Capítulo 38: Espada Mágica, onde estás?
Clink.
A espada quebrou com um som agudo... E extremamente decepcionante.
“Hã?” Gourry comentou surpreso, bem na hora...
“O quêêêêê?” o guia turístico gritou, e não perdeu tempo em se virar para nós com uma mistura de raiva e consternação. “Me desculpe! Vocês vão ter que pagar por quebrar nossa espada lendária!”
“Vocês querem que a gente pague por isso? Que tipo de ‘espada lendária’ quebra no segundo em que alguém esbarra nela?” gritei de volta.
“Mmgh?” com isso, o rosto do homem empalideceu. “Isto é, er... É parte da lenda!”
“O caralho que é!”
Kracka-pow! Meu soco saca-rolhas alimentado pela raiva acertou com força o rosto do guia.
———
Ah, armas lendárias. Para citar apenas as famosas, havia o Cajado de Osso Faminto do Lorde das Trevas; A Espada do Dragão Chamejante Ceifeed; a Lâmina Elemekia, que podia cortar objetos astrais sem danificar os corpóreos; a Espada Explosiva, que podia cortar um dragão deimos... Meu amigo, posso continuar o dia todo.
Tudo dito, as únicas lâminas mágicas que poderia encontrar hoje eram espadas comuns incrementadas com alguns amuletos de joias. As lendárias, honestas e verdadeiras, não são algo que se encontra dúzias.
Mas rumores sobre elas? Ora, essas coisas estão circulando por todo lugar. Sabe como é. Em algum lugar selado em uma caverna, escondido em alguma cidadela do mal, mantido por uma simpática dama espírito do lago até que você jogue uma espada normal... Blá, blá, blá.
Ainda assim, o prêmio de ‘clichê de espada lendária mais antigo de todos’ tinha que ir para a velha história da lâmina presa em uma rocha e quem a tira fica com ela. O mais chato nessa versão em particular era o fato de que os vilarejos estavam cheios de espadas cravadas em pedras. Era garantido que eram 100% falsas, é claro, já que alguém de uma vila próxima costumava plantá-las lá.
Por que alguém faria tal coisa, você pergunta? Por que mais? Dinheiro do turismo! Basta encontrar uma espada chique, fixá-la em uma pedra e esperar os otários chegarem. Na maioria das vezes, os líderes desses pequenos golpes ficavam satisfeitos com uma recuperação indireta na economia local de turismo, porém os mais safados também cobravam uma taxa para ver a espada e, em seguida, uma sobretaxa por tentar sacá-la.
Então, não é surpresa que esse tenha sido justo esse tipo de esquema em que Gourry e eu tropeçamos nesta vila.
“Droga... Não é como se tivessem me enganado e me feito pensar que era de fato lendária, contudo mesmo assim! Me dá nojo que não tenha sido só um boato falso, e sim um esquema de ganhar dinheiro fácil de alguma vila. E que eu ainda tenha gasto dinheiro por cima, embora foi só uns trocados...”
Depois de acabar com o guia, nós dois voltamos para a cidade, onde eu estava devorando um almoço especial de frango no vapor.
“Ei, sem problema. Não é como se estivéssemos com pressa.” respondeu Gourry despreocupadamente do outro lado da mesa enquanto devorava seu salmão salteado.
“Tá brincando? É a sua espada que vamos substituir, sabia?” gritei de volta.
Exato. Nós dois estávamos em uma jornada em busca de uma nova espada mágica matadora de monstros. O grandalhão pode ser zero em inteligência, no entanto é nota onze de dez em esgrima. Ele costumava empunhar a Espada da Luz, uma destruidora de mazokus implacável, entretanto acabou perdendo-a em uma confusão da qual fui meio que a estrela. Por esse motivo estou passando pelo calvário de correr atrás de boatos, tentando encontrar uma substituta para ele.
“Sabe, Lina... Espadas lendárias não crescem em árvores, certo?”
“Sim. Não seriam lendárias se crescessem.”
“Mas não posso me virar com uma comum?”
“Como pode dizer isso?” estendi a mão e agarrei o garfo do Gourry enquanto o fitava com olhos marejados. “Sabe que eu te acho um espadachim incrível, Gourry... Porém isso não te torna invencível.”
Enquanto falava, inclinei-me para a frente e usei a mão esquerda livre para colocar alguns pedaços do seu salmão salteado no meu prato.
“Uma espada comum te deixaria indefeso contra qualquer fantasma ou mazoku que encontrarmos. Além do mais, ainda está lutando como se tivesse a Espada da Luz... E isso vai me dar um ataque cardíaco. Lembra quando estávamos lutando contra aquele feiticeiro outro dia e você se queimou tentando cortar algumas Flechas Flamejantes só com o cabo da espada?”
“Na verdade, não posso dizer que sim.”
Caramba... Já tinha esquecido?
Dei um suspiro profundo e disse.
“A questão é que não vou ter uma noite de sono decente até encontrar uma espada mágica decente para você usar.”
“Porém não podemos só comprar uma em vez de passar por todo esse trabalho? Aquela loja de magia que visitamos uma vez tinha um monte de espadas e outras coisas.”
“Vamos lá, cara. Essas são só espadas comuns com talismãs ou amuletos para aprimorar o fio. Os únicos vilões sobrenaturais com os quais elas funcionam são os fantasmas mais fracos. Tenho certeza de que não conseguem atravessar feitiços de ataque, e pode apostar que não vão conseguir nada contra um mazoku puro. Então, se queremos te dar uma espada que valha a pena de verdade, temos que procurar.”
“Eles não vendem ‘espadas que valham a pena’ nesse tipo de loja?”
“É claro que não! Mesmo que tivessem uma em estoque, algum nobre ou membro da realeza a pegaria na hora. Se um dia quisermos colocar as mãos em uma dessas gracinhas, teremos que encontrá-la nós mesmos.”
“Entendo. Soa complicado.”
“Lembrete de amigo: este também é o seu problema!” resmunguei, e naquele momento...
“Ooh! Aí está você!” disse uma voz grave da porta. Virei-me e vi um velho parado ao lado do guia que eu havia socado antes.
Será que estão aqui para nos dar um sermão sobre a sua espada...
Os dois caminharam com largos passos até nós, e o velho baixou a voz, como se tivesse medo de ser ouvido, para dizer.
“Será que vocês dois tentaram usar a espada lá nas montanhas mais cedo?”
“Sim, por quê? Vieram para nos dar mais trabalho por termos quebrado sua lâmina ‘lendária’?” perguntei em tom desagradável, ainda sorrindo.
Contudo o velho sorriu de volta, sua expressão tensa, embora insinuante.
“Que se dane a espada. Apesar de ter relação com a conversa...” lá, ele se sentou ao meu lado e continuou em voz baixa. “Sou o chefe aqui, e como podem ver, nossa vila é muito pobre. Não fica na estrada principal e não tem nenhum ponto turístico especial. Foi por essa razão que tivemos que recorrer a tais artifícios. Entendem, não é?”
Aha. Então estava admitindo que a ‘lenda’ deles era uma fraude. Essa história meio triste pode funcionar com qualquer passante normal, no entanto a brilhante feiticeira espadachim Lina Inverse jamais cairia nessa bobagem! Certo, talvez a parte da feiticeira espadachim não fosse tão relevante...
“Tá, sua vila é pobre, e daí?” retruquei. “Apesar de que parecem estar se saindo muito bem.”
“Erk!”
“Seu rosto tem um brilho saudável para a sua idade, e mesmo que suas roupas pareçam simples para olhos destreinados, são feitas de material de qualidade. O mesmo vale para o seu guia.”
“Geh!”
“Hrk!”
O comentário fez os dois homens empalidecerem. É, como imaginei... Esses caras estavam enchendo os próprios bolsos com o golpe da espada.
“B-Bom, deixando esse assunto de lado... Nós só queríamos reembolsar o que pagou para ver e usar a espada.” ofereceu o chefe enquanto pegava uma pequena bolsa de couro e a colocava sobre a mesa.
Isso é um pouco demais para ser um simples reembolso... Lancei um olhar feroz para os dois.
“Esperem um minuto... Não será que estão tratando de me ‘subornar’, estão?”
“Er, veja só, a reputação da nossa vila despencaria se algum... Infeliz... Boato vazasse, o que sem dúvida gostaríamos de evitar...”
“Então vocês querem que a gente faça vista grossa enquanto voltam a lucrar com a sua farsa?”
“Bwuh! Não, claro que não! Nunca mais vamos fazer isso!” assegurou-me o chefe, gesticulando nervoso. É claro que seu olhar traía suas verdadeiras intenções, que poderiam ser transcritas como: Droga! Ela me descobriu!
“M-Mas esse é todo o dinheiro que temos, então... Ah, já sei!” exclamou o chefe, batendo palmas de repente. “Se ainda precisar de uma espada, por acaso conheço uma lenda genuína! Vou lhe contar tudo em troca da sua... Er, discrição?”
“Uma lenda genuína, hein?” franzi a testa diante daquelas palavras claramente vazias. De jeito nenhum confiaria em qualquer pista vinda da boca de um experiente charlatão. “Tem certeza de que esta também não é falsa?”
“É melhor você acreditar! Claro, não fui ver a espada com meus próprios olhos, entretanto as pessoas estão falando sério sobre ela!”
“Hmm... Bem, vamos lá, estou ouvindo.”
“Ah, obrigado!” respondeu, radiante de alegria no instante seguinte.
“Só que deixe me dar um aviso antes...” acrescentei, apontando direto para o chefe. “Se achar que parece suspeito... Sabe onde vamos terminar, não sabe?”
“É-É claro!”
“Ok, então desembucha. Me conte sobre essa tal lenda.”
“Tudo bem... Se forem para o leste até chegar à estrada principal e depois viajar quatro ou cinco dias para o norte, chegarão a uma cidade chamada Bezeld.”
“Aham.”
“Tem uma caverna na montanha ali.”
Uma caverna na montanha, hein? Já estou sentindo de longe o cheiro podre de conversa fiada.
“Lá no fundo daquela caverna, tem uma espada cravada numa rocha...”
“Essa porcaria de novo?”
Ka-crash! Meu punho, movido pela fúria, acertou o chefe em cheio no rosto.
———
“Droga... Se vai inventar uma história, pelo menos seja criativo...”
Depois de dar uma surra no chefe da vila por suas mentiras toscas e desprezíveis, e cobrar uma sobretaxa enorme pela sua oferta de suborno, Gourry e eu deixamos a vila para trás. O céu lá fora estava limpo e azul, o sol agradável e quente. A estrada principal estava lotada de pedestres e carroças puxadas por burros indo e vindo.
Acabamos de mãos vazias em relação a pistas confiáveis sobre armas mágicas, porém não podia reclamar de uma boa e velha perambulação sem rumo. Agora, se ao menos alguns bandidos com um grande tesouro secreto tentassem nos atacar, estaríamos feitos.
“Sério, e agora, Lina?” perguntou Gourry quando uma vila arborizada apareceu.
“Boa pergunta. Estou pensando que deveríamos ir para Bezeld.”
“Bezeld?” Gourry franziu a testa. “Esse nome me parece familiar...”
“Sabe, a cidade que o vigarista da vila mencionou?”
“Ahh. É, é isso mesmo!” Gourry assentiu em compreensão e depois franziu a testa de novo. “Ué, você não disse que era mentira?”
“Claro que disse. E tenho quase certeza que é.”
Gourry inclinou a cabeça, incapaz de entender o que eu estava dizendo. O canto dos pássaros continuou enquanto nossa conversa se deteve por um tempo.
Por fim, Gourry finalmente disse.
“Acho que não entendi... Por que vamos para Bezeld então?
“Sério? Porque não tenho ideias melhores.”
“Ah, qual é...”
“Bom, não é como se estivéssemos nos afogando em lendas que parecem plausíveis. E sempre que surge uma boa pista, alguém já chegou lá primeiro. Assim, mesmo que a história seja implausível, acho que podemos dar ao menos uma olhada. O segredo é ir com calma e devagar, como se fosse um passeio turístico.”
“Entendo. Às vezes é bom apenas aproveitar a viagem.”
“Claro que sim.” confirmei com um sorriso, e logo depois...
Fwooooom! A cena pacífica foi interrompida pelo som de uma explosão distante. Não precisei procurar muito pela fonte do barulho, uma fina nuvem de fumaça preta subia da vila à frente.
“Que diabos é isso?” perguntei em voz alta.
“Acho que não vamos aproveitar a viagem. Vamos, Lina!”
“Certo!”
“Onde há fumaça, há fogo... E lucro a ser obtido!”
Assim, Gourry e eu saímos correndo para a cidade.
———
Quando chegamos ao local, havia uma multidão se formando ao redor de uma casa que parecia ter sido atingida por uma Bola de Fogo. Parte dela era uma ruína fumegante, e essa parecia ser a fonte da fumaça.
“O que aconteceu?” perguntei com urgência.
Mas os aldeões pareciam tão confusos quanto eu.
“É o que gostaríamos de saber.” disse um deles.
“Ouvimos uma explosão e, quando chegamos aqui...” acrescentou outro.
“Uma jovem mora naquela casa! Você pode nos ajudar a limpar os escombros?” perguntou um terceiro.
“Vamos lá! Vou terminar o serviço rapidinho.”
Com essa deixa, comecei a entoar um feitiço.
“Vu Vrima!”
Vrumm! Respondendo àquelas palavras de poder, a terra próxima se elevou, formando um golem. Murmúrios de choque e espanto percorreram os espectadores.
“Golem, mova esses escombros para o lado!”
“Krrsh!” atendendo ao meu comando, o golem começou a vasculhar os destroços ainda fumegantes. Porém assim que começou a agir...
Shooooom! Ouvi uma segunda explosão na floresta atrás de nós.
“Golem, se encontrar alguém lá dentro, tire-o dos escombros e fique parado! Se não, continue limpando os escombros até que estejam todos limpos!”
Depois de dar as ordens ao meu golem, disparei para a floresta com Gourry me seguindo logo atrás. O cheiro de vegetação era intenso ao nosso redor. Os pássaros haviam parado de cantar, assustados com a explosão ou intimidados pela forte sensação de perigo ao nosso redor. E...
Bwoooom! Uma terceira explosão ecoou, esta mais perto do que esperava. Gourry e eu nos entreolhamos, assentimos e corremos na direção da explosão.
———
“Ngh!”
Com a agilidade de um gato, uma garota pousou na grama próxima. Ela parecia ter uns quatorze ou quinze anos, era baixinha e tinha olhos grandes e redondos. Vestia-se mais ou menos como os outros aldeões e usava seus longos cabelos negros em uma trança solta sobre os ombros.
E à sua frente estava uma sombra que ganhara vida... Um homem todo vestido de preto.
“Espero que você não pense que pode escapar de nós.” disse a figura de preto. Tinha quase os olhos cobertos... Como um assassino, por assim dizer, se não fosse pelo ar decididamente não-assassino que o cercava. “Mesmo se... Se... Você de alguma forma conseguisse escapar, para onde poderia ir, hmm? Não tem família e agora não tem um lar para onde voltar. Minha Bola de Fogo cuidou disso! Acho que não quer passar suas noites sob as estrelas, assim, para o seu próprio bem, pare de ser teimosa e venha comigo!”
“Sheesh... Para um cara tentando fazer toda essa coisa de ‘discreto’, sua boca é bem grande, hein?” respondeu alguém cheia de ousadia, contudo não era a garota.
“O quê?”
Não preciso dizer quem o homem viu quando se virou. Fomos ninguém menos que eu e Gourry, que enfim chegamos depois de rastrear a comoção.
“Quem são vocês?” perguntou o homem de preto.
“Acha que somos idiotas o suficiente para dar nossos nomes ao cara mais suspeito do universo?”
“O quê? Falando desse jeito me faz parecer um criminoso comum!” protestou ele, elevando a voz.
Hã, não percebeu que parece um com essa roupa, amigo?
“De qualquer forma...” continuou o homem. “Se não vai me dizer quem é, pelo menos me diga o que está fazendo aqui!”
“Estávamos passando quando vimos uma casa na cidade explodir, e então ouvimos outro grande estrondo na floresta. Meio que chama a atenção, sabe? Hora do quiz: De onde você vem, como chamam as pessoas que explodem casas e tentam sequestrar garotas? Deixa-me adivinhar: criminosos comuns?”
“I-Isso... Tudo bem, afinal é a serviço de uma missão!”
“E que ‘missão’ é essa?”
Levantei uma sobrancelha em resposta a sua escolha de palavras.
“Não é da sua conta!”
“Olha, sejam quais forem as suas circunstâncias...” disse Gourry enquanto dava um passo confiante à frente. “Ainda não podemos ficar parados e deixá-lo continuar a atacar a garota. Aposto que não tem como te convencer, tem?”
“Claro que não. Fiquem à vontade para bancar os heróis e se meterem, no entanto vou avisar... Se não se retirarem pacificamente, terei que me livrar dos dois de outro jeito. Entenderam?”
“O infame acordo de silenciar-você-para-sempre?” bufei diante da ameaça clichê do homem vestido de preto. “Verificação de perspectiva. Se fôssemos o tipo de pessoa que cederia a uma pequena intimidação, acha mesmo que teríamos ido atrás de um sujeito sórdido como você, para começo de conversa?”
Em vez de responder com palavras, o homem sacou a espada curta da cintura. Sua postura parecia bem séria. Ele podia ser um falastrão em comparação com sua aparência furtiva, mas pelo menos parecia saber o que estava fazendo em uma luta.
Enquanto isso, a garota que esteve perseguindo ficou parada ali por algum motivo, como se quisesse ver como tudo aquilo se desenrolaria. Devo dizer que preferiria que tivesse ido embora dali enquanto nós dois e o Cara Assassino estávamos tendo nossa troca de farpas. Não que pudesse só virar e gritar isso.
Gourry sacou sua espada longa num movimento fluído e se anunciou.
“Eu sou Gourry Gabriev.”
“Pode me chamar de Zain.” declarou o Cara Assassino por sua vez. E quando o fez...
“Seu tolo!” ouviu-se uma voz repreensiva vinda de trás. Um farfalhar na grama precedeu o aparecimento de outra figura vestida de preto. Será que estava ali o tempo todo, disfarçando sua presença? Seria esse o verdadeiro motivo pelo qual a garota não tinha fugido até agora? Será que conseguiu sentir sua presença quando nem eu consegui?
A repreensão do segundo assassino deixou Zain perplexo. Ele gaguejou.
“G-Gal...”
“Não diga meu nome a eles também!”
“M-Mas...”
“Você não só deu seu próprio nome a estranhos, como revelou o nome de um camarada! Poderia pelo menos tentar praticar um pouco de discrição!”
“P-Porém são apenas codinomes...”
“Ah, pelo amor de...” uma veia saltou na testa do Segundo Assassino com essa última palhaçada de Zain. Aposto que é exaustivo ter um subalterno desses.
Soltei um suspiro.
“Usar codinomes sugere que os dois fazem parte de alguma organização a serviço de uma família real ou de um lorde local, certo?”
“Ack! Como adivinhou?” gritou Zain.
Caramba, o cara só não consegue ficar quieto...
Gal-sei-lá-o-quê gemeu de novo com as palhaçadas de Zain, depois voltou sua atenção para nós.
“Parece mesmo que vocês sabem demais.” disse ele, perfeitamente tranquilo em forte contraste com o Zain bastante abalado. “Vou me certificar de silenciá-los agora. Não me culpem; culpem a sua própria intromissão e a boca do idiota do Zain.”
“Nossa, vocês parecem bem confiantes sobre como essa luta vai acabar. Será que se importam de parar de contar vantagem e provar alguma coisa?”
Faíscas voavam entre nós e os dois assassinos. Entretanto minha maior preocupação no momento era o fato de a garota ainda não ter se mexido. Será que estava congelada no lugar pelo medo ou... Havia mais assassinos à espreita por perto?
“Hah!” Zain gritou ao dar o primeiro passo, como se quisesse me arrancar da minha hesitação. Atravessando as árvores, se aproximou de Gourry.
Preciso dizer que o cara tinha uma velocidade incrível! Vi dois lampejos prateados brilhando sob a luz do sol que salpicava a floresta... Zing! Gourry havia defendido o primeiro ataque, todavia Zain estalou a língua e tentou outra vez atacar. Ele certamente era bom... Contudo não tão bom quanto Gourry, pelo que pude ver.
Quando Zain se preparou para o segundo golpe, o Segundo Assassino sacou sua própria espada e veio para cima de mim. Argh, não vou conseguir terminar meu encantamento a tempo! Saquei minha espada curta para bloquear o golpe, enquanto continuava meu cântico.
Clang!
Caramba, esse cara também era muito bom! Conseguia mais ou menos acompanhá-lo graças ao meu recente treinamento de espada com o Gourry, mas se não fosse por isso, aquele movimento inicial poderia ter me dividido na hora.
O Segundo Assassino, assim como o Zain, puxou sua espada bloqueada, saltou para o lado e tornou a golpear. Só que desta vez... Estava indo para cima do Gourry! Estariam tentando atacá-lo primeiro?
“Tch!” Gourry bloqueou o golpe do Segundo Assassino e tentou se esquivar do de Zain com um leve giro do corpo.
Pah-piiing! A ponta da espada do Zain arranhou o peitoral do Gourry com um estrondo ensurdecedor. Enquanto o Segundo Assassino mantinha Gourry no lugar, Zain preparou outro golpe... Porém antes que pudesse desferi-lo, terminei meu feitiço.
“Vento de Diem!”
Whoosh!
“Gwuh!”
Uma rajada não fatal, embora bastante forte, fez os três homens voarem! Boa, Lina! Certo, acertei o Gourry com os bandidos, contudo ainda assim consegui impedir o ataque dos assassinos!
“Hã? Você também acertou seu aliado?” perguntou Zain em choque enquanto se levantava da grama.
“Hah, amador!” zombei. “Já ouviu o ditado ‘melhor matar demais do que matar de menos’?”
“Qual é o seu problema?” ele sussurrou, surpreso.
Enquanto isso, um sorriso irônico surgiu no meu rosto. Enquanto me entregava a essa pequena rotina de comédia com Zain, Gourry se levantou e preparou sua espada. Viu? Eu estava falando besteira só para dar tempo ao Gourry de voltar ao jogo. Não era nada sobre a minha personalidade retorcida. Sem chance!
Ainda assim, esses caras não eram apenas bons... Eles também eram intransigentes na busca por seu objetivo. Até Zain, que parecia um tanto desmiolado, era um oponente capaz. O que significava... Que precisava terminar com essa luta rápido!
“Gourry, vou usar um dos grandes! Desculpe se te atingir também!” blefei. Os dois assassinos ficaram abalados... Entretanto não tanto quanto Gourry.
“E-Espera, Lina! Por favor, reconsidere!”
“Lina? Espera, você é... Lina Inverse?” quem falou não foi nenhum dos assassinos, e sim a garota, que seguia observando.
“E-Ela disse Lina Inverse?” gritou Gal-sei-lá-o-quê em choque.
“Já ouviu seu nome antes?” perguntou Zain em resposta.
“Você não ouviu? É uma feiticeira com vários títulos que eu não ousaria repetir em companhia educada, e é sempre a número um naquelas listas dos ‘dez melhores feiticeiros com quem nunca gostaria de ser amigo’!”
“Quem está fazendo essas listas?” me vi gritando em resposta. Porcaria! Basta ganhar um pouco de notoriedade e os boatos falsos e desagradáveis começam a circular sem parar. Que mundo maldoso!
O Segundo Assassino estalou a língua.
“É um confronto ruim, no entanto se for dois contra dois, ainda podemos ter uma chance...”
“Que tal quatro contra dois então?” perguntou uma nova voz, vindo de trás de todos nós, na direção da vila.
Mantendo um olho nos assassinos, olhei por cima do ombro e vi um homem e uma mulher se aproximando. Ambos pareciam ter uns vinte anos. O homem era alto, com cabelo preto curto e uma expressão um tanto azeda que manchava sua aparência, de resto decente. A mulher era alta e bonita, com longos cabelos prateados presos em um rabo de cavalo. Ele usava cota de malha leve, ombreiras de couro, e ambos se aproximaram com espadas em punho.
Mercenários viajantes, hein? No mínimo, não pareciam fazer parte do bando dos assassinos.
“Então, qual é o plano, cara? Se ficarem por aqui muito mais tempo, vão atrair muita gente.” pressionou o mercenário.
“Droga! Vamos sair daqui!” disse o Segundo Assassino, e com um estalar de língua, saltou para o mato e desapareceu.
Ah, uma retirada clássica! Bem-cronometrada e eficiente.
Em contraste, Zain não conseguiu evitar de soltar algumas frases de vilão de terceira categoria enquanto fazia sua própria retirada sem cerimônia.
“Podem ter certeza que vamos nos reencontrar! Nós voltaremos! Anotem o que estou dizendo!”
Gourry e eu respiramos aliviados apenas quando os dois capangas estavam completamente fora de alcance.
“Foi uma grande ajuda. Obrigada!” agradeci ao então ao casal que havia chegado ao local.
O homem acenou com a mão em um gesto de descaso.
“Meh, nos poupe do desfile. Não estamos aqui para ajudar vocês de qualquer maneira. Conhecemos a garota, só isso.” ele se virou para a garota e disse. “Ei. Faz tempo, Sherra. Aqueles assassinos estão aqui por causa do você-sabe-o-quê também?”
“Não sei do que está falando!” a garota respondeu bruscamente, passando o dedo pela trança por cima do ombro.
O ‘você-sabe-o-quê’, hein?
“E aí, acha que pode nos contar tudo?” perguntei.
Mas o homem me dispensou outra vez sem nem me dignar um olhar.
“O quê, por que seguem aqui? Por que não vão embora logo?” zombou.
Grr...
“Eu imploro a sua...”
“Entendo como se sente e tudo mais, Sherra. Porém não conseguirá se safar dessa teimosia.”
“Hã, alô?”
“Se não deixar ninguém te ajudar, vai continuar se metendo em situações como essa...”
“Ei! Velho!”
Eu podia ver seus ombros se contraírem com isso. Oho, te peguei! Controle da situação, considere-se recuperado!
“V-Velho?” ele se virou para mim com um rangido, uma veia saltando na testa. Embora antes que pudesse começar...
“Chegamos aqui primeiro, sabe? Não pode entrar de rompante no meio do caminho, não fazer nada e depois nos mandar embora sem nem dar uma explicação! Que grosseria! Só um velho teria tal audácia! E não tente me dizer que não é tão velho assim, porque é um velho rabugento por dentro, com certeza!”
“Geh...”
O homem se virou para sua companheira em busca de apoio, mas ela apenas observou a situação se desenrolar com olhos curiosos. Com certeza não parecia que viria em seu auxílio.
Certo! Hora de ir com tudo na ofensiva do ‘velho’... Espera aí. Não estou aqui para insultar esse babaca. Devo focar no panorama geral. Phew! Quase perdi o controle ali...
Dito isso, quanto mais nós dois conversássemos, mais íamos discutir e menor a probabilidade de conseguir saber o que quero. Sua companheira também parecia bem reservada... O que significava que só havia uma saída!
Passei pelo casal e me aproximei da garota... Sherra, pelo que ouvi... Com um sorriso radiante.
“Então, você sabe quem sou?
“S-Sim. Bom, você tem uma bela reputação... Em alguns sentidos da palavra...”
Não gostei muito de como soou, porém decidi deixar passar.
“Entendo. Nesse caso vou direto ao ponto. Já que sou tão famosa, te dou meu autógrafo se me contar o que está acontecendo aqui!”
“Hã?” a expressão de Sherra se endureceu em uma careta. “É... Bem... Quero dizer...” ela gaguejou.
“Ei, está tudo bem!” disse Gourry com uma expressão de genuína preocupação. “Ninguém vai zombar de você. Apenas aceite o autógrafo e acabe logo com essa situação. Sei que vai ser uma chatice, contudo...”
Argh!
“Só não diga nada como ‘por que alguém iria querer essa coisa?’, ou qualquer outra coisa que esteja pensando, a menos que queira vê-la enlouquecer. E, além do mais, o autógrafo não é de todo ruim. Pode ajudar a afastar ladrões, ou talvez possa usá-lo como pegador de panela...”
Krack! A pedra do tamanho de uma cabeça com a qual coroei Gourry o calou.
“Sei que existem muitos boatos ruins a meu respeito por aí. No entanto não é legal julgar as pessoas apenas com base em fofocas, não é?” falei sinceramente.
Sherra balançou a cabeça com fervor, a expressão ainda congelada no rosto por algum motivo.
“Todo mundo tem alguns segredos sujos no armário. Entretanto aqueles homens de preto estão te perseguindo e tentaram nos matar por interferir também. Quer mesmo deixar essa situação continuar só porque não se sente confortável em falar a respeito?”
Para isso, a garota não teve outra resposta senão o silêncio. Certo! Hora de fechar o acordo!
“É claro que, no fim das contas, somos nós que estamos nos metendo na sua vida, então não vou pedir egoisticamente que nos conte tudo aos mínimos detalhes. Apenas o que estiver disposta a compartilhar. Pode até aliviar um pouco a sua carga. Por mais intrometidos que sejamos, talvez possamos ajudar...”
“Aw, qual é. Não conte nada a eles.” o homem se aproximou de Sherra e me interrompeu. “Se precisar de ajuda, é para isso que estamos aqui. Certo, Mileena?”
A mulher de cabelos prateados apenas sorriu sem jeito com esse pedido de concordância.
“Não é da minha conta!” disse ela. “Porém suas segundas intenções estão aparecendo, Luke.”
“Ei, não faça parecer indecoroso. Só estou dizendo que não suporto ver uma garota bonita e necessitada ficar sem ajuda. Contudo não me entenda mal, Mileena. Você ainda é a única para mim!”
“Idiota!” sussurrou Mileena, irritada.
Se suas bochechas estivessem vermelhas e tivesse desviado o olhar um pouco, teria pensado: ‘Ah, essa é a típica comédia romântica de casal em negação’. Todavia ela o encarou seriamente quando o chamou de idiota com uma voz que exalava desgosto. Parecia mais que Luke era um acompanhante com uma paixão unilateral... Ah, estou começando a divagar.
“Também sou uma garota bonitinha e necessitada!” protestei. “Quero dizer, preciso saber o que está acontecendo!”
Luke me encarou sério por um tempo, depois disse.
“Eu aguento ver garotas irritantes em necessidade.”
Splat!
“O que dizia?” rosnei, minha bota de repente fincada fundo na cara de Luke.
“Ei! Que diabos?”
“Não tente se fazer de bobo depois de falar essa merda sobre mim!”
“Bem, falei alguma mentira?”
“Pode apostar que sim! Mileena nunca vai gostar de você se não aprender a ter um pouco de tato!”
“Geh! Mileena... Gosta bastante de mim! Qualquer um pode dizer que somos um casal apaixonado e apegado! Não é, Mileena?”
“Não!” sua resposta soou indignada, talvez irritada com a escolha constrangedora de palavras de Luke.
“Aw, cara! Meu amor ainda não te atingiu?”
“Viu? Hah! Ela não gosta nem um pouquinho de você!” zombei.
“Cala a boca! Uma criança como você jamais entenderia as sutilezas do romance!”
“Quem está chamando de criança?”
“Hmm... Acho bom avisar, a garota está indo embora.”
“Cala a boca, Gou... Espera, hein?”
Gourry, pelo visto reanimado em algum momento, nos avisou e olhei em volta enquanto processava o que havia escutado. De fato, avistei Sherra apressando o passo de volta para a cidade.
“Ei, e-espera!”
“Espera aí, Sherra!”
Nós quatro corremos nos apressando em segui-la.
———
“Por que estão nos seguindo?” perguntou Luke com um olhar furioso.
Eu o encarei de volta.
“A vila é por aqui, dã. Agora deixe-me te perguntar por que está perseguindo aquela garotinha! Ela não parece ir muito com a sua cara!”
“Ah, então acha que ela gosta de você, é?”
“Pelo menos não me odeia como te odeia!”
“Ah, é? Te desafio a dizer isso de novo!”
“Hah! Digo quantas vezes quiser!”
Faíscas invisíveis voaram entre mim e Luke, lançando uma tensão sobre a floresta ao redor. Gourry e Mileena caminhavam a alguma distância, fingindo que não nos conheciam.
Isso me deu um tempinho para pensar. A julgar pelas interações deles com Sherra, suponho que Luke e Mileena a estivessem importunando há algum tempo. Será que estavam atrás do que quer que os assassinos quisessem? Falando nisso... O que eles queriam? O candidato mais óbvio, claro, era um tesouro. Sherra devia ter a chave para algum tipo de saque, que tanto a dupla de assassinos quanto a Equipe Luke estavam procurando.
Certamente explicaria toda a situação. E se assumíssemos que minha dedução anterior estava correta... Que os assassinos estavam agindo como forças especiais para alguma família real ou lorde local, então o tesouro que tentavam obter devia ser algo incrível! Significa que vale a pena ficar por aqui. Só preciso ajudar Sherra a sair do seu aperto, ganhar sua gratidão e...
“Aaaaaah!” um grito repentino da garota em questão interrompeu meus pensamentos.
“O que houve?” perguntei enquanto corria para alcançá-la. Fiquei tão absorta em refletir sobre as coisas e em ignorar Luke que não percebi que já estávamos na vila.
Sherra estava parada ali, imóvel. À sua frente, havia uma multidão de pessoas e o golem que criei, além da pilha enorme de lixo que costumava ser sua casa.
“Vocês estão bem?” gritou um aldeão.
“O que aconteceu?” perguntou outro enquanto se aglomeravam ao seu redor.
Mas ela os ignorou e lamentou baixinho.
“Minha casa...”
“Ah, certo... Aquela feiticeira achou que você poderia estar soterrada nos escombros e conjurou este golem aqui para limpá-los, só que como pode ver...” disse um aldeão em resposta, apontando para mim.
“Ohhh?” Sherra esticou o pescoço rigidamente enquanto se virava para olhar na minha direção. “Pelo que me lembro, aqueles homens explodiram parte da minha casa com uma Bola de Fogo... Então você gentilmente mandou seu golem terminar o serviço, não é?”
Grk!
Uh... Uh-oh! Havia uma fúria distinta queimando nos olhos de Sherra. Hora de recuar alguns passos!
“Bom... Não é como se tivesse feito de propósito. Só pedi para o golem limpar os escombros quando corri para a floresta... Acho que ele não conseguia dizer onde os escombros terminavam e a casa começava. Aha... Haha. Golens, sabe como é, né?”
“Isso é inaceitável!” Sherra gritou. “Onde vou dormir esta noite?”
“Bem, er... Se estiver em apuros, ficarei feliz em ajudar!”
“Você é a razão pela qual estou em apuros! Devolva minha casa!”
“Hm... Hmm... Já sei! Vou invocar um bando de golens e fazê-los tomar a forma de uma casa!”
“Eu jamais gostaria de morar em uma casa tão assustadora!”
Nossa, quanta exigência! Certas pessoas não tem noção mesmo... Comecei a quebrar a cabeça, tentando pensar em uma maneira de voltar a cair nas graças da Sherra. No fim, decidi desembolsar o dinheiro para conseguir um quarto para ela passar a noite, o que pareceu acalmar as coisas por enquanto.
———
Mais tarde naquela noite...
“A verdadeira questão é... Por que vocês também estão aqui?” perguntei, observando friamente Luke e Mileena, que estavam sentados à mesa à nossa frente no restaurante que ocupava o primeiro andar da pousada.
Luke não se intimidou e apenas respondeu de forma despreocupada.
“O que esperava que fizéssemos? Estes são os únicos alojamentos na cidade.”
“Então por que estão sentados conosco?”
“Nós não estamos sentados com vocês. Estamos sentados com a Sherra.”
O centro de toda essa confusão, a própria Sherra, estava nos ignorando enquanto mastigava seu jantar, infeliz.
Hrm... Não fiz muito progresso em conquistá-la. Geralmente, em momentos como este, era melhor dar espaço a alguém do que forçar a barra. Com isso em mente, tentei mudar de assunto e falar sobre algo diferente... Porém, dada a recusa de Sherra em falar comigo e o estoicismo geral de Mileena, minha única opção de conversa era discutir com Luke.
Gourry, é claro, estava fora de questão. Pedir para ele mediar era tão bom quanto pedir um macaco para construir uma casa. Mesmo assim, continuar discutindo com Luke só tornaria as coisas mais estranhas em vez de fazer com que Sherra se aproximasse da gente.
Talvez eu devesse mudar as coisas falando direto com ela...
“Suponho que... Ainda está brava, né, Sherra?”, perguntei, olhando-a enquanto devorava um pouco de salmão salteado na manteiga. “Sei que deveria ter sido mais cuidadosa com meus pedidos ao golem, e meu descuido acabou destruindo sua casa.” coloquei um pouco de rosbife enrolado em alface na boca e continuei. “Contudo me desculpe por tudo aquilo, e quero me desculpar de verdade.” mais duas colheradas do ensopado de camarão doce. “Sei que pedir desculpas não vai resolver nada...” uma amostra de linguiça de porco e verduras com um pouco de limão entre fatias de pão. “Só... Quero te ajudar no que puder.”
“Isso não é nada convincente!” Kerwham!
Não entendi por que ela reagiu tão irritada, no entanto Sherra enfiou a faca e o garfo na mesa e se levantou.
“Esqueça a casa! Me deixe em paz! Vocês dois!” seu dedo apontou primeiro para mim, depois para Luke, depois nos deu as costas e subiu as escadas em direção ao seu quarto.
“Muito bem, conseguiu irritá-la ainda mais!” disse Luke em tom de reprovação, me encarando.
“Não me culpe por isso!”
“Por que não? A culpa é sua!”
“Como?”
“Qualquer um iria se irritar te vendo dizer essas coisas e comendo desse jeito!”
“Bobagem!”
Faíscas começaram a voar entre nós dois outra vez.
“Vamos deixá-la até de manhã.” disse Mileena calmamente, acalmando a tensão quase explosiva. “Depois de uma noite de descanso pode acabar melhorando de humor.”
“B-Bem... Justo.” admiti.
“Se você diz, não tenho objeções.” concordou Luke.
“Ótimo. Nesse caso, vamos pelo menos comer em paz.” concluiu Mileena com um sorriso radiante.
———
No dia seguinte...
“Sherra foi embora logo cedo esta manhã.” retrucou o estalajadeiro.
“Hã?” nós quatro respondemos em choque.
Nós (sem Sherra) tínhamos terminado o café da manhã com o ar ainda gelado entre nós. Quando enfim percebemos que a rainha do gelo não desceria, demos uma olhada em seu quarto e o encontramos vazio. Estávamos preocupados que os assassinos pudessem tê-la sequestrado durante a noite, então perguntamos ao estalajadeiro e... Bom, ouviu o que ele disse. Sherra tinha ficado fora por tempo demais para ser um passeio matinal casual.
“Hum, bem... E não teria mencionado para onde estava indo?” perguntei.
O homem pensou por um momento e então respondeu.
“Hmm, nada sobre para onde estava indo, entretanto...”
“Disse mais alguma coisa?”
“Só uma coisa.”
“O que é?”
“Que devo pedir à feiticeira de cabelos castanhos... Imagino que seja você, para pagar a parte dela.”
Aquelas palavras impensáveis me silenciaram.
Com os olhos fixos em mim, Luke falou com grande sarcasmo.
“Parece que Sherra não vai voltar então. Ah, coitada. Se ao menos alguém não tivesse destruído sua casa...”
“Grkk! O-Oh, por favor! Quem foi que disse que se acalmaria se a deixássemos sozinha por uma noite?”
“Não venha culpar a Mileena!”
“Então não venha me culpar também! Ah, tanto faz... Rastrear Sherra é nossa maior prioridade agora. Pode ser que esteja por perto, então vou procurá-la! Gourry, vem comigo!”
“Claro!”
Com essa rápida troca, Gourry e eu deixamos a pousada.
———
E pouco antes do meio-dia, voltamos de mãos vazias.
“Hrmmm... Sherra não está nas ruínas de sua casa, e pelo visto ninguém na vila a viu. Será que fugiu da cidade?” perguntei-me, melancolicamente, enquanto me sentava à mesa, tomando meu suco de frutas. Rrgh! Odeio quando perco uma boa pista de tesouro!
“Se Sherra foi embora, qual é o nosso próximo passo?” perguntou Gourry.
Deixei escapar um suspiro.
“O que acha? Se já se foi, se foi. Se nos abandonou, não temos como saber para onde foi.”
“Falando em pessoas desaparecidas, também não vejo aqueles dois...”
“Talvez estejam dando uma volta por aí. Contudo mesmo que tenham realmente sumido, isso não...” estava prestes a dizer que não mudava nada, no entanto me peguei tragando minhas palavras.
Por que eles não fizeram nada quando anunciamos que iríamos procurar por Sherra? Seria possível que tivessem alguma ideia de para onde ela tinha ido? Foi por essa razão que não tentaram nos impedir? Estariam apenas esperando que fôssemos embora para que pudessem seguir suas próprias pistas?
Argh! Eu odeio isso!
Virei o resto do meu suco, levantei-me e procurei o velho estalajadeiro.
“Desculpe, sabe me dizer para onde foi o casal que estava conosco esta manhã?” perguntei quando o vi nos fundos lavando louça.
“Hã? Depois que vocês dois desapareceram, eles pagaram a conta e foram embora.” ele fez uma pausa para dizer.
“E mencionaram para onde estavam indo?”
“Não, mas... Ah, é verdade. Me pediram para te dizer: ‘Parece que Sherra se foi, então vamos desistir e ir para casa’.”
“Hã?” franzi a testa ao ouvir a mensagem.
Suspeito. Descaradamente suspeito. Depois de toda a troca de farpas que fizemos, não tinha como aqueles dois terem apenas abandonado aquela pequena operação. Não, tinha que ser o contrário. Tinham ido atrás de Sherra. Esse era o único motivo para deixarem uma mensagem dizendo que tinham desistido e depois saírem enquanto estávamos fora.
Em outras palavras, era hora de encontrar Luke e Mileena! Caça-pistas, aí vamos nós!
“Sabe, eu não sei muito sobre esses dois... E você?” perguntei. “Saber mais sobre pode nos dizer para onde Sherra foi.”
O velho coçou a cabeça e respondeu.
“Hmm? Bom, imaginei que fossem mercenários errantes ou algo desse tipo, então nunca prestei muita atenção. Ambos estão aqui há três ou quatro dias e, pelo que sei, passaram pela casa de Sherra algumas vezes.”
“Então eles voltam, é?”
“Não tenho certeza. Sherra não mora aqui há tanto tempo.”
“Quer dizer que ela se mudou de outro lugar?”
“Mudou para cá? Mais como... Só apareceu um dia.”
“Soa suspeito.”
“Ah, não é bem assim. Um morador local chamado Glen morava naquela casa com a esposa, sabe? Tinha uma verdadeira obsessão por aventuras. Isso deu muito trabalho para a patroa.” começou o velho, acrescentando todo tipo de detalhe que não perguntei.
Espera aí, será que era aquela infame doença do ‘se pedirem boatos, contem fofoca’? Era um mal comum entre os camponeses mais velhos. Quanto mais isolados estavam no mundo, mais se sentiam obrigados a falar sem parar na menor oportunidade. E se alguém infectado te pega, você está condenado a ouvir as suas histórias idiotas e chatas para sempre.
Só tem um jeito de se libertar: digamos que está com pressa, de uma guinada de 180 graus e vá embora. E havia alguns oponentes formidáveis demais até para tal recurso, embora devesse funcionar muito bem com um amador como esse velho. Dito isto, fofocas eram uma forma potencial de reunir pistas... Assim, decidi aguentar por um tempo e ouvi em silêncio.
“Suas palavras favoritas eram ‘dinheiro fácil’. Ele preferia bebida, jogo e prostitutas a café da manhã, almoço e jantar. O homem quase nunca estava em casa com todos os planos de enriquecimento rápido que estava tramando em alguma cidade próxima. Nem estava aqui para a morte da esposa. Para ser sincero, o pessoal daqui não se importava muito com Glen. Então... Já faz dois anos? Três? Ele aparece de volta na cidade com aquela garota. Nenhum dos dois disse nada a respeito, porém corria o boato de que Sherra era sua filha ilegítima. Pouco tempo depois, Glen ficou bêbado uma noite, caiu no rio e se afogou. A garota está morando sozinha naquela casa desde então. Hmm... Não estou te entediando, estou?” perguntou o estalajadeiro, interrompendo de repente seu discurso.
“Ah, de jeito nenhum. Adoro ouvir as histórias das pessoas.” respondi, negando rapidamente.
“Pensei que estivesse, já que seu companheiro ali parece ter adormecido.”
“Hã?” olhei para o lado e encontrei Gourry encostado na parede da estalagem, roncando sem parar.
Seu grande idiota... Pensei em chutá-lo para acordá-lo, contudo temi que pudesse atrapalhar mais uma conversa amigável com o estalajadeiro.
“Bom, se ele quer dormir, que durma.” lutei contra meus impulsos violentos e, em vez disso, incentivei o velho a continuar. “O que aconteceu depois?”
“Agora, deixe-me ver... Sherra era basicamente uma de nós naquela época. Tinha um pouco de vergonha por ser uma forasteira, eu acho, e podia ser um pouco antissocial, no entanto todos os aldeões gostam bastante dela. Claro, pode ser em parte por pena, já que o seu pai era do jeito que era e tudo mais. Pensamos que tinha uma vida difícil.”
“Uma vida difícil, hein? Diga, como Sherra tem se sustentado desde que o pai faleceu?”
“Como tem se sustentado? Hm... Na verdade, não sei.” admitiu o velho, sem perceber minha sutileza na condução da conversa.
Todavia essa foi uma informação interessante. Se o seu pai, um vagabundo, estava morto e Sherra não estava trabalhando, como vinha ganhando a vida? Minha especulação sobre um tesouro escondido estava se tornando cada vez menos especulativa.
“Quer dizer que não trabalha? Não parece que o pai fosse do tipo que deixa herança.”
O velho acenou com a cabeça, desdenhosamente, ao pensar nisso.
“Uma herança? Sem chance. Cada cobre que Glen ganhava ia para a bebida naquela mesma noite, e era comum vê-lo tentando penhorar seus pertences para qualquer um que lhe desse a mínima atenção. O sujeito estava sempre atrás de dinheiro fácil. O mais engraçado foi aquela vez que foi desenterrar oricalco¹ em Bezeld.”
Hmm, estamos meio que mudando de assunto de no...
“Espera aí, oricalco?” interrompi, elevando a voz ao ouvir essa palavra.
O oricalco era um tipo de metal que a maioria das pessoas nunca via na vida. Tinha propriedades interessantes, como bloquear a detecção mágica, o que o tornava muito útil para pesquisadores no ramo da feitiçaria, entretanto era ainda mais difícil de encontrar do que ouro. Essa raridade se refletia em seu preço, que chegava a alcançar o dobro do valor de mercado da platina. Em outras palavras... Seria uma perspectiva muito tentadora para alguém que quer ficar rico rapidamente.
“Existe mesmo oricalco em Bezeld? Espera, Bezeld...” murmurei, depois fiz uma careta. Bezeld, hein? Não foi lá que o velho chefe vigarista disse que encontraríamos uma espada?
“Bom, havia um pouco, mas, nossa, foi descoberta... Deixe-me ver, diria que há vinte anos. E disseram que não era grande coisa no final. Porém Glen soube e foi direto para Bezeld. Todos sabíamos que não encontraria nada. Quando voltou de mãos vazias e nós dissemos que tínhamos avisado, qual você acha que foi a sua desculpa?”
Droga... Fugindo do assunto de novo.
“Você vai rir quando ouvir isso. Glen disse que não encontrou oricalco, no entanto, enquanto cavava, encontrou uma caverna estranha. Quando se aprofundou, encontrou uma espada estranha saindo de uma rocha. Só que era tudo tão assustador que deu meia-volta e saiu correndo! Dá para acreditar?”
“O quêêê...” gritei, pega de surpresa. “Disse que encontrou uma espada? Quer dizer...”
“Sim. Claro, não passava de conversa fiada. Ele estava bêbado, pra variar, quando contou.”
“Entendo...” assenti vagamente.
Se esse tal de Glen estava tão bêbado assim quando contou a história, me parecia ainda mais provável que fosse verdade. Afinal, fanfarronice bêbada não é dada a histórias sobre fugir com o rabo entre as pernas. Se estivesse apenas inventando uma desculpa para não encontrar oricalco, com certeza teria se retratado de uma forma mais corajosa... Dizendo coisas como que tinha matado um monstro, ou talvez tivesse conseguido escapar por pouco após uma perseguição angustiante.
Mesmo assim, era precipitado presumir, com base apenas nessa história, que de fato havia uma espada em Bezeld.
“De qualquer forma, minha esposa tem uma teoria de que Glen teve Sherra quando estava em Bezeld. Ela tem mais ou menos a idade certa. E Glen amava as mulheres...”
Estávamos de volta ao território da fofoca, então deixei tudo entrar por um ouvido e sair pelo outro. O quanto disso era verdade e o quanto era ficção? Só havia uma coisa que tinha certeza: a chave para desvendar esse mistério estava em Bezeld.
Notas:
1. Oricalco é um tipo de metal que teria sido usado em Atlântida, citado em “Crítias”, de Platão. De acordo com Crítias, o oricalco era considerado muito valioso, depois apenas do ouro. Teria sido achado e explorado em muitos lugares da Atlântida em tempos remotos.
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