Capítulo 71: Angeline cerrou as pálpebras
Angeline cerrou as pálpebras com força até que, depois de um tempo, caiu no sono. O que veio a seguir foi um sonho peculiar em que estava sentada sozinha em um quarto escuro, embora nem pudesse ter certeza de que era um quarto. Ela não conseguia ver nenhuma das quatro paredes, e tudo acima e abaixo parecia consistir no mesmo vazio negro, como se estivesse flutuando no espaço. E, no entanto, podia sentir uma espécie de chão sob seus pés, embora de natureza incerta e insubstancial. Era tudo estranhamente ambíguo, e Angeline não podia descartar a possibilidade de estar apenas se iludindo acreditando que havia algo ali.
Seu olhar se voltou para sua mão, abrindo e fechando. Não havia lâmpadas ou velas e, todavia, podia ver de maneira distinta as pontas dos dedos dos pés e os braços ao redor dos joelhos. Era como se tudo, exceto ela, tivesse perdido toda a substância. Não fazia calor nem frio ali, o próprio conceito de temperatura parecia ausente. Embora sentisse que isso deveria ser confortável, estava com uma tensa e instável sensação.
Angeline tentou reunir palavras para gritar, contudo sua boca só conseguia formar cada sílaba em silêncio. Uma estranha sensação de solidão apoderou-se dela. Ao tentar se levantar, sentiu que não haveria como voltar atrás se o fizesse, e não poderia reunir forças de qualquer maneira.
Antes que percebesse, a escuridão ao redor começou a se solidificar. De repente, tornou-se difícil respirar à medida que a escuridão chegava cada vez mais perto. Sua boca tentou gritar de medo, porém ainda não conseguia emitir nenhum som e só conseguia sentir um aperto no fundo da garganta. Não demorou muito até que a escuridão negra estivesse rastejando sobre sua pele e cobrindo seu corpo.
Angeline foi catapultada para fora de seu sono apenas para ser pega de surpresa por um par de olhos negros encarando-a.
“Bom dia, irmã.”
“Mit... Bom dia.”
Angeline coçou a cabeça e suspirou. Sabia que tinha tido um sonho terrível, mas mal conseguia se lembrar dele agora. Ela acordou com um humor terrível, no entanto esses sentimentos foram varridos assim que estava totalmente acordada e, logo, esqueceu que havia sonhado.
O sol já estava nascendo no belo clima da primavera, e sua luz entrando pela janela destacava cada partícula de poeira esvoaçante.
Não parecia haver ninguém na casa, exceto Angeline e Mit. Os outros devem ter ido para algum lugar.
“Eu dormi demais... Onde todos foram?”
“Saíram...”
“Eles poderiam ter me acordado...”
“Você estava num sono profundo, então o pai disse para deixá-la dormir.”
Angeline fez beicinho enquanto se espreguiçava, sua espinha estalando no processo. Depois de soltar um suspiro profundo, viu que Mit ainda estava sentado ao seu lado, e começou a passar os dedos pelo cabelo dele. O menino fechou os olhos com a sensação de cócegas.
Angeline adorava seu enigma de irmãozinho (que às vezes era uma irmãzinha em alguns dias). Com seus longos cabelos negros e olhos negros, os dois pareciam irmãos de verdade quando estavam um ao lado do outro, embora suas expressões fossem neutras em comparação com as dela. Com sua idade aparente em torno de dez anos pela aparência, não parecia haver muita diferença entre os dois.
Angeline ouviu o som de algo batendo na madeira do lado de fora — um martelo de metal, presumiu. Com tantos novos membros da família, a casa começou a ficar apertada, então optaram por ampliá-la no sentido do comprimento.
Angeline vestiu o casaco e saiu, levando Mit pela mão. A cálida luz do sol de verão caía sobre a terra, que estava coberta de folhas verdes, e sentiu um ardor no fundo dos olhos. O quintal estava cheio de flores de todos os tamanhos, algumas já desabrochando e outras logo. Anessa e Miriam sentaram-se em um banco no canto, observando com carinho o progresso constante que estava sendo feito na casa.
“Bom dia.”
“Hmm? Ah, Ange. Bom dia.”
“Bom dia. Você apagou como uma luz.” Miriam disse com uma risada.
Angeline sentou-se seu ao lado e colocou Mit em seu colo.
“‘Na primavera, dorme-se um sono que... Continua’?”
“Não era ‘não conhece o amanhecer?” sugeriu Anessa¹
“Bem, algo assim... Yawn.”
O grande bocejo de Angeline provou ser contagioso e se espalhou para Mit, cuja boca também se abriu.
Quase duas semanas se passaram desde seu retorno para Turnera. As cores da primavera ficavam mais vibrantes a cada dia com a brisa que esquentava cada vez mais. Os esforços dos aldeões em seus campos eliminaram a rigidez do inverno de seus corpos, enquanto as ovelhas e cabras passavam todos os dias se alimentando da folhagem fresca e aromática.
Angeline estava aproveitando ao máximo a primavera de Turnera, vagando pelas montanhas com Anessa e Miriam, colhendo plantas da montanha, conduzindo as ovelhas com Mit nas costas e levando Charlotte e Byaku para ajudar no trabalho de campo. Ela gostava de conversar com os amigos de infância e ficava encantada ao ver Charlotte tão cheia de vida.
O inverno que passou em Orphen com Belgrieve foi divertido, contudo sem dúvidas havia tirado um peso de seus ombros quando voltou para sua cidade natal. Se fosse assim, talvez fosse melhor para Belgrieve esperar seu retorno em Turnera em vez de convencê-lo a morar junto em Orphen. É claro que, quando chegasse a hora de voltar para Orphen, Angeline ficaria sozinha mais uma vez e desejaria que ele a acompanhasse.
“O tempo está bom. Realmente deixa você de bom humor, hein?” Anessa refletiu enquanto se levantava e se espreguiçava. Respirando fundo seu olhar se voltou para o céu azul refrescante e penetrante.
Angeline brincou com o cabelo de Mit enquanto examinava a área.
“Onde estão todos os outros...?”
“Senhor Bell saiu com o senhor Kerry, o senhor Graham está cuidando das crianças, o senhor Kasim está ensinando magia a todos e Char e Byaku estão com ele.”
“Hmm...” Angeline abraçou a cabeça de Mit e descansou o queixo em sua coroa. “Eu me sinto preguiçosa...”
Seu olhar se voltou para sua mão, abrindo e fechando. Não havia lâmpadas ou velas e, todavia, podia ver de maneira distinta as pontas dos dedos dos pés e os braços ao redor dos joelhos. Era como se tudo, exceto ela, tivesse perdido toda a substância. Não fazia calor nem frio ali, o próprio conceito de temperatura parecia ausente. Embora sentisse que isso deveria ser confortável, estava com uma tensa e instável sensação.
Angeline tentou reunir palavras para gritar, contudo sua boca só conseguia formar cada sílaba em silêncio. Uma estranha sensação de solidão apoderou-se dela. Ao tentar se levantar, sentiu que não haveria como voltar atrás se o fizesse, e não poderia reunir forças de qualquer maneira.
Antes que percebesse, a escuridão ao redor começou a se solidificar. De repente, tornou-se difícil respirar à medida que a escuridão chegava cada vez mais perto. Sua boca tentou gritar de medo, porém ainda não conseguia emitir nenhum som e só conseguia sentir um aperto no fundo da garganta. Não demorou muito até que a escuridão negra estivesse rastejando sobre sua pele e cobrindo seu corpo.
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Angeline foi catapultada para fora de seu sono apenas para ser pega de surpresa por um par de olhos negros encarando-a.
“Bom dia, irmã.”
“Mit... Bom dia.”
Angeline coçou a cabeça e suspirou. Sabia que tinha tido um sonho terrível, mas mal conseguia se lembrar dele agora. Ela acordou com um humor terrível, no entanto esses sentimentos foram varridos assim que estava totalmente acordada e, logo, esqueceu que havia sonhado.
O sol já estava nascendo no belo clima da primavera, e sua luz entrando pela janela destacava cada partícula de poeira esvoaçante.
Não parecia haver ninguém na casa, exceto Angeline e Mit. Os outros devem ter ido para algum lugar.
“Eu dormi demais... Onde todos foram?”
“Saíram...”
“Eles poderiam ter me acordado...”
“Você estava num sono profundo, então o pai disse para deixá-la dormir.”
Angeline fez beicinho enquanto se espreguiçava, sua espinha estalando no processo. Depois de soltar um suspiro profundo, viu que Mit ainda estava sentado ao seu lado, e começou a passar os dedos pelo cabelo dele. O menino fechou os olhos com a sensação de cócegas.
Angeline adorava seu enigma de irmãozinho (que às vezes era uma irmãzinha em alguns dias). Com seus longos cabelos negros e olhos negros, os dois pareciam irmãos de verdade quando estavam um ao lado do outro, embora suas expressões fossem neutras em comparação com as dela. Com sua idade aparente em torno de dez anos pela aparência, não parecia haver muita diferença entre os dois.
Angeline ouviu o som de algo batendo na madeira do lado de fora — um martelo de metal, presumiu. Com tantos novos membros da família, a casa começou a ficar apertada, então optaram por ampliá-la no sentido do comprimento.
Angeline vestiu o casaco e saiu, levando Mit pela mão. A cálida luz do sol de verão caía sobre a terra, que estava coberta de folhas verdes, e sentiu um ardor no fundo dos olhos. O quintal estava cheio de flores de todos os tamanhos, algumas já desabrochando e outras logo. Anessa e Miriam sentaram-se em um banco no canto, observando com carinho o progresso constante que estava sendo feito na casa.
“Bom dia.”
“Hmm? Ah, Ange. Bom dia.”
“Bom dia. Você apagou como uma luz.” Miriam disse com uma risada.
Angeline sentou-se seu ao lado e colocou Mit em seu colo.
“‘Na primavera, dorme-se um sono que... Continua’?”
“Não era ‘não conhece o amanhecer?” sugeriu Anessa¹
“Bem, algo assim... Yawn.”
O grande bocejo de Angeline provou ser contagioso e se espalhou para Mit, cuja boca também se abriu.
Quase duas semanas se passaram desde seu retorno para Turnera. As cores da primavera ficavam mais vibrantes a cada dia com a brisa que esquentava cada vez mais. Os esforços dos aldeões em seus campos eliminaram a rigidez do inverno de seus corpos, enquanto as ovelhas e cabras passavam todos os dias se alimentando da folhagem fresca e aromática.
Angeline estava aproveitando ao máximo a primavera de Turnera, vagando pelas montanhas com Anessa e Miriam, colhendo plantas da montanha, conduzindo as ovelhas com Mit nas costas e levando Charlotte e Byaku para ajudar no trabalho de campo. Ela gostava de conversar com os amigos de infância e ficava encantada ao ver Charlotte tão cheia de vida.
O inverno que passou em Orphen com Belgrieve foi divertido, contudo sem dúvidas havia tirado um peso de seus ombros quando voltou para sua cidade natal. Se fosse assim, talvez fosse melhor para Belgrieve esperar seu retorno em Turnera em vez de convencê-lo a morar junto em Orphen. É claro que, quando chegasse a hora de voltar para Orphen, Angeline ficaria sozinha mais uma vez e desejaria que ele a acompanhasse.
“O tempo está bom. Realmente deixa você de bom humor, hein?” Anessa refletiu enquanto se levantava e se espreguiçava. Respirando fundo seu olhar se voltou para o céu azul refrescante e penetrante.
Angeline brincou com o cabelo de Mit enquanto examinava a área.
“Onde estão todos os outros...?”
“Senhor Bell saiu com o senhor Kerry, o senhor Graham está cuidando das crianças, o senhor Kasim está ensinando magia a todos e Char e Byaku estão com ele.”
“Hmm...” Angeline abraçou a cabeça de Mit e descansou o queixo em sua coroa. “Eu me sinto preguiçosa...”
“Certo? Ahh, esse com certeza é o melhor lugar para relaxar.” disse Miriam. Ela nem estava usando o chapéu de abas largas que costumava ser tão obstinada, e suas orelhas de gato balançavam confortavelmente com a brisa. Miriam havia parado de escondê-las perto de seus camaradas e de Belgrieve, porém ainda era cautelosa com os aldeões de Turnera. Com o encorajamento de Angeline, acabou revelando suas orelhas para os aldeões, que as acharam fofas e bonitas e a sujeitaram a despentear desenfreadamente os cabelos. Miriam não sentiu nenhuma discriminação ou consideração indevida e começou a se sentir idiota por esconder suas orelhas.
Ainda se sentindo um pouco sonolenta, Angeline refletiu sobre todos os tipos de coisas em seu estupor sonolento. Muita coisa aconteceu na primeira vez que tentou voltar, e desta vez não foi diferente. Era bastante problemático como um problema parecia surgir toda vez, mas seria uma mentira dizer que não pensou nesses eventos com tanto carinho após o fato. Houve uma pequena discussão desta vez, no entanto nenhum incidente grave. Tudo fica bem quando termina bem. Angeline se perguntou o que Yakumo e Lucille estavam fazendo agora.
Angeline respirou fundo e começou a apertar as bochechas de Mit, que eram macias e deliciosas de tocar. Sem fazer nada, Mit a deixou fazer o que queria.
“Você nunca resiste, não é?”
“Resistir?”
Mit piscou.
Com um olhar bastante divertido no rosto, Miriam começou a acariciar o menino.
“Hehehe, Mit é tão fofo.”
“Fofo?” ele repetiu de novo.
“Então, no final, o que são demônios?” Anessa disse com um leve sorriso resignado.
“Quando olho para Mit, não entendo mais nada.”
“Não faço ideia, contudo... Bem, não importa.”
“Certo. Se eles te atacarem, você os derruba. Se são adoráveis, então os cuida. Isso não é bom o suficiente?”
“Parece bom.”
“Hey, isso era sulista.”
“Hehe, aprendi com Lucille.”
“Eu me pergunto onde essas duas estão agora.”
“Elas já devem ter passado por Orphen. Embora duvide que já tenham chegado a Estogal.”
Houve um barulho quando os carpinteiros desceram do telhado; era hora do intervalo. A extensão ainda era apenas uma estrutura esquelética, entretanto não era menos emocionante de se olhar. Como será minha nova vida? Angeline se perguntou, seu coração cheio de expectativa.
Mit se mexeu.
“Quero andar.” murmurou.
“Tudo bem, vamos lá.”
Então Mit se levantou e começou a caminhar para a praça da cidade, e Angeline e Miriam seguraram suas mãos. Às vezes, elas puxavam com força suficiente para levantá-lo do chão e fazer seus pés girarem no ar.
Quando chegaram à praça, viram várias crianças e jovens reunidos em torno de Kasim, entre os quais estavam Charlotte e Byaku. Bem na frente da multidão, Rita estendia as mãos com uma expressão tensa no rosto, olhando fixa para as palmas das mãos. Aos poucos, houve uma leve oscilação no ar e, em seguida, uma chama, provocando aplausos dos espectadores.
“Oh, parece que está entendendo.” disse Kasim, gargalhando.
“Yay!” Rita empinou o peito com orgulho depois de apagar o fogo. Parado um pouco mais atrás, Barnes abriu e fechou a boca, parecendo menos do que satisfeito.
“Droga, por que é sempre você...? Não consigo dar uma espiada nisso.”
“Não se preocupe, vou te proteger.”
“Esse não é o problema!”
“Oh, mana!” Charlotte acenou com as mãos ao ver o grupo caminhando em sua direção.
“Estão todos bem?”
“Sim. A Rita é muito boa.”
“Eu estava vendo. Nada mal, Rita.”
“Vou proteger o Barnes. Certo?” Rita disse, abraçando o braço de Barnes. Barnes timidamente fez beicinho.
“Vocês dois se dão bem.” Miriam riu.
“Nós damos.”
“Grr...” Barnes ainda parecia insatisfeito.
Angeline olhou em volta e percebeu que não havia mais ninguém na praça a não ser aquela pequena reunião.
“Você não começou com mais pessoas?”
“Sim, alguns saíram com o velho Graham para praticar sua esgrima fora da cidade. E para minha surpresa — todos têm um talento especial para isso. Será porque Bell os ensinou os fundamentos?”
“O pai é um ótimo professor, hehe...”
“Vou concordar.” disse Kasim. Ele deu um tapinha nas costas de Barnes. “Hey, pare de ficar de mau humor. Mesmo que não seja bom em magia, sua esgrima não é tão nada mal. Não ouviu o velho te dizendo?”
“Eu sei mas...”
“Você vai me proteger também?”
“S-Sim...”
“Obrigado.” Rita esfregou a bochecha no ombro de Barnes.
“Alguém adora dar um show.” observou Kasim enquanto alisava a barba.
Com o festival da primavera tendo passado e os trabalhos mais urgentes resolvidos, os jovens da vila estavam aprendendo esgrima com Graham e Belgrieve, e magia com Kasim. Tendo aprendido os fundamentos de Belgrieve e experimentado o combate contra monstros várias vezes, esses jovens absorveram constantemente seus novos ensinamentos. De acordo com Graham e Kasim, embora possam não alcançar os escalões mais altos, vários deles eram qualificados o suficiente para o Rank B, no mínimo.
Nunca foi uma coisa ruim ser capaz de se proteger. Embora incomuns, monstros apareciam em Turnera, e não havia garantia de que bandidos nunca apareceriam. E além de todas essas razões lógicas, os jovens da vila, cheios de energia, ansiavam pelo mundo das espadas e da magia.
Kasim bateu palmas.
“Agora então, vamos tentar de novo, certo? Precisam manter uma imagem adequada em mente.”
“Todos estão trabalhando duro. Acha que estamos vendo uma nova geração de aventureiros?”
“Hehe, agora não teremos que nos preocupar com os monstros...”
“Ainda assim... Aprenderam o básico com o Ogro Vermelho, então construíram sobre essa base sob o aprendizado com o Destruidor de Éter e o Paladino... Para onde exatamente Turnera está indo daqui?” Anessa murmurou em ironia enquanto os observava voltar ao treinamento mágico.
○
O trabalho de campo na primavera assumiu muitas formas, porém antes de mais nada era cultivar os campos. O solo de inverno teve que ser afrouxado e seus alimentos básicos de trigo e batata precisavam ser plantados.
As montanhas ao redor de Turnera se abriam para o leste, e não havia escassez de terras ensolaradas naquela direção. Os campos poderiam se expandir tanto quanto fosse necessário, limitados apenas pelo trabalho extra que cada novo lote de terra exigiria. Era da natureza do fazendeiro ir o mais longe que podia, contudo não adiantava ter um campo além de seus meios.
A agricultura e a pecuária eram as principais indústrias de Turnera. Sua agricultura girava em torno de trigo, batata e feijão, e cada casa cultivava sua própria seleção de vegetais sazonais. Tiravam lã das ovelhas, leite das cabras e ovos das galinhas; e no final, cada um contribuiria com carne também. A vila tinha um campo e uma fazenda comunais, no entanto era normal que cada família mantivesse seu próprio campo e animais em cima dele. As dicas e truques que acumularam desde a fundação da vila por fim renderam frutos, e os rendimentos foram grandes o suficiente para que nenhum aldeão passasse fome, mesmo nos invernos mais rigorosos. Tudo isso estava enraizado na autossuficiência. Parte da produção era reservada para impostos e qualquer excedente era negociado com mascates. Havia pouco uso para qualquer coisa além disso, então quase ninguém em Turnera produzia mais do que o necessário.
No entanto, agora que as estradas seriam mantidas, haveria mais negócios do que antes. Em vez de ver o comércio como uma forma de descarregar seu excesso, talvez começassem a se envolver na agricultura comercial com fins lucrativos. Essas estradas não trariam sucesso imediato, contudo isso não era diferente dos campos — ninguém esperava os maiores rendimentos no primeiro ano em que fossem arados. A terra teve que ser construída ano após ano por meio de cultivo, capina e fertilização.
Belgrieve havia patrulhado a vila com Kerry e os outros fazendeiros durante as primeiras horas da manhã em busca de pontos privilegiados para novos campos. O grupo deles agora estava indo para o oeste da vila. Esses lotes de terra ficavam mais perto da montanha, e o sol seria mais escasso à noite, porém a maioria das plantações só precisava da luz da manhã. Além do mais, a falta de palha dura crescendo por lá significava que o solo seria fácil de cultivar.
“As partes orientais estão perto das pastagens. Acho que faríamos bem aqui.”
“Sim. Essas ovelhas precisam de grama fresca.”
Um dos fazendeiros batia com a ponta da bengala no chão.
“Nada mal. Poderíamos amolecer em dois anos.”
“Vamos começar com restos de trigo. Abra-o na época em que os botões frescos brotarem e será um bom fertilizante.”
“Tem mais pedras do que eu gostaria, mas deve ficar bom.” concluiu Belgrieve. Poderíamos reuni-los e usá-los como alicerce para uma nova casa.
“Certo. Estamos trabalhando na casa de Bell agora, só que eventualmente precisaremos de um grande depósito.”
“Nessa nota, Bell, sua família está crescendo mesmo, não é?”
“E ele nem tem esposa! Hahaha!”
A risada provocativa dos fazendeiros fez Belgrieve coçar a cabeça.
“É uma circunstância estranha, com certeza... No entanto é agradável e animado.”
“De qualquer forma, parece que todo tipo de coisa vai mudar. Assim que essas estradas estiverem prontas, sei que essas crianças vão querer se aventurar no mundo.”
“Certo... Contudo quem poderia culpá-los?”
Os aldeões soltaram um suspiro coletivo. Todos faziam parte da geração de Belgrieve e todos tinham suas próprias famílias. Eles não pensaram em trabalhar na vila até morrerem de velhice. Porém apenas no ano passado, os jovens da vila desenvolveram um profundo fascínio pelo mundo. Angeline, que havia os tocado na juventude, conseguiu fazer seu nome na cidade grande e voltou como uma heroína. Sem dúvida, ela os influenciou muito, atraindo seus corações para fora da vila. Ainda agora, embora sob o pretexto de autodefesa, muitos jovens aldeões estavam aprendendo esgrima com Graham e magia com Kasim. Mais cedo naquele mesmo dia, passaram por aqueles rapazes e moças saindo ansiosos com suas espadas. Belgrieve conseguiu evitar que se tornassem arrogantes com suas novas habilidades, mas uma vez que fossem fortes o suficiente, os anciãos da vila temiam que deixassem suas casas para trás.
De sua parte, Belgrieve se sentiu bastante em conflito. Ele preguiçosamente puxou a barba.
“O que há de errado com isso?” Kerry gargalhou. “É bom ver esses jovens tão cheios de vida. E tenho certeza de que Bell continuará atraindo pessoas de fora!”
Os fazendeiros imediatamente caíram na gargalhada.
“Não há dúvida acerca disso!”
“Se continuar trazendo aquelas garotas bonitas, não faltarão noivas!”
“Não, primeiro precisamos de uma noiva para Bell, não é?”
“Não pode, já tem uma garota no seu coração.”
“Não é assim, estou te dizendo...” Belgrieve disse com uma risada perturbada.
Kerry deu um tapinha nas costas dele.
“Não fique tão envergonhado. Você está indo em outra jornada para encontrá-la, não é?”
“Ugh... Bem, estou, no contudo...”
Seu desejo de deixar seu passado para descansar ainda tinha que mudar. Ao conhecer Kasim, conseguiu enfrentar um aspecto que havia deixado para trás. No outro dia, soube do paradeiro de Percival por Yakumo e Lucille, e é claro que não havia escolha a não ser sair para encontrá-lo. Com toda a probabilidade, nunca se sentiria em paz até encontrar Satie também. Parecia que o fluxo do destino o estava empurrando para frente.
E, no entanto, não era tão jovem a ponto de deixar que os caprichos se transformassem imediatamente em ações. Belgrieve não estava com a melhor saúde por um tempo depois que voltou. Isso não o incomodou enquanto estava em Orphen, porém depois de voltar para casa e relaxar, descobriu que não conseguia trabalhar direito depois que o festival da primavera terminava e tinha que passar vários dias na cama.
Não seria engraçado se esforçasse demais e arruinasse seu corpo. Em vez de enfrentar seu passado, seria o mesmo que deixar que seu passado o destruísse. Ele queria viver no presente.
“Então, quando estará saindo?”
“Hey, não precisa ser tão cedo. No verão, no mínimo.” respondeu Belgrieve.
“Parece muito cedo para mim."
“Você é um sujeito animado, meu Deus. Não precisava vir conosco hoje, então. Não deveria estar se ocupando em se preparar para sua aventura?”
Belgrieve balançou a cabeça.
“Não há muito que preparar; só vou enfiar algumas coisas na minha bolsa. E não vou morrer numa vala. Assim que voltar de minha jornada, estarei cultivando os campos como de costume. Naturalmente, preciso me preocupar com nossa nova fazenda.”
“Acho que é verdade.”
“Não me excluam assim, meu Deus.” disse Belgrieve brincando, e os aldeões riram sem graça.
“Haha, temos confiado muito em você. No mínimo, queremos que faça o que quiser.”
“Certo, certo.”
“Desculpe por aquela época, Bell.”
“Não há necessidade de relembrar...”
“Hey, por que todo mundo está ficando sentimental? Nós vimos o lugar, agora vamos voltar e fazer alguns planos.”
As palavras práticas de Kasim foram suficientes para dissipar a atmosfera negativa. Belgrieve também não queria que as coisas tomassem um rumo piegas, todavia sabia que estavam o cuidando à sua própria maneira.
O grupo foi para a casa de Hoffman. Hoffman estava inspecionando arreios e enxadas no quintal, limpando a sujeira e afiando os implementos agrícolas.
“Hey, chefe.”
“De volta tão cedo? Então, como foi? Encontrou um bom lugar?”
“Havia um bom lugar a oeste. Pensamos em começar a planejar.”
“Bom saber. Oi, querida! Poderia colocar um pouco de chá no fogão?” Hoffman gritou para dentro da casa, pedindo a todos que se sentassem ao redor da mesa no quintal.
Nuvens finas e finas flutuavam pelo céu, transformando o céu azul penetrante em um tom mais fraco de água. O sol atingiu seu zênite e começou a descer para o oeste, e gradualmente a luz ficou mais intensa. Trocavam-se opiniões sobre o que plantar — trigo, batata ou talvez uma nova especialidade local.
“Por enquanto, vamos deixar o local pronto para qualquer coisa.”
“Certo, vamos jogar um pouco de esterco e construir o solo.”
“E depois?”
“As videiras estão crescendo bem. Que tal algumas novas árvores frutíferas?”
“Mas as árvores levam tempo. Não saberemos se estão bem por um tempo.”
“Teremos bons retornos se tudo correr bem.”
“Se correr bem. Entretanto o que fazemos se não venderem e não puderem ser usados?”
“Hey, não podemos só usar o lugar para aumentar nossa produção de trigo?”
“Isso funcionaria, no entanto vamos precisar de mais trabalhadores agrícolas. Não adianta ter tanto trigo que atrai insetos.”
“Então vamos precisar preparar o terreno, adubar e plantar antes da colheita. Isso exigirá o dobro de nossa força de trabalho.”
“E essas regiões do norte já têm Bordeaux para o trigo. Não conseguiremos um bom preço se começarmos a cultivá-lo aqui.”
“Nesse caso, a fruta parece ser a melhor opção. Que tal plantar algumas bolotas e criar porcos, então?”
“Estúpido, Rodina nos encurralou nesse mercado.”
“É verdade. Em primeiro lugar, odeio como essas coisas podem ser fedorentas.”
“Quem se importa se os odeia ou não?”
“Diga isso de novo.”
“Hey, vamos. Sem brigas.”
“Digamos que plantamos frutas. O que seria melhor, então? Devemos cultivar os vinhedos e iniciar uma produção de vinho completa?”
“Alguma boa ideia, Bell?”
“Hmm...”
Enquanto cruzava os braços pensativo, Mit chegou com Angeline.
“Os velhos estão tramando algo desagradável...”
“Tramando?”
“Hey, Ange.”
“Hahaha, então você nos encontrou.”
Depois de correr, Mit subiu nas costas de Belgrieve e Angeline sentou-se ao seu lado.
“O que aconteceu? Vocês não estavam com os outros?”
“Sim... Contudo todo mundo está praticando. Então vim com Mit para ver o que estavam fazendo.”
“Entendo. Eles estão todos fazendo o seu melhor.”
“E para quê? Podem ficar tão fortes quanto quiserem, porém vão apodrecer se não conseguirem cultivar comida para colocar na mesa.”
“Vamos, o que foi, não é como se estivessem relaxando em seu trabalho.”
“Hey, Ange. Estamos pensando no que plantar como especialidade da Turnera. Tem alguma coisa em mente?” Kerry perguntou.
Angeline inclinou a cabeça.
“O que uma especialidade fará por você?”
“Bem, sabe como as estradas vão ser mantidas, certo? Se mais pessoas vierem, teremos mais vendedores ambulantes do que antes, e seria bom ter algo para vender nesse caso.”
“Somos conhecidos por fazer coisas boas por aqui, porém não temos o suficiente para vender mais.”
“Hmm...” Angeline olhou para Belgrieve. “Não pode ser perecível, certo?”
“Exato. Será transportado por longas distâncias, então algo preservado seria bom. Não há muitas pessoas equipadas com magia refrescante por aí.”
De qualquer forma, os produtos preservados eram melhores para aqueles que vendiam seus produtos por toda parte.
Mesmo que não vendessem, era um bem menos arriscado de se manter na vila.
“Portanto, secos, salgados ou fermentados...”
“Teria que ser algo nesse sentido.”
“E não gostaríamos de colocar nossas mãos em algo com o qual não estamos familiarizados.”
Angeline pensou por um momento antes de levantar a cabeça de repente.
“E as ervas medicinais?”
“Como o que?”
“Bem... Que tal rumeleiras?”
Rumel era uma árvore perene que exalava um perfume marcante e penetrante. Suas folhas podiam ser esmagadas em uma pomada que funcionava bem em feridas externas. Se a água fosse adicionada a essa mistura e fervida até ficar viscosa, poderia durar cerca de um mês. As folhas secas também podem ser misturadas em água quente para lavar as feridas. A seiva também era utilizável, e a casca e as raízes podiam ser fervidas em uma poção potável. Aventureiros de baixo nível, incapazes de comprar elixires, costumavam recorrer a ele. Rumel também era usado em Turnera para remédios populares, mas eles simplesmente colhiam plantas silvestres e nunca as cultivavam.
Belgrieve coçou a barba.
“Não é uma má ideia... Ainda contam com os aventureiros para coletar folhas de rumel?”
“Sim. Porém a casca e as raízes são bons remédios, então arrancaram tudo ao redor Orphen, e não há muitos hoje em dia. Ouvi alguém dizer que o preço subiu.”
“Hmm. Não é raro por aqui.”
“Contudo se é tão usado, não vão só plantá-lo ali?”
“É verdade, no entanto já ouvi dizer que é de melhor qualidade quando cresce em lugares frios... E houve quem reclamasse que não era tão eficaz quanto costumava ser.”
“Que tal, Bell?”
“Por que está me perguntando...? Bom, eu definitivamente ouvi a respeito. Ela cresce nativa dessas montanhas, então talvez fosse mais eficaz se fosse cultivada neste ambiente.”
“Entendo... Não teremos que nos preocupar com as mudas então. Isso simplifica as coisas.”
“Seria arriscado começar em grande escala, mas podemos fazer alguns testes. O clima e o solo devem ser perfeitos.”
“E não há nada de ruim em ter mais remédios por perto.”
Vendo os aldeões ficarem animados com o assunto, Angeline sussurrou.
“Foi uma boa ideia...?”
“Sim, estou surpreso que você pensado nela. Bom trabalho.”
“Tee hee...”
Angeline acariciou alegremente o ombro de Belgrieve, e Mit colocou a mão em sua cabeça. Como se imitasse Belgrieve, o menino disse.
“Bom trabalho.”
De repente, houve risadas e Angeline fez beicinho com as bochechas vermelhas.
○
O ar úmido e estagnado reunia-se nas profundezas sombrias da floresta. Talvez por causa disso, parecia que a própria escuridão havia ganhado uma massa sufocante. Havia fileiras de árvores velhas ali, seus galhos carregados de folhas escuras que formavam uma copa no alto para bloquear o sol. Sem luz, quase não havia vegetação no chão da floresta e, além das trepadeiras finas subindo nas árvores e penduradas nos galhos, apenas algumas samambaias baixas persistiam.
Alguém — um homem, a julgar por sua constituição — pisou neste solo escuro. Sua túnica branca era um contraste impressionante com a escuridão espessa, todavia seus olhos e rosto eram comparativamente inescrutáveis na escuridão do capuz de sua túnica.
Esqueça as estradas — não havia nem mesmo trilhas de animais à vista, no entanto o homem caminhou sem hesitar. Os galhos farfalhavam cada vez que passava por eles, como se estivessem avisando-o para ir embora.
Enfim, o homem alcançou as profundezas da floresta. Lá, as árvores eram mais velhas e ainda mais altas do que as anteriores. Pareciam cascas mortas, entretanto as protuberâncias de um novo crescimento em sua casca seca e oca demonstravam sua obstinação.
“Oooo...”
Um gemido peculiar encheu o ar. Os galhos balançaram como se essas árvores cadavéricas estivessem respirando. Não havia outros olhos para ver aqui, contudo o homem sentiu como se estivesse sendo perfurado por inúmeros olhares.
Porém, ele permaneceu calmo e zombou como se quisesse menosprezar a folhagem. Brandiu sua mão e cantou com uma voz calma, mas clara. Quanto mais cantava, mais mana se juntava a ele, girando como um vendaval. Uma pálida luz azul iluminava a casca escarpada de cada árvore, contudo em contraste com essa iluminação, uma sombra negra escorria dos cantos e recantos das árvores, pairando sobre o local.
“Você quer ser livre? Então pegue sua liberdade. Vá para o norte.”
“OOooOOooOooO...”
As velhas árvores gritaram. As sombras saindo delas se reuniram em um grande enxame, uma imensa reunião de más intenções agressivas. Espalhando-se pela floresta, mudando de árvore em árvore em um piscar de olhos, como uma brigada de cavaleiros galopando para derrotar seu inimigo mortal — ou talvez, como uma reunião de canalhas com seu prêmio ilícito diante de seus olhos.
Sombras irrompem das árvores ao longo do caminho, acrescentando mais guerreiros à legião. O homem de branco cruzou os braços enquanto os observava.
“Agora o que você vai fazer?” ele murmurou divertido.
Um cheiro cru preencheu o ar.
Notas:
1. Este é um provérbio chinês antigo, mas famoso. Na primavera, o clima é tão bom que as pessoas tendem a ficar acordadas até tarde. Então eles acordam tarde e assim, ‘não conhecem o amanhecer’.
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