Capítulo 04.1: Quando o Verão Estava a Todo Vapor
Quando o verão estava a todo vapor, uma carta estranhamente longa chegou de Angeline. Era como se estivesse anotando tudo o que nunca teve a oportunidade de escrever antes. Belgrieve demorou a ler, depois releu ainda mais devagar.
“Deveria tê-la ensinado a redação correta também.” concluiu.
Estava cheio de erros ortográficos e era difícil dizer que sua caligrafia era correta. No entanto, a carta transbordava de seus pensamentos e emoções.
“Ela está fazendo o melhor que pode.”
Belgrieve não conseguiu conter a risada quando leu a história sobre como Angeline não havia retornado pela terceira vez, apenas para fazer uma careta ao lembrar que ele próprio também havia caído em desânimo enquanto esperava ansiosos pelo retorno da filha. Belgrieve ficou um pouco triste quando leu sobre Angeline ter derrotado uma colônia de formigas giga e wyvern sem suar; Ocorreu-lhe: Qualquer coisa que possa ensiná-la não será de mais utilidade. Assistir ao crescimento de uma criança nem sempre era luz do sol e arco-íris, e também vinha com sua cota de solidão.
Em qualquer caso, Belgrieve teria que enviar uma resposta. Escreveu devagar e pensativamente. Até agora, suas cartas sempre foram simples e diretas — não queria causar-lhe saudades de casa de repente — porém uma carta tão longa precisava de uma resposta cuidadosa.
Belgrieve escreveu linha sobre linha de tudo o que aconteceu na aldeia, tudo em sua mente e quaisquer palavras de encorajamento que pudesse oferecer. Assim que terminou, guardou a carta e se espreguiçou. Talvez escrevesse mais depois, mas por enquanto, se levantou e saiu de casa.
Já era noite e, embora o céu estivesse pontilhado de estrelas, ainda estava bastante escuro. Uma floresta crescia atrás de sua casa e, dos galhos das árvores, pendurava-se um bom número de toras de madeira suspensas por cordas — mais de trinta ao todo.
Belgrieve deu um passo para o centro deles, sacou sua espada embainhada e a usou para golpear um. A tora voou na direção oposta, é claro, contudo balançou de volta na sua direção.
Em seguida atingiu outro, depois outro. As toras voariam de um lado para o outro, no entanto sempre encontrariam o caminho de volta para Belgrieve. Então se esquivava, aparava ou evitava as toras.
Não havia como confiar em sua visão na escuridão, porém Belgrieve continuava a se esquivar dos balanços irregulares da madeira que o assaltava. Conseguiu fazer isso mesmo quando as toras se chocaram, mudando de repente suas trajetórias.
Aos poucos, as toras começaram a se acalmar. Suas oscilações foram ficando cada vez menores até que por fim pararam.
Belgrieve suspirou e disse. “Estou perdendo minha vantagem.” ele esfregou o ombro — o único lugar que uma tora conseguiu atingir. “Não posso deixar Ange rir de mim.”
Belgrieve bateu nas toras uma vez mais. Praticar seus golpes de espada sempre fez parte de sua rotina diária, mas quando se dedicou a treinar assim, o trouxe de volta aos dias em que havia tentado pela primeira vez como aventureiro.
No dia seguinte, estava fazendo uma careta devido às dores musculares enquanto caminhava para o campo.
“Droga, acabei exagerando...”
No entanto, Belgrieve também estava aliviado por ter levado apenas um dia para que as dores musculares se instalassem. Os fazendeiros de sua mesma geração riam e diziam: “Você sabe que está envelhecendo de verdade quando até a dor está acabando.” Comparado a eles, seu próprio corpo ainda era robusto.
Ele tinha que recuperar seus instintos, e precisaria de um combate real para isso. Embora já tivesse mais de quarenta anos, buscava estímulo como um garoto. As façanhas de Angeline estão tendo um impacto sobre mim na minha idade? pensou enquanto acariciava a barba.
Enquanto enxugava o suor que havia trabalhado cuidando do campo, viu Barnes correndo.
“Meu velho está te chamando, Sr. Bell.”
“Kerry?”
Belgrieve seguiu Barnes até onde Kerry estava fazendo uma cara bastante conflituosa. Sentados ao seu lado estava Maurice, o padre, e vários lenhadores que reconheceu.
“O que vocês estão reunidos aqui?”
“Sim, é sobre isso, Bell. A palavra é que um demônio tem aparecido nas florestas.”
Oh sério? Belgrieve se perguntou. Outro dia, quando guiou as crianças pela montanha, ocorreu-lhe que o número de demônios estava sem dúvida aumentando. Então proibiu as crianças de entrar nas montanhas de novo, mas parecia que os demônios finalmente haviam chegado aos arredores da vila.
Foram os lenhadores que encontraram o demônio. Havia apenas um inimigo, e os homens estavam armados com machados, então conseguiram expulsá-lo; no entanto, agora hesitavam em retornar àquelas florestas.
“Veja, temos que reconstruir a igreja para o festival de outono e também estamos conversando sobre a construção de uma escola. Precisamos de madeira, porém não vai acontecer neste ritmo.”
“Eu me sinto mal por chamá-lo todas às vezes, Bell. Contudo demônios são demais para nós...”
Bell deteve os lenhadores lá. “Não se preocupe com isso. Como era o demônio?”
“Parecia um lobo — um lobo cinza. Nós só vimos um deles, entretanto pode ser parte de uma alcateia.”
Caçadores Cinza... Sozinhos, são apenas de Rank E na escala de aventureiro, contudo são perigosos o suficiente para aldeões não treinados. Belgrieve assentiu e se voltou para Maurice, o padre.
“Padre, você poderia reunir algumas medidas de proteção contra demônios, apenas no caso?”
“Claro.” o padre acenou com a cabeça humildemente.
“Quero que todos ajudem a colocar as defesas.”
“Ei, Bell. Você vai ficar bem sozinho? Não estamos acostumados a batalhar, porém se for apenas para fazer os números...”
“Sim, nós conhecemos os caminhos pela floresta muito bem...”
Os lenhadores ofereceram seus serviços, no entanto Belgrieve recusou com firmeza, esboçando um sorriso. Ficaria tudo bem com um aventureiro cuidando de suas costas, mas ter que lutar enquanto defendia lenhadores inexperientes tornaria a tarefa mais perigosa.
“Vou ficar bem. Concentrem-se em proteger a vila. Para não mencionar,” disse Belgrieve com um sorriso. “Só estou com vontade de treinar.”
Todos aqueles reunidos engoliram em seco ao ver o rosto de aventureiro que Belgrieve raras vezes mostrava.
Assim que voltou para casa, Belgrieve trocou suas roupas de trabalho para um conjunto mais móvel. Pegou sua espada e pendurou bolsas contendo várias ferramentas em seu cinto. Já fazia um tempo desde que saíra para caçar demônios assim. Acontecera um punhado de vezes desde que retornou a Turnera, porém essas ocasiões eram poucas e raras. Cada vez, ele sentia uma excitação que pensava que o havia deixado há muito tempo. Como vou lutar? Que novos truques devo testar? É como se seu eu de quinze anos estivesse falando com seus ossos de quarenta anos.
Dano um sorriso irônico e murmurou para si mesmo: “Não estamos brincando aqui, sabe?”
Já sei, entendo, o garoto respondeu mal-humorado. Belgrieve sorriu e acariciou sua barba, rolou os ombros e bateu com a perna no chão, testando a condição de seu corpo. Estava se sentido bem e ainda estava se movendo sem problemas.
“Tudo bem, vamos lá.”
Belgrieve saiu de casa e foi para a floresta. A vila de Turnera ficava voltada para o lado leste da montanha. Uma densa floresta se espalhava ao redor de sua base e subia pela encosta. O outro lado da vila era feito de terreno plano, esparsamente pontilhado por pequenas árvores.
No momento em que pisou na floresta, o ar foi preenchido por um ar frio e peculiar. Estava muito mais frio do que quando trouxera as crianças, apesar do fato de que os dias mais quentes do verão estavam chegando.
“Hmm...” Belgrieve imaginou que tipo de demônio poderia ser enquanto pressionava com cautela. Belgrieve já tinha uma vaga ideia quando ouviu a história pela primeira vez, entretanto parecia que algo maior do que um caçador cinza estava à espreita.
Aos poucos, começou a sentir presenças o rodeando. De repente, de pé em uma saliência acima dele estava um demônio vestido em pele prateada e envolto em uma camada de ar frio — um caçador gélido.
“Sabia... Você veio do norte, garotão?” Belgrieve perguntou, puxando sua espada.
Um caçador gélido era um demônio de Rank C. Ostentava a aparência de um grande lobo branco-prateado, seu corpo era a todo momento cercado de frio e podia exalar um hálito gelado de sua boca. Era muito mais perigoso do que qualquer um dos demônios de Rank E por aqui.
Presumivelmente, pensou Belgrieve, os caçadores cinza e outros demônios começaram a se reunir, atraídos pelo mana que emanava do caçador gélido. Demônios menores se reuniam em torno dos mais poderosos, e não era raro que algum dia se transformasse em uma colônia.
O caçador gélido uivou e, em resposta, as presenças ao redor voaram para Belgrieve. Um bando de caçadores cinza saltou das sombras das árvores.
Belgrieve abaixou sua postura e cortou o primeiro, então usou sua perna de pau como um pivô para virar e tirar o que estava vindo por trás. Em seguida, bateu com a perna esquerda no chão para pular. Ele continuou treinando mesmo depois de perder a perna, e agora podia fazer o uso completo dos movimentos, apenas possíveis, porque não havia nenhuma sensação de dor na perna artificial. A maneira como se portava não ficou aquém de alguém em perfeitas condições. Deslizando pelo chão dessa maneira, não demorou muito para que exterminasse o último caçador cinza. Voltando então seu olhar para seu líder.
“Ainda assistindo lá do alto, hein? Muito arrogante, não é.”
O caçador gélido rosnou. Agora reconhecia Belgrieve não como uma presa, mas como um inimigo que precisava derrotar. O que antes eram olhos zombeteiros, agora o fitavam com forte hostilidade. Em um instante, o demônio estava descendo a saliência com a força de uma avalanche. O ar frio ao redor uivou, soprando contra Belgrieve com mais força do que os fortes ventos do norte. Uma membrana de gelo desceu sobre o solo.
Então o demônio rugiu um rugido grave, e junto veio seu sopro poderoso. Belgrieve esperava por essa ação e evitou com facilidade; no entanto, o caçador gélido usou seu hálito como uma cortina de fumaça, passando direto por ele. Suas garras afiadas e presas brilhavam como gelo.
Esse também, Belgrieve se esquivou como se tivesse previsto. Quando se cruzaram, Belgrieve lançou uma pequena bola de sua bolsa. O caçador gélido abriu sua boca para mordê-la, e a bola rapidamente desapareceu em sua garganta.
O demônio teve um ataque de tosse. A criatura devorou uma pílula feita de um composto de pimenta malagueta, cebola e outros sabores impactantes.
“Entendo, então ainda funciona nos Ranks C.” comentou ao acaso, como se fosse apenas um experimento.
Desde que Belgrieve perdeu a perna direita, buscou outro ângulo que o impediria de ser um fardo no campo de batalha — concentrou-se no conhecimento. No tempo que levou para se reabilitar, leu livros e guias sobre demônios, e registros de batalhas anteriores contra os mesmos. Belgrieve simularia contramedidas repetidas vezes, pensando muito sobre a melhor maneira de lutar contra cada novo demônio que encontrava em seus estudos.
O caçador gélido era um dos demônios em que havia pensado, já os tendo encontrado antes, embora apenas um punhado de vezes. No entanto, esta foi a primeira vez que testou a pílula em campo.
“Melhor parar de brincar.” disse depois de um momento. Ele já estava procurando em suas bolsas a ferramenta que iria testar antes mesmo de perceber, porém tirou o pensamento de sua cabeça. Um descuido e será o meu fim.
O caçador gélido se lançou sobre Belgrieve, fervendo de raiva. Embora parecesse que não conseguia mais respirar pela garganta, a pressa de seus membros flexíveis deixou claro que ainda era um demônio de Rank C. Contudo, seus movimentos eram muito lineares.
“Está ficando muito animado para um caçador gélido...”
Torcendo um pouco o corpo e mal se esquivando, Belgrieve ergueu a espada e golpeou com força. Um golpe com a força de todo o seu corpo por trás facilmente separou a cabeça do demônio de seu corpo. Agora um cadáver, o corpo do caçador gélido continuou a subir com seu impulso até que se chocou contra uma árvore e caiu no chão. O ar frio se dispersou e a temporada de verão inundou em seguida a área. A camada de gelo derreteu de imediato e Belgrieve fez uma careta, porque de repente ficou tão desagradavelmente quente.
“Meu Deus... Este calor é nauseante.”
Belgrieve não podia sentir nenhum outro demônio ao redor. Agora que havia derrotado o caçador gélido, não haveria nenhum outro demônio atraído por seu doce mana. Belgrieve não tinha chances como essas com frequência, então pegou sua faca para esfolar a pele. O pelo do caçador gélido de era uma bela prata. Havia uma garota na vila que se casaria em breve e com certeza ficaria encantada com o presente. O jovem aventureiro novato dentro de Belgrieve deu uma risada satisfeita, enquanto Belgrieve, o mais velho, sorriu com amargura. Agora estava convencido de que as façanhas de sua filha estavam tendo uma má influência sobre ele.
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