Capítulo 25: Vamos lá, pessoal, não venham me perseguir...
Devo voltar ou...
Decidi continuar, avançando em direção aos limites da cidade. Parecia que ainda havia bares abertos mesmo àquela hora, e os fracos sons de folia passavam pelo vento aqui e ali. Logo, no entanto, eles também desapareceram.
Meu perseguidor continuou no meu encalço enquanto eu deixava a cidade para trás. Quando cheguei à estrada que atravessava a floresta, as nuvens vieram para sufocar a lua cheia no alto... O que mergulhou as redondezas na escuridão. Aproveitei a oportunidade para mascarar minha presença e me abaixar atrás de uma árvore próxima. O perseguidor se aproximou.
Em pouco tempo, a lua voltou a surgir e...
“Amelia?”
“Waaagh!” ela gritou de surpresa. “Ei, você me assustou!”
“Eu te assustei? Amelia, você me perseguiu o caminho todo até aqui! Pensei que fosse algum bandido!”
“Bom, eu te vi saindo da pousada! Imaginei que fosse atacar algum covil de bandidos!”
“Erk!”
Ela acertou o prego na cabeça com tanta força que me deixou um pouco atordoada.
“Quer dizer... Sim, claro que estou! Por que mais uma jovem deixaria sua pousada no meio da noite?” falei desesperadamente. “Gourry e Zel me dariam um interrogatório se descobrissem. Eles não entendem o que uma garota precisa, mas você não tentaria me impedir, tentaria?”
Amelia balançou a cabeça fervorosamente, relâmpagos reluziram em suas costas enquanto declarava.
“De jeito nenhum! Quero ir junto!”
Espere um minuto...
“Está... Falando sério?” me peguei perguntando.
“Claro! Bandidos são conspiradores do mal, roubando dos outros para satisfazer seus próprios interesses! Tal maldade não pode ser ignorada! Devemos acabar com eles o quanto antes!”
E com isso, ela começou a marchar sozinha.
“Ei! Espere um minuto!” gritei, tentando pará-la enquanto ainda podia.
Amelia parou, virou-se e perguntou.
“Não vai me dizer para não ir, vai?”
“Não.” respondi, levantando um dedo declarativo. “Porém nós dividimos o tesouro meio a meio!”
Pouco depois, feitiços de ataque floresceram na floresta à meia-noite.
———
“Hmm... É um saque menor do que estava esperando. Acho que a vida é difícil para um bandido no interior.” murmurei enquanto caminhávamos pela estrada de volta para a pousada, nossas bolsas cheias de saques.
Geograficamente falando, estávamos no interior do norte do Ducado de Kalmaart, bem longe da maioria das cidades grandes e rodovias. Era o tipo de lugar onde não esperaria encontrar bandidos, contudo acho que hoje em dia nunca se está de todo fora do alcance dessa gente.
Houve uma época em que estive preocupada que minha matança noturna de gangues de bandidos em todos os lugares pudesse mesmo transformá-los em uma espécie em extinção que justificasse proteção do estado ou algo assim... No entanto meus medos eram infundados. Isso é uma coisa boa ou ruim? Você é quem decide.
Sendo sincera, fiquei meio chateada com esta última excursão. Tinha conseguido me livrar de um pouco do estresse, entretanto não tinha nenhuma grande conquista pra me gabar... O que significa que só tinha cumprido um dos meus dois objetivos para a noite. Pelo menos o humor de Amelia estava nas alturas...
“Você não pode deixar isso te incomodar!” ela insistiu ao notar meu comportamento apático. “O que é importante é que extinguimos outro covil do mal! O dia em que a justiça reinará suprema ainda está muito longe, mas demos um passo na direção certa!”
Tá, tá...
“Ouça, Amelia... Por acaso faz alguma ideia de onde nossos fundos de viagem têm vindo ultimamente?”
Ela passou algum tempo em silenciosa consideração, então disse.
“Hum... Quer dizer...”
Fiz um firme aceno, minha expressão pensativa.
Gourry não tem nenhuma preocupação no mundo, e a única preocupação de Amelia é a ‘justiça’. Zelgadis era reservado sobre mostrar seu rosto, e havia desistido há muito tempo de seu trabalho de bandido...
Então, quem mais deveria ganhar dinheiro para nós?
Teria sido uma coisa se estivéssemos em uma cidade grande ou em uma via principal e não tivéssemos pressa. Mas agora não tínhamos tempo para proteger caravanas ou brincar de mensageiros. Com nossas despesas se acumulando, não me restou escolha a não ser sair tarde da noite e acabar com gangues de bandidos locais em uma tentativa de reabastecer nossos cofres.
E, sim, ok, admito que é muito divertido. Também admito que tiro uma parte pro meu bolso... Porém, vamos lá, é só uma comissão. Uma coisinha pelo meu trabalho, sabe?
Enquanto estava pensando comigo mesma...
“Espere, Lina!” Amelia disse urgentemente.
Ouvindo-a, parei para perguntar.
“O que foi? Precisa ir ao banheiro?”
Ela balançou a cabeça e respondeu, agora muito séria.
“Alguém está aqui... Ou melhor, alguma coisa.”
Olhei em volta, vasculhando com meus sentidos. A única iluminação na floresta envolta pela noite vinha de um pequeno feitiço de Iluminação que agora flutuava sobre minha cabeça. E os únicos sons que ouvi eram insetos e pássaros noturnos. Nada muito incomum...
“Não sinto nada, Amelia.”
“Está lá!” assegurou com confiança.
As mulheres que serviam como sacerdotisas desenvolviam com frequência considerável um tipo de percepção extrassensorial. Amelia, ao que parecia, não era exceção. Talvez tivesse pego algum rastro aqui. O que significa que estávamos enfrentando alguém com a habilidade de mascarar por completo sua localização de nós duas? Ficamos de costas uma para a outra, enquanto sacava lentamente a espada curta do meu quadril.
Quando o fiz... Os insetos ficaram quietos. O silêncio caiu sobre a floresta escura, e uma onda de hostilidade crescente tomou conta de mim!
“Está aqui!” ela gritou.
Eu me virei e avistei uma sombra disparando pela escuridão.
Espere um minuto...
Me apressei o máximo que pude em entoar um feitiço, entretanto não o terminei a tempo. A sombra já estava sobre mim. Balancei minha espada em desespero. Clink! A sombra quebrou a lâmina sem esforço entre suas mãos.
“Ngh!” pulei o mais rápido que pude para trás. A perna da sombra atacou, mirando direto no meu plexo solar. Eu não conseguia sair do caminho!
Whoosh! A sombra de repente voou para trás sem fazer contato comigo.
Amelia havia desferido um chute no último segundo que o fez voar. Ele parou onde pousou e se manteve firme.
“Quem é você?” Amelia perguntou enquanto se endireitava, mas fui eu quem respondeu.
“Espera aí, conheço esse cara... Lembro desses movimentos.” falei, olhando para a sombra. “Sinceramente gostaria de seguir sem nunca mais te ver... Zuma.”
“Zuma? Tem certeza?” Amelia perguntou, seus olhos ainda presos no assassino sombrio.
Vamos lá, você já viu o cara antes...
Claro, estava vestido todo de preto com o rosto escondido, exceto pelos olhos... Que era o seu traje padrão de um assassino. Não era de se admirar que não conseguisse diferenciá-lo de um espécime mais genérico.
No entanto, quanto a esse assassino em específico, tínhamos uma história. Ele tentou me matar uma vez e acabou em uma luta com Gourry que lhe custou os dois braços. Apesar de que conseguiu fugir no final... Parece ter conseguido se recuperar alguma forma. Embora eu soubesse que sacerdotes de alto escalão e coisas assim pudessem restaurar membros, nunca pensei que não conseguir acabar com o maldito naquela época levaria a um encontro como esse.
“O que você quer? A pessoa que te contratou para me matar está morta! Nós o matamos!” sabia que a negociação era inútil, contudo decidi tentar mesmo assim.
Sua resposta foi tão direta quanto uma flecha.
“Ainda não terminei o trabalho pelo qual fui pago.”
Caramba, de todas as malditas ocupações para ser um profissional consumado...
“Posso ver que uma conversa racional não nos levará a lugar nenhum!” Amelia disse, apontando um dramático dedo para Zuma.
Você nem tentou argumentar com ele, garota...
“Cidadão das sombras que troca vidas humanas por dinheiro! Se não consegue ver o sangue que mancha suas mãos, sua salvação será negada para sempre! Mesmo que fuja do julgamento da lei, juro em nome do céu que nunca fugirá do meu!”
Traduzindo para a Fala de uma Pessoa Normal, acho que estava basicamente dizendo: “Arrependa-se ou eu te mato, assassino idiota!”. O que me serviu muito bem.
“Se ainda tem um pingo de compaixão humana...”
“Flecha Flamejante!” gritei, liberando um feitiço que interrompeu o discurso interminável de Amelia.
Uma dúzia ou mais de flechas de fogo pairaram no ar por um segundo, então dispararam direto na direção do assassino. Não havia como desviar de todas!
“Guum Aeon!” ele sussurrou... E minhas flechas flamejantes se despedaçaram no ar!
“Hã?” Amelia e eu exclamamos juntas.
Zuma deve ter previsto meu ataque e entoado aquele feitiço com antecedência... Embora nunca tivesse visto ou ouvido falar de tal feitiço antes.
Em seguida, Zuma veio direto para cima de mim. Comecei a entoar um rápido feitiço de acompanhamento, mas eu conseguiria lançá-lo a tempo?
“Não tão rápido!”
Amelia correu para frente, avançando em direção a Zuma. Quando o fez... Zuma mudou de curso de repente! Agora estava indo para cima dela!
“O quê?” Amelia gritou em choque, perdendo sua concentração.
Whump! Ela recebeu o chute de Zuma direto e... Crash! Bateu com força no tronco de uma árvore próxima.
Esse desgraçado! Sua intenção era derrubá-la primeiro!
Zuma não poupou a Amelia caída nem um olhar antes de partir para a ofensiva contra mim outra vez. Uma pena que agora meu feitiço estava pronto...
“Nevoeiro Negro!”
Quando o lancei, os olhos de Zuma se arregalaram. Era um feitiço que ele já tinha usado em mim uma vez, afinal. A névoa negra que produziu engolfou a área ao redor do assassino que se aproximava. Não conseguia vê-lo mais... Porém o que importava era que também não podia ser vista.
Mudei de lugar e silenciosamente comecei a entoar um feitiço de Iluminação. No momento em que Zuma emergir do meu nevoeiro, vou cegá-lo com a luz e então entoar um feitiço de ataque para acabar com o desgraçado!
Exceto... Que ele nunca apareceu.
“Lina! Em cima de você!” Amelia gritou.
“Iluminação!” respondi ao aviso na hora.
Se tivesse me dado ao trabalho de olhar para cima, não teria lançado o feitiço a tempo. Em vez disso, apenas o lancei acima da minha cabeça! Fechei meus olhos e rolei para longe enquanto a luz abrasadora de brilho máximo e duração mínima perfurava minhas pálpebras.
Acima de mim, senti a mesma sensação de surpresa de novo. Será que consegui cegá-lo com sucesso? Contudo, antes que pudesse especular mais, senti algo tocar minha ombreira direita.
“Onda de Explosão!” veio uma voz bem próxima do meu ouvido.
Fa-foom! Assim, minha ombreira fez boom! Se não fosse pelo aviso de Amelia, poderia ter sido minha cabeça!
Não sei quando saltou do meu Nevoeiro Negro, no entanto Zuma veio até mim de cima. Ainda assim, mesmo que fosse apenas temporário, sabia que não conseguia ver agora! Abri meus olhos e comecei a recitar outro feitiço...
Todavia o assassino seguia vindo direto para mim! Ele estava seguindo o som da minha voz enquanto entoava?
“Lança Elemekia!” Amelia gritou ao meu lado. Ei, essa é minha garota! Mesmo depois de um chute direto no estômago, estava de pé outra vez e em pouco tempo!
“Tch!” Zuma parou sua investida, permitindo que o feitiço de Amelia passasse bem na frente de seus olhos.
Droga, ele com certeza não estava agindo como alguém que deveria estar cego! Será que está se baseando nos sons do vento e em nossas presenças?
Tanto faz! Era minha vez agora!
“Bola de Fogo!”
Bwoosh! Vento uivante e chamas explodiram aos pés de Zuma. Mas antes que a fumaça se dissipasse, vi uma sombra saltar do fogo. Impossível! Pensei comigo mesma enquanto a voz de Amelia soava mais uma vez.
“Flecha Congelante!”
Boa, garota! Gritei internamente. Se Zuma se esquivava de nossos ataques lendo mudanças no vento, então a turbulência da minha Bola de Fogo deveria confundir seus sentidos. De jeito nenhum conseguiria se esquivar de todas as dezenas de flechas congeladas voando em sua direção agora!
Ou assim pensei...
Porém com uma expiração brusca e uma mudança suave de curso, Zuma evitou a saraivada gelada.
Ok, tenho quase certeza de que esse cara não foi cegado!
Zuma avançava em minha direção uma vez mais e, quando se aproximou, eu vi... Seus olhos estavam fechados! Não havia como conseguir ver algo assim!
Um arrepio percorreu minha espinha. Com minhas poucas opções e a pouca distância entre nós, joguei a espada curta quebrada ainda em minha mão em Zuma.
O ataque do assassino... Parou. Tudo estava em silêncio, exceto pelo farfalhar da grama. A próxima coisa que notei foi Zuma saltando para trás.
Hein?
“Venha para Vezendi.” ele disse em voz baixa. Seu tom era o de um caçador cuja presa havia escapado. “Se não o fizer... Alguém morrerá.”
E com essas palavras, o assassino se virou e desapareceu na escuridão.
“O que diabos aconteceu?” perguntei, parada ali em choque.
“Talvez teve medo da chegada de reforços?” disse uma voz atrás de mim.
“Bwuh!” rapidamente me virei e vi uma figura vestida de preto ao luar.
“Xellos?”
De fato, parado ali estava o misterioso sacerdote que conheci durante um incidente não relacionado.
“É muito bom vê-la de novo, Srta. Lina. Você também, Srta. Amelia. Contudo deveria ser capaz de derrotar um oponente sozinha...”
“É bom nos ver de novo, hein?” continuei gritando enquanto agarrava Xellos pelo colarinho.
“Com licença! Com licença, Srta. Lina?”
“Vejo que tem muita coragem de mostrar sua cara para nós de novo! Tem sorte que eu seja uma pessoa tão legal e indulgente, porque Zelgadis ficaria puto!”
“Entendo... Que preocupante!” ele disse, parecendo inalterável.
“Siiim!” sussurrei enquanto soltava, com certa má vontade, seu colarinho. Estava claro que agredi-lo não faria mais do que me exaurir. “Então? Por que está aqui dessa vez? É óbvio que não estava apenas passando por...”
“Claro, isso é...”
“Um segredo, certo?” Amelia interrompeu.
Xellos devolveu um sorriso brilhante em resposta, levantando um dedo indicador enquanto concordava.
“Bingo.”
“Ok, tanto faz.” suspirei. Imaginei que insistir no assunto não nos levaria a lugar nenhum. “Segunda pergunta, então. O que pretende fazer aqui?"
“Viajar com vocês por um tempo, Srta. Lina.”
“Você está louco?” desta vez, foi Amelia quem gritou. “Quer... Quer viajar com Lina?”
“Ei, vamos lá...”
“Quero dizer, Mestre Zelgadis e eu nos preparamos para o inevitável, e a condição mental do Mestre Gourry o torna alheio às consequências. Contudo você...”
“Ei! Amelia!”
“Não sei o que o levou a tomar tal decisão, no entanto não acha que ainda é jovem demais para jogar sua vida fora?”
“Uh, com licença! Isso é calúnia!” gritei em protesto.
“Sinceramente, Lina...” ela respondeu com um olhar furioso. “Acha mesmo que leva uma vida tranquila e pacífica?”
“Guh...” ok, ela tem um ponto. “Bom, deixando tudo isso de lado... Xellos, presumo que não há nada que Amelia e eu possamos dizer para fazê-lo mudar de ideia, certo?”
“De fato não!” ele disse num tom distraído.
Percebendo que não havia como convencê-lo do contrário, Amelia soltou um grande suspiro.
“Bem, o verdadeiro problema será Zelgadis...” sussurrei desanimada.
“Sim, Mestre Zelgadis com certeza ficará furioso.” Amelia concordou.
“Ele está tão bravo assim comigo?”
“Sim!” nós duas respondemos em uníssono.
“Oh, que triste. Um rancor é uma coisa terrível de se guardar.”
“Acha que essa conversa fiada vai dissuadi-lo?”
“Você não acha que vai? Suponho que não, hahaha...” Xellos disse com uma risada preguiçosa. “Mas deveria saber que aquele manuscrito continha apenas conhecimento sobre como criar quimeras, não como revertê-las.”
“Pode repetir o que disse a ele, porém não posso prometer que acreditará em sua palavra... Bem, boa sorte, suponho.”
“Não vai me defender?”
“Como vou te defender se não sei do que diabos está falando?”
“Pensei que tínhamos uma espécie de camaradagem, sabe, honra entre ladrões e como mentes que pensam igual.”
“É, não faço ideia do que diabos está falando...” resmunguei.
“Não se preocupe. Agora eu entendo.” Amelia se ofereceu com um aceno resoluto.
“Hã?” engasguei de surpresa.
“Entende?” Xellos também reagiu surpreso.
Ela assentiu outra vez e esclareceu.
“Sim, vejo que tentar conversar sobre isso agora não vai resolver nada.”
“Bem... É verdade.” admiti com um suspiro. “Acho que vamos encerrar a noite e descobrir o resto amanhã.”
“Concordo.”
“O mesmo aqui.”
Nós três assentimos um para o outro e então começamos a caminhada de volta para a pousada.
Contudo... Vamos para Vezendi... As palavras de despedida de Zuma continuaram ressoando na minha cabeça. Não estava muito ansiosa para revê-lo. Considerei a chance de fingir que não o tinha ouvido... No entanto tinha certeza de que Amelia e Xellos tinham, e sem dúvida me responsabilizariam. Se você não o fizer... Alguém morrerá.
O ‘alguém’ em questão provavelmente não era nenhum de nós, e sim um dos habitantes de Vezendi. Em outras palavras, Zuma estava disposto a provar seu ponto com a vida de um espectador inocente.
Certo, acho que já sei para onde estamos indo agora!
Eu desesperadamente fortaleci minha determinação enquanto caminhávamos pela estrada escura da noite.
———
“Bom dia pessoal!”
Esta saudação entusiasmada veio de Gourry, que acordou antes de Zelgadis no dia seguinte. Tudo o que precisa saber sobre Gourry é que é um excelente espadachim com nada além de geleia dentro do crânio.
Estávamos no restaurante no primeiro andar da nossa pousada. Gourry sentou-se à mesa comigo, Amelia e Xellos como se tudo estivesse perfeitamente normal.
“Cara, dormi igual uma pedra ontem à noite. O que tem para o café da manhã, pessoal?” continuou.
“Uh...”
“O que foi, Lina?” Gourry perguntou.
“Vamos lá homem!” respondi, apontando de maneira dramática para Xellos. “Poderia, por favor, usar o que está no lugar do cérebro para notá-lo?”
“O que está no lugar do cérebro?” Xellos sussurrou, mas o ignorei.
“Pelo menos nos diga o obrigatório, ‘Você! O que está fazendo aqui?’. Ou, ‘Como ousa mostrar sua cara de novo!’. Alguma coisa! Qualquer coisa!”
“Er... Por favor, pare, Srta. Lina. Está ferindo meus sentimentos agora...”
“De jeito nenhum! Escute, há coisas neste mundo...”
“Espere um minuto, Lina.” Gourry interrompeu, me parando antes que pudesse continuar. “Antes que possa surtar como sempre, há algo que preciso que me explique.”
“Espere, não me diga...”
Gourry olhou pensativamente para Xellos e perguntou.
“Quem é esse cara?”
Splat! Xellos caiu, com cadeira e tudo.
“Você está... Está falando sério?” Xellos clamou, se endireitando.
Amelia respondeu com uma careta.
“Sempre é, vai se acostumando...”
“Vamos, Gourry! Não me diga que já o esqueceu!” gritei.
“Por favor, Mestre Gourry! Lembra quando lutamos contra aquele culto maligno?” Amelia se juntou a nós.
Gourry pensou por um minuto, então bateu palmas em compreensão.
“Oh! Aquele cara!” ele exclamou com um aceno dramático. “Qual era seu nome mesmo?”
Splat! Xellos caiu uma segunda vez. Pelo visto tem uma propensão para o drama.
“Não se lembra dele nem um pouco?” perguntei.
“Bem, quero dizer...” Gourry hesitou, coçando a cabeça. “Não acho que fomos apresentados antes.”
Hã... O cara tinha razão nisso. Xellos se separou de nós não muito tempo depois que Gourry voltou ao grupo. Os dois só se viram talvez duas vezes, e ambos os encontros foram breves. Nunca houve tempo para apresentações adequadas.
Além do mais, eu tinha contado muito a Xellos sobre Gourry, porém não tinha me incomodado em contar a Gourry sobre Xellos. Apenas presumi que seria perda de tempo, sabe? Pensando bem, acho que teria sido mais notável se Gourry tivesse se lembrado...
“M-Meu nome é Xellos, então. É um prazer.” Xellos fez uma apresentação formal.
“Igualmente. Sou Gourry.” o grandão respondeu de forma casual.
Deus, oh Deus... Já me sentia exausta e nem tínhamos chegado em Zelgadis ainda. Entretanto, assim que esse pensamento passou pela minha cabeça...
“Você! O que pensa que está fazendo aqui?” uma voz berrou atrás de mim.
“Zel!”
Ele estava vestido com calças brancas e um casaco combinando, com um capuz baixo e um cachecol que escondia seu rosto, exceto seus olhos. Zelgadis era um espadachim que havia sido fundido com um golem e um daemon por um feiticeiro há muito tempo. Desde então tem feito o papel do ‘andarilho solitário’ em busca de uma maneira de restaurar sua humanidade, todavia estava viajando conosco nos últimos dias.
E, agora mesmo, estava caminhando em direção a Xellos.
“Ei, Zel! Acalme-se! Pense nisso!” insisti.
“Mestre Zelgadis! Não sejamos precipitados!” Amelia seguiu o exemplo.
Ignorando nossos apelos, Zelgadis continuou a andar para frente com passos lentos e firmes, parando bem na frente do sacerdote.
“Como ousa mostrar seu rosto de novo?” rugiu... Então se virou e sentou-se ao lado de Gourry com toda a indiferença possível. Depois, puxou o cachecol para baixo da boca e perguntou. “Agora, o que tem para o café da manhã?”
“Espere, o quê? Zel...?” sussurrei.
Este respondeu com um movimento de seus lábios.
“Só estou facilitando as coisas pra você.”
Ei...
“Então estava ouvindo minha conversa com Gourry?”
“Mais ou menos.” respondeu num tom provocativo.
Quando esse cara virou comediante? Você continua me surpreendendo, Zelgadis!
“Não está bravo?” Amelia perguntou, hesitante.
Sua resposta foi casual.
“Não é como se pudesse arrancar um pedido de desculpas dele. Só estaria me irritando por nada.”
“Aww!” Amelia choramingou, parecendo desapontada. Ela queria que houvesse uma cena ou quê?
“Er...” Xellos interrompeu. “É só minha imaginação ou estou sendo ignorado?”
“Ignorado, com certeza.” respondi.
Xellos então começou a mexer seu ensopado distraidamente com uma colher, murmurando para si mesmo e fazendo beicinho.
“Além do mais, é justo o que eu queria.” Zelgadis continuou falando.
“O que?” perguntei.
“Isso!” ele disse com um aceno direcional. “Decidi que poderia encontrar pistas mais rápido viajando com você do que vagando por aí sozinho. E pronto, aqui está Xellos.”
Claro...
“E então... Mestre Xellos...” Zel disse, voltando-se para o sacerdote. Uma mudança quase imperceptível coloriu seu tom. “Quero que me dê uma resposta honesta. Aqueles papéis que queimou eram mesmo inúteis para mim?”
Sua postura irradiava hostilidade agora. Nada bom. Se Xellos não for cuidadoso...
“Naturalmente.”
Apesar dos meus medos, Xellos disse exatamente a coisa certa.
“Pense desta forma: mesmo uma receita para o coquetel de suco mais delicioso não lhe dirá como extrair apenas o suco de laranja do produto final.”
Zel encarou Xellos nos olhos por um tempo. Então, por fim, disse com um pequeno sorriso.
“Sim, faz sentido. Vou aceitar sua palavra... Por enquanto. Então, o que está fazendo aqui?”
“Isso é... Um segredo.” Xellos proclamou com sua pose usual e dedo estendido.
“Disse que quer viajar conosco. Ou com Lina, pra ser mais específico.” Amelia acrescentou, de boa vontade.
“O quê?” Zel e Gourry gritaram em perfeita sincronia.
“Ei, ei... Você está louco?”
“É... Não posso dizer que recomendo.”
“Concordo. Não sou obrigado a avisar, mas vou avisar ainda assim: Não faça isso.”
“Ele tem razão. Por que jogar sua vida fora?”
Sério... O que há com vocês?
———
“Só tem um problema...” tomei a palavra depois que todos nós tomamos café da manhã e todos aceitaram que Xellos ficaria por aqui. Não importa o quanto tentassem dissuadi-lo e desencorajá-lo, o sacerdote respondeu com calma insistência que viria conosco, mesmo que não dissesse o porquê. No final, Gourry e Zel desistiram.
“U qui é?” Gourry perguntou enquanto mastigava um sanduíche de bacon e vegetais.
Hesitei um momento antes de responder.
“Bom... Na verdade, escapei ontem à noite...”
“Mais intimidação de bandidos?” ele perguntou exasperado, e assenti em humilde concordância.
“Você gosta tanto assim de gastar tempo com esses lixos?” Zel perguntou.
“Sim. Muito.” respondi sem hesitação, ao que Zelgadis não teve resposta. “De qualquer forma, Amelia acabou indo junto. E no caminho de volta, depois de acabar com os bandidos locais... Recebemos uma visitinha.”
“De Xellos, você quer dizer?” Gourry perguntou.
“Xellos também, só que...” esperei um longo minuto. “Estou me referindo a Zuma.”
“O quêêê?” Gourry e Zel exclamaram ao mesmo tempo.
Ei, vejam só! Gourry conseguiu se lembrar de um nome pela primeira vez! E pelo jeito Zel também tinha ouvido falar do assassino.
“Zuma... Aquele Zuma?” Gourry perguntou.
“O único!” respondi.
“Mas... E os seus braços?”
“Todos presentes e contabilizados.”
“Entendo... Ele tem os dois braços...” Gourry falou para si mesmo, bagunçando seu próprio cabelo.
Ignorando-o, continuei.
“É, então, ele fugiu da cena quando Xellos chegou... Contudo disse algo antes de sair: ‘Venha para Vezendi. Se não o fizer... Alguém morrerá’.”
“Temos que ir!” foi Amelia, vai entender porquê, que se levantou, com os punhos cerrados. “Se não formos, Zuma vai assassinar um inocente por nossa causa!”
“E-Ei, Amelia! Fale baixo, tá? As pessoas estão olhando!”
Não tenho certeza se ela me ouviu ou não, no entanto continuou da mesma forma.
“Não podemos tolerar esse terrorismo! Somos os únicos no mundo que podemos detê-lo!”
“Já sei disso, Amelia! Estamos indo, então se acalme, vamos! Gourry! Zel! Xellos! Não fiquem aí sentados, coloquem-na de volta no assento!”
E assim nosso grupo definiu um curso para Vezendi.
———
Vezendi era uma cidade considerável no lado oeste de Kalmaart. Ela ficava no cruzamento de estradas que se estendiam de um lado para Ralteague e do outro para Dils. Como tal, prosperou por eras como um ponto de comércio.
“Não estou me sentido à vontade com isso...” Zelgadis gemeu no momento em que a cidade apareceu.
“Qual é o problema?” perguntei sem parar.
Nesse momento estávamos na via principal que levava à cidade, e já podíamos ver os edifícios de Vezendi do outro lado da colina. Tínhamos chegado a um trecho particularmente bem cuidado da estrada, com pessoas e carruagens indo em ambas as direções ao nosso redor. Zel, como esperado, tinha o rosto encoberto sob o capuz e o cachecol.
“Já te disse antes...” ele falou. “Fiz algumas coisas horríveis na minha vida. Não é boa ideia ficar passeando em uma cidade grande.”
Ah, claro...
“Vai ficar tudo bem!” Amelia declarou (sem fundamento, como sempre). “Contanto que carregue justiça em seu coração, o mundo irá entender!”
“Bobagem!” Zel negou sem pestanejar, e Amelia se recolheu num silêncio melancólico.
“Ei, não seja tão sensível.” Gourry entrou na conversa. “Só mantenha seu rosto coberto como está fazendo agora, e ninguém vai notar. Se eu passasse por você em uma rua movimentada da cidade assim, nem piscaria.”
Você é o único aqui que não tem moral para dizê-lo... Ninguém aqui entende o básico de persuasão? Ou vocabulário, para falar a verdade? Sem saber como responder aos nossos companheiros idiotas (te entendo, cara), Zelgadis ficou em silêncio, sua testa franzida.
“Bem, sempre pode ficar fora da cidade.” Xellos ofereceu sem simpatia.
“Sério, cara?”
“Entretanto se acha que ficaria melhor com a Srta. Lina e os outros, tenho certeza de que é seguro entrar. Não sei que tipo de infâmia seu nome carrega, mas não tenho dúvidas de que há pousadas aqui que fornecerão hospedagem em troca de uma compensação adequada. Porém, é claro, a escolha é sua.”
Zel bufou levemente em resposta... Sorrindo, imaginei.
“Tem razão!” concordou. “Não tenho porque me segurar agora. Tudo bem, vou entrar.”
“Fico feliz que tenha decidido vir!” Amelia declarou, balançando a cabeça em satisfação.
Não graças a você...
———
Achei que podia ouvir murmúrios entre as multidões indo e vindo pela estrada. Estávamos quase dentro da Cidade de Vezendi agora. Havia uma garota vendendo flores, um cavalheiro administrando uma barraca, um jovem passando... E todos pareciam estar nos encarando.
“Somos o centro das atenções ou sou só eu?” Amelia murmurou.
“Diria que você está certa.” Zelgadis sussurrou com um aceno, a cautela se evidenciando em sua voz.
Gourry e Xellos, por sua vez, avançaram despreocupados. Certo, talvez fosse mais preciso dizer que Gourry só não estava prestando atenção.
De qualquer forma, andamos um pouco mais até...
“Ei.” um garoto de doze ou treze anos, ainda jovem o suficiente para que sua voz não tivesse mudado, me chamou. Parecia um típico pestinha, bem na idade que faz você querer dar uns tapas sem nenhuma razão específica.
“O que foi?” parei e perguntei de volta.
O garoto me encarou por um tempo, então perguntou secamente.
“Você é Lina Inverse?”
Sua pergunta foi seguida por outra onda de murmúrios... As pessoas estavam cochichando ao nosso redor.
Que diabos? Já tinha tido meu nome em um cartaz de procurado antes (só um idiota guardando rancor, se quer saber), e isso estava começando a me dar déjà vu. Seria possível...
“Sou!” respondi, mantendo-me alerta com nossos arredores.
Com isso, uma clara comoção irrompeu na multidão. O que diabos está havendo afinal? Todo mundo ficou boquiaberto!
“Eu sabia! Não tinha certeza já que tinha uma pessoa a mais no seu grupo...” o garoto continuou tagarelando, apesar do meu crescente desconforto.
Espere um segundo... Se alguém colocasse cartazes de procurados para nós de novo, não tem como uma criança vir até mim na rua desse jeito.
Enquanto tentava entender a situação, os curiosos continuaram a se aglomerar ao nosso redor.
“Então, moça, queria perguntar se...”
“Espera aí, menino.” antes mesmo que o garoto terminasse, um homem de aparência vulgar saiu da multidão. Não parecia muito durão, felizmente. “Fui eu quem a viu primeiro.”
“Ridículo!” gritou uma senhora em seguida. Ela era gordinha e vestia roupas rosa chamativas que não combinavam nem um pouco com sua aparência. “Pois a vi muito antes de você!”
E depois disso...
“Ei, eu a vi antes!”
“Não, eu vi!”
“Eu vi!”
Mais e mais vozes se juntaram ao clamor.
“Espere! Ei! O que está acontecendo aqui?” me peguei perguntando, contudo ninguém estava ouvindo. “Alô? Alguém?”
“Fui eu!
“Não, eu fui o primeiro!”
Grr...
“Vi quando ainda estavam lá atrás!”
“Eu os vi da entrada da cidade...”
“Explosão Rondo!”
Vruumbldmbldrrr!
Meu amigo, esse feitiço silenciou a multidão, nada mal mesmo! Podia ouvir um alfinete cair agora. Explosão Rondo é ótimo para calar as pessoas, a propósito... É chamativo, embora não muito poderoso.
Bem, ok, então talvez tenha deixado o cara vulgar em uma pilha carbonizada e se contorcendo... Contudo estou apostando que ninguém notaria se eu não apontasse. Provavelmente.
“E daí?” olhei para a multidão de pessoas, mãos nos quadris. Eles recuaram em massa. “O que vocês querem com a gente? Por que toda essa briga?”
...
“Bom... Veja...” disse uma voz tímida por fim. Era o garoto que se aproximou de mim primeiro. Seus olhos estavam cheios de medo agora, e fez questão de manter distância dessa vez. “A-A verdade é... Mestre Laddock disse que recompensaria quem trouxesse Lina Inverse...”
Dizendo isso, ele tirou um pedaço de papel do bolso e nervosamente me entregou. E, assim como disse, prometia uma recompensa monetária para quem entregasse Lina Inverse e seus companheiros no endereço especificado. A quantia em si não era nada impressionante, no entanto era uma quantia tentadora para um camponês comum.
Abaixo da oferta, havia algumas frases descrevendo a mim, Gourry, Amelia e Zel. Bem meia boca, pra ser sincera. Coisas do tipo ‘termos mais amplos possíveis’. A única coisa que dizia sobre Zelgadis, por exemplo, era que era um ‘homem alto vestido de branco’. Também não havia menção, como já imaginava, a Xellos, que tinha se juntado ao nosso grupo há apenas dois dias.
Agora, quando comecei a ler a minha descrição...
“Vamos lá!” amassei o papel em uma bola enquanto dava a ordem, minha voz firme. “Mostre o caminho, garoto. Leve-me até esse tal de Laddock.”
O garoto fez um aceno firme em resposta, o medo ainda brilhando em seus olhos.
“Vamos, rapazes, vamos visitá-lo!” falei, me virando para o grupo... E fiquei muda no instante seguinte.
Meus supostos companheiros de equipe estavam encolhidos atrás de uma árvore distante, apenas se inclinando para dar uma olhada ocasionalmente. Devem ter fugido para se protegerem quando liberei meu feitiço.
Não tentem fingir que não estamos juntos, malditos!
———
“Este é o lugar.” o garoto anunciou quando chegamos a uma mansão.
Era grande o suficiente para que até Gourry não conseguisse evitar um som de surpresa. Além disso, não tinha nem um pingo daquele clima de ‘nouveau riche’¹ que costuma ver em lugares como este. Pelo visto o cara tinha bom gosto para usar seu dinheiro. Imagino se tinha muitos amigos que falavam mal dele pelas costas também...
No caminho para cá, o garoto nos explicou que o dono da mansão, Laddock Lanzard, era um dos principais comerciantes da cidade. A história dizia que, cerca de dez anos atrás, seu pai era conhecido como o maior comerciante da cidade. Suponho que sua situação seja a típica ‘segunda geração não consegue dar conta do recado’.
“Vou me despedir aqui.” disse Zelgadis assim que nos aproximamos do portão.
“Espere, Zel...”
“Pense sobre a situação...” ele disse, me interrompendo. “Se entrar e eles nos oferecerem comida e bebida, terei que tirar meu cachecol. Gostaria de evitar mostrar meu rosto o máximo possível.”
Certo, faz sentido...
“Tudo bem. Então vá encontrar uma pousada em algum lugar. Depois que terminarmos lá dentro, sairemos e nos encontraremos aqui de novo. Que tal?”
“Pode ser.” ele concordou, então se virou para sair.
“Muito bem! Avante!” anunciei.
“Certo!” o garoto assentiu em resposta e gritou para o porteiro. “Eu trouxe a senhora Lina para ver o Sr. Laddock!”
Nosso grupo foi então levado para dentro. O garoto recebeu sua recompensa do porteiro e saiu correndo parecendo muito satisfeito.
———
Uma vez lá dentro, fomos escoltados para um lugar um pouco parecido com uma sala de estar, onde ficamos esperando por um tempo... Na verdade um longo tempo, sem nem mesmo uma oferta de chá.
Por fim, a porta se abriu e um velho entrou.
“O Mestre Laddock virá em breve.” ele declarou antes que eu pudesse reclamar do nosso tratamento, então tomou seu lugar em um canto da sala e olhou para o nosso grupo cuidadosamente. Talvez fosse o mordomo do cara... Não tenho certeza se chamaria seu cabelo de prateado ou branco, no entanto o velho cavalheiro o usava bem penteado para trás.
“Se não quer falar conosco, podemos apenas ir embora...”
“Apresentando o Mestre Laddock.” o mordomo anunciou enquanto abria a porta outra vez, me ignorando por completo.
“Então você é Lina Inverse, não é?”
O homem que entrou com um ar combativo era o dono da casa, Laddock Lanzard. Parecia ter pouco mais de quarenta anos, seu cabelo preto com uma única mecha branca. Ele era bonito, magro para sua idade e segurava um pedaço de papel na mão direita como se sua vida dependesse daquilo. Um jovem entrou logo depois. Parecia ter uns vinte anos, mais ou menos, era atraente, tinha cabelo preto e parecia muito com o homem de meia-idade que entrou primeiro... O filho do cara, imagino.
O homem mais velho andou direto até nós e... Wham! Bateu o papel que estava segurando na mesa.
“Eu sou Laddock Lanzard!” ele falou com um tom que beirava o ódio enquanto se sentava em uma cadeira vazia. Então deslizou o papel para mais perto de mim e exigiu. “Agora explique isso!”
“Do que está falando?”
Irritada, peguei a folha e, no instante seguinte, fiquei em silêncio enquanto corria os olhos pelas palavras: Laddock Lanzard. Eu vou te matar. Se não quiser morrer, contrate Lina Inverse. — Zuma. No final havia uma descrição do nosso grupo, exceto Xellos.
“Até eu ouvi falar de Zuma, o assassino.” disse Laddock. “A julgar por esta nota, está me usando como isca para tentar atrai-la! Espero que tenha uma excelente explicação!”
Ugh. Pense num idiota com tendência de dominador...
“Já lutei com Zuma antes.” expliquei, jogando o papel de volta na mesa. “Ele foi contratado para me matar, só que não terminou o serviço. Acho que ainda está atrás de mim.”
“Acha?” Laddock gritou, batendo na mesa. “Isso é ultrajante! Sua imprudência colocou minha vida em perigo, então cabe a você impedi-lo!” declarou o homem como se fosse um fato indiscutível.
Seu velho babaca! Tudo bem, se essa é a atitude que vai tomar...
Levantei da minha cadeira e disse com a voz mais fria que pude.
“Não tenho nenhuma obrigação de ajudá-lo. Vamos sair daqui, pessoal.”
“O quê?” Laddock grasnou, seu rosto roxo de raiva.
“Espere um minuto, Lina!”
“Isso é um pouco demais...”
“Pense um pouquinho!” interrompi os protestos de Gourry e Amelia e apontei de volta para Laddock. “Por que um assassino lhe enviaria essa ameaça?”
“Bem... É óbvio, porque sabia que estava ao meu alcance encontrá-la!”
“Tem certeza?”
“O que está insinuando?”
“É verdade que você é um dos homens mais ricos da cidade e, claro, tem os recursos para me rastrear. Até admito que a recompensa que ofereceu é, em última análise, o que nos trouxe aqui! Todavia se tudo o que Zuma quer é eu... Por que não enviou a ameaça ao homem mais rico da cidade?”
Laddock vociferou por um momento.
“Como vou saber?” ele disse com nítido desdenho.
“Aqui está minha teoria: Zuma está atrás de você também.”
“Hã?” Laddock deixou essa estúpida nota escapar dos lábios.
“Zuma é um pé no saco, entretanto é um profissional. Ta-Tanto em habilidade quanto em atitude. Não é do tipo que sai por aí fazendo pessoas inocentes de reféns. Em outras palavras, outra pessoa o contratou para matá-lo, e agora decidiu usar a oportunidade para me atrair também. E quando estivermos juntos, pretende matar dois coelhos com uma cajadada só.”
“Espere um minuto!” Laddock gritou quando entendeu minha lógica. “Quer dizer... Mesmo com você me protegendo, ainda vão me matar?”
“Não!” respondi, balançando a cabeça. “Se eu estiver te protegendo, ele virá atrás de mim primeiro. Se te matar primeiro, veja, estarei livre da minha obrigação para fugir. Em outras palavras, não vai tocá-lo até que eu esteja morta. Isto é... Assumindo que eu concorde em protegê-lo em primeiro lugar.”
“Você tem que fazer isso!”
“Encare a realidade, cara. Sei que acha que é o homem mais importante do mundo, mas colocar minha vida em risco para salvar um idiota de classe mundial está fora do reino das coisas que consideraria fazer pela bondade do meu coração. Entendeu?” minhas palavras o pressionaram.
Seu silêncio durou por um tempo, e então, por fim...
“Tudo bem...” ele sussurrou com raiva. “Vou contratá-la oficialmente para ser minha guarda-costas, com pagamento. Está aceitável?”
“Agora sim estamos conversando.” respondi.
Claro, teria aceitado o trabalho de boa vontade se o cara não tivesse sido um babaca, e se o panfleto que tivesse emitido pela cidade não tivesse se referido a mim como ‘peito plano’. Quero dizer, talvez estivesse só repetindo o que foi escrito na carta de Zuma, porém ainda assim é imperdoável!
Maldito seja, Zuma! Vou fazê-lo pagar por isso!
Olhei para o mordomo que seguia em silêncio atrás de Laddock, depois para o jovem que não dissera uma palavra o tempo todo. Este último estava apenas encostado contra a parede observando nossa conversa com amargura.
“A propósito, quem são eles?” perguntei.
“Meu mordomo Raltark e meu filho Abel. Por sinal... Um dos membros do seu grupo mudou, não?”
“Ah. Sim, coisas aconteceram. Este é Xellos, apenas seu simpático e misterioso sacerdote que pode se encontrar em qualquer vizinhança.” eu disse, apresentando o homem. Xellos fez um pequeno e alegre aceno de cabeça na deixa. “Você provavelmente ficará bem, desde que não o provoque.”
“Não é uma introdução muito reconfortante...” Laddock fez uma careta. “Porém, ah, bem. A partir de hoje, vocês serão meus seguranças residentes.”
“É, acho que estamos resolvidos...”
———
Quando consegui colocar Zel em dia, o céu do lado de fora da janela estava escurecendo.
Estávamos nas favelas de Vezendi, uma parte bastante decadente da cidade onde Zelgadis conseguiu um quarto para si. As paredes, o teto e as lâmpadas estavam sujos, e o piso rangia a cada passo. Mesmo para uma única ocupação, o lugar era apertado. Deu trabalho para me espremer, Gourry, Zel e Amelia todos juntos.
Este era aparentemente o tipo de lugar que Xellos havia mencionado que ‘te hospedaria em troca de uma compensação adequada’, exceto que ‘compensação adequada’ significava ‘um roubo descarado’. Eles estavam cobrando de Zel quase o dobro do que uma pousada normal pediria por um quarto duas vezes melhor.
De toda forma, chega de acomodações.
Depois que terminamos de negociar nosso preço com Laddock, todos nós... Sem Xellos, saímos da mansão para nos reportar a Zel. Nós o encontramos já nos esperando do lado de fora. Nós nos oferecemos para deixá-lo entrar no trabalho de guarda-costas, contudo este disse que ficar na casa de Laddock significaria apenas expor seu rosto em algum momento. Então, voltamos para o seu quarto para conversar mais.
“Tem certeza sobre isso?” Zel murmurou enquanto terminava minha história.
“Certeza sobre o quê?”
“Esse tal de Laddock... É seu cliente agora, certo? Pode se dar ao luxo de deixá-lo sozinho enquanto me atualiza sobre a situação?”
“Oh, não se preocupe.” acenei minha mão com desdém. “Tenho certeza de que Zuma virá me buscar primeiro, e deixei Xellos na casa do cara para brincar de cão de guarda, só por precaução. Além do mais, precisava saber onde você tinha se hospedado, caso precise contatá-lo mais tarde.
“Faz sentido.” Zel sussurrou pensativamente.
“Dito isto, acho que está na hora de voltarmos.” anunciei, levantando-me da cama dura como pedra em que estava sentada. “Laddock vai enlouquecer se ficarmos muito tempo fora.”
“Tem razão.” disse Gourry, levantando-se da parede em que estava encostado. “E o mais importante... É quase hora do jantar.”
“Não criaria muitas esperanças amigo.” falei, rindo enquanto abria a porta. “Não acho que ele gosta muito de nós. É bem provável que vá nos colocar na ponta de uma mesa de banquete suntuosamente forrada e nos servir sete pratos de mingau.”
Então saí para o corredor e...
“O que houve, Lina?” Amelia perguntou atrás de mim.
“Não sei...” respondi vagamente.
Fui atingida por uma sensação estranha por um segundo... Teria sido apenas minha imaginação? Gourry e Amelia me seguiram para o corredor. Zel seguiu o exemplo, puxando seu cachecol para cima e seu capuz para baixo.
“Vai nos acompanhar até a saída?” perguntei.
“Vou descer para jantar.” Zel respondeu.
Claro. Pousadas como essa sempre serviam comida e bebida no primeiro andar. No entanto me sinto mal por Zel. Não conseguia imaginar que a comida fosse boa aqui...
“Que pena. Eu me sentiria muito mais confiante tendo-o por perto, Zel...” comentei enquanto caminhava pelo corredor escuro e vazio. “Ei, já sei! Você tem uma flauta ou algo assim?”
“Uma flauta?” Zelgadis perguntou desconfiado.
“É. Algo que pudesse soprar para chamá-lo. Sabe, como um recurso para vir correndo nos socorrer em uma emergência. Esse tipo de coisa.”
“Espere um minuto. Está achando que sou algum tipo de animal à sua disposição?”
“É, mais ou menos.”
“Hahh...” Zelgadis soltou um suspiro profundo e pesado, então colocou a mão no ombro de Gourry. “Como você aguenta? Como você viaja com ela?”
“Bem, sou um homem paciente.”
Isso não foi bajulação, Gourry!
A brincadeira continuou enquanto descíamos as escadas... Onde todos nós congelamos em uníssono. O primeiro andar estava mal iluminado e não parecia nada limpo. Havia mesas simples de madeira enfileiradas pelo lugar.
Não havia nada tão estranho nisso... Mas por que estava totalmente deserto?
“O que está acontecendo aqui?” Gourry sussurrou.
“Isso é obra da nossa barreira.” respondeu uma voz feminina desconhecida.
Do outro lado do cômodo, no meio das sombras, vi algo branco pairando no ar, por volta da altura dos olhos. Cabelo preto longo e desgrenhado enrolado em volta dele como a escuridão encarnada. A mulher(?) era um pouco corcunda e vestia uma túnica preta. Quando ela deu um passo à frente, pude ver que seu rosto tinha a palidez mortal de uma vítima de afogamento. Além do mais, não tinha olhos nem nariz, apenas uma boca vermelha esculpida em um sorriso.
“Um mazoku?” Amelia guinchou.
“Pode me chamar de Guduza...” respondeu o ser com a voz de uma velha. “E o que está no topo das escadas é Duguld.”
Eu me vi olhando para a escada que tínhamos acabado de descer. No topo estava uma figura escura com uma capa preta de um design curioso. Também usava um chapéu preto de abas em uma estranha paródia de estilo. Sua cabeça parecia um ovo preto e duro, sem rosto e sem cabelo.
Ele pareceu notar meu olhar e tirou o chapéu com o menor movimento de sua mão direita. Deixando de lado o senso de moda duvidoso, tinha sérias dúvidas se esse cara era alguém que pudéssemos encarar de forma despreocupada.
“E? O que vocês, mazokus, querem conosco?” perguntei, voltando-me para Guduza.
“Eles estão me ajudando.” disse uma terceira voz da porta da frente da pousada, porém essa era familiar.
Não pode ser...
A porta se abriu com um rangido longo e gaguejante.
“São velhos amigos meus.”
Ele ficou ali em silêncio, silhuetado pelo céu vermelho do crepúsculo em suas costas, sua capa tremulando ao vento. Sua aparência havia mudado desde a última vez que o vimos, contudo sob o turbante que coroava sua cabeça estava a mesma máscara branca diabólica.
Seigram!
Notas:
1. Novo-rico é um termo derrogatório usado para descrever pessoas cuja riqueza tenha sido obtida na sua geração, ao invés de pôr forma sequencial, sobretudo hereditária.
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