Capítulo 37: Tu Que És Mais Sombrio Que a Escuridão, Que a Noite
Segundo a lenda, nosso mundo é como um prato sobre um cajado cravado no Mar do Caos. Sempre presumi que isso estivesse errado, mas o que aprendi com a Bíblia Claire mudou um pouco meu pensamento. A velha história está, em certo sentido, parcialmente correta.
“Ra Tilt!” ecoou a voz de Amelia.
A sala que Sylphiel e eu encontramos ao pé da escada era semelhante, estruturalmente, à acima. Era outra grande câmara dominada por um pilar de cristal que perfurava seu centro de cima a baixo. O referido pilar também mostrava a batalha... Não, o jogo em que Amelia e Zel estavam travados com Fibrizo. Ainda podíamos ouvir suas vozes e tudo mais.
Foi assim que soube que o Ra Tilt de Amelia não havia sido ativado.
“O quê?” ela ofegou com uma expressão chocada.
Fibrizo sorriu e explicou num tom comedido.
“Nem preciso dizer uma palavra para bloquear um feitiço tão fraco. Posso neutralizar seu poder antes que seja ativado com um único pensamento.”
Isso é incrível. Até o Dragão do Caos Gaav precisou de uma vocalização para neutralizar nossa magia.
“Ra Tilt!” Zel lançou o mesmo feitiço logo após o de Amelia.
Parecia que a única maneira de pegar Fibrizo seria acertá-lo de surpresa. Porém, dadas as circunstâncias, era impossível para Amelia e Zel conseguirem.
E se eu invadisse a sala com um feitiço pronto? Só que para poder fazê-lo, teria que chegar lá primeiro...
Tínhamos que nos apressar. Nós duas corremos ao redor do pilar central de cristal e descemos outra escada que se abria no chão.
A lenda diz: ‘Senhor dos Pesadelos, o Lorde das Trevas dos Lordes das Trevas. Expulso do céu, à deriva no Mar do Caos.’ Foi o que um dos antigos profetas disse à minha irmã quando visitávamos o palácio em Dils, contudo não está certo. Talvez o manuscrito da Bíblia Claire, de onde conseguiu seu conhecimento, estivesse incompleto, ou talvez apenas o tenha interpretado errado... Não sei.
Descendo as escadas, Sylphiel e eu nos encontramos de novo em uma sala semelhante. Por um momento, me perguntei se Fibrizo havia distorcido o espaço ao redor da escada como fizera na entrada, nos forçando a subir os mesmos degraus uma e outra vez... Mesmo assim, de uma forma ou de outra, nossa única opção agora era continuar descendo.
Enquanto o fazíamos, Amelia e Zel continuaram a atacar Fibrizo. Ele havia anulado seus Ra Tilts sem sequer se mover, então os dois estavam tentando vários outros feitiços.
“Lança Elemekia!”
“Goz Vu Row!”
No entanto Fibrizo afastou com um aceno a lança de luz de Amelia e, em seguida, pisoteou a sombra negra que Zel lançou correndo pelo chão. Agora era dolorosamente óbvio que aquele cara estava em um nível totalmente diferente. O desespero começou a transparecer nos rostos de Amelia e Zel, justo como o Mestre do Inferno queria.
“Bola de Fogo!”
Sabendo que era inútil, ou talvez enlouquecida pelo desespero, Amelia lançou uma Bola de Fogo. Tal feitiço não era uma ameaça a nenhum mazoku, então o Mestre do Inferno apenas sorriu sem nem tentar evitá-lo ou bloqueá-lo.
Bwoosh! A Bola de Fogo de Amelia espalhou chamas por todo Fibrizo. Enquanto isso...
“Ra Tilt!” Zelgadis lançou seu feitiço, todavia sua voz ecoou vazia pela sala, pois o feitiço não se ativou mais uma vez.
A fumaça logo se dissipou da Bola de Fogo, revelando um Mestre do Inferno Fibrizo ileso.
“Será que...” disse ele, ainda com o mesmo sorriso bajulador. “Aquela Bola de Fogo era para ser uma distração? Um pouco óbvio, não acha?”
“Ngh... Nesse caso...” Zel sacou a espada larga das costas e começou a entoar um feitiço. “Videira Astral!”
Após entoar, investiu contra Fibrizo com sua lâmina agora infundida de magia. Vrmm! A espada cortou o ar, e Fibrizo nem tentou se esquivar. A lâmina de Zel desceu, cortando o Mestre do Inferno Fibrizo de ponta a ponta!
Não... Espere! De fato o atravessou!
Deveria ter previsto essa. Fibrizo era um ser fundamentalmente incorpóreo para começo de conversa; apenas havia se dado uma forma física de alguma forma. Assim sendo, não seria possível para ele apenas atenuar o grau de sua manifestação física?
“E agora?” provocou Fibrizo sem pestanejar.
Zelgadis ficou sem palavras. Amelia, implacável, continuou entoando o feitiço, entretanto posso ver o desespero desenhado em seu rosto.
Fibrizo disse que todos viemos da mesma fonte. Se for verdade...
O jogo de Fibrizo parecia estar chegando ao fim. Nem Amelia nem Zel tinham muito poder mágico restante. Ambos haviam esgotado todas as suas opções de ataque sem desferir um golpe decisivo contra o Mestre do Inferno... Na verdade, sem desferir um golpe sequer. Foram forçados a recuar com mais uma série de Ra Tilts, mas em vez de liberá-los, só encararam Fibrizo enquanto esperavam por uma desesperada chance de pegá-lo desprevenido.
Só havia uma maneira de virar o jogo... Se entrássemos na briga.
Enquanto isso, Sylphiel e eu enfim chegamos a uma área diferente. Passamos por salas idênticas uma após a outra... Não sei por quanto tempo, porém fiquei feliz por enfim chegar a uma sala sem outra escada.
Saímos para um corredor que seguimos, esperando que nos levasse até Amelia e Zel. No final, havia ainda mais escadas que desciam, contudo como a estrutura daquela área era diferente, imaginei que devíamos estar chegando perto. E se meu instinto estivesse certo, esta seria a nossa chance de pular e pegar o Mestre do Inferno de surpresa! Enquanto corria pelo corredor seguinte, comecei a recitar um Dragon Slave.
E finalmente, depois de um tempo...
Aha! No final do corredor, avistamos uma porta escancarada. Do outro lado, pude ver duas figuras familiares se enfrentando com uma figura infantil.
Sim! Conseguimos! Aceleramos o passo e irrompemos em cena. No segundo em que o Mestre do Inferno olhou em nossa direção, liberei o feitiço que estava entoando!
“Dragon Slave!”
E ainda assim... Ele não ativou. Será que se antecipou ao meu movimento?
“Previ sua ideia!” Fibrizo proclamou em triunfante tom, um momento antes do previsto.
“Dragon Slave!” alguém mais entoou.
“Sylphiel!” gritei.
“O quê?” gritou o Mestre do Inferno ao mesmo tempo.
Fibrizo não deve ter previsto um ataque de Sylphiel, pois não teve tempo de neutralizar o seu Dragon Slave antes de ser inundado por uma luz carmesim.
“Gwaaah!” gritou ele, com o corpo todo tremendo. Era óbvio que pretendia resistir ao Dragon Slave apenas com seu poder espiritual, contudo...
“Ra Tilt!”
Sem perder a chance, Amelia e Zel proferiram palavras de poder.
Fwoosh! Desta vez, seus feitiços se manifestaram sem problemas, e o azul... Não, as chamas brancas de seus Ra Tilts envolveram o Mestre do Inferno Fibrizo! Mas por que a cor diferente? O Ra Tilt duplo estava ressoando com o Dragon Slave?
“Raaaaaaaaaaagh!” o uivo bestial de Fibrizo sacudiu o ar ao nosso redor. Em instantes, foi reduzido a uma sombra negra que se desfez dentro do pilar branco dos três feitiços mesclados. E quando o próprio pilar desapareceu... O Mestre do Inferno Fibrizo não existia mais.
“Conseguimos...?” Zelgadis sussurrou após um longo silêncio.
“Não sei!” Sylphiel sussurrou de volta, examinando cuidadosamente ao redor.
Eu mesma não sentia nada por perto, porém...
“O que é aquilo?” Amelia gritou.
Segui seu olhar até uma forma nebulosa que se desvaneceu dentro do pilar de cristal que sustentava o Palácio do Inferno.
Fibrizo?
Todos nós assumimos posições de combate novamente e começamos a entoar uma nova série de feitiços enquanto a forma pouco a pouco se tornava mais distinta.
Espere, aquele é...
“Sir Gourry?” Sylphiel gritou.
De fato, era Gourry se transformando dentro do cristal. Então, aos poucos, como se estivesse sendo empurrado, seu corpo emergiu.
“Gourry!” gritei, contudo antes que pudesse alcançá-lo...
Sylphiel já estava lá para pegá-lo e segurá-lo.
Ah... Parei lentamente com uma leve pontada no peito.
“Ele está... Bem?” perguntei, e Sylphiel assentiu sem se virar.
Ótimo... Ele está bem. Um suspiro de alívio escapou dos meus lábios.
“Sir Gourry! Sir Gourry!” Sylphiel continuou a chamar.
“Urgh...” enfim houve uma resposta em forma de gemido.
Por sorte, parecia ainda estar em boa forma. Mas se estivesse de fato bem, então...
“Onde... Eu estou?” perguntou, balançando a cabeça de leve antes de olhar ao redor.
Pelo visto havia recuperando a consciência por completo agora.
Interpretei isso como uma deixa.
“Não me venha com ‘onde estou’!!!” gritei, acertando-o no peito com um chute.
“S-Senhora Lina?”
“Por que me chutou?”
Ignorei as objeções de Sylphiel e Gourry. Agora que sabia que Gourry estava bem, toda a minha irritação reprimida voltou à tona.
“Juro! Você nos deixou em pânico, cara! Sei que estamos lidando com o Mestre do Inferno Fibrizo, porém como pôde deixar ele te levar tão facilmente? Está querendo protagonizar o papel de uma princesa de conto de fadas ou algo assim?”
“Hã? Espere um minuto!”
“De qualquer forma, todos estão seguros, então crise evitada!” declarei, me afastando de Gourry. “Tenha certeza de agradecer a Sylphiel! Duvido que teríamos conseguido te salvar sem a ajuda dela!”
“Hã?” disse Gourry, incerto.
Fiquei de costas para ele, então não conseguia ver sua expressão... Talvez não quisesse.
“Sir Gourry...” Sylphiel chamou, com a voz trêmula. “Estou tão feliz de vê-lo seguro.”
Gourry pareceu estupefato por um bom minuto, então bateu palmas em compreensão.
“Ah, é verdade! Eu fui capturado!”
“Como pôde esquecer?” gritamos todos em uníssono.
Esse tremendo idiota nem conseguia se lembrar no que tinha se metido... Contudo, ei, acho que é o esperado desse cara!
“Certo... Onde ele está, afinal?” perguntou o grandalhão, fazendo com que o resto de nós trocássemos olhares.
“O fato de Sir Gourry ter sido libertado significa que devemos tê-lo derrotado, no entanto...”
“Claro que derrotamos! Vencemos o mal com a justiça em nossos corações!”
“Entretanto... Isso foi realmente o suficiente para derrotar alguém como o Mestre do Inferno?” tive que perguntar, silenciando tanto a pensativa Sylphiel quanto a triunfante Amelia.
“Bom, uma coisa podemos dizer com certeza...” Zel interrompeu. “É que não adianta mais ficarmos aqui. Salvamos o Gourry.”
“Concordo!” respondeu Sylphiel com um aceno de cabeça.
“Sem dúvida!” acrescentou Amelia.
“Ainda não sei o que está acontecendo, mas...” Gourry interrompeu.
“Argh! Venha comigo que te falo mais tarde!” gritei. “Certo, pessoal, vamos explodir essa porcaria! A saída é por aqui!”
Com essa deixa, saí da sala com Zel, Amelia, Gourry e Sylphiel a reboque, nessa ordem. Saímos para o corredor cinza por onde eu havia entrado e encontramos a escada com facilidade. Enquanto subíamos, algo importante me ocorreu.
“A propósito, Gourry, a Espada da Luz, ou melhor, Gorun Nova... O que aconteceu com ela?”
“Eh, uh... Não sei direito.”
É, tive a sensação de que essa seria a sua resposta.
“Aqueles tentáculos negros que saíram da empunhadura e me pegaram, a próxima coisa que notei foi que estava dentro deste prédio aqui.” explicou ele. “Depois, quando os tentáculos desapareceram, fui cercado por uma névoa azul estranha... E só acordei de novo agora.”
Ah, tudo bem. O Mestre do Inferno dissera que Gorun Nova era uma entidade demoníaca de outro mundo, o que significava que provavelmente a enviara de volta para o lugar de onde viera. Além do mais, mesmo que ainda a tivéssemos em mãos, hesitaria em usá-la agora que sei sobre sua verdadeira natureza. Era difícil acreditar que a havia manuseado de forma tão descuidada e acomodada antes... Todavia, pelo que me parece, havia sumido, então a questão era irrelevante.
Enquanto refletia sobre tudo isso, me aproximei do topo da escada.
“É verdade... Esqueci da Gorun Nova!” uma voz familiar me cumprimentou.
Arfei. Deveríamos ter chegado a outro corredor no topo da escada, mas, em vez disso, me vi saindo para uma grande sala circular, cinza-claro... Completa com um grande pilar de cristal no centro. E diante dela estava ninguém menos que...
“Sabia que você ainda estava por perto, Mestre do Inferno Fibrizo!”
O mazoku na forma de um garotinho sorriu confiante. Ele não havia sido derrotado afinal... Embora já esperasse que continuasse vivo, é claro. Gritar seu nome era em grande parte um aviso para os outros que estavam na escada. Ou, pelo menos, essa era a minha ideia...
“Hã?”
Porém percebi que não conseguia mais sentir a presença deles atrás de mim. Virei-me rapidamente e vi uma escada vazia.
“Só uma pequena distorção espacial. Queria que viesse sozinha, Lina Inverse.” disse Fibrizo, estalando os dedos com a mão direita. O pilar de cristal no meio da sala emitiu um leve brilho, mostrando Gourry e os outros em um corredor cinza, olhando ao redor, confusos. “Mexi um pouco no vão no topo da escada para garantir que chegasse desacompanhada. Seus amigos estão te procurando neste exato momento... Apesar de que não importa o quanto se esforcem, nunca a encontrarão aqui.”
“Ok, mordi sua isca. Onde estou?”
Fibrizo sorriu alegremente em resposta enquanto explicava.
“Este é o ponto mais baixo do Palácio do Inferno. A sala onde lutamos fica cinco andares acima de nós. Admito que me pegaram de surpresa lá... Nunca esperei um Dragon Slave daquela garota.”
“Também não sabia que Sylphiel podia usá-lo.”
“Eu me salvei deixando uma parte da minha forma espiritual para trás como isca enquanto me retirava... Se não o tivesse feito, talvez tivesse doído um pouco mais. Como recompensa por vocês, meros humanos, me impressionarem tanto, decidi libertar aquele Gourry de quem tanto gostam.”
“Que gentileza sua!” devolvi seu gesto com sarcasmo.
Contudo Fibrizo me ignorou e prosseguiu.
“Ainda assim, vejo que perceberam que me mantive ileso.”
“Sim, a possibilidade me ocorreu. Este lugar está ligado à sua vontade e, suspeitamente, não foi afetado pela sua aparente morte. E mesmo que tenhamos te pegado desprevenido, a ideia de que alguns feitiços seriam suficientes para vencê-lo soa boa demais para ser verdade.”
“Faz sentido. Embora sejam impressionantes para um grupo de humanos, é tudo o que são afinal. Ah, por sinal... O que disse antes me lembrou.” o espaço em frente ao peito de Fibrizo ondulou de leve, e a Espada da Luz... Ou melhor, Gorun Nova surgiu do nada. “Eu realmente deveria devolvê-la para a Estrela Negra.”
Com essas palavras, Fibrizo fechou os olhos e começou a sussurrar algo como um cântico baixinho. Não muito tempo depois...
VrrreeeeeEEEEEE! Ouvi um som agudo e claro, como metal vibrando, que aos poucos foi ficando mais alto. Sacudiu o ar ao nosso redor e penetrou fundo na minha cabeça, fazendo meus tímpanos latejarem.
E então, de repente, não consegui mais ouvi-lo. No entanto não havia desaparecido. Percebi porque seguia podendo sentir o ar ao meu redor tremer. O som tinha acabado de subir a um nível imperceptível para meus ouvidos humanos.
Observei Gorun Nova escurecer e, como tinta lavada em um riacho, fluir das mãos do Mestre do Inferno e se dissipar. Quando isso aconteceu, o som... Ou melhor, a vibração parou por completo.
“Isto deve bastar.” ele abriu os olhos de novo e me deu um sorriso radiante. “Está de volta ao seu devido lugar, então vamos prosseguir. Tivemos uma pequena mudança na nossa agenda, mas continuemos. Vamos para o evento principal?”
Com um olhar para as quatro figuras no pilar de cristal, Fibrizo estalou os dedos outra vez.
Whooooosh! Uma névoa azul surgiu do nada aos seus pés. Todos gritaram de surpresa quando ela se ergueu e os envolveu, e... Click! No instante seguinte, os quatro estavam presos dentro do cristal azul.
“Pessoal?” gritei em choque.
O Mestre do Inferno deve tê-los selado da mesma forma que fez com Gourry. O que significa que só havia duas maneiras de recuperá-los: ou Fibrizo os soltava, ou eu o matava.
“O que fará agora, Lina Inverse?” ele me perguntou com um sorriso alegre e inapropriado. “Posso matar os quatro quando quiser. Só preciso quebrar um pouquinho o cristal.”
“Ngh...” lancei um olhar hediondo para Fibrizo. Uma gota de suor escorreu pela minha bochecha.
“Você é a única que pode me impedir.” disse ele, em tom de provocação. “E só há um jeito de conseguir. Precisa me derrotar, porém acho que sabe que feitiços comuns não me farão mal nenhum, e se conjurar aquela lâmina negra que usou contra o Gaav, apenas voarei para longe do seu alcance. Afinal, parecia bem doloroso.”
Após um breve silêncio, soltei um longo suspiro.
“Tudo bem, entendi. Se quer tanto um Giga Slave, vou te dar um Giga Slave!”
“Oho?” os cantos dos lábios de Fibrizo se curvaram para cima. “Você sabia o que eu queria?”
“Claro que sabia. Não é como se estivesse sendo sutil a respeito!” respondi. “Entretanto por que se dar ao trabalho de me pressionar? Não poderia só lançar o feitiço e deixá-lo correr solto? Você vai morrer quando o mundo morrer de todo jeito.”
“Se pudesse...” disse Fibrizo com um sorriso amargo. Ao contrário dos demônios inferiores e de demônios de bronze que se manifestam neste mundo através da possessão de animais, mazokus puros como eu são essencialmente seres de espírito puro. Cantar um feitiço que toma emprestado o poder de outro ser seria uma refutação do nosso próprio poder, um ato semelhante ao suicídio para nós. Invocar um feitiço xamânico para servir a algum objetivo imediato não seria tão ruim, todavia feitiços que tomam emprestado poderes de outros mazoku de alto escalão... Quanto mais daquele ser... Podem nos destruir antes mesmo de terminarmos o cântico. E então escolhi um humano sem tais limitações e sem ideia de quão aterrorizante esse feitiço de fato é. No entanto chega de conversa. Vamos lá, certo? Ou devo destruir seus aliados primeiro, um por um?”
“Certo...”
Mas isso funcionaria com o Mestre do Inferno Fibrizo? Primeiro recitei o cântico de amplificação para extrair poder dos meus talismãs, depois comecei a pronunciar as palavras do caos que governavam as leis da magia.
Tu que és mais sombrio que a escuridão
Tu que és mais profundo que a noite
Ouça-me, senhor dourado das trevas
À deriva no Mar do Caos
“O quê?” a voz do Mestre do Inferno Fibrizo assumiu um tom de pânico ao ouvir o cântico que saía dos meus lábios. “O que está fazendo?”
Sim. Esta era a versão incompleta do Giga Slave. Com o poder dos talismãs me ajudando, eu devia ser capaz de controlá-lo. E se conseguisse acabar com Fibrizo com esse movimento, tudo estaria acabado!
Eu te convoco, rogo esta benção
E a ti ofereço esta promessa:
Todos aqueles em igual medida—
Tolos por bloquear nosso caminho—
Que enfrentem a destruição desenfreada
Conceda-me poder e liberte o vosso!
Vrumm! Uma névoa escura surgiu ao meu redor, fazendo o próprio ar ao redor ranger de tensão. Pouco depois, começou a se acumular na minha mão esquerda estendida, ora se deformando, ora inchando, seu poder tentando desesperadamente escapar do meu controle... Contudo o mantive firme no lugar.
Mesmo com o poder dos talismãs ao meu lado, a exaustão que senti foi intensa. O simples ato de segurar o poder invocado parecia drenar minha própria energia vital, e podia sentir tanto minha magia quanto minha resistência se esvaindo do meu corpo.
“Você...!” com um suspiro de incerteza, Fibrizo recuou um passo, temeroso.
No entanto o poder que peguei emprestado do Senhor dos Pesadelos já estava pronto!
“Giga Slave!”
A esfera de escuridão na minha palma se contraiu e desapareceu. No instante seguinte, teletransportou-se para dentro do alvo e explodiu seu vazio para fora!
“Graaagh!” o grito do Mestre do Inferno ecoou por todos os lados. Chamas negras irromperam de seu corpo e formaram um pilar ao seu redor!
Graaaaaaaaah!
O uivo sacudiu o Palácio do Inferno. Seria o próprio ar se estilhaçando ou o grito de Fibrizo? Caí de joelhos, ombros caídos, meu poder mágico e físico quase esgotado. Pude ver que meu cabelo havia ficado prateado, um fenômeno que ocorria quando uma pessoa esgotava muita energia vital. Uma sonolência poderosa me tomou.
Mas não podia me dar ao luxo de perder a consciência ainda! Não até ter certeza de que o feitiço havia funcionado. Observei o pilar de chamas negras desaparecer... E o Mestre do Inferno junto.
Mesmo assim, algo estava errado. O pilar de escuridão deveria ter se rompido e continuado, banhando toda a área atrás do alvo em pura destruição. Na primeira vez que usei o feitiço, esculpi uma nova enseada na praia. O fato de o lançamento ter sido interrompido apenas com o pilar de chamas negras sugeria que alguma coisa havia contido seu poder. Claro, essa coisa não era outro senão...
“Muito inteligente da sua parte, Lina Inverse... Não esperava por esse movimento. Só mitigar o dano foi muito doloroso.” enquanto sua voz soava, uma coisa cinza... Como uma sombra, ou como uma névoa, surgiu do chão e assumiu a forma do Mestre do Inferno Fibrizo mais uma vez.
Maldição! Eu sabia!
“Hrgh...”
De joelhos e ofegante, encarei Fibrizo. Ele provavelmente usara o mesmo truque que usara contra Amelia... Deixando parte de sua forma astral como isca para o feitiço, enquanto seu verdadeiro eu trabalhava para mitigar seu poder.
“Você lançou o feitiço, mesmo que fosse a versão incompleta...” o Mestre do Inferno me encarou com veemência por um segundo, depois voltou o olhar para a projeção no pilar de cristal.
“Porém não era o que pedi. Além do mais, nunca disse que pouparia seus companheiros se o lançasse de qualquer maneira.”
“O quê?”
“Está na hora da vingança. Vou destruir... Bem, não todos, apenas um deles para começar.”
Erk... Pare, não!
“Quem deveria ser? Vejamos... Que tal aquele homem com quem comecei?”
Os olhos de Fibrizo se fixaram em Gourry dentro do cristal.
“Pare!” gritei. No entanto Fibrizo apenas lançou um pequeno sorriso em minha direção.
Gourry... Ele vai matar Gourry!
Só havia uma maneira de parar Fibrizo! Comecei a trabalhar na fração de segundo em que o pensamento me veio à mente. Recitei o cântico de amplificação outra vez, depois as palavras do caos.
Tu que és mais sombrio que a escuridão...
Consagrei todo o poder que me restava enquanto falava, levantando-me trêmula. Ao ouvir meu encantamento, o Mestre do Inferno lançou-me um olhar frio.
“Tentando o mesmo truque de novo, não é? Se acha que vai me matar com isto, está redondamente enganada.”
Mesmo assim, continuei entoando.
Tu que és mais profundo que a noite...
Não me importava com o plano do Mestre do Inferno, nem com a chance de que esse feitiço pudesse enlouquecer. Só queria salvar Gourry, meu autoproclamado guardião de cérebro de slime.
Ouça-me, senhor dourado das trevas
O Mar do Caos, vasto, à deriva
“Oh?” reagiu o Mestre do Inferno de alegria e surpresa.
Eu já ouvira dizer que o Senhor dos Pesadelos era o maior de todos os Lordes das Trevas, lançado do céu para o Mar do Caos. Mas isso estava errado. Pude percebê-lo com a Bíblia Claire. O primordial Mar do Caos que flutuava sob todos os muitos mundos do nosso universo... Era o Senhor dos Pesadelos.
As lendas descreviam mundos como se estivessem assentados sobre cajados fincados no Mar do Caos, porém havia uma maneira diferente de encarar a questão: o Mar do Caos era a própria base de tudo.
Eu te invoco e rogo esta dádiva
E a ti ofereço esta promessa:
Para que todos aqueles em igual medida—
Tolos que são para bloquear nosso caminho—
Enfrentem a destruição irrestrita.
Conceda-me poder e liberte o seu!
Mais uma vez, a escuridão... Não, o vazio manifestado. Talvez fosse o próprio caos? De qualquer forma, algo negro além da compreensão humana enfim, lentamente, começou a se unir em minha mão esquerda estendida. Enquanto isso, o vigor se esvaiu em um ritmo absurdo do meu corpo. Não era magia ou resistência que se esgotava desta vez; era pura energia vital. Podia sentir minha própria alma sendo esvaziada e sugada, engolida por aquele vazio sem fim. Cada célula do meu corpo gritava com a pressão.
Contudo não podia me dar ao luxo de desmaiar. Não podia deixar esse feitiço sair do controle. Se deixasse... Então, assim como Sylphiel havia avisado, tal como o Mestre do Inferno Fibrizo havia planejado, o mundo retornaria ao vazio primordial.
Tha-thump!
Senti um tremor percorrer meu corpo. Era quase audível. A escuridão continuava a corroer minha força de vontade, aos poucos, mesmo enquanto me esforçava para manter o feitiço sob controle. A escuridão na minha mão esquerda continuou sua pulsação irregular e, lenta embora seguramente, cresceu.
Não posso... Deixá-la... Sair do controle..
Cerrei os dentes. Com força. A visão do Fibrizo furioso e de tudo ao meu redor começou a tremer e a escurecer.
Tha-thump!
A escuridão se expandiu. Para dentro da minha alma.
Não consigo controlá-la!
Justo quando esse pensamento se manifestou em minha mente, minha consciência mergulhou na escuridão.
———
E então...
Abri meus olhos devagar. Um ponto de escuridão do tamanho do meu punho pairava estável sobre minha mão esquerda estendida. Mais além, podia ver o Mestre do Inferno Fibrizo, em sua forma infantil, parado ali, sorrindo.
Oh... Você o controlou. Muito impressionante, sua voz ecoou em minha cabeça. Não havia pânico ou surpresa ali. Todavia espero que não pense que isso significa que me derrotou. Para ser sincero, tive a sensação de que você conseguiria. Afinal, tem aqueles talismãs de Sangue de Demônio em sua posse. Dessa forma, preparei um pequeno truque, só por precaução.
Por um momento, uma imagem da Cidade de Sairaag passou pela minha mente em sincronia com suas palavras.
Ainda não expliquei por que não a deixei entrar no meu Palácio do Inferno esta manhã, expliquei? Já disse que criei esta cidade a partir de pensamentos persistentes que ganharam forma, entretanto nunca disse de que material essa forma era feita... Sou eu. Tudo nesta cidade é feito de mim mesmo. Em outras palavras... Sou a Cidade de Sairaag.
“E?” respondi calmamente ao tom astuto do Mestre do Inferno.
“E?” Havia um lampejo de ódio em seu sorriso, como se achasse essa resposta desagradável. Será que não entende? Deixe-me explicar! Qualquer comida que comeu aqui... Sabe o que de fato era? Sim! Também era parte de mim! Em outras palavras, minha essência está dentro do seu corpo agora!
“E?”
Ainda não entendeu? A ‘voz’ de Fibrizo gritou em irritação. Deixe-me esclarecer! Talvez eu não possa atacá-la de fora enquanto tiver o controle desse vazio. Mas enquanto uma parte de mim existir dentro do seu corpo, posso usá-la para destruí-la por dentro! Com apenas um pensamento, posso romper seu coração! E depois que te matar, não haverá mais nada para conter a escuridão!
“Heh.” soltei um bufo irônico para o Mestre do Inferno, que seguia seriamente enganado sobre a situação.
Isto claramente o irritou.
Se é assim que quer jogar, tudo bem! Eu vou te matar! Vou te rasgar em pedaços!
Por um instante, o poder de Fibrizo inundou meu corpo... E explodiu.
———
“Impossível!” este grito de choque veio do mestre do Inferno. Ele deu alguns passos tímidos para trás, me encarando enquanto permanecia ilesa. “Não pode ser! Seu coração explodiu! Deveria estar morta agora! Como... Como segue com vida?” observei calmamente enquanto Fibrizo perdia a razão. “Como pôde... Como você pôde voltar à vida?”
De fato, seu poder havia acabado de destruir meu corpo. Fibrizo, de fato, me matou. Mas...
“O que é tão estranho?” perguntei.
“O que...” ouvir minha voz o fez ficar em silêncio. “A-Ah... Ahhhhh!” então, com um grito de horror, seu corpo desabou no chão. Parecia que enfim havia percebido quem eu era.
Devo admitir, não me reconhecer e então lançar aquele ataque ridículo... Existem certos graus de banalidade que apenas não suporto.
“Não... Não pode ser!” a voz de Fibrizo tremeu enquanto erguia o vazio em minha mão.
“Vou lhe conceder a destruição, Mestre do Inferno Fibrizo. A mesma destruição que tanto desejou.”
Os cabelos agora dourados da humana que formava meu núcleo... A garota conhecida como Lina Inverse, farfalharam em um vento inexistente. Com minha mão esquerda, esmaguei o vazio sem esforço.
Ele teleportou pelo espaço naquele momento e entrou no corpo de Fibrizo.
Um grito rasgou através de sua garganta, e o percebi deixando uma concha espiritual para o vazio antes de retirar sua verdadeira essência para o plano astral. Seu truque favorito, como um lagarto se desfazendo do rabo. Contudo não funcionou. Usei o vazio como mediador para enviar minha vontade ao plano astral atrás de Fibrizo. Com o tempo, encontrei-o lá, onde insistiu em resistir com toda sua força.
Se busca a destruição, então obedeça à minha vontade!
No entanto meu chamado só aumentou sua luta desesperada. Ele estava confuso, fora de si devido ao medo que sentia por mim.
Enquanto Fibrizo continuava a lutar, meus tentáculos do vazio encontraram seu caminho para o seu interior. Normalmente, poderia ter devorado um ser tão insignificante com o menor dos esforços. Entretanto, talvez por causa do corpo humano que servia como mediador, não conseguia invocar todo o meu poder de uma vez.
Todavia não estava disposta a deixar Fibrizo escapar. Mesmo que fosse um simples caso de erro de identificação, é um fato que ainda me atacou.
Saia!
Minha vontade explodiu. O vazio devorou o Palácio do Inferno, depois a cidade de Sairaag, como se tentasse se enraizar no chão abaixo. E com isso...
A alma do Mestre do Inferno Fibrizo se rompeu quando soltou um último grito.
———
Abri meus olhos para o céu azul acima. Pisquei uma, duas vezes...
O quê?
Sentei-me ereta. Eu? Sim, eu, Lina Inverse.
“Hã...”
Por um instante, incapaz de compreender minha situação atual, examinei a área ao meu redor. Estava sentada no fundo do que parecia ser um buraco profundo. Gourry, Zel, Amelia e Sylphiel estavam todos inconscientes por perto.
Não estávamos mais dentro do Palácio do Inferno, este havia sido construído com o próprio ser do Mestre do Inferno, assim, quando ele morreu, o palácio e a cidade de Sairaag também morreram.
Quando olhei para o meu cabelo, percebi que havia retornado ao seu belo tom castanho-avermelhado natural.
Ah... Certo. Com isso, finalmente me lembrei do que havia acontecido.
Voltei a vasculhar os arredores e, desta vez, notei uma figura escura parada não muito longe. Seu olhar me encarava com uma estranha calma.
“Acho que você não conseguiu o que queria, Xellos. Que pena, né?”
Esta foi a primeira vez que o vi desde que o Dragão do Caos Gaav o desmembrou no Pico dos Dragões. Ele devia ter acabado de se teletransportar para cá. Parecia ter recuperado o braço agora... Mas quem sabia quanto dano os mazokus de seu nível eram capazes de suportar?
Ao meu cumprimento, o Sacerdote da Besta, vestido de preto, respondeu com seu sorriso afável e sempre presente.
“Que pena para quem? Sério, não é como se eu tivesse falhado de alguma forma.”
“Nesse caso, tudo bem contanto que não seja o seu pescoço na guilhotina?” perguntei sarcasticamente.
“Bem, sou um mazoku.” respondeu com um sorriso (claro).
“Porém se já lavou suas mãos do problema, o que está fazendo aqui agora? Não me diga que quer vingar Fibrizo ou algo nobre assim.”
“Jamais sonharia em fazer algo tão absurdo. É que... Para ser sincero, não faço ideia do que aconteceu aqui. Ao meu ver não me pareceu que você tivesse o controle do feitiço. Sendo esse o caso, para satisfazer minha curiosidade, gostaria de ouvir a história da sua própria boca, por assim dizer.”
“Espera de verdade que eu lhe explique?”
“É claro que não!”, disse ele, balançando a cabeça. “Contudo sempre tenho que perguntar, mesmo que seja inútil.”
A pura e simples resposta de Xellos me fez esboçar um leve sorriso.
“Na verdade, foi bem estúpido, da parte de ambos. Um verdadeiro desfile de erros humanos.”
“Erro humano?”
“Só um modo de dizer... O que estou tentando dizer é que não sinto que ganhei, e sim que apenas sobrevivi.”
“Oho...”
“Eu conjurei o Giga Slave aperfeiçoado e falhei completamente em controlá-lo. A questão é que não sabia ao certo o que o feitiço faria... Acontece que o Mestre do Inferno também não sabia. Pelo visto, o conjurador se torna um receptáculo para o Senhor dos Pesadelos.” meu uso casual desse nome fez Xellos fazer uma leve careta, entretanto o ignorei e continuei falando. “É como se minha consciência estivesse... Fundida com a sua, ou consumida por ele. Seja como for, embora me lembre do que aconteceu, não tenho total certeza das forças em ação. Infelizmente para o Mestre do Inferno, ele não percebeu com quem estava lidando e me atacou enquanto estava nesse estado. O Senhor dos Pesadelos não gostou e revidou. Fibrizo não sabia como lidar com algo que acreditava ser seu aliado retaliando contra ele, então revidou por desespero e confusão.”
O pânico do Mestre do Inferno advinha da presunção de que o Senhor dos Pesadelos estava do seu lado desde o início. Esse foi o seu verdadeiro erro fatal.
Vazio, caos, como queira chamar... Temos a tendência de pensar nisso como algo inerentemente demoníaco. Todavia se, como disse Fibrizo, tanto os mazokus que buscam a destruição quanto as criaturas que buscam a existência vieram da mesma fonte... Em outras palavras, dela... Então o Senhor dos Pesadelos tinha soberania não apenas sobre os mazokus, como também sobre nós.
E, quero dizer... Mesmo que fosse um acidente, qualquer um reagiria depois de ser atacado daquele jeito.
“Então o Senhor dos Pesadelos ficou cada vez mais irritado e no fim decidiu ir com tudo para cima do Mestre do Inferno. Quanto ao que aconteceu em seguida, acho que excede a compreensão humana, assim não posso afirmar com propriedade, mas... Acho que em circunstâncias normais, o Senhor dos Pesadelos teria sido esmagadoramente mais forte que Fibrizo. Porém como estava canalizando seu poder através de mim, um receptáculo humano, não conseguiu usar todo o seu poder. Estava tão irritado com Fibrizo que ignorou tudo isso e continuou perseguindo-o. Então eles se atacaram e...” eu disse, abrindo as mãos na altura dos ombros. “Ambos sumiram.”
Assim que o Senhor dos Pesadelos esgotou seu poder, perdeu a capacidade de me controlar. O que o forçou a sair do meu corpo e voltar para o... Vazio? Caos? Como quiser chamar.
“Entendo... Então foi o suposto erro humano deles que permitiu que você sobrevivesse. Muito estúpido mesmo. Hahaha!” disse Xellos com total indiferença.
Eu me perguntei se, no fundo, ele aprovara de verdade o plano de Fibrizo.
“Entendo. Estou satisfeito agora.” disse Xellos, virando-me as costas.
“Já está indo embora?”
“Sim. Não tenho mais nada a fazer aqui, afinal. A menos que...” ainda de costas, sua pergunta soou no mesmo tom descontraído de sempre. “Queira dizer algo como ‘Vou fazê-lo pagar’ ou ‘Não posso deixá-lo ir depois de tudo o que fez’, quer?”
Dei de ombros.
“Não, guardar esse tipo de rancor é muito exaustivo. Quero dizer, poderíamos lutar aqui e agora, contudo se eu perdesse, perderia feio... E se ganhasse, não me renderia nada além do direito de me gabar. Claro, pode chegar o dia em que o mundo estará em jogo... No entanto cruzaremos essa ponte quando chegar a hora.”
“Entendo.” Xellos olhou para trás por cima do ombro com um sorriso. “Realmente devo ir agora. Rezo para que nunca mais nos vejamos, Srta. Lina. Se nos encontrarmos, estarei agindo como servo do Lorde Grande Besta, e nesse momento...”
“Quando nos cruzarmos, será como inimigos... Ou pelo menos em algum outro tipo de situação de matar um ao outro, certo?”
Xellos se virou devagar mais uma vez.
“Adeus, Xellos!” falei. “Que nunca mais nos encontremos.”
E com essas palavras de despedida, Xellos cintilou e desapareceu no ar.
“Ngh...” como se tivesse sido avisada pelo desaparecimento de Xellos, ouvi um gemido próximo.
Olhei e vi Sylphiel sentada, balançando a cabeça de leve. Meus outros três companheiros recuperaram a consciência momentos depois. Foi em um momento perfeito. Se Zel ou Amelia tivessem avistado Xellos, as coisas teriam ficado muito mais delicadas. Talvez Xellos os tivesse impedido de acordar até terminarmos de conversar.
Todos, exceto Gourry, estavam com a mão na barriga, parecendo um pouco enjoados. É claro que, assim como eu, eles haviam ingerido um pouco da essência de Fibrizo. Mas ela também havia consumido cada pedacinho de Fibrizo durante a batalha, deixando suas entranhas em um estado constrangedor.
Independentemente disso, todos estavam seguros. Sentaram-se e olharam ao redor, confusos, até que por fim seus olhos pousaram em mim.
“Senhora... Lina?” disse Sylphiel, ainda parecendo um pouco tonta.
“Ah. Olá!” respondi com um aceno.
“O que aconteceu?” perguntou Zel, olhando ao redor.
“Ah, bem, quando o Mestre do Inferno morreu, tanto o Palácio do Inferno quanto Sairaag que havia criado também desapareceram. Imagino que estejamos onde o Palácio do Inferno costumava ficar... Talvez no buraco deixado pelas raízes de Flagoon.” respondi, intencionalmente vaga nos detalhes.
“O Mestre do Inferno Fibrizo... Está morto?” Sylphiel sussurrou, olhando para mim em choque.
“Isso significa... Senhora Lina, você usou aquele feitiço?”
“Erk! Bem, eu...”
Sylphiel havia me feito jurar nunca mais lançá-lo.
“S-Se não tivesse, vocês teriam... Sabe...”
Desviei o olhar e fiquei em silêncio.
“O ponto permanece!” quebrando o silêncio, Amelia assumiu uma pose ousada. “Nossos corações amantes da justiça frustraram os desígnios perversos do Mestre do Inferno!”
“Porém nós mal fizemos alguma coisa!” Zel interrompeu, sarcástico.
“Mesmo assim, a justiça foi mantida!” ela reafirmou, ignorando-o.
Observando Amelia, Sylphiel soltou um pequeno suspiro dolorido.
“Bom, suponho que sim... Parece que você manteve o feitiço sob controle, pelo menos.”
Na verdade...
“S-Sim, com certeza! Bem, duvido que eu tenha motivo para lançá-lo outra vez de qualquer maneira... Ahahahahaha!” ri secamente enquanto o suor escorria pelo meu rosto.
Eu com certeza não o tinha controlado. Apenas tive a sorte de tropeçar por acaso em um resultado conveniente pra mim, um muito feliz acaso... Contudo vamos fingir que tive controle sobre tudo, ok?
“Tudo bem, mas...” disse Gourry, sua voz tão despreocupada como sempre. “Hã, podemos sair daqui logo? O fundo de um buraco não é o melhor lugar para uma conversa.”
“Bom ponto.” fiz um aceno firme em concordância e comecei a lançar um feitiço de Levitação.
———
O vento soprou sobre Sairaag, uma vez mais vazia. No entanto, por mais desolado que fosse, flores silvestres desabrochavam aqui e ali, nos dizendo que ainda havia vida no solo.
“Me sinto... Purificada.” sussurrou Sylphiel, com um sorriso desolado no rosto. Ela respirou fundo. “Então, o que vocês vão fazer agora?”
“Vou voltar para Saillune!” anunciou Amelia com uma intensidade verdadeiramente inexplicável. “Uma fonte do mal foi vencida, e a justiça prevaleceu! Preciso que isso seja conhecido!” continuou ela, apontando para uma direção aleatória.
Se, por alguma reviravolta do destino, Amelia acabasse no trono, Saillune poderia se tornar um país aterrorizante. Espero que sua irmã mais velha, Gracia, tivesse alguns parafusos e bom senso a mais na cabeça.
“Acho... Que devo voltar a vagar.” disse Zelgadis, olhando para o horizonte. Ele ainda estava em uma busca para recuperar sua humanidade. Uma busca que provavelmente não teria fim.
“É... Então...” disse Sylphiel, se contorcendo um pouco. “E você, Sir Gourry?”
“Hã? Eu?” ele olhou na minha direção. “O que nós vamos fazer agora?”
“E-Espera, por que está me perguntando?”
“Não sei mais o que fazer.”
“Entendo.” disse Sylphiel com um pequeno suspiro, parecendo extrair algum significado da declaração de Gourry. Depois, como se estivesse se purificando de algo, falou. “Voltarei a Saillune para me juntar ao meu tio. Sou sua assistente agora, mas aos poucos estou adquirindo minhas próprias qualificações... E algum dia, retornarei a Sairaag para restaurá-la.”
“Boa sorte!” falei.
Ela deu um brilhante sorriso em resposta.
Agora, e quanto a mim?
Posso voltar para Zephilia e rever a antiga gangue, ou poderia continuar viajando por mais um tempo. Enquanto ponderava as possibilidades...
“Diga, Lina, o que aconteceu com a minha Espada da Luz?”
“Ah, aquilo? O Mestre do Inferno disse que a estava devolvendo ao seu dono original, então acho que a enviou de volta para algum outro mundo.”
“Hã...” Gourry olhou para o horizonte, parecendo estranhamente pensativo para os padrões idiotas.
Era verdade que, sem sua Espada da Luz matadora de mazokus, Gourry era apenas um mestre espadachim comum. Hmm...
“Certo! Já sei!” bati as palmas ao definir nosso próximo curso de ação. “Vamos encontrar uma substituta para a Espada da Luz!”
“O quêêêê?” gritou Gourry, surpreso. “Lina! Vo... Você acabou de se oferecer para fazer algo legal?”
“O que isso quer dizer? Olha, o Mestre do Inferno só conseguiu a Espada da Luz porque estava atrás de mim. E nenhuma espada normal vai substituí-la, sendo assim...”
“Porém espadas mágicas são tão fáceis de encontrar assim?”
“Eh, não se preocupe.” eu disse, acenando com a mão para tranquilizá-lo.
A Lâmina Abençoada que cresceu com Flagoon deve ter se perdido junto com a própria árvore, contudo havia outras espadas lendárias por aí. Havia a Espada Explosiva, a Espada do Dragão Vermelho e a Lâmina Elemekia, só para citar algumas. Claro, havia muitas falsificações também.
“Lâminas sofisticadas como essas não são tão incomuns. Só precisa procurá-las. Encontrei algumas espadas mágicas sem nome na minha jornada antes de te conhecer. Até enviei uma para minha irmã como lembrança. Se encontrarmos uma boa, também poderei usá-la para pesquisas mágicas, então é uma situação vantajosa para todos.”
“Certo! Parece que vamos ficar juntos até encontrarmos uma espada para mim, então. Não vai roubar minha bolsa enquanto estivermos na estrada, vai?”
“Não, droga!”
“Ótimo! Nesse caso vamos embora!”
“Para onde?”
“Não sei! Não sou o cérebro desta operação!”
“Pelo menos tente pensar!” dei um tapa na nuca do Gourry.
E assim seguimos cada um para o seu lado pelas estradas à nossa frente, deixando a fantasmagórica Cidade dos Mortos para trás.
Posfácio:
Cena: O Autor e L
Au: A reimpressão de Slayers, Volume 8: Rei da Cidade Fantasma, marca o fim do primeiro grande arco da série!
L: Vários tópicos de longa data estão encerrados aqui! E por fim tive um tempinho para brilhar!
Au: Hora de brilhar? Tenho certeza de que este é o volume que lhe rendeu a reputação de desastrada...
L: Não sou desastrada! Só... Não estava pensando na hora!
Au: Espera aí. Estamos entrando em território de spoilers.
L: Território de spoilers? Por que está preocupado com spoilers no posfácio de uma reimpressão? Você já estava falando sobre Zuma no posfácio do volume 3 antes mesmo de ele aparecer.
Au: Ainda devemos evitar qualquer coisa muito reveladora sobre a história em questão.
L: Hmm. Não tenho certeza se concordo com isso, no entanto... Se tivesse sido um pouco mais cuidadosa, teria sido o herói do próximo arco! Ouviria falar de comidas deliciosas no oeste e iria me matar de rir. Ficaria sabendo de um mazoku de alto escalão no leste e ia me alimentar dele. Visitaria os dragões ao sul e os faria dar algum tipo de banquete. E exigiria que o ancião dragão dourado do norte parasse de contar aquelas piadas horríveis! Um tour de force¹ magnífico!
Au: Hum, acho que ninguém quer ler uma história dessas.
L: Mentiras! Seria extremamente popular e teria uma adaptação para Hollywood dirigida por George A. R*m*ro!
Au: É nessa direção que quer que ir? Que tipo de história é essa?
L: Viu? Já está morrendo de curiosidade!
Au: Não estou! Parece horrível. Além do mais, a reimpressão do volume 9 saiu junto com este, então já estamos no segundo arco.
L: Meh. Você deveria ter reescrito tudo seguindo as linhas do que acabei de sugerir.
Au: De jeito nenhum! De qualquer forma, este volume realmente conclui a primeira grande história. Falando nisso, tenho algumas novidades. Já mencionamos que as coletâneas de contos agora se chamarão Smash, então, para comemorar, vamos lançar uma edição com os melhores contos do Special!
L: O plano atual é que sejam cinco volumes. O conteúdo dos dois primeiros será selecionado pelo editor e pelo autor, e o conteúdo dos volumes quatro e cinco... E, se possível, também do três, será submetido à votação dos leitores! Vocês podem encher a sala do autor com cartões-postais, como fizeram durante uma certa pesquisa de popularidade!
Au: Ah, por favor. Vou pedir para o departamento editorial contar os votos desta vez, com certeza. Vocês podem enviá-los por cartão-postal, site ou celular! Claro, não tenho ideia de quando a votação começará... Fiquem ligados na Dragon Magazine! Eles também devem ter a lista de contos em que poderão votar.
L: Você pode estar pensando ‘Quero ler histórias sobre esse personagem’ ou ‘Quero ler aquela história’, embora possa não se lembrar de qual história apareceu em qual lugar ao longo dos trinta volumes! Mas vote mesmo assim!
Au: Aliás, tudo está planejado para 2008, assim, se comprar este livro mais tarde, azar o seu.
L: Será que poderíamos votar também nos melhores posfácios? É verdade que a coleção de posfácios também teria que ter um posfácio, o que levaria à circunstância hilária e incomum de um posfácio. Porém, tudo bem. Contanto que eu tenha meu tempo de tela!
Au: É, acho que não vamos fazer isso.
L: Aliás, não deveria haver algum tipo de sorteio de prêmios para os votantes? Um suprimento anual de martelos com espinhos com o logotipo da Dragon Magazine, talvez?
Au: O quê? Não! E o que diabos é um suprimento anual de martelos com espinhos? Eles expiram de alguma forma? Eu deveria falar com a redação sobre os prêmios.
L: De toda forma, aguardem mais atualizações da revista!
Au: Com Smash, a coleção Special e o segundo arco começando no volume 9 acontecendo ao mesmo tempo, sei que é muita coisa para lidar, contudo agradecemos a vocês por terem vindo nessa jornada.
L: Até a próxima!
Posfácio: Fim.
Notas:
1. Tour de force é uma expressão francesa que se traduz em português como ‘obra-prima’ ou ‘feito notável’ e significa um ato de grande habilidade e perícia, ou um resultado obtido com grande esforço e talento.
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