sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Monogatari Series — Volume 01 — Capítulo 06

Capítulo 06: Hitagi Crab 006


Nossa cidade nas províncias também fica no interior.

Fica incrivelmente escuro à noite. Uma escuridão total. O contraste com o dia é tal que o interior e o exterior de um edifício abandonado tornam-se quase indistinguíveis.

Para mim, tendo vivido aqui toda a minha vida, isso tão pouco parecia fora de lugar ou estranho e, na verdade, é assim que a natureza deve funcionar, mas de acordo com alguém como Oshino, um errante — o contraste tende a se emaranhar com a raiz do problema na maioria das vezes.

Isso torna a raiz mais fácil de discernir e compreender — ele me disse, também.

De qualquer jeito.

Já passava um pouco da meia-noite.

Senjougahara e eu pedalamos de volta às ruínas do cursinho. Usamos uma almofada da sua casa para o banco traseiro.

Estava com um pouco de fome, pois não havia comido nada.

Quando estacionei minha bicicleta no mesmo local que usei à noite e entrei no terreno pelo mesmo buraco na cerca, encontrei Oshino  esperando por nós lá na entrada.

Como se já estivesse lá há muito tempo.

“O qu...” Senjougahara expressou surpresa com seu traje.

Oshino estava envolto em uma túnica branca — de um sacerdote xintoísta. Seu cabelo desgrenhado estava bem arrumado, e pelo menos parecia mais arrumado e mal era reconhecível pela noite.

As vestes fazem o homem.

Que ele de alguma forma parecia com o papel era, na verdade, ofensivo.

“Você é — um sacerdote xintoísta, senhor Oshino?” perguntou Senjougahara.

“O que? Hum, não?” negou Oshino. “Não sou nenhum monge ou ritualista. É o que estudei na escola, porém nunca fui trabalhar para um santuário. Eu tinha muitas objeções.”

“Objeções...”

“Razões pessoais. Talvez a verdade seja que tudo começou a parecer bobagem para mim. Essas roupas são apenas uma forma de se vestir para a ocasião. Não tinha nenhuma outra limpa, só isso. Nós vamos conhecer um deus, mocinha, então tenho que estar no meu melhor também. Não te disse? Definindo o ambiente. Para Araragi, era segurar cruzes, alhos pendurados no pescoço e lutar com água benta. A situação é o que importa. Não se preocupe, posso não ter boas maneiras, mas sei qual é o problema. Não vou agitar uma vara de improviso ou jogar sal na sua cabeça.”

“Certo...”

Senjougahara parecia um pouco assustada.

Verdade, sua roupa era impressionante, contudo vindo dela parecia um pouco de uma reação exagerada. Me fazendo duvidar.

“Sim, mocinha, você parece limpa e pura. Bem feito. Só para ter certeza, está usando maquiagem?”

“Não, pensei que seria melhor não colocar.”

“Entendo. Bem, por agora, essa foi à escolha certa. E você, Araragi, tomou banho?”

“Sim, não se preocupe.”

Não tive escolha desde que estaria presente, e o pequeno incidente que se seguiu quando Senjougahara tentou dar uma espiada enquanto eu tomava banho poderia permanecer um segredo.

“Hmph. Você, no entanto, parece o mesmo de sempre.”

“O que isso tem a ver com alguma coisa?” retruquei.

Quero dizer, mesmo se estivesse presente, sigo um observador. Não tendo trocado de roupa também, ao contrário de Senjougahara, é claro que parecia o mesmo de sempre.

“Então vamos acabar com isto. Preparei um espaço no terceiro andar.”

“Um espaço?”

“Sim.” Oshino disse e desapareceu na escuridão do prédio. Apesar de suas vestes claramente brancas, ele logo ficou invisível. Peguei a mão de Senjougahara tal como fiz à noite e o segui.

“Sabe, Oshino, você diz ‘acabar com isto’ e está agindo relaxado num nível estranho, mas tem certeza?”

“Certeza? Sobre o quê? Chamei um menino e uma menina de tenra idade aqui fora no meio da noite. Qualquer adulto gostaria de terminar o mais rápido possível.”

“O que estou perguntando é se será tão fácil derrotar este caranguejo, ou seja lá o que for.”

“Que linha de pensamento violenta, Araragi. Algo bom aconteceu com você?” Oshino encolheu os ombros sem nem mesmo se virar. “Desta vez não é como a pequena Shinobu no seu caso ou aquele gato obcecado pela senhorita presidente da classe. E não se esqueça, Araragi, sou um pacifista. Minha política básica é obediência total não violenta. Tanto seu caso quanto o da senhorita presidente de classe, ambos foram agredidos com malícia e hostilidade. Este caranguejo é diferente.”

“Não te disse? Estamos lidando com um deus. Apenas está lá e não fez nada. É como é — está apenas lá. Araragi, assim que as aulas acabam, você vai para casa também, não é? É assim. A mocinha está vacilando sozinha.”

Não faz mal, não ataca.

Não possui.

‘Sozinha’ soou meio maldoso, mas Senjougahara não disse nada. Será que não tinha pensamentos relativos ao que foi dito, ou dado ao que se seguiria, tentou não reagir muito às palavras dele?

“Então, Araragi...” aconselhou Oshino. “Seja bani-lo ou chutar sua bunda, jogue fora essas ideias perigosas. Estamos prestes a pedir um favor a um deus. Seja humilde.”

“Um favor, hein?”

“Certo. Um favor.”

“E se pedirmos com educação, ele vai dizer aqui e devolver? O peso ─ de Senjougahara. O peso do seu corpo.”

“Não vou dizer com certeza, contudo é provável. Não é como passar a véspera de Ano Novo em um santuário. Bem, no geral não são tão teimosos a ponto de recusar um pedido sincero. Os deuses são um grupo bastante discreto. Em especial os japoneses. Pondo de lado os humanos como um grupo, os deuses não se importam nem um pouco com humanos em um nível individual. Eles realmente não o fazem, ok? Na verdade, diante de um deus, você, eu e a mocinha ali somos indistinguíveis. Idade, sexo, peso, nada disso importa, e nós três somos iguais para eles, humanos.”

Nós éramos─

Não apenas semelhantes, mas iguais para os deuses.

“Hã... Então isso é fundamentalmente diferente de uma maldição.”

“Ei...” Senjougahara disse, sua voz cheia de resolução. “Aquele caranguejo — ainda está perto de mim?”

“Está. Está lá e em toda parte. Contudo se buscamos seu advento aqui — certos passos serão necessários.”

Chegamos ao terceiro andar.

Entramos em uma das salas de aula.

Uma corda de proteção de palha fora pendurada nas paredes. As cadeiras e mesas haviam sido levadas para outro lugar, e um altar estava colocado na frente do quadro-negro. Considerando que o espaço estava completo com estandes cheios de oferendas, não poderia ter sido montado depois de nossa conversa de antes. Havia pequenas lâmpadas que ficavam em cada um dos quatro cantos da sala e a preenchiam com uma fraca luz.

“Pense nisso como um campo espiritual.” explicou Oshino. “O reino da divindade, como dizem. Não é nada para se preocupar. Não precisa ficar tão nervosa, mocinha.”

“Não — não estou nervosa.”

“É assim? Fantástico.” Oshino disse, entrando na sala de aula. “Os dois poderiam abaixar a cabeça e abaixar os olhares?”

“O que?”

“Já estamos diante de um deus.”

Então — nós três nos enfileiramos em frente ao altar.

Essas são medidas nada parecidas com as que tomou por mim ou Hanekawa ─ falando em nervoso, sou eu quem está se sentindo nervoso. Um estado de ânimo tão sufocante — só esse ambiente estava me fazendo me sentir estranho.

Meu corpo encolheu.

Não pude deixar de ficar atento.

Eu mesmo sou um daqueles jovens não religiosos de hoje em dia que não conseguem distinguir entre o xintoísmo e o budismo. E, no entanto, meu coração era o lar de algum instinto ou outra coisa que reagiu de acordo a esta mesma situação.

Situação.

Espaço.

“Ei ─ Oshino.”

“O que foi, Araragi?”

“Estava pensando, se é sobre a situação e o espaço, eu deveria estar aqui? Seja como for, sou um intruso.”

“Você não está exatamente se intrometendo. Tudo deve estar bem, porém nunca se sabe, coisas acontecem. Coisas sempre podem acontecer. E se acontecerem, Araragi, você vai agir como um muro para a mocinha.”

“Eu vou?”

“Para que mais serve esse seu corpo imortal?”

“...”

Bom, essa com certeza é uma frase legal, porém tenho certeza de que não é para servir de muro para a Senjougahara.

Para começar, não sou mais imortal.

“Araragi...” Senjougahara suplicou sem perder o ritmo. “Me prometa que vai me proteger.”

“Por que um personagem de princesa de repente?”

“Qual é o grande problema? De toda forma deve estar planejando se livrar do seu eu inútil assim que amanhecer.”

“Está descaracterizada!”

Além do mais, palavras que só seriam sussurradas nas suas costas foram ditas diretamente na minha cara como de costume. Estar frente sua língua ácida me fez pensar se precisava considerar com seriedade os males que fiz em minha vida passada.

“Claro, não estou pedindo que o faça de graça.”

“Vai me dar algo?”

“Quão superficial de sua parte buscar uma recompensa material. Não seria um exagero dizer que toda a sua humanidade é resumida por essa pequena resposta triste.”

“Então o que fará por mim?”

“Hmm... Você é a escória que tentou equipar a roupa de escrava em Nera no Dragon Quest V, contudo interromperei meus planos de difundi-lo.”

“Nunca ouvi falar de ninguém fazendo isso!”

Além de que, difundi-lo era sua premissa.

Que mulher horrível.

“Deveria ser óbvio que não pode equipá-la... Isso é como um imbecil, ou devo dizer 'estúpido'?”¹

“Espere um segundo! Você está agindo triunfante como se fosse um insulto engenhoso, mas alguma vez já fui comparado a um cachorro de alguma maneira?”

“Certo...” Senjougahara riu. “Que injusto da minha parte. Para os cães.”

“Rk!”

Inserindo, naquele momento, um pequeno detalhe que de outra forma soaria banal... Essa mulher tinha domínio completo sobre todas as coisas insultuosas.

“Tudo bem, então, esqueça,” disse ela. “Um covarde como você pode correr para casa com o rabo entre as pernas e jogar jogos solitários com uma arma de choque como faz todas as noites.”

“Que tipo de jogo pervertido é esse?”

Ou melhor, pare de espalhar um rumor insidioso atrás do outro sobre mim.

“Quando se está no meu nível, Araragi, é fácil ver através de uma coisinha frágil como você. Conheço todos os seus segredos mais idiotas.”

“Como conseguiu falar mal e pensar em um insulto ainda pior? De que demônio você é a amada?”

Senjougahara era insondável a esse respeito.

Ela deve ter esperado responder ‘o mais sombrio’.

“De qualquer forma, Oshino,” reprisei. “Por que me pedir? Não serviria essa vam ─ Shinobu? Como aquela vez com Hanekawa.”

Oshino se limitou a responder:

“Já passou da hora de dormir.”

“...”

Uma vampira dormindo à noite?

Foi sem dúvida comovente.

Oshino pegou um recipiente com saquê das oferendas e o entregou a Senjougahara.

“Hm? E agora?” perguntou Senjougahara, confusa.

“Beber álcool pode fazer com que se aproxime dos deuses — ao que parece. Vá em frente, no caminho de se soltar.”

“... Sou menor de idade.”

“Não precisa ir tão longe a ponto de ficar bêbada. Só um pequeno gole.”

“...”

Depois de um momento de hesitação, Senjougahara engoliu em seco enquanto o observava. Ela devolveu o recipiente a Oshino, que o devolveu ao seu local original.

“Ok. Vamos nos acalmar.” disse Oshino, ainda olhando para frente — suas costas viradas para Senjougahara. “Vamos começar nos acalmando. A situação é o que importa. Enquanto criamos um espaço, as boas maneiras não importam — depende do seu estado de espírito no final, mocinha.”

“Meu estado de espírito...”

“Relaxe. Comece baixando a guarda. Este local é seu. É natural para você estar aqui. Mantendo a cabeça baixa e fechando os olhos — vamos contar. Um, dois, três...”

De verdade─

Não havia necessidade para eu o fazer, mas me peguei acompanhando, fechando os olhos e contando. Como fiz, veio para mim.

Preparando o ambiente.

Nesse sentido, não apenas o traje de Oshino, mas a corda de proteção de palha, o altar, e até mesmo a viagem para casa para tomar banho eram todos requisitos para prepara-lo — ou, para levá-lo adiante, definir a condição mental de Senjougahara.

Estava perto de uma sugestão.

Uma sugestão hipnótica.

Comece limpando sua autoconsciência, faça-a baixar a guarda, propiciar um relacionamento de confiança com ele — embora estivesse fazendo isso de uma maneira completamente diferente, não tinha sido menos necessário para mim e Hanekawa. Eles dizem que ‘acredite e será salvo’, e fazer Senjougahara aceitar, em poucas palavras — foi crucial.

Senjougahara havia dito ela mesma.

Não confiava mesmo um meio em Oshino ainda.

Entretanto─

Isso não resolveria.

Isso não seria suficiente.

Porque ─ uma relação de confiança era necessária.

Oshino não poderia salvar Senjougahara, ela estava sendo salva por si mesma — esse era o verdadeiro significado de suas palavras.

Pouco a pouco abri meus olhos.

Olhei em volta.

Lâmpadas.

A chama das lâmpadas nos cantos — ondulou.

Um vento soprou pelas janelas.

Chamas trêmulas — que podiam ser apagadas a qualquer momento.

No entanto, sua luz era certa.

“Se sente calma?”

“─ Sim.”

“Tudo bem — então vamos responder a algumas perguntas. Você decidiu responder às minhas perguntas. Mocinha, qual é o seu nome?”

“Hitagi Senjougahara.”

“Que escola frequenta?”

“Escola Secundária Particular Naoetsu.”

“Quando é seu aniversário?”

“Sete de julho.”

Uma sessão de perguntas e respostas cujo significado não estava claro, que na verdade parecia totalmente sem sentido, se desdobrou.

De maneira sensível.

Em um ritmo constante.

Oshino ainda estava de costas para Senjougahara.

Ela também ocultou o rosto, os olhos fechados.

Sua cabeça abaixada, abatida.

Parecia quieto o suficiente para que respirações e batimentos cardíacos se fizessem ouvir.

“Quem é o seu autor favorito?”

“Kyusaku Yumeno.”

“Que tal uma história embaraçosa de quando era criança?”

“Não quero contar.”

“Que tipo de música clássica gosta?”

“Não sou muito versada em música.”

“Como se sentiu quando se formou no ensino fundamental?”

“Só que estaria cursando o ensino médio em seguida. Porque estava indo de uma escola pública para outra.”

“Como era o garoto que foi seu primeiro amor?”

“Não quero contar.”

“Em sua vida até agora,” Oshino disse no mesmo tom firme. “Qual experiência te doeu mais?”

“...”

Aqui ─ Senjougahara ficou em branco.

Nem mesmo um ‘não quero contar’ ─ só silêncio.

Percebi então que Oshino havia imbuído de significado apenas essa pergunta.

“Qual é o problema? A experiência mais dolorosa da sua vida. Estou perguntando sobre suas memórias.”

“... M.”

O clima — não era aquele em que ela pudesse permanecer em silêncio.

Não podia recusar com um ‘Não quero contar’. Essa — é a situação.

O espaço que se formou.

De acordo com o plano — as coisas avançaram.

“Minha mãe─”

“Sua mãe...”

“Enganada por uma religião ruim.”

Ela foi enganada por alguma nova religião duvidosa.

Senjougahara havia me contado.

Que sua mãe deu a eles tudo o que possuíam e até mesmo assumiu uma dívida, até que sua família se desfez. Que mesmo depois do divórcio, seu pai ainda trabalhava sem parar para pagar os empréstimos.

Foi essa — a experiência que mais a magoou?

Mais do que — ser privada de seu peso?

Claro que foi.

Como não poderia doer mais.

Mas — isso...

Isso...

“É tudo?” Oshino perguntou.

“... O que quer dizer?”

“Se for tudo, não é grande coisa. A liberdade de fé é reconhecida pelas leis japonesas. Não, a liberdade de fé é reconhecida como um autêntico direito humano. O que sua mãe reverencia ou ora é apenas uma questão de metodologia.”

“...”

“Então — não é tudo,” afirmou Oshino vigorosamente. “Experimente e diga. O que aconteceu?”

“Como disse — m-minha mãe — por minha causa ela foi enganada por tal religião — foi enganada —”

“Sua mãe foi enganada por um culto — então o que.”

Então o que.

Senjougahara mordeu o lábio inferior com força.

“U-Um membro executivo do grupo religioso veio a nossa casa com minha mãe.”

“Um membro executivo. Essa pessoa veio, e então?”

“E-Ele disse que seria purificador.”

“Purificar? Seria purificador? Disse que seria purificador — e então?”

“Disse que era um ritual — me agarrou — e,” Senjougahara disse, a dor se misturando em sua voz. “M-Me atacou.”

“Atacou ─ no sentido de ficar violento? Ou ─ em um sentido sexual?”

“No sentido sexual. ─ Sim, aquele homem...” Senjougahara continuou como se estivesse suportando uma variedade de coisas. “Tentou me estuprar.”

“... Entendo.”

Oshino acenou com a cabeça — quietamente.

Senjougahara─

A fixação na castidade que assumiu uma forma não natural, sua─

Cautela.

A mentalidade altamente defensiva e a mentalidade agressiva.

Parecia que faziam sentido agora.

O mesmo aconteceu com sua reação excessiva ao traje ritual de Oshino.

Para uma não profissional como Senjougahara, o fato era que o xintoísmo também era uma religião.

“Aquele — hipócrita lascivo—”

“Essa é a perspectiva budista. Uma religião pode até endossar a morte de um dos seus. Não adianta generalizar. No entanto você disse que tentou estuprar — então terminou em uma tentativa?”

“O golpeei com meus sapatos com tamancos que estavam por perto.”

“... Isso foi corajoso.”

“Ele sangrou pela testa — e estava se contorcendo no chão.”

“E isto a salvou?”

“Me salvou.”

“Bom para você.”

“Mas — minha mãe não tentou me salvar.”

Mesmo que ela estivesse lá o tempo todo, assistindo ─ Senjougahara disse de forma categórica.

Sem rodeios, Senjougahara continuou com sua resposta.

“Na verdade — ela me repreendeu.”

“Isso é — tudo?”

“Não — porque feri aquele líder, minha mãe–”

“Sua mãe foi penalizada?” Oshino terminou a linha de Senjougahara em seu lugar.

As consequências de tal cena não precisavam ser previstas por Oshino — mas isso pareceu ter um efeito sobre Senjougahara.

“Sim.” ela afirmou — solene.

“É esperado — visto que sua filha feriu um dos líderes.”

“Sim. E dessa forma — tudo o que tínhamos. A casa, a terra — até mesmo entrar em dívidas — minha família quebrou. Quebrada por completa — quebrou por completo e, ainda assim, continua a desmoronar. Continua, senhor.”

“Como está sua mãe agora?”

“Não sei.”

“Não tem como você não saber.”

“É provável — que ainda esteja praticando sua fé.”

“Ainda.”

“Sem ter aprendido nada — sem envergonhar-se.”

“Isso dói também?”

“Isso — machuca.”

“Por que dói? Sua mãe não tem mais relação contigo.”

“Às vezes me pergunto. E se, na época, eu — não tivesse resistido, então pelo menos — poderia não ter chegado a isso.”

Poderia não ter quebrado.

Poderia não ter quebrado.

“Você acha?” perguntou Oshino.

“Acho — acho que sim.”

“Realmente pensa assim.”

“... Sim.”

“Então esse, mocinha — é o seu pensamento e fardo,” disse Oshino. “Não importa o quão pesado seja, é o que precisa carregar nos ombros. Deixá-lo para outra pessoa — não é o caminho a percorrer.”

“Deixar para outra pessoa — não é—”

“Não desvie os olhos — abra-os e dê uma olhada.”

Então─

Oshino abriu os olhos.

Senjougahara também abriu os olhos — suavemente.

As lâmpadas nos cantos.

Sua luz vacilou.

As sombras também.

Todas as nossas três sombras também — vacilaram.

Balançaram para frente e para trás.

Para trás — e para frente.

“Ah. Ahhhhh!”

Senjougahara ─ gritou.

Ainda estava conseguindo manter a cabeça baixa — mas sua expressão estava transbordando de choque. Seu corpo tremia e começou a jorrar suor.

Estava perdendo o controle.

Ela ─ Senjougahara.

“Você — ve algo?” questionou Oshino.

“E-Eu vejo. É como aquela vez — como aquela vez, um caranguejo enorme, um caranguejo — eu o vejo.”

“Vendo-o agora. Bem, não vejo nada.”

Foi então que Oshino se virou pela primeira vez, em minha direção.

“Pode ver alguma coisa, Araragi?”

“Eu — não.”

Não havia nada para ver.

Apenas a luz oscilante.

E a sombra vacilante.

Isso era — o mesmo que não ver.

Não consegui identifica-lo.

“Não vejo — nada.”

“O ouviu.” Oshino se virou para Senjougahara. “Aposto que não ve nenhum caranguejo, certo?”

“N-Não — é visível. Nítido. Para mim.”

“Não é uma ilusão?”

“Não é uma ilusão — estou falando sério.”

“Entendo. Então─”

Oshino traçou a linha de visão de Senjougahara.

Como se algo — estivesse lá.

Como se alguma coisa — estivesse lá.

“Então, o que precisa dizê-lo?”

“Preciso — dizer.”

Foi então que aconteceu.

Duvido que ela tivesse algum motivo, porém.

Não poderia querer dizer nada com isso, mas.

Senjougahara ─ ergueu a cabeça.

Provavelmente era a situação.

O espaço se tornou demais para ela.

Deve ter sido tudo.

Contudo as circunstâncias não importavam.

As circunstâncias humanas mesquinhas não importavam.

No mesmo momento — Senjougahara saltou para trás.

Voou.

Como se não tivesse peso algum, seus pés não tocaram ou se arrastaram pelo chão, ela se dirigiu até o fundo da sala de aula, do lado oposto ao altar, e foi jogada no quadro de avisos.

Jogada contra ele.

Ela ficou lá e não caiu.

Não caiu.

Como se tivesse sido presa, ficou lá.

Como se fosse uma crucificação.

“S-Senjougahara!”

“Oh, homem” Oshino disse, consternado. “Pensei tê-lo dito para agir como seu muro, Araragi. Mais uma vez, você é inútil quando mais importa. Ficar como um muro literal não pode ser tudo o que faz.”

Desanimador ou não, não pude evitar porque a velocidade dela ultrapassou meus olhos.

Como se a gravidade estivesse funcionando naquele vetor, Senjougahara parecia estar pressionada, empurrada contra o quadro de avisos.

Seu corpo — começou a se enterrar na parede.

Parecia pronto para rachar e desmoronar.

Ou Senjougahara estava prestes a ser esmagada.

“Uh... U-Ugh...”

Não foi um grito — mas um gemido.

Estava sofrendo.

Ainda ─ continuei sem ver nada.

Tudo o que vi foi Senjougahara se prendendo, aparentemente, na parede.

Contudo. No entanto — devia estar vendo.

Um caranguejo.

Um grande — caranguejo.

O Caranguejo do Peso.

“Depois de termos chegado até aqui. Caramba, que deus impaciente, não pode nem esperar nós começarmos a orar. Tão amigável. Gostaria de saber se alguma coisa boa aconteceu com ele.”

“E-Ei, Oshino─”

“Sim, já sei. Mudança de planos. Uma pena, contudo isso é normal. De qualquer forma, qualquer maneira está bem pra mim.”

Dizendo isso com um suspiro, porém com um andar seguro, Oshino se aproximou do corpo crucificado de Senjougahara.

Aproximou-se dela sem fazer barulho.

Então, sua mão se estendeu casualmente.

Segurou um pouco na frente do rosto de Senjougahara.

Facilmente ─ soltou.

“Hup.”

Em um movimento, como se estivesse realizando um arremesso de judô ─ Oshino pegou a coisa que tinha em sua mão com firmeza e, com toda a sua força — bateu-a contra o chão. Não houve nenhum som, nenhum redemoinho de poeira. Contudo ele bateu assim como Senjougahara havia feito, só que mais forte. Então, no momento seguinte, no mesmo fôlego, pisou em cima e golpeou.

Estava pisando em um deus.

De uma maneira consumadamente violenta.

Irreverente, sem um pingo de deferência ou piedade.

O pacifista menosprezou um deus.

“... Gk.”

Para mim, parecia apenas que Oshino havia imitado tudo — realizado uma pantomima² bastante experiente, como ainda estava agora, ao que parecia se equilibrando em uma perna com autoconfiança. Enquanto isso, para Senjougahara, que podia ver muito bem─

Pelo que aparentava, era o tipo de visão que faz seus olhos se arregalarem.

Ao que parece, é esse tipo de visão.

Contudo um segundo depois, sem dúvida tendo perdido o apoio, seu corpo deixou de estar preso à parede e se caiu no chão. Como não estava muito alta e não tinha peso, o impacto da queda não poderia ter sido muito forte, porém não pôde se preparar, tendo caído de repente e de surpresa. Parecia que havia batido com força na perna.

“Você está bem?” Oshino perguntou para checar Senjougahara antes de olhar para seus próprios pés. Na verdade ─ apenas avaliando-a.

Avaliando, com olhos estreitos.

“Não importa o tamanho do caranguejo, na verdade, quanto maior for, vire-o de cabeça para baixo e pronto. Seja qual for a criatura, se tiver um corpo plano, não posso deixar de pensar que ela existe para ser pisada, olhando-a de lado ou de qualquer outra forma — dito isso, Araragi, o que acha?” Oshino se dirigiu a mim de repente. “Com certeza poderíamos refazer desde o início, no entanto será um aborrecimento. Em minha opinião, seria mais limpo para eu continuar pisando e esmagando.”

“Mais limpo? E ‘pisando e esmagando’ é terrivelmente vívido... Ela só levantou a cabeça por um momento. Só isso─”

“Eu não diria só. Ou melhor, só é o suficiente. No final das contas, essas coisas são sobre o seu estado de espírito — se não podemos ser amáveis e pedir um favor, então temos que recorrer a ideias perigosas. Como quando lidamos com o demônio ou o gato. Se não podemos falar, então só existe a guerra — certo? Em certo sentido, é como a política. Bem, apenas esmagá-lo resolveria os problemas de senhorita em um nível superficial. Seria só na superfície, um tratamento paliativo que não toca na raiz, apenas aparando o mato, por assim dizer, um método que não estou ansioso para seguir, mas talvez nesta ocasião deva apenas fazê-lo.”

“A-Apenas fazê-lo?”

“Veja, Araragi,” Oshino disse com um sorriso inquietante. “Desprezo absolutamente os caranguejos.”

São difíceis de comer, explicou.

E com essas palavras—

Com essas palavras, sua perna — flexionou.

“Espere.”

A voz veio de trás de Oshino.

Desnecessário dizer que era Senjougahara.

Esfregando o joelho esfolado, ela se sentou.

“Espere — por favor. Senhor Oshino.”

“Espere─” Oshino mudou seu olhar de mim para Senjougahara, o sorriso malicioso ainda em seu rosto. “Esperar o quê, mocinha?”

“Estava apenas — surpresa antes,” Senjougahara disse. “Posso fazê-lo. Por mim mesma.”

“... Ham.”

Oshino não estava retirando a perna.

Continuou pisando-o.

Mas também sem esmagar, ele disse a Senjougahara: “Tudo bem, tente.”

Disse isso─

Incrivelmente, do meu ponto de vista, Senjougahara ajoelhou-se, endireitou sua postura, colocou as mãos no chão — em direção a ele, aos pés de Oshino, e devagar — abaixou a cabeça.

Estava — se prostrando.

Hitagi Senjougahara ─ estava realizando uma dogeza³ por sua própria vontade.

Assumindo a pose livremente, sem que a propusessem.

“─ Sinto muito.”

Começou com palavras de desculpas.

“E — muito obrigado.”

Seguiu com palavras de gratidão.

“Contudo — está tudo bem agora. Esses são — meus sentimentos, meus pensamentos — e minhas memórias, então vou carregá-los. Não foi certo da minha parte perdê-los.”

E então, por fim─

“Por favor. Imploro que me conceda este favor. Por favor, devolva meu peso.”

Ao fim, palavras de súplica, como se rezasse.



“Por favor, me devolva — minha mãe.”



Wham.

Era o som do pé de Oshino — batendo no chão.

Não de esmagar a coisa, presumi.

Não, havia desaparecido.

Tal como era — deve ter retornado de estar lá como uma coisa natural a não estar lá como algo natural.

Enviado de volta.

“Ah─”

A Meme Oshino, que permaneceu imóvel, sem falar.

A Hitagi Senjougahara, que manteve sua postura apesar de saber que tudo havia acabado, começou a soluçar, gemendo alto.

De pé e olhando para eles, Koyomi Araragi vagamente, vagamente se perguntou: Ah, talvez Senjougahara seja uma completa tsundere
4.



Notas:
1. Nessa sentença, Senjougahara chama Araragi de “dogbrained”, que seria estúpido e, como a maioria deve saber “dog = cachorro”, por essa razão seguem falando de cachorros nas frases seguintes.
2. Pantomina é um teatro gestual que faz o menor uso possível de palavras e o maior uso de gestos através de mímica. É a arte de narrar com o corpo.
3. Dogeza é um elemento da etiqueta tradicional japonesa que envolve ajoelhar-se no chão e se prostrar enquanto toca a cabeça no chão. É usado para mostrar deferência a uma pessoa de status superior, como pedido de desculpas profundo ou para expressar o desejo de um favor dessa pessoa.
4. Tsundere é um termo japonês para uma personalidade que é inicialmente agressiva, que alterna com outra mais amável. Tsundere é uma combinação de duas palavras, tsuntsun e deredere. Tsuntsun é a onomatopeia para "frio, brusco", e deredere significa "tornar-se amável/amoroso".

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