Vedul o encontrou com um lampejo de sua espada! Wham! Os dois homens caíram no chão quando suas silhuetas colidiram...

E foi Zel quem se levantou vitorioso após o fato.

“Você me salvou ali.” disse ele à figura vestida de branco no corredor além de nós.

Acenei também e gritei.

“Ei, Amelia! Tudo bem?”

“Heya! Imaginei que tinha que ser você, Lina. E quem é esse cara?”

“Este é Zelgadis... Mas, bleh, apresentações depois! Gilfa deve estar em algum lugar por perto!”

“Nah, já está morto.” disse Zel numa voz categórica.

“Exatamente! Então precisamos... Hein? E-Espera, o que disse?”

“Deixe-me explicar.” Zelgadis começou, rolando o cadáver caído de Vedul com um chute. Então recuperou sua espada larga, ainda empalada na corcova em suas costas. “Este aqui é Gilfa.”

Ele estava dizendo que...

“É a corcova?”

“Sim, acredito que sim.”

Vai entender. Quem fez Vedul... O mais provável é que tenha sido Klotz, tinha transplantado um segundo cérebro nas costas do homem-besta; este era Gilfa. O cérebro de Vedul era o que controlava o corpo na maior parte do tempo, porém se algo acontecesse, o de Gilfa poderia assumir. Era assim que o homem-besta pôde continuar se movendo mesmo depois que Vedul levou uma espada no pescoço.

Olhei mais de perto e vi uma fissura pequena, embora profunda, atravessando a protuberância, escondida por rugas... A boca de Gilfa, presumi, que era como havia invocado feitiços. Talvez tenha olhos de algum tipo também, contudo não estou interessada em procurá-los. Uma garota só precisa de uma certa quantidade de combustível para ter pesadelos para toda vida.

“Yeesh, que coisa assustadora de se fazer...” estremeci.

“Não há tempo para isso agora, Lina! Podemos ter mais inimigos a caminho!” Amelia declarou.

“Inimigos? Quantos?”

“Não tenho muita certeza... Tenho estado muito ocupada correndo para contar. No entanto há realmente apenas um com quem precisamos ficar de olho...”

“E quem seria?”

“Não sei. Estive me escondendo nas sombras e ouvi alguns caras dizerem: ‘Tem outro intruso no prédio! Não temos escolha! Use-o!’ Isto... Meio que me deu arrepios, e é por esse motivo que estive correndo para a saída. Só posso supor que eles estavam falando sobre...”

“Espere um minuto...” Zelgadis respirou, sua voz rouca. “Disseram para usá-lo?”

“Sim!” Amelia confirmou com confiança. Zel então disse em um sussurro seco.

“Corra.”

“Hã?” eu me vi boquiaberta.

“Precisamos correr! Rápido!” repetiu e, sem esperar por qualquer tipo de resposta, foi direto para a saída.

“E-Espera!”

“Devemos seguir o exemplo dele!” Amelia disse, correndo atrás de Zelgadis.

“Bem, ok...” sussurrei e me apressei em seguir o exemplo.

A garota tinha bons instintos, afinal. E Zel sabia muito bem do que eu era capaz, então se disse para correr, não duvido que seja a jogada inteligente a ser feita.

E, mais convincente, os dois já estavam na metade do caminho para fora do prédio... Não adianta ficar por ali só para irritá-los!

———

Nós três saímos da base e entramos na floresta ao redor.

“Posso usar um Dragon Slave ou algo parecido para explodir o lugar todo...” ofereci.

“Só corra! Não adianta sem o personagem principal aqui!” Zelgadis disse, sem se preocupar em fazer muito sentido para mim.

Continuamos a descer a estrada da montanha coberta pela noite. E claro, não tínhamos luz, o que tornava bem perigosa a descida...

Não vendo outro recurso, comecei a entoar um Lei Asa amplificado. Era um feitiço de voo rápido, e sua velocidade, capacidade de carga e altitude máxima eram todos baseados na capacidade do conjurador. Dessa forma, com duas pessoas para levantar, precisaria da amplificação para nos fazer ir mais rápido do que uma corrida rápida.

Agarrei com força Amelia e Zel, entoei o feitiço e decolei. Uma fração de segundo depois...

Fwoosh!

Um raio de luz prateado cortou a área onde estávamos.

“O que...?”

Parecia o sopro de laser de um lorde dragão... Estava escuro demais para eu ver a extensão total dos danos, mas pude ouvir árvores próximas caindo no chão, sugerindo que o clarão de luz não era apenas pirotecnia.


Ele veio de trás de nós também... Da base do culto. Lancei um olhar por cima do ombro e vi algo parado na entrada, iluminado pelo luar.

“Ahh, sim... Aquilo daria arrepios em alguém.” sussurrei, aumentando nossa velocidade de voo para nos tirar dali o mais rápido possível.

———

“Agora... Quem quer compartilhar primeiro?” perguntei.

Não tivemos tempo de recuperar o fôlego até chegarmos à vila Mayin. Estávamos escondidos no mesmo celeiro nos limites da cidade onde deixei escondido minhas coisas antes e, no que me dizia respeito, nossa maior prioridade agora era reunir nossa informação.

“Minha história é bem curta...” respondeu Amelia. “Eles me capturaram e me trancaram em um quarto depois que aquela moça, Mazenda, selou minha magia. Achei que algo poderia acontecer para restaurá-la, então decidi verificar de vez em quando... E hoje à noite de fato havia retornado. Explodi a parede e corri... Direto para aqueles caras.”

“Então entrou em guerra de guerrilha dentro da base deles?” perguntei.

“Sim.” ela respondeu com um aceno de cabeça.

“Espere aí, você disse que sua magia foi selada... Têm alguém que pode fazer isso com esses caras?” Zel perguntou, um pouco alarmado.

“Verdade seja dita, não tenho certeza no momento.” respondi.

“Como não tem certeza?”

“Bem, veja só... Logo depois que perdi Amelia, conheci um sacerdote chamado Xellos...”

“Xellos?” Zelgadis gritou em choque. “Ele também está aqui?”

“Você... Você o conhece?”

“Sim, na verdade...”

“Pare aí!” Amelia disse, colocando um freio em nosso vai e vem caótico. “Uma coisa de cada vez. Vamos ouvir sua história primeiro, hum... Mestre Zelbadis?”

“Zelgadis!” Zel e eu corrigimos ao mesmo tempo.

———

Ele estava exausto. Zelgadis vinha viajando sozinho, tentando encontrar uma maneira de restaurar seu corpo humano da fusão golem de pedra-daemon a qual foi forçado por certo feiticeiro. Por desgraça, sua busca até agora se mostrou infrutífera.

Não há nenhuma maneira de voltar a me tornar humano? Perguntou-se repetidamente, sem sucesso.

“Você está bebendo cerveja, enquanto eu estou bebendo suco.” um pesquisador de quimeras que conheceu uma vez disse, colocando um pouco do suco que bebia na caneca de Zelgadis. “Só despejar um no outro mistura os dois. Entretanto separá-los de volta... Pode não ser impossível, embora com certeza não seria fácil.”

“Cada ser vivo tem suas características definidoras. Os pássaros têm asas, bicos, calor corporal, etc. É muita coisa para quantificar se decompor cada ser em tantos detalhes. Porém a criação de uma quimera envolve pegar duas ou mais criaturas distintas e juntá-las usando suas características compartilhadas como uma espécie de meio termo. Como usar sabão para misturar óleo e água.”

“E se deseja que tudo volte ao normal, precisa de uma maneira de dividi-lo de volta nessas características definidoras e remontá-las adequadamente. Se tal coisa for possível, no entanto, você pode ter que esperar centenas de anos para que os métodos sejam desenvolvidos... Ou recorrer a conhecimento sobrenatural ou desumano.”

Apesar dessas notícias desanimadoras, Zelgadis continuou suas viagens até que um dia encontrou algumas informações. Supostamente havia um manuscrito que detalhava um método para fazer quimeras... Um que era diferente dos métodos conhecidos em nosso mundo. Pode ser apenas um boato... Mas era tudo o que tinha para continuar.

Ao persegui-lo, soube de uma família que passou o manuscrito em questão de geração em geração. Porém em seu caminho para investigar, encontrou Xellos, que estava atrás da mesma coisa. Então ambos descobriram que a equipe de Klotz havia matado o dono do manuscrito e o levado para si...

Isso mais ou menos resumia a história de Zelgadis.

———

“A aparição do pessoal do Klotz forçou Xellos e eu a fazermos uma trégua. Contudo assim que eu lidar com eles, Xellos será meu próximo oponente.” Zel falou, como sem dar grande importância. Apesar de ser evidente que não pareceu feliz com esse pensamento...

“Sinto muito em dizer... No entanto mesmo que coloque as mãos no manuscrito, não há garantia de que resolverá seu problema.” suspirei.

Sua resposta, para minha surpresa, foi calma.

“É verdade... Não sei se o que está escrito no manuscrito será de alguma utilidade para restaurar minha humanidade. Estou preparado para essa possibilidade.”

“Não, não foi isso que quis dizer. Apesar do que Xellos possa alegar, não temos como saber se este manuscrito é real ou não.”

“Hã? Então não te contou?” Zelgadis se virou para mim, parecendo surpreso. “A garota que mantinha o manuscrito era descendente do sumo sacerdote de Letidius.”

Letidius, hein? Acho que já mencionei antes, essa nação caiu em ruínas quinhentos anos atrás como resultado da busca malfadada de seu soberano pela imortalidade. A antiga capital ficava um pouco mais ao norte, todavia o país havia acumulado um grande número de materiais mágicos durante sua busca infrutífera. Por infelicidade, a maioria havia sido queimada ou perdida.

“Ela disse que seu ancestral levou o manuscrito junto quando fugiu do país.”

Hmm, ok. Se fosse verdade, seria um artefato inestimável, entretanto...

“Só porque foi passado de geração em geração pelo Letidius de outrora ainda não significa que seja real.” reiterei.

Olha, não estou tentando insistir que é falso ou algo assim. Estou apenas defendendo o devido ceticismo. Seria meio chato se passássemos por todo esse problema só para descobrir que era uma falsificação.

Mas Zelgadis respondeu à minha pergunta com uma carranca, dizendo.

“Ao que parece, o cuidador do manuscrito de 120 anos atrás compartilhou suas dúvidas.”

“Não me surpreende. Qualquer um gostaria de saber se o tesouro que estão guardando por gerações é legítimo ou não.”

“Foi fácil confirmar. Ele tentou fazer algo de acordo com as instruções do manuscrito. E conseguiu... Porém, por algum motivo, o experimento enlouqueceu. Acho que você está familiarizada com os resultados...” com um suspiro melancólico, Zelgadis murmurou. “Zanaffar, a Besta de Sairaag.”

Uhh... Amelia e eu ficamos boquiabertas.

Zanaffar era a lendária besta mágica que havia destruído a antiga Cidade da Magia e lar do conselho dos feiticeiros, Sairaag. Não havia registros do que era exatamente, e alguns feiticeiros teorizaram que não era uma criatura fabulosa, e sim um experimento mágico que deu errado...

“Isso é verdade?” Amelia perguntou roucamente.

“Não sei.” Zel respondeu com um pequeno encolher de ombros. “Contudo não consigo entender por qual motivo inventaria tal história.”

Sim, é um ponto válido. Teria que ser louco ou ter um caráter retorcido pra caramba para se gabar de seu ancestral destruindo uma cidade inteira.

“S-Se a garota não estivesse blefando... Nesse caso, dado o que vimos, Klotz e sua gangue...”

“Acho que já terminaram o Zanaffar Mk. II deles.” Zelgadis disse, quase indiferente. “No entanto não achei que terminariam tão rápido...”

“É por isso que me disse aquilo sobre ‘o personagem principal’ antes?”

“Sim. Segundo a lenda, o único que foi capaz de matar Zanaffar foi o herói com a Espada da Luz. E ele não está aqui agora.”

“Não vamos desistir ainda!”

Não deveria precisar dizer quem era, levantando-se com os punhos cerrados.

“Mesmo sem o Mestre Gourry, se nós três trabalharmos juntos...”

“‘Vai dar tudo certo de alguma forma’? Tem certeza?” minha pergunta direta fez Amelia hesitar.

“Não...” ela enfim suspirou... A única resposta apropriada.

“A verdadeira questão é do que esse monstro é exatamente capaz.” Zel retomou a conversa.

“Tenho alguns bons palpites. Uma vez que destruiu a chamada Cidade da Magia, então...” falei, contando meus dedos. “Primeira opção: Zanaffar era forte o suficiente para incendiar uma cidade antes que pudessem organizar um contra-ataque. Entretanto se esse fosse de fato o caso, o Guerreiro da Luz não teria sido capaz de revidar. Herói lendário ou não, ainda era um lutador corpo a corpo. Zanaffar o teria assado enquanto fazia o bom e velho rugido e investida.”

“Segunda opção: havia mais de um Zanaffar. Todavia soa improvável se foi mesmo um experimento descontrolado. Eu duvido muito que tenham criado dez ou vinte Zanaffars apenas para testar se o manuscrito era real, muito menos que todos perderam o controle e atacaram Sairaag. Isso nos leva à nossa terceira opção: ataques mágicos não funcionam.”

Meus dois compatriotas ouviram em silêncio enquanto explicava.

“Sairaag era o lar do conselho dos feiticeiros e conhecida por todos como a Cidade da Magia. É lógico, partindo dessa informação, que tinham pelo menos alguns caras que conseguiam lançar alguns Dragon Slaves. Mas a cidade não conseguiu resistir a uma besta mágica? Tal coisa sugere que Zanaffar tinha resistência mágica quase perfeita. Não consigo pensar em nada que contradiga essa teoria.”

“Porém o que exatamente impede a magia de funcionar?” Amelia perguntou, curiosa.

“Para dissecar essa pergunta, é preciso primeiro considerar uma questão importante: o que é magia?” uma nova voz surgiu.

Uma expressão azeda se formou no rosto de Zel, enquanto Amelia ficava tensa.

“Há quanto tempo está nos ouvindo, Xellos?” perguntei sem me virar.

“Desde aquele discurso empolgante de ‘se todos trabalharmos juntos’.” ele disse enquanto se sentava ao meu lado.

“Aha... Oh, não se preocupe, Amelia. Esse cara não é nosso inimigo, pelo menos por enquanto.”

“Que dolorosa descrição honesta.” disse Xellos, seu sorriso habitual mostrando um pouco de tensão.

“De toda forma, primeiro as boas maneiras. Obrigado por reativar minha magia. O que aconteceu com Mazenda?”

“Eu a matei!” Xellos se limitou a dizer, sua expressão insípida inalterada.

“Como?” Amelia perguntou.

“Isso é segredo.” respondeu, levando um dedo aos lábios.

“Contudo... Como sabia que estávamos aqui?”

“De que outra forma?” seu olhar se virou para mim. “Rastreei as emissões mágicas daqueles talismãs que você comprou de mim.”

Ah, claro. Não era difícil rastrear emissões mágicas específicas, desde que soubesse as ondas únicas que estava procurando.

“Agora, voltando ao assunto... Sua pergunta era o que exatamente impede a magia de funcionar em Zanaffar. Deixe-me começar perguntando outra coisa: A que exatamente o termo ‘magia’ se refere?”

“Poder que desafia a ordem natural do nosso mundo.” Amelia respondeu sem hesitação.

“Correto.” Xellos concordou com um aceno satisfeito. “Em outras palavras, a magia usa a arte do encantamento para distorcer as leis naturais de causa e efeito, produzindo poder ou reescrevendo essas leis. A ativação da magia envolve, portanto, cânticos que influenciam o plano astral... O lado inferior do nosso mundo, embora a barreira entre estes seja fina como papel, para extrair seu poder.”

“Feitiços xamânicos elementais manifestam dito poder como uma força física, com a qual esmaga em seu alvo. Todavia qualquer poder manifestado no plano material pode, por consequência, ser defendido com meios materiais. Feitiços astrais e magias negras, portanto, costumam não manifestar a maior parte de seu poder de ataque de forma física, mas sim mantendo-se no plano astral para atingir a forma astral de seu alvo.”

“Pergunta, professor!” chamei, levantando minha mão.

“Sim, Srta. Lina?”

“O Sinalizador Gaav cria um fluxo visível de fogo para atacar, e o Dragon Slave pode atingir diretamente castelos, montanhas e coisas assim. Não acho que montanhas e castelos tenham formas astrais! O que há?”

“Ah, uma observação muito astuta. Entretanto mesmo quando se conjura um Dragon Slave, pode se ver um tênue ponto vermelho de luz indo em direção ao seu alvo e se fundindo ali. O fogo de um Sinalizador Gaav, o trovão de uma Explosão Ragna e a luz vermelha de um Dragon Slave servem como um fusível.”

“Um fusível?” repeti.

“Sim. No ponto em que eles se unem ou encontram algo que desencadeia contato, o poder de ataque acumulado no plano astral se manifesta neste mundo. Se o alvo não for um ser vivo, é só isso que ele faz. Porém se for um ser vivo, o feitiço destrói sua forma astral antes que a energia restante se espalhe para este mundo. Dito isto, também há feitiços que mantêm seu poder apenas no plano astral, como a Lança Elemekia.”

“Mais uma pergunta.” Amelia disse.

“Sim, minha querida?”

“Como sabe de tudo isso? Nem mesmo o conselho dos feiticeiros sabe tanto sobre a natureza da magia.”

“Isto é...”

“Um segredo?”

“Porque, digamos, o que é considerado conhecimento comum entre o conselho dos feiticeiros não é necessariamente a vanguarda da teoria mágica.”

“Eu também tenho uma pergunta.” Zelgadis disse, ainda parecendo azedo.

“Vá em frente.”

“Quando pretende chegar ao ponto?”

“Ah... Sobre por que magia de ataque não funciona em Zanaffar, certo? É porque o espírito de Zanaffar é segregado do resto do plano astral. Imagine uma espécie de barreira cercando sua forma astral. Impede que o aspecto mais prejudicial da magia negra, o ataque astral, o alcance. Por sua vez, magias elementais padrão causam exclusivamente dano físico... Dessa forma, se a pele de Zanaffar for comparável à de um arqui dragão, um lorde dragão ou um deimos dragão, poderia ignorar sem problemas o poder elemental insignificante que os humanos são capazes de conjurar.”

“Hmm...” não sabia se ele estava falando de fatos ou apenas teoria, contudo soava bem convincente. “É por esse motivo que precisamos de uma arma como a Espada da Luz para matar a besta...”

“Nesse caso, estamos incapazes de revidar até encontrarmos Gourry, hein?” Zelgadis sussurrou, irritado.

“Quem é esse Mestre Gourry, por favor, e que bem fará encontrá-lo?” Xellos perguntou.

Respondi sem lhe dedicar um olhar.

“Ele é o portador da Espada da Luz.”

“Oh?” pela primeira vez, Xellos pareceu surpreso. “Está brincando, com certeza.”

“Acha que estamos aqui só para te zoar?” eu disse, então suspirei.

Se eu soubesse o padrão mágico de ondas da Espada da Luz, poderia rastreá-lo do plano astral. Pena que não tinha ideia de como era. E antes que me pergunte, não, não é minha culpa. Implorei para Gourry me deixar estudar a espada, no entanto fui recusada todas as vezes. Sua resposta era sempre que se me deixasse ficar com ela, acabaria fugindo com ela ou algo assim.

Acho que no fim ele tinha pelo menos um pouco de perspicácia para usar.

“Com algo assim... Hmm, é possível? Se for, então...” Xellos murmurou para si mesmo por um tempo e enfim se levantou. “Então preciso agir rápido. Vou ver o que eles estão aprontando.”

Xellos se virou para sair, no entanto Amelia agarrou sua manga.

“Er... Poderia fazer a gentileza de me soltar?”

“De jeito nenhum!” Amelia respondeu categoricamente. “Não sei quem você é, mas eles têm uma besta mágica maligna! Se for lá, pode acabar morrendo! Todos os meus instintos estão gritando comigo, me dizendo que é perigoso deixá-lo ir sozinho!”

Xellos pareceu bastante perturbado por um momento, então se virou para mim.

“Poderia convencê-la, por favor?” implorou.

“Desculpe.” limitei-me a dizer. “Amelia acredita de todo coração na amizade, na bondade e em todas essas coisas.”

“Que estranho...”

“Veja quem está falando.”

“Isso explica muita coisa.” ele disse, assentindo. “Vocês são proverbiais pássaros da mesma plumagem...”

Mas não deixei isso me abalar. Apenas apontei de volta e disse.

“Pássaro.”

“O quê? Sou perfeitamente normal!” Xellos insistiu de forma pouco convincente.

Olhei para Zelgadis e o vi em um estado de profunda reflexão, ignorando o caos. Porém aquele olhar distante em seus olhos dizia tudo: sou normal, diferente do resto de vocês.

“D-De qualquer forma, vou embora agora!” Xellos disse com entusiasmo incomum, então foi para a saída.

“Hã?” Amelia murmurou baixinho.

“Ei, Amelia! Por que o deixou ir?” gritei.

“Eu... Não deixei!” ela protestou, olhando para sua mão, que parecia estar apertada em torno de algo.

“Ugh! Não temos escolha, não podemos deixá-lo fugir sozinho... Ei, Xellos! Espere!” gritei enquanto o perseguia.

Fui para fora para encontrar as nuvens sobre as montanhas do leste corando em vermelho contra o céu antes do amanhecer.

“Por que estão me seguindo?” Xellos perguntou, parecendo bem infeliz, embora seguisse andando.

“Você precisa perguntar ainda? Duas cabeças pensam melhor do que uma, e quatro pensam melhor do que duas. Não me importa quem você é; sempre há segurança em números.”

“Essa é uma lógica bem simples... Contudo muito bem, se insiste. No entanto não vou diminuir o ritmo ou mudar de destino para acomodá-los. Se deseja me seguir, terá que me acompanhar.”

“Entendido.” falei com um aceno de cabeça. Não pedi aprovação a Zel ou Amelia, embora ambos seguiram sem reclamar, então presumi que estavam de acordo. “Mas se estava planejando ir sozinho, por que veio até nós em primeiro lugar?”

“Prometi que te encontraria nesta vila.” ele disse, quando...

Boom! Outra explosão rugiu das montanhas.

———

“Meu Deus...” Xellos sussurrou com seu sorriso habitual no lugar.

A explosão se originou da base do culto, então nos apressamos até lá... Apenas para encontrar um deserto árido onde o prédio estivera antes. Talvez o resultado de um Dragon Slave.

“Porém... Quem poderia ter feito isto?” sussurrei.

“A queda inevitável do mal!” Amelia respondeu resolutamente... Acho que fez sentido para ela.

“Acredito que o Mestre Klotz foi o responsável.” Xellos interveio.

“Explodiu sua própria base? O que te faz pensar que seja o caso?”

“Não há sinal de lutas aqui. Com certeza seria possível pegá-los desprevenidos com um Dragon Slave se eles estivessem alheios ao perigo... Contudo depois do seu ataque ontem à noite, não há dúvidas que estariam com a segurança no máximo. É mais provável que tenham decidido mudar sua sede para outro lugar e então destruído a antiga para esconder as evidências.”

“Espere um minuto!” Zelgadis entrou na conversa com uma carranca. “Como soube que estávamos aqui ontem à noite?”

“Simples inferência.” Xellos respondeu, levantando o dedo indicador com conhecimento de causa. “Primeiro, você recuperou sua amiga capturada. Segundo, estavam discutindo sobre Zanaffar, o que sugere que o encontraram. Terceiro, quando cheguei na cidade, vi um clarão nas montanhas.”

“Hmm... Tá, e por que se preocupar em abandonar sua base? Se tiverem um Zanaffar, mesmo que os persigamos outra vez, poderiam nos derrotar com facilidade.”

“Ah... Imagino que...” me peguei dizendo. “Pelo que Amelia fez parecer, estavam apenas usando sua versão de Zanaffar de má vontade. E então desistiram depois daquele primeiro ataque. Além disso, não faz tanto tempo desde que Klotz colocou as mãos no manuscrito. Se somar tudo...”

“Oh, você acha...” Amelia falou esperançosa.

Assenti.

“Acredito que o Zanaffar deles segue incompleto.”

———

“Temos que rastreá-los!” Amelia disse heroicamente. “Nós devemos frustrar suas ambições malignas antes que seu servo das trevas, Zanaffar, esteja completo!”

“Estou a bordo com o plano de surrá-los. Mas me diga, Pequena Senhorita Justiceira, para onde eles foram?” Zel perguntou num tom sarcástico.

Pronto, Amelia vacilou.

“Hmm...” ela murmurou, lançando um olhar suplicante na direção de Xellos. “Você sabe?”

“Temo que não. Se, como diz a Srta. Lina, Zanaffar estiver incompleto, talvez tenham se estabelecido em outro lugar... Se soubesse que isso aconteceria, teria perguntado a Mazenda a localização da outra base antes de acabar com ela.”

“Não sei onde fica a base em si, porém...” falei com alguma hesitação, apontando para o sudeste. “Acho que foram por ali.”

“O que te faz pensar assim?” Zelgadis perguntou.

Lancei um olhar de soslaio para Amelia. Deveria contar mesmo? Bom, imaginei que não poderia fazer segredo pra sempre...

“Ontem à noite, me infiltrei em outro comício deles.” admiti. “E aquele cara... Klotz, se não me engano... Disse que iriam destruir Saillune.”

“O quê?” Amelia exclamou quase gritando. “E-Eles vão destruir Saillune? Não podem fazer isso! A menos que concluam com Zanaffar... Nós só temos que detê-los! Temos que pegá-los o mais rápido possível!”

Sem esperar por uma resposta, a garota começou a voltar na direção da vila... E logo em seguida congelou em seu caminho.

“O que foi, Ameli...”

Quando segui seu olhar, congelei da mesma forma. Havia... Perto de cem aldeões se aproximando, todos fervendo de raiva assassina.

“Ora, ora, se não são os cultistas.” disse Xellos com sua expressão alegre de sempre.

“Você fez isso!” um dos aldeões, um homem de cerca de quarenta anos, disse acusadoramente. “Onde está Lorde Klotz? O que aconteceu com ele?”

“São eles! São as pessoas que arruinaram nossa reunião!” gritou outra voz de algum lugar na multidão, fervendo de ódio.

“Ah, claro. Agitação. Uma tática a se esperar do Mestre Klotz.” sussurrou Xellos, seu sorriso característico agora um tanto tenso.

Ao menos explicava tudo. Klotz explodiu sua base para destruir as evidências da criação de Zanaffar, como também foi uma maneira útil de irritar seus seguidores. Talvez tenha enviado alguns agitadores deliberados para a cidade para garantir que a multidão enfurecida também nos mirasse.

Em outras palavras, os cultistas estavam aqui para nos atrasar.

“Vocês não nos deixam escolha. Vamos eliminá-los!” disse Xellos, sua expressão inalterada mesmo com uma fala tão aterrorizante.

“Ei! Espere um minuto aí, amigo!” interrompi em pânico.

Ele respondeu com um ar de confusão.

“Qual é o problema? Não vai tentar me dizer que são todos boas pessoas no fundo, vai?”

“Tanta fé na humanidade infelizmente me escapa. Contudo ainda assim... Sua fala faz parecer que vai matar todos.”

“Vou!” Xellos respondeu, inalterado.

Fiquei pasma por um bom momento.

“Isso é assassinato em massa! Eles pelo menos estão fingindo ser aldeões inocentes na maior parte do tempo... Não vou reprisar toda aquela história de ‘criminoso procurado’ outra vez.”

Mesmo enquanto discutíamos, os aldeões continuaram a falar entre si e seu ar de hostilidade ficou mais forte. Não pareciam ter coragem de nos atacar ainda, no entanto era apenas uma questão de tempo até chegarmos lá.

“Só limpe o caminho.”

Xellos fechou os olhos por um momento e disse.

“Muito bem. Vamos prosseguir o mais pacificamente possível.”

Enquanto entoava um feitiço, seus passos seguiram rápidos em direção aos cultistas.

“O-O que diabos vocês estão fazendo?” gritou um.

A mão direita de Xellos varreu o ar aos poucos. Uma palavra de poder saiu de seus lábios. Não consegui entender, mas...

Whoosh! Um forte vento soprou, acompanhado de inúmeros gritos. Era uma versão mais poderosa de um Vento de Diem... Muitas vezes mais poderoso. O vendaval que Xellos conjurou dispersou os cultistas, fazendo alguns voarem para as árvores e outros baterem no chão. Assim que acalmou, pude ouvi-los todos gemendo de dor.

“Agora...” disse Xellos numa gentil voz para os cultistas caídos e se contorcendo. Não conseguíamos ver sua expressão, porém... Eu tinha certeza de que seguia sorrindo da mesma forma alegre de sempre. “Poderiam fazer a gentileza de nos deixar passar? Se não fizerem, temo que teremos que abrir um caminho nós mesmos...”

Na mesma hora os cultistas, com gemidos próximos a gritos, mergulharam no mato de ambos os lados da estrada.

Então essa era a sua versão de prosseguir pacificamente, hein?

“Que tal?” Xellos perguntou, virando-se para mim com seu sorriso inabalável.

———

Agora estávamos indo em direção a Saillune, contudo era um avanço lento. Quatro dias depois de Mayin, seguíamos sem ter encontrado nenhum vestígio de Klotz e sua gangue. Não poderíamos nos mover muito mais rápido até sabermos onde ficava sua nova base, para não passarmos por ela sem notá-la.

Ficamos atentos a rumores relevantes em cada cidade que chegávamos, depois vasculhávamos as áreas ao redor à moda antiga. Cobríamos cerca de uma vila por dia, embora nossas investigações estivessem longe de ser completas. Estávamos com pressa, pois Zanaffar poderia ser concluído a qualquer momento.

Na verdade, havia uma boa chance de já ter sido. Embora não era como se pudéssemos só cancelar nossa busca. Pensei que seria possível localizar a besta do plano astral, dada a teoria de Xellos sobre sua forma astral única, entretanto não deu em nada.

Por sorte, havia outras coisas que poderia fazer nesse meio tempo... Quero dizer, estudar magia. Precisava testar o quão bem a amplificação dos talismãs funcionava, para começar, todavia não era tudo. Veja, certos feitiços dependiam de mais do que apenas acertar as palavras. Ainda se recitasse o canto à perfeição, alguns exigiam um gesto, ferramenta ou ritual para serem ativados. Alguns só podiam ser realizados em determinados momentos do dia.

E alguns dependiam puramente de sua capacidade.

Veja a Bomba Explosiva que Xellos usou, por exemplo. Eu tinha alguns feitiços em meu repertório para os quais dominava os encantamentos, mas não conseguia usar. A amplificação os colocaria ao alcance? Estava morrendo de vontade de saber. Então, enquanto estávamos no meio da perseguição de Klotz e sua gangue, fiz uma pesquisa rápida e...

“Foi você ontem?” Amelia me perguntou, da mesma forma que tinha feito nas últimas manhãs quando deixamos nossa vila do dia.

“Tee-hee! Fui pega!” coloquei minha língua para fora, toda bonitinha.

Na noite passada, tinha saído escondida da pousada e tentado alguns experimentos na floresta nos limites da cidade...

“Isso não é assunto para risos.” disse Zelgadis, parecendo compreensivelmente enojado.

Xellos então entrou na conversa, com o semblante alegre de sempre.

“Ah, pensei ter ouvido algum tipo de rugido ontem à noite. Deixou os moradores em pânico. Foi obra sua, então?”

“Bem, estava tentando um monte de coisas... E decidi ver o que um Dragon Slave amplificado podia fazer!”

Pra ser honesta, não esperava que destruísse uma floresta inteira de uma vez... Quem poderia me culpar por fugir da cena em pânico depois?

“Só ignore, ok? Essas coisas podem ser úteis mais tarde.” argumentei com um grande sorriso.

“Tá, eu dificilmente seria alguém que se oporia, porém...” Xellos disse enquanto parava de repente. “Não parece que o Mestre Klotz e sua laia vão obedecer.”

“Dois coelhos com uma cajadada só.” falei, parando também.

Obviamente, Zelgadis e Amelia também estavam prendendo a respiração, olhando fixos para o mato à frente.

“Vamos lá, rapazes. Sabemos que estão aí. Deem as caras de uma vez.”

Dois homens-besta apareceram em resposta ao meu chamado.

“Oh... Você nos sentiu, não é?”

Um deles parecia um lobisomem comum, enquanto o outro era algum tipo de quimera demoníaca de bronze...

Nossa, será que esse tal de Klotz só servia para isso? Nunca os tinha conhecido antes, mas como eram os seus homens-besta, parecia seguro assumir que precisaria de algum ataque mágico sério para machucá-los. Porém...

“Tem que estar brincando comigo!” falei, demonstrando surpresa exagerada.

“Hah... A garota está assustada.” o meio-demônio sussurrou.

“Não posso acreditar que vocês dois idiotas acham que podem nos vencer!”

“O-O que?” o meio-demônio gritou enquanto desembainhava suavemente duas espadas de suas costas, brandindo uma espada longa na mão direita e uma espada curta na esquerda.

O lobisomem não se preocupou em pegar sua própria lâmina, apenas observou calado nossa conversa.

“Estou dizendo que não há como vocês dois vencerem todos nós. Tenho certeza de que não percebe o quão durões nós somos, então acho que não posso culpá-lo por tentar... Talvez tenha sido uma ordem errada de um líder vagabundo, ou quem sabe vocês mesmos tenham tomado essa iniciativa equivocada. Contudo estou lhe dizendo: entenda a dica e suma antes que chutemos seus rabos direto para o além.”

“Hah! Diga o que quiser!” o meio-demônio clamou, lançando um olhar na direção de Xellos. “Lorde Balgumon apenas disse que deveríamos tomar cuidado com o maldito sacerdote! Certo?”

Ele olhou para seu companheiro em busca de confirmação, no entanto este respondeu friamente.

“Não significa de forma alguma que podemos subestimar os outros.”

“Bom... É verdade...” concordou o meio-demônio, encolhendo-se de repente. “É verdade que... Não quero lutar com aquele sacerdote. E com você dizendo que os outros podem ser tão perigosos quanto...”

Cara, se vai amarelar tão rápido, não comece falando besteira!

“Ainda assim...” o meio-demônio disse com um súbito lampejo de um sorriso brilhante. “Acho que não podemos só ir embora e fingir que nunca os vimos, podemos?”

“Tem razão. Ainda preciso que nos digam onde fica sua nova base.”

“Heh... Venha tentar se tiver coragem!”

Antes que o meio-demônio pudesse terminar de gritar, o lobisomem estava correndo direto para mim! E em vez de sacar sua lâmina, me cortou com as garras de sua mão direita!

“O quê? Desgraçado...” mesmo se eu pulasse para trás agora, não conseguiria sair do caminho a tempo. “Tch!”

Sem hesitar, corri para o homem-besta e o abordei.

Whump! Não importa a arma, se conseguir evitar o ataque, poderá reduzir bastante seu poder letal. Suas garras agarraram minhas costas e a parte de cima da minha capa, entretanto agora tinha que me preocupar com as garras da sua mão esquerda!

Fiz um movimento errado? Enquanto estava considerando, o pé do homem-besta encontrou meu plexo solar.

“Grkh!”

Oof. Essa doeu. Mal consegui ficar de pé, mas...

Olhei e vi o lobisomem e Zelgadis, com a espada larga desembainhada, encarando um ao outro. Isso explica tudo. Se tivesse me arranhado com a mão esquerda, poderia ter me matado... Porém Zel o teria matado no instante seguinte. Foi isso que o deteve.

“Guh!” enquanto recuava, o lobisomem enfim desembainhou sua espada.

“Tch!”

Forçado a lutar, o meio-demônio atacou. E seu alvo era... Amelia!

“Bola de Fogo!”

A bola de luz que ela liberou o atingiu de frente! Fwooom! A explosão jogou o meio-demônio para trás, fazendo-o bater contra uma árvore próxima. Todavia...

“Heh... Hehehe...” ele se levantou devagar. “Bolas de Fogo... Não podem me ferir...”

“Bola de Fogo!”

Interrompendo a vangloriação do meio-demônio, Amelia lançou uma segunda! Fwooom! E outra vez o homem-besta foi jogado para trás e lentamente se levantou mais uma vez.

“Eu te disse...”

“Tome outra! Bola de Fogo!”

Fwooom!

“Hum... Ei...” o meio-demônio disse, tendo um pouco de dificuldade pra se levantar.

Boa, garota! Mesmo que as chamas da Bola de Fogo não o machucassem, se Amelia pudesse continuar jogando-o nas coisas, o trauma contundente por si só cobraria seu preço.

“E outra! Bola de Fogo!”

Fwooom!

Além disso, atirar nele dessa forma o manteria fora da batalha. Isso nos deixou para lutar três contra um contra o lobisomem. Molezinha!


O lobisomem estava atualmente em choque com Zelgadis e, claro, não pretendia ficar parada por aí dando comentários. Terminei de entoar meu feitiço e, no momento em que Zel e o lobisomem se distanciaram um do outro...

“Lança Elemekia!”

“Tch!” mas o lobisomem saltou para trás de novo.

“Nós os subestimamos!” ele disse, se virando. Então correu para as árvores gritando. “Retirada! Se ficarmos aqui, vamos morrer!”

“O-Ok!” o meio-demônio respondeu, correndo trêmulo logo atrás.

“Atrás deles!” Zelgadis gritou, mergulhando no mato em busca dos homens-besta.

O resto de nós seguiu sua liderança.

Obviamente, tudo o que tínhamos para seguir eram seus rastros. O mato e os galhos das árvores dificultaram, porém o meio-demônio devia estar em maus lençóis, porque seu próprio progresso era lento. Se não estivéssemos no meio da floresta, poderíamos tê-los pego sem muitos problemas...

A perseguição se arrastou por muito tempo. Além do sempre animado Xellos, estávamos todos exaustos quando por fim saímos da floresta.

“Já era hora...” Zel murmurou enquanto saltava das árvores.

Chegamos a uma vila. Os homens-besta correram direto para ela, arrancando gritos de medo e surpresa de um homem conduzindo uma vaca e algumas crianças brincando de pega-pega.

Argh! Isso é ainda pior! Ninguém aqui parecia estar em conluio com os bandidos, contudo uma vila oferecia muitos esconderijos e nos forçava a manter nossos feitiços sob controle. Os bandidos também adoravam fazer os aldeões de reféns. Esperava que pudéssemos pegá-los antes que tentassem algo engraçado, no entanto...

Os dois correram direto pela avenida central da vila conosco em perseguição. Não era lá uma situação ideal. Talvez acabássemos em uma perseguição inútil ou os perderíamos de vez...

Ou assim pensei, mas os dois homens-besta pararam de repente, bem no centro da vila. Paramos um pouco atrás. Eles iriam jogar a cautela fora e lutar agora?

“Então estão prontos para se entregar!” Amelia gritou, apontando dramaticamente para os homens-besta. “O bem triunfará sobre o mal mais uma vez!”

“Ugh... São quatro contra dois e vocês agem como se fossem os mocinhos? Parecem apenas valentões para mim!” o meio-demônio rosnou (com razão).

Amelia, no entanto, não se perturbou.

“Não, o que veem aqui é o poder da amizade! O poder do trabalho em equipe!” ela retrucou sem qualquer descaro. O resto de nós desviou os olhos.

“Bom... Tanto faz. Estamos cansados ​​de fugir. Por que não resolvemos isso logo?” senti um arrepio percorrer minha espinha. Não me diga...

“Vamos lá!” Amelia declarou cheia de coragem.

Lá, o meio-demônio abriu um sorriso maldoso.

“Bem, bem! Vocês ouviram, certo pessoal?” ele gritou, e bem na hora...

O quê? Nós três (sem Xellos) soltamos um gemido.

Pareciam sair de todos os lugares, atrás de prédios, barracas e carroças... Cerca de vinte homens-besta, pelos meus cálculos, nos cercaram.

“Uma armadilha...” Zelgadis sussurrou amargamente.

“Exato.” respondeu o meio-demônio. “Lorde Klotz fez uma leitura perfeita do seu poder. Como derrotaram Vedul e Gilfa, dois dos nossos membros mais fortes, sabíamos que nunca poderíamos vencê-lo apenas com apenas nós dois.”

Eu devia saber. Eles eram iscas para nos trazer até aqui...

Ok, gostaria de dizer que sabia, mas só me ocorreu quando pararam no meio da vila. Então, sim... Foi um pouco de descuido da minha parte dessa vez. Erro meu.

A rua agora fervia com homens-besta. Mesmo que não fossem tão fortes quanto Vedul e Gilfa, seria difícil lidar com tantos de uma vez.

Se não estivéssemos no meio da cidade ou tão perto, poderia ter apenas lançado um Dragon Slave no seu grupo. Suponho que nos atraíram aqui com o objetivo de restringir nosso uso de magia. Em uma briga, Zelgadis era um espadachim habilidoso e eu provavelmente conseguiria me defender bem o suficiente... Porém Xellos só tinha seu cajado e Amelia estava desarmada.

“Desculpe, contudo deveria perceber que está em desvantagem e desistir.” gritou uma voz familiar. Eu a reconheci e me virei reflexivamente.

Era outro homem-besta (claro), no entanto este era uma cabeça mais alto que os outros. Uma fusão de um humano e alguma raça de grande felino com pelos prateados... Um tigre branco? Ele levava uma cota de malha de um design curioso que combinava com seu pelo, e carregava um grande machado de batalha nas mãos.

“Você é... Duclis?”

Quando falei seu nome, uma expressão atordoada cruzou seu rosto.

“Ei... Conheço essa voz! É aquele garoto!” Duclis coçou a cabeça com a mão esquerda, envergonhado. “Ah, então era uma garota... Entendo.”

“Mestre Duclis, estamos prestes a lutar contra eles!” o meio-demônio repreendeu.

Todavia Duclis permaneceu inalterado.

“Ei, está tudo bem. Não custa nada falar um pouco. Apesar que torna mais difícil lutar com você... Estou meio perdido...” ele disse, coçando a cabeça outra vez.

“Você conhece esse cara, Lina?” Amelia perguntou.

“Explico mais tarde.” sussurrei em resposta.

“Posso te perguntar uma coisa?” pedi, virando para Duclis. “Por que vocês são tão devotados a Klotz? Até o ponto de deixar de lado sua humanidade? Ele é uma pessoa horrível que acredita no Lorde das Trevas, ressuscita bestas mágicas e quer destruir o mundo!”

“Tenho certeza que não entenderia...” Duclis sussurrou em tons tristes. “Nós, ao menos a maioria de nós aqui, estávamos às portas da morte. Eu mesmo fui um mercenário errante abandonado pelo meu grupo, deixado ferido para morrer... E quem me salvou foi o Mestre Klotz. Para me salvar, me transformou em uma quimera.”

“Entendo. E no processo, ganhou um conveniente novo peão.” Xellos zombou sem rodeios.

Duclis pareceu não se ofender.

“Sim, é verdade. Sempre fui um peão. Porém ainda assim... Não tenho mais para onde ir. Os outros caras aqui também estão em uma situação semelhante... Embora não admitam.”

“Nesse caso, para ir direto ao ponto, não tem como você não lutar contra nós, têm?” Zelgadis perguntou, sua espada larga já desembainhada.

“Xellos...” sussurrei para o homem parado ao meu lado. “Não faça nada muito chamativo.”

“Então posso fazer o que quiser, desde que seja monótono?” ele perguntou de volta.

Pensei por um minuto.

“Preferiria que ficasse fora disso o máximo possível, contudo...”

“Vamos lá. Falar não vai nos levar a lugar nenhum...” Duclis disse cansado.

———

“Vamos lá!” o meio-demônio gritou, dando o primeiro passo.

Avançando direto para Amelia, era óbvio que estava ansioso para ter sua vingança. Zelgadis se moveu para cobri-la enquanto Amelia começava a entoar um feitiço. Era... Um Ra Tilt! Que atingiria apenas um único inimigo, contudo era forte o suficiente para derrubar até mesmo um demônio de bronze com um acerto. E em nossa situação atual, lidar com esses caras um de cada vez era talvez a única opção...

Outro grupo se aproximou de Amelia também. Comecei a entoar enquanto sacava minha espada curta do cinto, reposicionando-me para fornecer cobertura adicional a ela. Só então... Duclis fez seu movimento.

Fwish! Um capacete prateado se encaixou no lugar sobre sua cabeça, provavelmente saindo de suas costas. Em seguida, seu machado de batalha foi erguido como se não pesasse nada e avançou sem dificuldade. Enquanto isso...

Clang! Faíscas voaram quando a espada longa do meio-demônio colidiu com a espada larga de Zelgadis.

“Te peguei!” Zel gritou enquanto pegava a espada curta na outra mão do meio-demônio com a palma aberta!

“O quê?” o meio-demônio gritou de surpresa.

Duclis e mais homens-besta ainda estavam nos atacando de direções diferentes.

Eu teria que segurar alguns com feitiços e outros com esgrima. Vejamos... Duclis tinha aquele machado de batalha enorme, que tenho certeza de que não conseguiria bloquear com uma espada. Teria que atirar nele primeiro.

“Lança Elemekia!”

Nem mesmo um dos homens-besta de Klotz poderia aguentar um golpe como aquele. E enquanto Duclis estava ocupado se esquivando, poderia usar minha lâmina para segurar os outros homens-besta que estavam indo em direção a Amelia... Pelo menos, esse era o plano. No entanto Duclis nem tentou desviar! Tudo que fez foi receber minha Lança Elemekia de frente e continuou atacando sem parar!

Mas que diabos acabou de acontecer?

“Amelia! Zel! Saiam da frente!” gritei, acreditando que era a melhor coisa que poderia fazer no momento.

“O quê?” Zelgadis se apressou em se retirar e se virou para olhar.

Porém Amelia demorou mais para responder...

“Amelia!” gritei.

“Morra!” um grupo de homens-besta atacando da outra direção se lançou sobre ela!

E como o vento... Amelia saltou! Com um leve giro de seu corpo, se moveu para trás da multidão, depois desferiu um chute nas costas deles.

“Bwuh!”

Seu chute não foi muito poderoso, entretanto redirecionou o impulso dos homens-besta, fazendo-os cambalear em direção a Duclis.

Hã... Amelia é uma ótima artista marcial.

“Gente! Falei para não baixarem a guarda!” Duclis gritou, usando sua mão aberta para segurar os homens-besta clamando.

Nesse momento, Amelia terminou seu feitiço.

“Ra Tilt!”

Com essas palavras de poder, um pilar azul de luz envolveu Duclis! Ela deve tê-lo considerado o líder do grupo e decidiu matá-lo primeiro. A luz azul recuou momentos depois, e o pobre Duclis... Aquele feitiço o derrubou.

Ou deveria ter, só que...

“Entendo... É bem impressionante.” ele disse, parecendo imperturbável.

“O quê?” Amelia exclamou, estupefata.

“Ah, é só essa armadura que Klotz me deu...” Duclis explicou. “A armadura anti-magia de Zanaffar...”


***

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