Capítulo 06: Em Pé Diante do Balcão de Mármore
Em pé diante do balcão de mármore que ainda tinha todas as rachaduras cravadas, Angeline fez uma careta.
“Sem trabalho?” perguntou lentamente.
A recepcionista deu um sorriso vago e preocupado. “Sim. No momento, não há trabalhos que exijam um grupo Rank S... São todos trabalhos que aventureiros Rank AA e inferiores podem realizar.”
Claro, não havia nenhuma regra dizendo que os Ranks S não podiam aceitar esses trabalhos, porém era trabalho da guilda garantir que o trabalho fosse distribuído de forma igual para o maior número de aventureiros possível. Considerando a carga de trabalho de Angeline, havia pouca necessidade de que tivesse de sair de seu caminho para tomar um trabalho de nível inferior. Dinheiro também não era uma preocupação — na verdade, Angeline tinha mais do que sabia o que fazer.
“Algum pedido de guarda na direção geral de Turnera?”
“Não seria um trabalho para uma Rank S...”
“Posso tirar um mês de folga, então?” perguntou depois de uma batida.
“I-Isso é um pouco... Não há como dizer o que vai acontecer...”
“Tsk...”
A recepcionista estremeceu, sabendo que Angeline queria ir para casa de qualquer jeito.
De qualquer forma, Angeline tinha algum tempo livre, mas não o suficiente para uma licença prolongada. Considerando isso, ela estava melhor saindo com Anessa e Miriam. Quando se virou para sair, Angeline notou o balcão rachado e estreitou os olhos.
“Não é hora de consertar essa coisa? Vou pagar a conta...”
“Hehehe.” a recepcionista abriu um sorriso malicioso. “O mestre da guilda decidiu deixá-lo como uma das façanhas lendárias da Valquíria de Cabelos Negros. Uma espécie de lembrança.”
“Entendo.”
Então você está apenas me assediando, pensou Angeline, contudo decidiu não deixar isso afetá-la. Angeline voltou para suas amigas que estavam esperando no saguão.
“Oh, como foi?” perguntou Anessa.
“Algum bom trabalho?” disse Miriam.
“Não, eles disseram que não havia trabalhos para os Ranks S. Portanto, temos o dia de folga.”
As duas pareceram agradavelmente surpresas.
“Bem, isso foi repentino...”
“Sim... O que vamos fazer agora?”
“Primeiro, vamos chegar em casa e nos trocar...”
Elas pensaram que sairiam em outro trabalho e vieram vestidas como aventureiras. No entanto, não gostavam de andar pela cidade com armaduras.
Anessa acenou com a cabeça. “Certo. Então nos encontraremos na taverna de costume.”
“Sim... Até mais.”
Angeline se separou das duas e voltou para seu quarto. Ela estava alugando um quarto individual em uma pequena pensão na esquina do centro da cidade. Considerando sua receita, poderia viver em uma bela e cômoda casa, mas Angeline só não via o benefício. Ela se sentia muito mais acomodada em uma sala onde tudo estava ao alcance do braço.
Angeline tirou sua roupa de aventureira e se sentou na cama. O mundo fora de sua janela era inconfundivelmente outonal; as árvores ao longo da estrada ficaram vermelhas, enquanto a luz que brilhava através destas era suave e calma. Rolando pela cama, relendo a longa carta que recebera de Belgrieve. Nunca deixava de trazer um sorriso ao rosto.
Depois de dobrá-la com cuidado e guardá-la em uma gaveta, Angeline se deitou de cara para cima, olhando para o teto e pensou consigo mesma, acho que vou atrás de algumas amoras. Angeline ficava ansiosa por amoras sempre que o outono chegava a Turnera. Depois que Belgrieve começou a levá-la para as montanhas, a primeira coisa que sempre fazia era procurar amoras. Mesmo agora, podia se lembrar da abundância da natureza que a cercava ali.
Angeline comia geleia de amora e amoras secas desde que chegara à capital, mas faltava-lhes a surpreendente doçura azeda das recém-colhidas. O gosto de uma fresca a faria apertar as bochechas, porém tinham o tipo de fascínio que a fazia pegar uma após a outra.
Quando eu o implorava, papai dava um sorriso preocupado e me alimentava com as amoras pessoalmente... Ela se perdeu em suas memórias.
“Quero ir para casa...”
Sua saudade de casa ficou mais forte quando não havia nada para fazer. O cenário do início do outono de Turnera iria colorir sua mente quando fechasse os olhos. Relembrando a mudança de tonalidade dos campos de trigo plantados na primavera, os rebanhos de ovelhas com pelos um tanto desgrenhados e os jovens pastores e seus cachorros perseguindo-os. Sob o alto céu azul e nuvens esfarrapadas, a floresta que aos pouco assumi tons de vermelho e amarelo e, à noite, a grama brilhante que emitia uma tênue luz. Angeline se lembrou de todas as colinas, grandes e pequenas, que veria quando subisse nas árvores para colher uvas.
Ela ficou lá, deitada na cama por um tempo, mas levantou-se quando lembrou que suas amigas a estavam esperando.
“Quando vou ver o papai...” Angeline suspirou e saiu da sala.
Havia muitas pessoas nas ruas, indo para todos os lados. Orphen era um centro comercial; era tão vasto, tinha vários ramos de guilda para cobrir tudo, e aventureiros suficientes para dar suporte a todos. O número de pessoas pelo qual Angeline passou não poderia ser comparado a qualquer outra cidade por aqui. Angeline ficou bastante emocionada na primeira vez que veio à capital.
Era um incômodo andar no meio da multidão, contudo a taverna não ficava longe. Ela a alcançou em menos de uma hora. Embora ainda não fosse meio-dia, a taverna estava lotada e cheia de conversas animadas. Anessa e Miriam já haviam guardado um lugar para Angeline.
“Ange, você parece super irritada.” Miriam deu uma risadinha.
Angeline deu um gole de sua água, carrancuda. “Não preciso desses dias de folga insignificantes. É como se estivessem zombando de mim...”
“Oh, não seja assim... Não é todo dia que você tira férias.” Anessa coçou a bochecha desajeitadamente.
Angeline balançou a cabeça. Essa garota simplesmente não entendia. “Isto não é um período de férias. As férias seriam quando conseguisse voltar a Turnera, sendo mimada pelo meu pai...”
“O que há com isso...”
“Quer ser mimada? Então devo te mimar? Tudo bem, vou te abraçar. Vamos lá, venha querida.” Miriam sorriu, estendendo as mãos.
Angeline franziu os lábios. “Como se você pudesse substituir meu pai... Se acha que esses peitos enormes lhe dão algum tipo de instinto maternal, está errada.”
“Aww, rude.” Miriam resmungou enquanto se recostava na cadeira. No geral, Miriam usava um manto largo para que seus seios não se destacassem, porém parecia que ela escondia montes esplêndidos por baixo.
Cada uma das três ordenou seus favoritos do cardápio, matando o tempo com conversas divagantes. No entanto, as garotas eram aventureiras por completo, e o assunto, é claro, mudou para os monstros¹.
“Tenho a sensação de que os monstros estão agindo mal nos últimos tempos.”
“Certo, certo. Eles não atacavam cidades com tanta frequência antes.”
Ultimamente, a maioria das missões trazidas à atenção das garotas envolvia caçar um monstro que aparecia perto de uma cidade ou outra. Um bom número desses eram solicitações SOS depois que o ataque já havia começado.
Isso não era muito comum não há muito tempo. Os monstros de alto escalão pelo padrão viviam longe de habitações humanas e se mantinham isolados. Quaisquer pedidos envolvendo-os seriam de pessoas que queriam matérias-primas desses monstros ou queriam desenvolver a terra remota em que residiam. Também havia momentos em que recompensas eram colocadas em certos monstros e aventureiros de alto escalão ganhavam a vida caçando esses. Eliminar um único monstro da classe Calamidade proporcionaria dinheiro suficiente para viver com total conforto por meio ano.
Agora, no entanto, esses monstros apareciam com frequência em torno dos humanos. O que levou a um aumento no trabalho para pessoas como Angeline. Se aqueles poderosos monstros se mantivessem nas periferias ou nas profundezas das masmorras, a guilda não teria motivos para enviar um aventureiro Rank S — poderiam caçá-los em seu próprio ritmo.
Como de costume, Angeline encheu suas bochechas com seu pato refogado favorito de mau humor. “Elhis deferiam abenas vica in zuaa kazas diztantis hmm, nom nom.”
“Não fale com a boca cheia!”
“Nom nom... Engole. Eles deveriam apenas ficar em suas casas distantes... Por que tem de ser tão irritantes, aparecendo perto dos humanos?”
“Bem... Pode pensar que é por isso que temos um emprego."
“Contudo tem que ter um limite!”
“Acha que é verdade que um demônio reviveu?” Miriam perguntou, lambendo o molho de iogurte dos lábios.
“Um demônio...” Anessa ergueu a cabeça. “Soa bem absurdo, mas os monstros estão agindo de forma estranha. Não posso negar isso...”
“Demônios... Não havia um monte deles?”
“Sim, havia setenta e dois demônios de Salomão — se os rumores forem verdadeiros.”
De acordo com a lenda, era uma vez um grande feiticeiro chamado Salomão. Ele era versado em todas as formas de magia e alquimia, dando origem a muitas técnicas e dispositivos mágicos. No entanto, com todo o seu poder, Salomão aos poucos também começou a ter sede de autoridade. Para este fim, produziu formas de vida artificiais imortais conhecidas como homúnculos. Com eles sob seu controle, Salomão logo alcançou o topo do continente — isto é, até que sua loucura o atingiu em seus últimos anos, e este desapareceu para os confins do tempo e do espaço. Os homúnculos ficaram loucos quando perderam seu mestre e passaram a ser conhecidos como demônios. Esses demônios trabalharam sua destruição onde puderam — eles mataram humanos como gado, incendiaram cidades e destruíram vilas sob os pés. Houve até países que caíram por sua causa.
Como resultado, a maioria dos dados valiosos sobre as técnicas de Salomão e as grandes coisas que fez foram perdidos. No final das contas, o legado de Salomão foi destruído por suas próprias mãos. Os demônios foram selados por um herói com a graça da Deusa Viena, e agora dormiam em todo o continente. O mana que esses demônios exsudaram daria origem a monstros; pelo menos, assim era a tradição.
“Bem, é uma lenda, afinal. Não dá pra saber o quanto disso dá para ser acreditado.”
“Mas há lugares onde o mana é mais forte...”
“Certo. E há santuários aqui e ali para apaziguar as almas demoníacas.”
Dizia-se que havia setenta e dois demônios no total. A terra estava pontilhada de santuários para eles, porém era apenas para oferecer-lhes repouso; os demônios não deveriam ser vistos como objetos de adoração. No entanto, a conversa logo se voltou para o culto herético que reverenciava os demônios e Salomão; ultimamente, o culto também se tornou mais ativo.
“Quando chover, transbordará...”
“Essas pessoas querem reviver os demônios, certo?”
“Foi o que ouvi. É bastante preocupante.” Anessa resmungou.
Para isso, Angeline concordou ao instante. “Se um demônio reviver, teremos mais trabalho... E não poderei tirar férias...”
“Não acho que seja esse o problema aqui...”
“Hehe, tenho certeza de que Ange poderia matar um ou dois demônios.”
“Não há razão para que eu não consiga vencer. Sou a filha do Ogro Vermelho, depois tudo.”
Angeline e Miriam começaram a se irritar com o assunto. Para sua surpresa, Anessa poderia imaginar ao acaso exatamente esse cenário se desenrolando se um demônio revivesse, e ela sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
Então, um funcionário ofegante da guilda irrompeu na taverna.
“Ah, graças a Viena encontrei você aqui!”
Angeline franziu a testa. “O que?” perguntou.
“Sim, bem, um dragão terrestre apareceu ao redor das planícies de Orcus... Peço desculpas por incomodá-la em seu tempo livre, mas poderia ir cuidar disso?”
As três meninas trocaram olhares e sorrisos irônicos. Elas não tinham tempo para conversar sobre demônios sem sentido.
Notas:
1. Precisei fazer uma pequena alteração na tradução de alguns termos, então estarei alterando o termo “demônios” que estava usando antes para “monstros”, uma vez que dentro da mitologia da obra “demônios” parece ser um termo voltado para ser usado com os 72 Pilares de Salomão (para mais detalhes, procure ‘A Chave Menor de Salomão’).
Nenhum comentário:
Postar um comentário