Capítulo 03: Pássaros na Capela
— Pelo Abençoado Aedon...
Paf!
— E Elysia, sua mãe...
Paf! Paf!
— E todos os santos que zelam por...
Paf!
— Zelam... Ouch!
Um silvo de frustração.
— Malditas aranhas!
As pancadas recomeçaram, maldições e invocações colocadas entre elas. Raquel estava limpando teias de aranha do teto do refeitório.
Duas garotas adoeceram e outra torceu o tornozelo. Esse era o tipo de dia que proporcionava um brilho perigoso no olho ágata de Raquel, o Dragão. Já era ruim o suficiente ter Sara e Jael na cama devido a mestruação. Raquel era severa, porém sabia que cada dia de trabalho de uma garota doente poderia significar perde-la três dias a longo prazo. Sim, já era ruim o suficiente que tivesse que compensar a ausência deixada por elas. Como se já não fizesse o trabalho de duas pessoas! Agora o senescal anunciou que o rei jantaria no Grande Salão esta noite, e Elias, o Príncipe Regente, havia chegado de Meremund, e havia ainda mais trabalho a fazer!
E Simon, enviado uma hora atrás para pegar alguns feixes de juncos, ainda não havia retornado.
Então, aqui estava com seu velho corpo cansado empoleirado em um banquinho frágil, tentando tirar as teias de aranha dos cantos altos do teto com uma vassoura.
Aquele garoto! Aquele, aquele...
— Santo Aedon, me de força...
Paf! Paf! Paf!
Aquele maldito garoto!
***
Não era suficiente, Raquel refletiu mais tarde enquanto descia com o rosto vermelho e suado do banquinho, que o garoto fosse preguiçoso e difícil. Ela havia feito o melhor ao longo dos anos para evitar que lhe caísse alguma desgraça; ele certamente era uma pessoa melhor por isso, ela sabia. Não, pela Boa Mãe de Deus, o pior era que ninguém mais parecia se importar! Simon era alto como um homem e estava em uma idade em que deveria estar fazendo quase o trabalho de um homem, mas não! Este se escondia, desaparecia e se deitava. Os trabalhadores da cozinha riam as suas custas. As camareiras o mimavam e lhe davam o jantar escondido quando ela, Raquel, o banira da mesa. E Morgenes! Misericordiosa Elysia, o homem o encorajou!
E agora a havia perguntado se o garoto poderia vir trabalhar para ele todos os dias, varrendo, ajudando a manter as coisas limpas... Hah! E auxiliando o velho com parte do seu trabalho. Como se não soubesse. Os dois ficavam sentados, o velho bebendo cerveja e contando ao garoto Deus sabia que tipo de histórias perniciosas.
Ainda assim, não conseguia deixar de considerar sua oferta. Era a primeira vez que alguém pedia pelo garoto, ou o queria... O moleque parecia tão perdido o tempo todo! E Morgenes de fato demonstrava pensar que poderia fazê-lo bem...
O doutor frequentemente irritava Raquel com sua conversa extravagante e seus discursos floridos... A Senhora das Camareiras tinha certeza de que eram zombarias disfarçadas, no entanto a preocupação pelo garoto parecia sincera. Sempre teve em vista o que era melhor para Simon... Uma sugestão aqui, uma ideia ali, uma intercessão silenciosa uma vez quando o Mestre dos Ajudantes o espancou e o baniu das cozinhas. Morgenes sempre ficou de olho no garoto.
Raquel olhou para as largas vigas do teto, seu olhar viajando para as sombras, enquanto soprava uma mecha de cabelo úmido do rosto.
Relembrando aquela noite chuvosa, pensou... Quando foi, quase quinze anos atrás? Sentia-se tão velha, pensando dessa forma... Parecia apenas um momento...
***
A chuva havia caído o dia e a noite inteiros. Raquel atravessou cautelosamente o pátio lamacento, segurando sua capa sobre a cabeça com uma mão, a lanterna na outra. De repente pisou em um largo sulco de carroça e sentiu a água espirrar em suas panturrilhas. Seu pé se libertou com um som de sucção, no entanto sem um sapato. Xingou com amargura e seguiu em frente, correndo por aí em uma noite dessas com um pé descalço, mas não havia tempo para ficar revirando em poças.
Uma luz estava acesa no escritório de Morgenes, todavia pareceu levar uma eternidade para os passos se aproximarem. Quando o doutor abriu a porta, ela viu que ele estava na cama: usava uma longa camisola que precisava de conserto e esfregou os olhos grogue sob o brilho da lanterna. Os cobertores emaranhados de sua cama, cercados por uma paliçada inclinada de livros no canto mais distante do quarto, fizeram Raquel pensar em algum ninho de animal imundo.
— Doutor, venha rápido! — ela disse. — Você deve se apressar, agora!
Morgenes olhou fixamente, então deu um passo para trás.
— Entre, Raquel. Não tenho ideia de que palpitações noturnas lhe trouxeram, mas já que está aqui...
— Não, não, seu homem tolo, é Susana! A hora chegou, porém ela está muito fraca. Estou com medo do que pode acontecer.
— Quem? O quê? Não se preocupe, só um momento, deixe-me pegar minhas coisas. Que noite terrível! Vá indo, eu te alcanço.
— Doutor Morgenes eu te trouxe a lanterna.
Tarde demais. A porta foi fechada, e Raquel ficou sozinha no degrau com a chuva escorrendo do seu nariz longo. Xingando, voltou para os aposentos dos criados.
Não demorou muito para que Morgenes estivesse subindo as escadas batendo os pés, sacudindo a água da capa. Na porta, absorveu a cena com um único olhar: uma mulher na cama com o rosto virado para o outro lado, grávida e gemendo. Cabelos escuros cobriam seu rosto, e seu punho suado apertava a mão de outra jovem que estava ajoelhada ao seu lado. Ao pé da cama, Raquel estava com uma mulher mais velha.
A velha deu um passo em direção a Morgenes enquanto este tirava suas roupas externas volumosas.
— Olá, Elispeth. — saudou com calma. — Como está?
— Não está bom, senhor. Você sabe que eu poderia ter lidado com isso de outra forma. Ela está tentando há horas, e está sangrando. Seu coração está muito fraco.
Enquanto Elispeth falava, Raquel se aproximou.
— Hmmm. — Morgenes se abaixou e remexeu na bolsa que trouxera. — Dê um pouco disso a ela, por favor. — indicou, entregando a Raquel um frasco tampado.
— Só um gole, mas tenha certeza de que o tome.
O doutor voltou a vasculhar sua bolsa enquanto Raquel gentilmente abria o maxilar fechado e trêmulo da mulher na cama e despejava um pouco do líquido em sua boca. De repente, o odor de suor e sangue que impregnava o quarto foi complementado por um aroma pungente e picante.
— Doutor... — Elispeth falou quando Raquel retornou. — Não acho que possamos salvar a mãe e a criança... Se é que podemos salvar um.
— Você deve salvar a vida da criança! — Raquel interrompeu. — Esse é o dever dos tementes a Deus. O sacerdote diz isso. Salve a criança.
Morgenes se virou para a mulher com um olhar de aborrecimento.
— Minha boa mulher, temerei a Deus do meu próprio jeito, se você não se importar. Se eu a salvar... E não finjo saber que posso, então ela sempre poderá ter outro filho.
— Não, não poderá! — Raquel disse com veemência. — Seu marido está morto.
“Morgenes, de todas as pessoas, deveria saber disso” pensou. O marido pescador de Susana costumava visitar o doutor antes de se afogar, embora Raquel não conseguisse imaginar o que eles teriam para conversar.
— Bem... — Morgenes disse distraidamente. — Sempre pode encontrar outro, o quê? O marido dela? — um olhar assustado surgiu em seu rosto, e correu para a cabeceira da cama. Enfim pareceu perceber quem estava ali, sangrando sua vida no lençol áspero.
— Susana? — perguntou baixinho, e virou o rosto temeroso e tenso da mulher em sua direção. Seus olhos se arregalaram por um momento quando ela o viu, então outra onda de agonia os fechou novamente. — O que aconteceu aqui? — Morgenes suspirou. Susana só conseguiu gemer, e o velho olhou para Raquel e Elispeth com raiva no rosto. — Por que ninguém me informou que essa pobre garota estava pronta para dar à luz seu filho?
— Não deveria nascer por mais dois meses. — Elispeth disse em um tom amável. — Você sabe disso. Estamos tão surpresas quanto.
— E por que deveria se importar que a viúva de um pescador iria ter um bebê? — Raquel disse. Ela também podia estar com raiva. — E por que vocês estão perdendo tempo discutindo agora?
Morgenes olhou para a mulher por um momento, então piscou duas vezes.
— Tem toda razão. — concordou, e se virou para a cama. — Eu salvarei a criança, Susana. — disse à mulher trêmula. Esta assentiu com a cabeça uma vez, então começou a chorar.
***
Era um lamento fino e agudo, mas era o choro de um bebê vivo. Morgenes entregou a pequena criatura manchada de vermelho para Elispeth.
— Um menino. — explicou o doutor, e voltou sua atenção para a mãe, que agora estava quieta e respirando mais lentamente, porém sua pele era branca como mármore Harcha.
— Eu o salvei, Susana. Tive de o fazer. — sussurrou. Os cantos da boca da mulher se contraíram, no que poderia ter sido um sorriso.
— Eu... Sei... — respondeu, a voz saindo muito suavemente de sua garganta áspera. — Se ao menos... Meu Eahlferend... Não tivesse...
O esforço foi demais, e Susana parou. Elispeth se abaixou para mostrar a criança, enrolada em cobertores, ainda unida ao cordão umbilical ensanguentado.
— É tão pequeno. — a velha sorriu. — Contudo é porque chegou muito cedo. Qual será o nome?
— Chame... Ele de... Seoman... — Susana ofegou. — Significa... ‘Espera’... — ela se virou para Morgenes e pareceu querer dizer mais alguma coisa. O doutor se inclinou mais perto, seu cabelo branco roçando sua bochecha pálida como a neve, no entanto ela não conseguiu fazer as palavras saírem. Um momento depois, engasgou uma vez, e seus olhos escuros reviraram até que o branco apareceu. A garota que segurava sua mão começou a soluçar.
Raquel também sentiu lágrimas brotarem em seus olhos, se virou e fingiu começar a limpar. Elispeth cortou o último laço do bebê com sua mãe morta.
O movimento fez com que a mão direita de Susana, que estava emaranhada com firmeza em seu próprio cabelo, se soltasse e caísse frouxa no chão. Ao bater, algo brilhante voou de sua palma e rolou pelas tábuas ásperas para parar perto do pé do doutor. Pelo canto do olho, Raquel viu Morgenes se abaixar e pegar o objeto. Era pequeno e desapareceu em seguida na palma de sua mão e de lá para sua bolsa.
Raquel ficou indignada, entretanto ninguém mais pareceu ter notado. Ela se virou para confrontá-lo, lágrimas ainda em seus olhos, mas o olhar em seu rosto, a terrível tristeza, a acalmou antes que sussurrasse uma palavra.
— Ele será Seoman. — disse o doutor, seus olhos estranhos e sombrios agora enquanto se aproximava, sua voz rouca. — Você deve cuidá-lo, Raquel. Os seus pais estão mortos, como já sabe.
***
Uma rápida inspiração. Raquel se conteve pouco antes de escorregar do banco. Cochilando em plena luz do dia, estava com vergonha de si mesma! Por outro lado, só serviu para mostrar o quão criminosamente havia se esforçado hoje, tudo em um esforço para compensar as três garotas... E por Simon.
O que precisava era de um pouco de ar fresco. Em cima de um banco, sacudindo a vassoura como uma louca, não é de se admirar que um corpo começasse enfraquecer. Sairia apenas por um momento. O senhor sabia que tinha todo o direito a um pouco de ar fresco. Aquele Simon, um garoto tão perverso.
Elas o criaram, é claro, ela e as camareiras. Susana não tinha parentes por perto, e ninguém parecia saber muito sobre seu marido afogado, Eahlferend, então ficaram com o menino. Raquel fingiu fazer um estardalhaço sobre isso, porém não o deixaria ir, assim como não trairia seu rei ou deixaria camas desarrumadas. Foi Raquel quem lhe deu o nome de Simon. Todos a serviço da casa do rei John adotaram um nome da ilha natal do rei, Warinsten. Simon era o mais próximo de Seoman, e então ficou Simon.
Raquel desceu devagar as escadas até o andar térreo, sentindo-se um pouco trêmula nas pernas. Desejou ter trazido uma capa, pois o ar sem dúvida estaria frio. A porta rangeu ao abrir lentamente, era uma porta tão pesada, talvez precisasse de dobradiças lubrificadas... E ela saiu para o pátio da entrada. O sol da manhã estava nascendo sobre a ameia, espreitando como uma criança.
Tal lugar a agradava, logo abaixo do vão de pedra que conectava o edifício do refeitório com o prédio principal da capela. O pequeno pátio na sombra do vão era cheio de pinheiros e urzes, todos dispostos em pequenas colinas inclinadas; o jardim inteiro não tinha mais do que um tiro de pedra de comprimento. Olhando para cima, além da passarela de pedra, podia ver a forma como uma agulha da Torre do Anjo Verde, brilhando branco à luz do sol como uma presa de marfim.
Houve um tempo, Raquel se lembrou, muito antes de Simon chegar, quando ela mesma era uma menina brincando neste jardim. Como algumas daquelas criadas riam ao pensar nisso: o Dragão quando menina. Bem, tinha sido uma, e depois disso uma jovem senhorita... Nada desagradável de se olhar, e essa era apenas a verdade. O jardim então estava cheio do farfalhar de brocado e seda, de senhores e senhoras rindo, com falcões em seus punhos e uma canção alegre em seus lábios.
Agora, Simon, este achava que sabia de tudo. Deus simplesmente fez os jovens estúpidos, e era isso. Aquelas garotas quase o estragaram além da redenção, e teriam estragado se Raquel não tivesse mantido o olho aberto. Sabia bem o que era o quê, mesmo que esses jovens pensassem o contrário.
“As coisas eram diferentes antes.” Raquel pensou... E enquanto meditava, o cheiro de pinho do jardim sombreado pareceu tomar conta de seu coração. O castelo tinha sido um lugar tão bonito e emocionante: cavaleiros altos, emplumados e com cotas de malha brilhantes, e belas garotas em vestidos finos, a música... Ah, e o campo do torneio todo brilhante como joias com tendas! Agora o castelo dormia silenciosamente, e apenas sonhava. As ameias imponentes eram comandadas pelo grupo de Raquel: por cozinheiras e camareiras, senescais e ajudantes de cozinha...
***
Fazia um pouco de frio. Raquel se inclinou para frente, abraçando seu xale com mais força, então se endireitou olhando para frente. Simon estava ali, as mãos escondidas atrás das costas. Como diabos conseguiu deslizar até ela daquele jeito? E por que tinha aquele sorriso idiota estampado no rosto? Raquel sentiu a força da retidão surgindo de volta em seu corpo. Sua camisa, limpa uma hora antes, aparecia enegrecida de sujeira e rasgada em vários lugares, assim como suas calças.
— Bendita Santa Rhiap, salve-me! — Raquel gritou. — O que você fez, seu garoto tolo?
Rhiappa era uma mulher aedonita de Nabban que morreu com o nome do Deus Único em seus lábios após ser repetidamente violada por piratas do mar. Ela era alvo de grande devoção entre o pessoal doméstico.
— Olha o que encontrei, Raquel! — Simon disse, mostrando um cone de palha esfarrapado e torto: um ninho de pássaro que emitia leves chilreios. — Eu o achei embaixo da Torre de Hjeldin! Deve ter caído com o vento. Três deles ainda estão vivos, e vou criá-los!
— Você está louco? — Raquel levantou sua vassoura no alto, como os relâmpagos vingativos do Senhor que certamente destruíram os violadores de Rhiap. — Não vai criar essas criaturas na minha casa! Coisas imundas voando por aí, entrando no cabelo das pessoas, e olhe para suas roupas! Sabe quanto tempo Sara vai levar para consertar tudo?
O cabo de vassoura tremeu no ar.
Simon baixou os olhos. Não tinha encontrado o ninho no chão, é claro: era o que tinha visto antes, parcialmente desalojado de seu assento no Festival do Carvalho. Ele tinha subido para resgatá-lo e, em sua excitação com a ideia de ter os filhotes para si, não considerou o trabalho que estava levando para Sara, a garota quieta e caseira que fazia os consertos no andar de baixo. Uma onda de tristeza e frustração se abateu sobre seus ombros.
— Mas Raquel, me lembrei de colher os juncos!
Simon equilibrou o ninho com cuidado e puxou de baixo de seu gibão um pequeno e desgrenhado tufo de juncos.
A expressão de Raquel suavizou um pouco, porém a carranca permaneceu.
— Será que não pensa, garoto, não pensa em nada, você é como uma criança pequena. Se algo quebra, ou algo é feito tarde, alguém tem que assumir a responsabilidade por isso. É assim que o mundo é. Sei que não quer fazer mal algum, contudo precisa ser tão estúpido? Por Nossa Senhora!
Simon olhou para cima com precaução. Embora seu rosto seguisse mostrando tristeza e arrependimento na medida certa, Raquel com seu olho de basilisco podia ver que o garoto pensava que já tinha passado pelo pior. Sua testa voltou a franzir.
— Sinto muito, Raquel, de verdade... — disse o garoto quando ela estendeu a mão e cutucou seu ombro com o cabo de vassoura.
— Não venha com o velho ‘sinto muito’ comigo, rapaz. Apenas tire esses pássaros daqui e coloque-os de volta. Não haverá criaturas voadoras e agitadas por aqui.
— Oh, Raquel, posso mantê-los em uma gaiola! Posso construir uma!
— Não, não, e mais uma vez não. Leve-os e os entregue ao seu inútil doutor se quiser, no entanto não os traga para incomodar pessoas honestas que têm trabalho a fazer.
Simon se arrastou para longe, o ninho em concha em suas mãos. Havia cometido um erro de cálculo em algum lugar, Raquel quase cedeu, entretanto era uma velha durona. O menor erro de cálculo significava uma derrota rápida e terrível.
— Simon! — Raquel chamou, fazendo-o se virar.
— Posso ficar com eles?
— Claro que não. Não seja um cabeça-oca. — ela o encarou. Um longo e desconfortável tempo se passou; Simon mudou de um pé para o outro e esperou.
— Vá trabalhar para o doutor, garoto. — disse por fim a mulher. — Talvez ele possa enfiar algum senso na sua cabeça. Eu desisto. — Raquel lhe deu um olhar feio. — E faça o que lhe for dito e agradeça ao doutor, e à pouca sorte que lhe resta, por que está é a última chance. Entendeu?
— Sim, entendi! — Simon respondeu, alegre.
— Não pense que vai escapar de mim tão fácil. Volte na hora do jantar.
— Sim, senhora! — Simon se virou para correr até Morgenes, então parou. — Raquel? Obrigado.
A dama emitiu um grunhido de desgosto e marchou de volta para as escadas do refeitório. Simon se perguntou porquê tinha tantas agulhas de pinheiro enfiadas em seu xale.
***
Um suave manto de neve começou a flutuar das nuvens baixas e cor de estanho. O tempo começava a fechar, Simon sabia: faria frio até Candelaria. Em vez de carregar os filhotes pelo pátio ventoso, decidiu passar pela capela e continuar até o lado oeste do bastião interior. As orações matinais já tinham acabado há uma ou duas horas, e a igreja deveria estar vazia. O sacerdote Dreosan pode não olhar com bons olhos para Simon andando por seu covil, mas o bom homem estava, sem dúvida, entrincheirado à mesa com sua grande refeição matinal de sempre, resmungando ameaçadoramente sobre a qualidade da manteiga ou a consistência do pudim de mel e pão.
Simon subiu as duas dúzias de degraus até a porta lateral da capela. A neve tinha começado a cair; a pedra cinza da porta estava pontilhada com o resíduo úmido de flocos morrendo. A porta girou para trás em dobradiças inesperadamente silenciosas.
Em vez de deixar pegadas molhadas que poderiam delatá-lo no piso de ladrilhos da capela, optou por empurrar as cortinas de veludo na parte de trás da câmara de entrada e subir outro lance de escadas até o gradeamento do coro.
O abafado e desorganizado local, um forno fumegante durante o verão, agora estava agradável e quente. O chão estava coberto de pedaços de restos dos monges: cascas de nozes, um miolo de maçã, restos de telhas de ardósia nas quais mensagens haviam sido escritas em pequena contravenção aos votos de silêncio... Parecia mais uma gaiola para macacos ou ursos de festival do que uma sala onde homens de Deus vinham cantar louvores ao Senhor. Simon sorriu, abrindo caminho em silêncio entre as várias outras bugigangas espalhadas, rolos de pano comum, alguns pequenos e frágeis bancos de madeira. Era bom saber que aqueles homens de rosto severo e cabeça raspada podiam ser tão indisciplinados quanto garotos.
Alarmado pelo som repentino de conversa, Simon parou e recuou para a tapeçaria que cobria a parte de trás do coro. Apertado atrás do tecido mofado, prendeu a respiração enquanto seu coração disparava. Se o sacerdote Dreosan ou Barnabas, o sacristão, estivessem lá embaixo, nunca desceria e sairia pela porta distante sem ser observado. Teria que se esgueirar de volta pelo caminho por onde tinha vindo, usando a rota do pátio, afinal... O espião-mestre, pego no acampamento do inimigo.
Agachado, mais silencioso que um morto, Simon se esforçou para localizar aqueles que falavam. Pareceu ouvir duas vozes; enquanto se concentrava, os passarinhos espiavam quietos em suas mãos. Ele equilibrou o ninho com cuidado por um momento na curva do cotovelo enquanto tirava o gorro. Se o sacerdote Dreosan o pegasse de gorro na capela sua situação pioraria muito mais! Então deslizou a aba macia para baixo sobre o topo do ninho. Os filhotes ficaram prontamente em silêncio, como se a noite tivesse caído. Abrindo as bordas da tapeçaria com trêmulo cuidado, inclinou a cabeça para fora. As vozes estavam se elevando do corredor abaixo do altar. O tom delas parecia inalterado: ele não tinha sido descoberto.
Apenas algumas tochas permaneciam acesas. O vasto teto da capela estava quase todo pintado de sombra, as brilhantes janelas da cúpula pareciam flutuar em um céu noturno, buracos na escuridão através dos quais as linhas do Céu podiam ser vistas. Com seus enjeitados encapuzados e embalados, Simon rastejou para a frente com pés silenciosos até o corrimão do coro. Posicionando-se na extremidade sombria mais próxima da escada que descia para a capela, enfiou o rosto entre os corrimãos esculpidos da balaustrada, uma bochecha contra o martírio de São Tunath, a outra esfregando o nascimento de Santa Pelippa da Ilha.
— E você, com suas malditas queixas! — uma das vozes protestou. — Estou farto de tudo isso.
Simon não conseguia ver o rosto da pessoa que falava, suas costas estavam voltadas para o coro, e levava posto uma capa de gola alta. Seu companheiro, por sua vez, afundado em um banco de igreja, era bem visível; Simon o reconheceu quando pousou seus olhos na figura.
— Pessoas a quem se diz coisas que não querem ouvir costumam chamar essas de ‘queixas’, irmão. — disse o que estava no banco, e acenou com a mão esquerda de finos dedos, cansado. — Eu o advirto sobre o sacerdote por amor ao reino. — houve um momento de silêncio. — E em memória da afeição que um dia compartilhamos.
— Pode dizer o que quiser, qualquer coisa que desejar! — o primeiro homem rugiu, sua raiva soando como o retumbar de dor. — Porém o trono é meu por lei e desejo de nosso pai. Nada que pense, diga ou faça poderá mudar esse fato!
Josua, o Manco, como Simon costumava ouvir o filho mais novo do rei ser chamado, levantou-se do banco. Sua túnica e meias cinza-pérola exibiam padrões sutis de vermelho e branco; seu cabelo castanho cortado rente ao rosto e alto na testa. Onde deveria estar sua mão direita, um cilindro de couro preto se projetava de sua manga.
— Não quero o Trono de Ossos do Dragão, acredite em mim, Elias. — sibilou. Suas palavras eram suaves, contudo voaram para o esconderijo de Simon como flechas. — Apenas o alerto sobre o sacerdote Pryrates, um homem com... Interesses doentios. Não o traga aqui, Elias. É um homem perigoso, acredite em mim, pois o conheço há muito tempo do seminário jesuriano em Nabban. Os monges de lá o evitavam como um portador da peste. E ainda assim você continua a dar-lhe ouvidos, como se fosse confiável como o Duque Isgrimnur ou o velho Sir Fluiren. Não seja tolo! Este homem será a ruína de nossa casa. — Josua se recompôs. — Procuro apenas oferecer uma palavra de conselho sincero. Por favor, acredite. Não ambiciono o trono.
— Então deixe o castelo! — Elias rosnou, e virou as costas para o irmão, braços cruzados sobre o peito. — Vá, e deixe-me preparar para governar como um homem deve, livre de suas queixas e manipulações.
O príncipe mais velho tinha a mesma sobrancelha alta e nariz de falcão, mas era muito mais poderosamente construído do que Josua; ele parecia um homem que poderia quebrar pescoços com as mãos. Seu cabelo, assim como suas botas de montaria e túnica, era preto. Sua capa e calças eram de um verde manchado devido a viagem.
— Nós dois somos filhos de nosso pai, ó futuro rei... — o sorriso de Josua era zombeteiro. — A coroa é sua por direito. As mágoas que carregamos um contra o outro não precisam preocupá-lo. Seu eu que logo se tornará real estará bem seguro, você tem minha palavra sobre isso. Porém... — sua voz ganhou força. — Não serei, escute-me bem, não serei mandado para fora da casa do meu senhor por ninguém. Nem por você, Elias.
Seu irmão se virou e o encarou fixamente; quando seus olhos se encontraram, pareceu a Simon um lampejo de espadas.
— Mágoas que carregamos um contra o outro? — Elias grunhiu, e havia algo quebrado e agonizante em sua voz. — Que mágoa você pode ter contra mim? Sua mão? — ele se afastou de Josua alguns passos e ficou de costas para o irmão, suas palavras carregadas de amargura. — A perda de uma mão. Por sua causa, fiquei viúvo e minha filha meio órfã. Não me fale de tristeza!
Josua pareceu prender a respiração por um tempo antes de responder.
— Sua dor... Sua dor é conhecida por mim, irmão. — disse, por fim. — Pois saiba que teria dado não apenas minha mão direita, como até minha vida...!
Elias deu a volta, levando a mão à garganta e puxou algo brilhante de sua túnica. Simon ficou boquiaberto entre as grades. Não era uma faca, e sim algo macio e maleável, como um pedaço de pano brilhante. Elias segurou-a diante do rosto assustado de seu irmão por um momento de escárnio, então a jogou no chão, girou nos calcanhares e saiu andando pelo corredor. Josua ficou imóvel por um longo momento, então se abaixou, como um homem em um sonho, para pegar o objeto brilhante... Um cachecol prateado de mulher. Enquanto o olhava, uma faceta de dor ou raiva torceu seu rosto. Simon inspirou e expirou várias vezes antes de Josua enfim enfiar o objeto no peito de sua camisa e seguir seu irmão para fora da capela.
Um longo intervalo se passou antes que Simon se sentisse seguro para sair de seu posto de espionagem e seguir até a porta principal da capela. Sentiu como se tivesse testemunhado um estranho show de marionetes, uma peça de Jesuris encenada somente para ele. O mundo de repente pareceu menos estável, menos confiável, se os príncipes de Erkynlandia, herdeiros de toda Osten Ard, pudessem gritar e brigar como soldados bêbados.
Olhando para o corredor, Simon se assustou com um movimento repentino: uma figura em um gibão marrom correndo pelo corredor, uma figura pequena, um jovem talvez da idade de Simon ou menos. O estranho lançou um olhar para trás... Um breve vislumbre de olhos assustados, e então desapareceu na esquina. Simon não o reconheceu. Será que essa pessoa também estava espionando os príncipes? Simon balançou a cabeça, sentindo-se tão confuso e estúpido quanto um boi deslumbrado pelo sol. Tirou seu gorro do ninho, trazendo a luz do dia e a vida ao cântico dos pássaros. Outra vez tornou a balançar a cabeça. Foi uma manhã inquietante.
***
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