Capítulo Extra 70.5: O rabo do gato passeando
Foi naquele dia que as pesadas nuvens se afastaram e a luz do sol caiu sobre Orphen pela primeira vez em muito tempo.
A água escorria por baixo da base da neve que cobria as ruas, fluindo colina abaixo através das depressões no pavimento de pedra. Anessa e Miriam evitaram esse escoamento enquanto avançavam pelo tráfego da rua. Miriam colocou de leve a mão na aba do chapéu, seus olhos se estreitando de alegria com o calor reconfortante do sol.
“O clima está muito bom.”
“É verdade, quando foi a última vez que vimos o sol?”
O sol era um recurso valioso no inverno. Embora os céus estivessem quase sempre nublados durante os meses de inverno do norte, havia momentos em que um céu azul aparecia. Nesses dias, todos saíam para aproveitar a luz do sol. Além do mais, os ventos eram suaves, e os frequentes ventos frios penetrantes haviam desaparecido, substituídos por uma brisa quente e acariciante.
E assim, havia muito mais gente nas estradas do que o normal. As crianças corriam sem seus casacos e os idosos se reuniam para conversar sobre todo tipo de coisas sem importância onde quer que a luz do sol fosse mais forte.
Anessa e Miriam tinham saído como as outras, andando com passos leves. Não que tivessem um destino específico em mente, embora seu propósito ostensivo fosse mantimentos. Ter cestas cheias atrapalharia sua caminhada, então elas ainda não compraram nada.
Caminhando sem nenhum objetivo específico, as duas percorreram as barracas do bairro comercial e compraram um pastel frito para mastigar no caminho. Foi um dia de folga o máximo que um dia de folga poderia ser, e bastante confortável. Logo a primavera estaria chegando, quando pretendiam seguir Angeline para Turnera. Nesse sentido, não tinham muitos dias livres para percorrer a cidade grande.
“Adoro como o açúcar dessa coisa tem aquela textura meio derretida. Você sabe o que eu quero dizer?” disse Miriam, lambendo o açúcar e o óleo grudados na ponta dos dedos.
Anessa assentiu.
“Acho que sim — é uma coisa muito legal. Mas agora estou com um pouco de sede.”
Anessa amassou o papel com o qual o bolo estava embrulhado e o jogou em sua cesta de compras vazia.
“Vamos comprar mantimentos no caminho de volta, então... O que quer fazer agora?”
“Vamos almoçar. Estou morrendo de fome!”
“Você não acabou de comer...? Bom, tanto faz.” os olhos de Anessa se moveram enquanto avaliava o quão cheio seu próprio estômago estava, então verificou a posição do sol no céu. “Já é hora, de qualquer maneira.”
Uma vez que tinham se resolvido, era hora de decidir sobre o restaurante. As garotas seguiram a multidão, olhando para os nomes das lojas que ladeavam os dois lados da estrada.
“O que quer comer?”
“Eu poderia ir comer um pouco de bolo. Do tipo com creme fresco por cima!”
“Pensei que estivéssemos falando sobre o almoço... Você não engordou um pouco, Merry?”
“O que? Não estou gorda! É apenas a minha pelugem de inverno!”
“Pelugem? Ainda tem algum pelo no seu corpo além do seu rabo?”
“Gah!” Miriam cutucou Anessa com raiva, confirmando implicitamente que sua amiga havia acertado em cheio.
No sul de Dadan, havia homens besta cujas formas eram mais animalescas. Era fácil imaginar aquelas pessoas cultivando pelugens grossas para durar o inverno, porém talvez o sangue fera tivesse diminuído mais ao norte; a maioria dos homens besta por essas partes era como Miriam, apenas ostentando orelhas e caudas de animais. Mesmo homens besta como esses eram poucos em número.
Em todo caso, a gordura de Miriam não parecia ter nada a ver com pelo. Contudo supondo que fosse este o caso, Miriam não era do tipo que desistia dos doces e logo sua mente se voltou para procurar uma padaria cheia deles.
As duas caminharam sem rumo por mais um tempo, até que os olhos de Miriam se arregalaram de repente.
“Oh, um gato!”
Um gato vadio abriu caminho entre as pernas humanas, atravessando de um beco para o outro. Era um gato listrado preto e branco de pelo comprido. Miriam estava correndo com pressa atrás dele.
Anessa a encarou por um momento antes de gritar.
“Hey, e quanto ao almoço?”
“Isso pode esperar! Agora é o gatinho!”
O que um gato está fazendo perseguindo um gato? Anessa meditou com um sorriso irônico enquanto seguia atrás.
O beco em que o gato entrou era escuro, espremido entre prédios altos. A neve cobria as paredes do beco e, como o sol não conseguia alcançá-los, eles passavam por um ciclo de derretimento e congelamento. O que estamos fazendo aqui em um dia tão ensolarado? Anessa se perguntou com uma carranca, no entanto Miriam continuou a seguir seu caminho cada vez mais longe, não dando atenção a tais preocupações.
O caminho tinha uma sutil curva para a esquerda antes de levar a uma pequena escada de apenas quatro degraus. Estava claro e ensolarado além daquele ponto, mas depois de uma agitação momentânea do rabo do gato na pequena inclinação, o bichinho fofinho havia desaparecido.
Lentamente perseguindo Miriam, Anessa abriu a escada em um salto para encontrar Miriam procurando inquieta ao redor da clareira ensolarada.
“Hã? Para onde foi?”
“Deve ter te escapado. Não vai conseguir pegar um gato de rua tão fácil assim.” Porém, apesar de seu cinismo, Anessa logo estava olhando em volta também. Era uma pequena praça cercada por prédios com um freixo sem folhas no centro. A neve havia sido removida com frequência, revelando a alvenaria abaixo, iluminada pela luz do sol que caía do alto. Anessa se sentiu um pouco animada por encontrar um esconderijo secreto como este.
“Oh, é um restaurante!” exclamou Miriam.
Uma das portas tinha uma tabuleta ao lado, exibindo o que era um óbvio cardápio.
“Eles têm crema Catalana! Hey, Anne, vamos comer aqui.”
Esbanjando alegria, Miriam puxou Anessa pela manga. É como se o gato nos guiasse até aqui, pensou Anessa. Contudo não se importou em deixar o dia para o destino e abriu a velha porta de madeira.
Estava quente lá dentro, com um fogo queimando na lareira. Embora o dia estivesse mais quente do que o normal, entrar em um lugar realmente quente as lembrava de que ainda era inverno, afinal.
“Eu nunca soube que havia um restaurante por aqui.” Anessa murmurou, olhando ao redor.
“Orphen é um lugar grande. Claro que haveria alguns lugares onde nunca estivemos.”
Era meio-dia e um número surpreendente de assentos estava ocupado; parecia que elas estariam esperando um pouco para se sentar.
De repente, ouviram uma voz familiar.
“São só vocês duas hoje?”
“Hã? Ah, senhora Gil.”
Miriam e Anessa olharam para ver Gilmenja sentada em uma das mesas. Havia vários pratos vazios empilhados à sua frente, como se já tivesse comido, mas logo um garçom se aproximou para recolher os pratos e enxugar a mesa.
“Só me sentei. Vocês gostariam de se juntar a mim?” Gilmenja ofereceu, chamando-as para mais perto. Era uma mesa para dois, porém poderia acomodar três com uma cadeira extra. Não parecia haver muito problema, então Anessa puxou uma cadeira vazia para si mesma.
“Graças a Deus.” exclamou Miriam. “Achei que esperaríamos muito mais tempo.”
“Vou te dar uma pequena dica. O apelo sexual funciona neste lugar. Só precisa enfatizar um pouco o seu peito, depois fazer esses olhos arregalados e estará sentada logo em seguida... Como acha que consegui esse lugar?”
“Hã? Está... está falando sério?”
“Claro que não, hehehe.”
Oh, certo, ela é esse tipo de pessoa, lembrou Anessa, abaixando a cabeça. Miriam, por sua vez, riu da piada.
“Ainda assim, vocês não estão com Ange ou Maggie? Isso é raro.”
“Ange está com o Sr. Bell, e Maggie está trabalhando.”
“Nós estamos... Bem, estamos tirando o dia de folga. Não podemos fazer muito sem a nossa líder.”
“Entendo. Como esperado de Ange, para escolher seu pai por sobre todo o show das aventuras, hehehe.”
As duas garotas repetiram sua risada enquanto abriam seus cardápios.
No outro dia, elas investigaram um monstro variante com Kasim, todavia desde então, Angeline ficou encantada com sua vida com Belgrieve, e não fizeram mais nenhum trabalho adequado. Como o mais alto grau de aventureiros, os Ranks S ganhavam uma quantia considerável de dinheiro em cada trabalho que realizavam. Angeline raramente comprava alguma coisa para começar, e ainda tinha todo o dinheiro do surto dos monstros do ano anterior. Dessa forma, poderia viver no conforto sem ter que se ocupar — daí sua atual indolência.
Isso essencialmente deixou as duas secas, no entanto essa seria uma maneira bastante dura de colocar. Afinal, eram membros do grupo de Angeline e, como trabalhavam ao seu lado, estavam muito bem por conta própria. Também não havia nada que as obrigasse a aceitar trabalhos com Angeline fora de serviço, e era bastante enfadonho trabalhar sem ela.
Gilmenja fechou o cardápio.
“Então que tal eu tratar nossos pequenos retardatários? Peçam o que quiserem.”
“Viva! Você é tão indulgente!”
“Não tão indulgente quanto você, Merry, hehehe.” disse Gilmenja, esfregando a barriga de Miriam.
“Não foi o que eu quis dizer!” Miriam retrucou, com as bochechas inchadas de raiva.
Anessa caiu na gargalhada. Quando por fim recuperou o fôlego, perguntou.
“Tem certeza? Me sinto um pouco culpada por pedir que pague.”
“Não se preocupe. Te mando a fatura mais tarde.”
“Hã?”
“Brincadeira. Não sou tão infantil.”
“O que pegar, o que pegar...?” Miriam examinou o cardápio sem nenhuma preocupação. Parece que sou um pouco cabeça-dura para lidar com Gilmenja, pensou Anessa. Ou talvez Merry esteja me usando como escudo.
Um pouco depois de fazerem o pedido, a mesa foi enfeitada com um gratinado bem tostado, uma quiche e carne grelhada. Anessa enfiou uma colher no gratinado; estava quente o suficiente para queimar sua boca, então teve que assoprar antes de pegar uma colher. O queijo torrado estava perfeitamente temperado e bastante delicioso.
“Quente, quente... Phew... É a minha primeira vez aqui, mas esta loja pode ser um sucesso.”
“Certo? Hehe, devemos agradecer ao gato então. Vamos trazer Ange e Maggie aqui outro dia.” Miriam assentiu, mastigando o quiche que já havia soprado bastante.
Gilmenja girou o vinho em sua taça.
“É bom tirar um dia de folga quando o sol está forte. É bom para o coração.”
“Está de folga também, senhora Gil?”
“Pode dizer que estou de folga e também pode dizer que não.”
“O que quer dizer?”
“Estou observando as pessoas tanto para negócios quanto por lazer.”
E com isso, Gilmenja bebeu o vinho em seu copo. Anessa e Miriam trocaram um olhar, porém se apressaram em desistir e voltaram para a refeição.
Seus pratos logo ficaram vazios e elas terminaram a refeição com chá e guloseimas. A Catalana de Miriam consistia em creme de confeiteiro polvilhado com açúcar, que era derretido e queimado. Depois que a guloseima endureceu e esfriou, ela ofereceu um sabor de caramelo com sua sensação crocante na boca. Miriam nem sequer olhou para Anessa e Gilmenja saboreando o chá enquanto enfiava uma colher após a outra na boca.
“Delicioso! Ahh, estávamos certas em passar por aqui.”
“Sua boca... Está suja de creme.”
“Hmm...” Miriam rapidamente limpou a boca com a ponta do dedo.
“É bom ver as duas se dando bem. Vocês sempre estiveram juntas, não é?” Gilmenja perguntou com um sorriso enquanto servia uma xícara de chá para Miriam.
“Sim, somos do mesmo orfanato... Isso tudo me traz de volta. Lembra quando chegamos ao Rank A pela primeira vez?”
“Sim, fomos ao nosso primeiro restaurante elegante e compramos nossos primeiros doces caros para comemorar.”
“Certo, certo. Acha que eles estão indo bem?”
Seus olhares se distanciaram. As duas faziam parte de um grupo diferente antes de conhecerem Angeline. Na verdade, estiveram juntas em vários grupos desde que começaram como aventureiras, então este deve ter sido o que estavam antes de se juntarem a Angeline. Quando elas e os outros membros subiram para Rank AAA, alguém propôs que focassem em coisas maiores. O grupo decidiu se mudar para a capital imperial, porém Anessa e Miriam ainda sentiam uma ligação com Orphen. E assim, todos os outros membros partiram para a capital do Império Rodesiano. Desde então não haviam entrado em contato, contudo com certeza o grupo havia contratado outros para preencher as lacunas e estava indo muito bem sem elas.
De vez em quando, se perguntavam como seria a vida se tivessem partido com seu grupo e se mudado para a capital imperial. Entretanto, então, nunca teriam formado um grupo com Angeline e aprendido sobre Turnera também. Foi um pouco triste pensar nessa possibilidade.
Gilmenja riu ao ver as duas garotas imersas em suas memórias.
“Não são um pouco jovens demais para ficarem nostálgicas?”
“V-Você acha?”
“Você nunca pensa no passado, Sra. Gil? Como quando estava em um grupo com o mestre da guilda?”
“Não tenho nenhuma memória decente para pensar. Todavia, era bom e animado quando estávamos fazendo coisas por toda Orphen.”
“Ah, é mesmo. Você veio da capital, mas morava em Orphen, certo?”
“É verdade. Na verdade, nasci em uma empresa comercial perto de Yobem.”
“Seu pai é um comerciante? Que surpresa...”
“Não, isso é mentira. Hehehehe.”
“Qual é o seu problema?” Anessa fez beicinho com as bochechas vermelhas.
Miriam riu e pegou sua xícara.
“Como era naquela época? A velha bruxa também era ativa, não era?”
“Sim. Maria ainda não havia sido afetada pela maldição dragão, então era uma aventureira incrível. Muito mais forte do que é agora. Vocês podem não acreditar, contudo Dortos e Cheborg também eram muito mais incríveis do que são agora.”
“Wow!”
Pensando a respeito agora, todos os três estão quase na casa dos setenta. Não há mais como seguirem no auge. Deve ter havido um tempo em que eram ainda mais fortes e motivados do que agora.
“Havia alguns outros Ranks S também, sabe. A guilda estava crescendo com aventureiros jovens e animados. Havia muitos gênios na minha geração, como os amigos de Bell.”
“Hã? Senhora Gilmenja sabia sobre Kasim e os outros?”
“Sim, entretanto não os conhecia pessoalmente. Eles não saberiam sobre mim. O velho Leo resmungava sobre serem seus rivais quando ninguém estava olhando, porém ele era muito fraco de vontade para interagir. Sempre foi um desesperado.” disse Gilmenja, levando o copo à boca.
Belgrieve e Gilmenja eram mais ou menos da mesma geração. Ela pode muito bem ter o encontrado em algum lugar antes, no entanto Belgrieve entregou sua licença no Rank E, e quase ninguém se lembrava do jovem que partiu para Turnera com uma perna de pau. Os de alto e baixo escalão viviam em mundos diferentes, tanto naquela época quanto agora.
Mesmo assim, todos começaram de baixo, as memórias de seus primórdios muitas vezes levando consigo ao longo da vida. Quando ouviram Belgrieve e Kasim relembrar o passado, Anessa descobriu que suas experiências de fracasso e tentativa e erro muitas vezes se sobrepunham às dela, e isso foi um pouco encorajador. Essa ânsia e esforço sincero geralmente só eram vistos entre os escalões mais baixos.
Era um trabalho arriscado, mas eventualmente até mesmo os encontros com a morte poderiam se tornar mundanos, e as coisas que antes faziam seu coração disparar agora pareciam inconsequentes. Se um aventureiro quisesse viver muito, não poderia ficar confuso com cada pequena coisa, porém parecia um pouco triste pensar nisso de vez em quando.
“Também teve sua parcela de fracassos quando começou, Gil?”
“Claro que sim. Não pode imaginar todas as coisas pelas quais passei antes de chegar aos escalões mais altos. Estive em inúmeros grupos no começo.”
“Oh, deveria ter adivinhado. Então, quando se juntou ao grupo do mestre da guilda?”
“Estou com Ed há um tempo... Leo e Yuri estavam juntos desde o início e, em resumo, nós quatro tínhamos que nos unir para um determinado pedido de trabalho. Trabalhamos bastante bem juntos, e esse evento nos levou a formar um grupo.”
“Hmm, então esse foi o gatilho.”
“Sim, é porque todos os meus outros camaradas além de Ed acabaram morrendo nesse trabalho.”
“Hã... Oh, aí vem você de novo. Não vou me deixar enganar desta vez.”
Gilmenja fechou os olhos.
“Entendo porque não acreditaria em mim, dada a minha conduta habitual.”
“Viu o que você fez, Anne?”
“Hã? Oh, d-desculpe, eu tinha certeza...”
“Não, não se preocupe. Eu estava mentindo.”
“Qual é o seu problema?” Anessa se virou, seu rosto vermelho brilhante.
Miriam riu.
“Parece que você não é páreo para ela, Anne.”
“Cale a boca, estúpida.”
Anessa cutucou Miriam na testa, e Miriam mostrou a língua.
Gilmenja se levantou com um sorriso.
“Vou embora, então. Pago no caixa; vocês duas apenas tenham calma, hehehe.”
Gilmenja saiu antes que elas pudessem dizer qualquer coisa. Sozinhas de novo, as duas garotas se entreolharam e piscaram.
“Ela é algo mesmo”
“Sim.”
Quanto ao que era esse ‘algo’, não disseram, contudo ambas pareciam estar no mesmo comprimento de onda. Por algum tempo as garotas apreciaram o chá com gratidão antes de sair da loja. Nuvens finas começaram a aparecer, todavia o tempo ainda estava bom.
Miriam esticou os braços.
“Ahh, agora que meu estômago está cheio, estou começando a me sentir sonolenta.”
“Quer ir para casa dormir, então?”
“De jeito nenhum, seria um desperdício. Temos que passear quando o tempo está bom. Vamos mapear os becos! Tenho certeza de que há muitos lugares que não conhecemos.”
E com isso, Miriam partiu. Os becos de Orphen eram sem dúvida perigosos, mas tal coisa pouco significava para uma aventureira de Rank AAA. Anessa acompanhou-a com um sorriso cansado.
Esta área era relativamente bem conservada; o ar estava parado e Anessa não conseguia sentir a presença de nenhum vagabundo ou rufião. O caminho pavimentado com pedras continuou, ainda alinhado com a neve que havia se solidificado na sombra ao longo do caminho. Os prédios de ambos os lados tinham três andares de altura e, por vezes, as duas passavam sob linhas de roupas penduradas no beco de uma janela a outra. Anessa olhou para um desses varais apenas para seus olhos encontrarem os de um gato enrolado em um corrimão.
Pensando bem, costumávamos vagar por aí assim, nós duas, quando saímos do grupo anterior e não conhecíamos Ange, lembrou Anessa. Naquela época, ela nunca havia sonhado que estaria lutando ao lado daquela garota reticente que foi aclamada como um gênio. Embora junto de Miriam tivesse alcançado o Rank AAA em tenra idade, tinham um pouco de inveja de Angeline, que conseguiu dar um passo adiante — não que qualquer um desses sentimentos persistisse neste ponto.
As garotas continuaram pelo beco sinuoso, subindo e descendo lances de escada, que pareciam não ter fim. Era como se estivessem em uma aventura, o que era divertido por si só.
“Whoa!” Miriam exclamou, correndo à frente.
“O que é agora?”
“Gatinho!”
Outro gato — um gato malhado laranja — estava vagando por onde a luz do sol era mais forte. Ou estava acostumado com humanos, ou tinha afinidade com homens bestas, já que não dava sinais de correr quando Miriam correu direto em sua direção. No máximo, suas orelhas se contraíram um pouco. Seu pelo era brilhante, então talvez uma das casas próximas o estivesse alimentando.
Miriam se abaixou e deu um tapinha na cabeça do gato sem resposta.
“Ooh, que linda e fofa pelugem de inverno você tem aí.” Miriam estava ficando cada vez mais ousada e, logo, ambas as mãos estavam se movendo caoticamente ao redor do felino fofo.
“Por que sair do seu caminho para acariciar o pelo de um gato quando tem o seu próprio?”
“É completamente diferente. Apenas sinta e veja por si mesma.”
“Hmm...” Anessa estendeu a mão e arrancou o chapéu de Miriam, provocando um grito, e acariciou sua cabeça. Seus dedos se moveram com um toque magistral. Essa ação a relembrou seu tempo no orfanato, quando dormia segurando essa pelugem nas noites mais frias.
“Tão suave como sempre.”
“Estou falando dessa!”
Miriam levantou o gato e o empurrou para Anessa. Embora o gato parecesse um tanto descontente por sua paz ter sido perturbada, não se debateu nem tentou fugir. Anessa riu e deu um tapinha nele — parecia um pouco diferente de Miriam.
“Entendo. Afinal, não é tão parecido.”
“Certo? Este é muito melhor de tocar. Dá uma olhada nesse brilho.” disse Miriam enquanto acariciava o gato. Tendo finalmente tido o suficiente, o gato se desvencilhou, saltou dos braços de Miriam e saiu correndo.
“Aw.”
“Que azar. Porém o que esperava de um vira-lata? Agora, então...”
Anessa olhou em volta. O sol estava começando a se mover para o oeste. Elas caminharam sem rumo, e Anessa não tinha ideia de onde estavam. Embora não fosse motivo de muita preocupação, teve que se perguntar o que fazer a seguir.
“E agora, Merry?”
“Hmm? O que quer dizer?”
“Quero dizer, você é o única que queria andar por aí.”
“Eu sei, mas... Oh!”
Seguindo a linha de visão de Miriam, Anessa cruzou os olhos com outro gato — um chita rechonchudo, pavoneando-se com o rabo curto balançando para frente e para trás. Os olhos de Miriam brilharam enquanto acenava com a mão.
“Nossa, que gatinho gordinho!”
“Fala de você?”
“Não! Espere por mim...” Miriam saiu correndo de novo.
O malhado virou-se para ela com um sobressalto, depois disparou com agilidade, desmentindo sua constituição gorda. E lá foi Miriam persegui-lo, sem ouvir nenhuma das tentativas de Anessa de chamá-la de volta. Estou sendo arrastado por todos os tipos de gatos hoje, Anessa reclamou para si mesma enquanto seguia atrás.
As duas varreram um beco sinuoso após o outro, pisoteando a neve na sombra. Antes que percebessem, subiram vários degraus de pedra e chegaram ao topo de uma colina. Orphen era uma cidade construída em uma planície, contudo ainda tinha seus pontos altos e baixos. Havia pontos onde se podia olhar para baixo sobre toda a paisagem urbana. Claro, foi a primeira vez que Anessa ou Miriam vieram aqui.
“Wooow, não sabia que havia um lugar como este.”
“O que aconteceu com o gato?”
“Eu o perdi.”
Pela Deusa... Anessa balançou a cabeça antes de olhar para a cidade abaixo.
Estava ficando tarde, e era como se Orphen estivesse mostrando um lado completamente diferente do que tinha naquela manhã. Talvez fosse o tom um tanto avermelhado que apareceu na luz. A infinita extensão clara do céu agora parecia carregar um peso pesado, pairando preguiçosamente sobre a cidade. Inspirou uma leve sensação de sonolência.
As duas chegaram a um local ensolarado, com vários riachos passando sob seus pés. Anessa espanou a neve de uma pilha próxima de caixas de madeira e se sentou. Depois, estendeu os braços em um grande alongamento.
“Ahh... Estou me sentindo esgotada.”
“Chegamos a um lugar muito alto, não é? Também estou um pouco cansada.”
“Ainda assim, nascemos e crescemos aqui, no entanto parece que Orphen ainda está cheio de coisas novas para ver.”
Anessa cruzou as mãos atrás da cabeça e apreciou a vista. Bandeiras e fumaça saindo das chaminés balançavam com a brisa, e lá embaixo, todas as pessoas que desciam a estrada principal pareciam tão pequenas daqui.
Miriam se abaixou ao lado dela e murmurou.
“É um pouco estranho quando penso em como nasci aqui, sabe?”
“Você acha?”
“Sim. Quero dizer, isso torna esta nossa cidade natal, certo? Posso dizer que a casa de Ange é Turnera, mas... Orphen só não me passa esse sentimento. Não da mesma forma, pelo menos.”
“Hmm... Talvez.”
Um lar, né? pensou Anessa. Tendo estado em Orphen com mais frequência do que nunca, nunca sentiu saudades de casa, porém parecia um pouco estranho chamá-la de sua cidade natal.
“Talvez porque não seja o campo?” Miriam disse com um bocejo. “Turnera transmite aquela sensação nostálgica de cidade velha.”
“Sim, acho que pode ser algo assim.” Anessa concordou. Contudo ambas eram garotas da cidade. Ajudavam na cozinha e no jardim do orfanato, no entanto não tinham familiaridade com como era viver cercadas por florestas, montanhas e campos. Então, o que é esse estranho conforto e nostalgia que sinto lá? Anessa se perguntou com uma inclinação de sua cabeça.
“Hey, pode ser porque o Sr. Bell está lá.” Miriam sugeriu com uma risada travessa.
“Hã? Sério?” mas mesmo enquanto respondia, Anessa sentiu que não poderia refutar por completo a ideia. Quando se separaram pela última vez em Bordeaux, ele lhes disse para tratar Turnera como se fosse sua própria casa, e talvez isso tenha sido o começo. Agora que estavam acompanhando a viagem de volta de Angeline, de alguma forma parecia que estavam voltando para uma antiga casa de família.
Contudo só estive lá uma vez. Por mais sincera que fosse, Anessa tentou dissecar por que sentia uma estranha sensação de nostalgia por Turnera, sem sucesso. Ela não chegou a lugar nenhum, não importa o quanto pensasse a respeito. Depois de pensar por algum tempo, de repente sentiu um peso em seu ombro. Olhando para ver o que era, se deparou com Miriam que havia cochilado.
“Você é pesada.”
Anessa estendeu a mão e agarrou o flanco de Miriam. Era macio, mole e agradável de tocar. Embora Miriam tenha soltado um gemido estranho, apenas se mexeu um pouco e não pareceu despertar. Quão descontraída consegue ser? Anessa se perguntou exasperada, entretanto a deixou dormir tranquila. Não era nada fora do comum para nenhuma das duas.
A sonolência era contagiosa e não demorou muito para que as pálpebras de Anessa ficassem pesadas sob a agradável e reconfortante luz do sol.
Desse jeito, as duas perderam para sua letargia rastejante e fecharam os olhos. Foi só quando os ventos mudaram e uma rajada de frio fez cócegas em sua nuca que Miriam — meio adormecida — se atrapalhou e segurou Anessa em seus braços, e Anessa se levantou surpresa. Ela quase caiu com Miriam a agarrando.
A mulher besta olhou em volta com os olhos semiabertos.
“Hey! O que foi? Não me surpreenda assim.”
“Essa deveria ser a minha fala, estúpida.”
O sol havia percorrido uma boa distância sem que percebessem. A luz estava ainda mais vermelha agora, espalhando-se pelo céu ocidental. As nuvens ficaram mais espessas e o céu provavelmente seria selado por elas antes que as estrelas pudessem brilhar.
Havia uma leve brancura persistente em suas respirações.
Miriam endireitou o chapéu deslocado.
“Está ficando frio; vamos para casa.”
“Certo... É como se tivéssemos vindo até aqui para tirar uma soneca.”
Depois de esticar seus corpos um tanto tensos, começaram o caminho de volta. Os becos mostravam uma face bem diferente agora que as sombras se projetavam sobre eles. Um gato malhado atravessou com pressa o caminho com uma chita quente no rabo.
“Sem mais perseguições.”
“Eu não vou.” disse Miriam, um pouco irritada.
Fazia pouco tempo que estava claro, todavia o sol parecia estar desaparecendo rapidamente à medida que as ruas ficavam cada vez mais escuras. O céu estava nublado uma vez mais, e o vento forte beliscando seus tornozelos expostos as estimulou a acelerar o passo em fuga.
“Hey, Anne.” Miriam deixou escapar de repente.
“Hmm?”
“Desde que sejamos aventureiras, sabe... Vamos ficar no mesmo grupo.”
“Do que está falando? É óbvio.”
Elas seguiram pelo beco até retornarem à estrada principal. Lá, as lanternas das lojas penduradas em cada esquina, e as pessoas nas ruas caminhavam com pressa para chegarem a suas casas antes que a neve começasse a cair de novo. As cenas que pareciam tão pequenas e insignificantes do alto da colina se encheram de vivacidade quando se misturaram.
Anessa reafirmou seu controle sobre sua cesta de compras.
“Com certeza escureceu. Vamos comprar alguma coisa antes de irmos para casa.”
“Vamos ver, precisamos jantar e café da manhã amanhã, e... Ah.”
Mais uma vez, Anessa seguiu a linha de visão de Miriam e viu Angeline caminhando no meio da multidão. Ao notá-las, Angeline levantou a mão e gritou.
Miriam alegremente correu até ela.
“Yoo-hoo, Ange! Compras?”
“Sim... E vocês duas?”
“Caminhamos o dia inteiro e agora estamos comprando alguns mantimentos antes de voltar para casa. Onde estão os outros?”
“O pai foi para casa. Char e Bucky estão com o Sr. Kasim.”
“Hey, Ange. Encontramos um restaurante muito bom hoje. Vou te levar lá da próxima vez.”
“Hmm, parece bom... Vamos enquanto todos ainda estão na cidade.”
Do outro lado da rua, a música de um artista de rua saiu de um beco. Flocos de neve espalhados começaram a pousar delicadamente ao seu redor.
Angeline trocou de mão sua cesta de compras. “Onde está Maggie?” perguntou.
“Trabalhando de novo. Contudo já é tarde, então pode já estar em casa.”
“Que tal você pegá-la e ir jantar em nossa casa? Meu pai vai fazer ensopado.” vários ingredientes foram mostrados na cesta de Angeline.
Anessa e Miriam trocaram um olhar.
“Tem certeza?”
“Sim. Quanto mais gente melhor. E mais gostoso também... Somos camaradas, não precisam se conter.”
As duas riram quando Angeline estufou o peito, tentando parecer mais confiável. Sim, é assim que deve ser, pensou Anessa.
“Entendi. Vamos comprar algumas coisas e depois trazer Maggie.”
“Bom, estaremos esperando... Até lá.” Angeline saiu correndo e desapareceu no meio da multidão.
“A comida do senhor Bell!” Miriam sorriu. “Vamos comprar algo legal para compartilhar com todos!”
“Sim. O que comprar...? Talvez algo das barracas...”
“Ah, talvez devêssemos pegar Maggie primeiro?”
“Sim, talvez. Bem, não adianta ficarmos paradas. Vamos indo.” Elas seguiram pela estrada principal. Um vento seco espalhava uma camada de neve que brilhava a luz das lanternas penduradas nos beirais.
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