Capítulo 142: O sol estava se pondo
O sol estava se pondo e tochas começavam a ser acesas nos cantos de cada prédio enquanto Angeline caminhava com Ishmael. Ela o encontrou pela primeira vez quando ele estava viajando com Duncan em Istafar. Todos viajaram juntos para o Umbigo da Terra e depois voltaram para a capital imperial. Não fazia nem um ano desde que vira o mago pela última vez, mas mesmo assim, foi um reencontro inesperado.
Ishmael coçou a cabeça sem jeito enquanto se desculpava por não poder ajudá-los em suas aventuras na capital.
“Sinto muito por aquilo. Fui retido por meus colegas pesquisadores enquanto guardava todos aqueles materiais...”
“Não precisa se preocupar... Acabou sendo muito perigoso.”
“Ouvi sobre isso de Touya, na verdade. Deve ter sido uma grande aventura.”
“É verdade. O príncipe herdeiro era um impostor, sabe? E estava lutando contra minha mãe há muito tempo.”
Angeline se gabou de sua passagem pela capital. Ishmael assentiu, nunca parecendo estar nem um pouco entediado ou cansado enquanto ouvia tudo. A história demorou muito para ser contada para a curta caminhada entre a guilda e o bar, e eles chegaram antes mesmo que a história estivesse na metade.
Quando os dois entraram, foram cercados na hora por um barulho tumultuado. O lugar estava ainda mais movimentado agora que a noite havia chegado. Os bêbados ainda cantavam com vozes como gansos sendo estrangulados até a morte. Talvez Lucille estivesse cansada, pois parou de cantar e de tocar seu instrumento e sentou-se para beber com os outros.
A mesa parecia ter ficado bagunçada enquanto ela estava fora, pois havia duas garrafas vazias extras espalhadas.
“Hey, pessoal!” Angeline chamou com alegria enquanto recuperava seu lugar.
“Whoa!” exclamou Anessa quando seu ombro foi empurrado. “O que? Vai derramar o vinho assim.”
“É o Sr. Ishmael. Eu o encontrei.”
“Hum? Ah, você está certa.”
“Minha nossa, que surpresa...” Yakumo parecia entretida enquanto soltava uma nuvem de fumaça.
Marguerite levantou-se de repente para falar com Ishmael e deu-lhe um tapinha jovial no ombro.
“Não esperava vê-lo por aqui. Você tem estado bem? No final, nunca nos encontramos na capital!”
Ishmael ajeitou os óculos, que haviam sido desajeitados pela força do tapa da garota, com um sorriso irônico.
“Sinto muito por isso... Sei que deve parecer que fugi.”
Miriam deu uma risadinha.
“Ninguém axa izu...” ela disse, arrastando a voz sob a influência da bebida.
De qualquer forma, Ishmael foi empurrado de maneira um tanto indelicada para uma cadeira, e agora havia sete pessoas amontoadas em torno da pequena mesa. Eles arrumaram um pouco a bagunça antes de fazerem um pedido de mais comida e bebida. Embora houvesse um fluxo interminável de pessoas turbulentas entrando e saindo pelas portas do bar, o barman estava tão estoico como sempre. O homem manobrou habilmente atrás do balcão, sem misturar pedidos nem cozinhar de maneira imperfeita um único prato. Por outro lado, os garçons mais jovens que circulavam pelo salão de bebidas pareciam exaustos.
Os sete ergueram as taças para outro brinde antes de voltarem à discussão.
“Touya e Maureen estão bem?” Anessa perguntou.
Ishmael assentiu.
“Sim, mas só os vi um pouco depois de tudo o que aconteceu na capital. Os dois disseram que estavam indo para Keatai, então acho que já devem estar lá.”
“Entendo. Eles disseram que costumavam trabalhar em Keatai...”
“Nós vamos para lá também. Depois de irmos para Turnera para o festival de outono, estamos pensando em ir para o leste. Certo, Ange?” Marguerite perguntou.
“Sim.”
“Oh, você tem um objetivo lá?”
“Há algo lá conhecido como madeira de aço...”
Os menores sinais dariam continuidade à conversa. Rapidamente passou da jornada para o leste para a masmorra em Turnera, até o casamento de Belgrieve e Satie. Parecia não haver falta de histórias para acompanhar suas bebidas. Sempre que suas gargantas ficavam ressecadas de tanto falar, eles bebiam mais algumas garrafas.
Marguerite, a bebedora mais forte do grupo, seguia bem, porém Miriam estava quase derretendo na mesa, e Anessa lutava para evitar que suas pálpebras caíssem e balançava a cabeça para se manter acordada. Lucille começou a cantar e tocar seu violão mais uma vez enquanto Yakumo fumava seu cachimbo e fazia o possível para se abster de beber mais álcool.
Angeline estava se sentindo um pouco embriagada. Sempre ficava feliz em ver um velho amigo outra vez, e sem que se desse conta, bebia mais para manter o clima. Ishmael revirou os ombros e estalou o pescoço para relaxar depois de ficar sentado ali bebendo por tanto tempo. Ele havia engolido quase tudo que lhe foi oferecido e agora estava bem bêbado.
“Minha nossa... Quanto mais conversamos, mais parece que bebo...”
“Quanto tempo pretende ficar aqui, Sr. Ishmael?”
“Não tenho um plano definitivo. Meus materiais e pesquisas estão em ordem, então tenho tempo de sobra... Talvez eu deva passar por Turnera enquanto estou livre.”
“Será muito bem vindo. Vamos juntos então.” disse Angeline, sorrindo radiante e enchendo de novo a taça de vinho de Ishmael.
Ishmael pareceu surpreso.
“Hey, Srta. Angeline, estou tentando ir mais devagar aqui...”
“Não está aguentando muito bem, hein? Hey, barman — traga um pouco de água para esse homem!” Marguerite gritou, acenando com a mão.
Ishmael sorriu sem jeito.
“Desculpe e obrigado... Contudo seria errado eu visitar sua família sem ser convidado.”
“Não se preocupe com isso. De qualquer forma, tenho certeza de que algum progresso foi feito até agora...”
É provável que as estradas estejam um pouco melhores agora, e a mansão para a qual Seren estava prestes a se mudar deve estar também tomando forma. A construção da guilda também poderia ter sido concluída e, se fosse assim, seu pai estaria ocupado gerenciando tudo no escritório do mestre da guilda. Sua mãe cuidaria da recepção; a visão de uma recepcionista élfica assustaria e surpreenderia qualquer aventureiro que passasse. Angeline começou a sorrir ao imaginar a cena.
Yakumo soltou um anel de fumaça.
“Parece que está se divertindo.”
“Sim, vai ser muito divertido... Hey, vocês duas vêm também, certo? Yakumo, Lucille?”
“Oh, o que fazer... Estou bem em acompanhá-la até o leste, no entanto ir até o norte até Turnera seria um pouco fora de mão... O que me diz, Lucille?”
“O festival da primavera foi divertido. O festival de outono também deve ser.”
Até mesmo Lucille veio até a mesa depois de tocar junto com os cantores musicais, agora segurando cuidadosamente uma taça de vinho com as duas mãos. Ela sentou-se à mesa e olhou serenamente para Ishmael.
Yakumo suspirou antes de tirar as cinzas do cachimbo.
“Não duvido disso, mas... Meu medo é que Ange acabe se animando e nos faça passar mais um inverno lá. Não parece provável?”
Angeline teve que refletir sobre suas palavras.
“Sim, é possível.” Marguerite gargalhou. “Se acontecer, que tal deixá-la para trás e seguir para o leste sem ela?”
“O que? Hey, Maggie. Eu sou a líder aqui...”
“Se você for muito covarde, terei prazer em assumir. Certo, Anne?” Marguerite disse, dando um tapa no ombro de Anessa.
“Hã? Hum, uh, eu estava dormindo...” Anessa murmurou, piscando como uma coruja enquanto se orientava.
“Haha, talvez seja melhor que todos nós encerremos o dia. Vamos discutir nossos planos para Turnera em outra ocasião.” disse Ishmael, bebendo um gole de água.
“Hmm...”
Pelo quão festivo o clima ainda era, Angeline sentiu que ainda não tinha bebido o suficiente, mas Anessa já estava atordoada e Miriam estava derrubada. Embora Angeline não estivesse tão animada quanto gostaria, sabia que também tinha bebido uma quantia decente. Marguerite, que tinha bebido tanto quanto, se não mais, estava perfeitamente composta, porém não adiantava usá-la como referência. Acho que seria ruim se eu me empolgasse e acabasse com muita ressaca para trabalhar amanhã... assentiu.
“Sim, vamos encerrar a noite. Anne e Merry parecem estar no limite...”
“Aw, ainda estou bem... Bem, não há muito que possamos fazer sobre isso.”
Yakumo assentiu.
“Você é um monstro, Marguerite...”
De qualquer forma, isso marcou o fim da festa e todos partiram. Os edifícios de pedra seguiam irradiando calor, contudo o inferno escaldante do dia de verão já havia passado. Uma brisa fria passava pela rua e algumas das lojas já haviam apagado as luzes. Entretanto seguia sendo noite e grande parte da metrópole em expansão recusava-se a dormir. A folia turbulenta continuou nos bares espalhados pela estrada.
Angeline esticou os braços e respirou fundo o ar refrescante. O orvalho da tarde havia tirado a poeira da atmosfera e agora era muito mais confortável respirar.
Anessa esfregou os olhos e olhou para o céu.
“Parece que teremos céu limpo amanhã.”
“O que isso importa? Depois de beber tanto, não trabalharemos amanhã.” disse Yakumo enquanto arrumava o cachimbo.
Miriam estava cambaleando mesmo apesar de se apoiar no ombro de Marguerite.
“Merry, ande direito. Você não ficou mais pesada de novo?”
“Nãooo...”
“Vamos nos despedir daqui. Até a próxima.” disse Yakumo.
“Boa noite a vocês duas... Falaremos sobre ir para Turnera outra hora.”
“Hehe... Então nós vamos indo. Agora, então...” o olhar de Yakumo vagou e pareceu ficar perdida em pensamentos por um momento. “Hey, Lucille, estamos indo. Hey!”
Lucille estava ao lado de Ishmael, dando algumas boas cheiradas no homem. Pensando bem, ela ficou olhando para ele o tempo todo no bar, pensou Angeline.
Ishmael estampava um sorriso nervoso.
“Há algo de errado?”
“Senhor Ishmael... Seu cheiro mudou, baby.”
“Mesmo...? Eu não saberia dizer. Estou fedendo?” Ishmael cheirou as axilas antes de inclinar a cabeça, perplexo.
“O que está fazendo? Vamos. Estou com sono.” Yakumo estava bocejando enquanto se virava para ir embora.
“Estou indo para casa. Boa noite, Angeline. Boa noite a todos.” Lucille gritou antes de cambalear atrás de Yakumo.
“Ela está tão interessante como sempre. Então, Ange. O que faremos amanhã?”
“Hmm... Iremos para a guilda pra ver se há algo que valha a pena. Então veremos o que acontece a partir daí.” disse Angeline, encolhendo os ombros. Miriam estava pendurada molemente no ombro de Marguerite. Por sorte, elas não tinham nenhum trabalho urgente para fazer — se Miriam estivesse com muita ressaca, poderiam só tirar um dia de folga. Afinal, já estavam trabalhando sem parar a algum tempo e um ligeiro adiamento certamente seria permitido.
Com seus planos em vigor, Angeline se separou das três. Ishmael dissera que sua pousada ficava na mesma direção, então ele a acompanharia até a casa dela. Os dois seguiram juntos pela estrada principal.
“Deve ter demorado um pouco para chegar da capital.”
“Sim, bem, as viagens são assim.”
“Entre pesquisa e viagens, qual você prefere...?”
“Bem, ambos têm seu próprio apelo. No meu caso, quase sempre viajo para pesquisar.” explicou Ishmael com um sorriso torto.
Cada um com o seu, eu acho — a jornada em si é o principal apelo para alguém como eu, pensou Angeline. Quando Ishmael foi ao Umbigo da Terra, também foi para reunir materiais para sua pesquisa. O espírito curioso de um mago não tem fundo, pelo visto.
“Pensando bem... Sr. Ishmael, você sabe alguma coisa sobre Salomão?”
“Salomão?” Ishmael perguntou, olhando-a em dúvida. “Tenho algum conhecimento, pelo que posso dizer... Está interessada?”
“Sim. A pessoa com quem lutamos na capital estava pesquisando sobre Salomão, então fiquei um pouco curiosa.”
“Oh, pelo que me lembro, foi a Chama Azul da Calamidade, certo...?” Ishmael disse com uma expressão pensativa. “Presumo que queira saber sobre demônios então.”
“Acertou... Conhece alguma coisa a respeito?”
“De todas as coisas que Salomão deixou para trás, elas são as que mais atraem a atenção dos magos. No entanto, devido à influência da igreja, a pesquisa sobre demônios é estritamente proibida. Qualquer pesquisa que esteja sendo feita ocorre a portas fechadas. Dito isto, aposto que não existem magos pesquisadores que não estejam interessados em demônios.”
“Hmm... Espere, mas a vovó Maria não parecia muito interessada...”
Isso pareceu pegar Ishmael desprevenido.
“Perdão?”
“Oh, Maria é uma arquimaga. Como era mesmo...? Acho que seu título era a Cinzenta.”
“Maria, a Cinzenta? Ela é um gênio testado e comprovado. Mesmo sem recorrer às relíquias de Salomão, é inovadora o suficiente para desenvolver novas sequências puramente por mérito próprio. Acho que o Sr. Kasim também é, pensando bem... De qualquer forma, aqueles que não são tão talentosos são engolidos pelo abismo da pesquisa de Salomão. É assim que os demônios de Salomão são grandes e poderosos.”
Elmer também mencionou conhecer muitos magos que haviam entrado muito no território dos demônios e, como resultado, se arruinaram. Talvez tenha sido esse perigo que os tornou tão irresistíveis à investigação. Esse desejo pelo perigo também motivou os tipos de magos que se tornaram aventureiros
“Já fez alguma pesquisa sobre eles...?”
“Bom, não além do ponto de perigo pessoal. Não há como eu não ficar curioso sobre a magia do arquimago que estava no topo do mundo — whoa, me desculpe.” Ishmael tropeçou numa pedra na estrada.
“Podemos conversar sobre coisas complicadas mais tarde...”
“Haha... Sinto muito mesmo... Acho que bebi um pouco demais.”
Os ventos giravam na rua suave e em declive. A brisa fresca era agradável em seu rosto avermelhado pela bebida. Ishmael ainda andava um pouco instável. Talvez também tivesse exagerado na bebida, embora não transparecesse em seu rosto. O mago se juntou a uma mesa com muitas pessoas que gostavam um pouco demais do álcool e se deixara levar pelo ritmo.
“Falando sobre... Você bebe muito, Angeline.”
“Na verdade não. Gosto de beber com todo mundo.”
“Esse tipo de coisa parece legal.”
“Você não sai para beber com seus colegas pesquisadores?”
“Não. Bem, para começar, não sou uma pessoa muito sociável.”
“Oh, entendo. Então lá atrás...”
Ishmael riu.
“Oh, não. Depende da hora e do lugar. É um pouco trabalhoso me reunir com outros magos, porém não odeio o ar despreocupado dos aventureiros. Perto de vocês, sinto que posso me safar sendo um pouco menos tenso.”
Angeline riu também.
“Você é mais durão do que pensei, Sr. Ishmael...”
“Hahaha! Bem, já sou um aventureiro há bastante tempo... Falando nisso, estou bastante surpreso que alguém tão gentil como o Sr. Belgrieve quisesse se tornar um aventureiro.”
“Hehe... Mas ele acabou sendo ótimo de qualquer maneira.”
“É verdade. É por isso que tantas pessoas o admiram, tenho certeza.”
Angeline sentiu orgulho e alegria ao ouvir o comentário de Ishmael. O álcool a havia relaxado emocionalmente, e estava de tão bom humor que o cutucou de brincadeira.
Porém então, percebeu que equilíbrio de Ishmael não era tão estável quanto pensava, e o viu cambalear para frente mais longe do que havia previsto.
“Oh!”
“Ah!”
Angeline se apressou em estender os braços, contudo não conseguiu a tempo de pegá-lo. E então Ishmael oscilou por alguns passos desequilibrados antes de bater na parede de uma casa à beira da estrada. Todos os tipos de coisas foram espalhados por sua mochila que tinha pendurada no ombro.
“Desculpe, Sr. Ishmael... Você está bem?”
“Não, eu deveria ser o único a pedir desculpas...” Ishmael prendeu a respiração enquanto se ajoelhava para recolher seus pertences espalhados. “Bebi demais... Esta foi uma experiência de aprendizado.”
Angeline coçou a cabeça desajeitadamente antes de se agachar para ajudá-lo. Ela o ajudou a pegar um caderno, uma caneta, uma lupa, um enfeite com corrente e uma bolsa com cordão. Misturado entre todos esses pequenos itens estava um galho de uma macieira. Estava dividido em dois numa das extremidades, e o mais longo dos dois ramos ainda tinha uma folha agarrada a ele. Angeline tinha visto galhos assim em Turnera. Não era uma raridade, no entanto parecia um pouco estranho alguém carregar um por aí.
“Hum...? Um galho de maçã?”
Angeline inclinou a cabeça com curiosidade enquanto estendia a mão para pegá-lo. Entretanto, no momento em que as pontas dos dedos roçaram no galho, sentiu um choque poderoso percorrer seu braço, quase como eletricidade estática. Seu braço inteiro, até o ombro, estava dormente. Angeline deu um pulo em estado de choque.
Os olhos de Ishmael se arregalaram.
“O-O que há de errado?”
“Não... Não é nada.”
Angeline olhou para sua mão. Ela abriu e fechou. Tudo parecia bem. O que foi aquilo? Sua mão se estendeu com cuidado para recuperar o galho outra vez. Desta vez, nada aconteceu. Seu olhar inspecionou o galho e descobriu que estava tão cheio de vida como se tivesse acabado de ser arrancado da árvore, e era bastante pesado.
Embora tivesse algumas dúvidas, o entregou a Ishmael.
“Aqui está, Sr. Ishmael.”
“Obrigado. Odeio o quão desajeitado posso ser... Bem, então irei por aqui.”
“Sim. Boa noite.”
Angeline se separou de Ishmael em um cruzamento de três vias e foi para casa. Por alguma razão, se sentiu estranhamente sóbria. Sentiu que a dormência ainda persistia nas pontas dos dedos, mas quando os sondou de novo, não parecia haver nada de errado.
Angeline achou isso estranho, porém voltou para seu quarto e para a vida normal. Trocou de roupa, escovou os dentes e foi para a cama. Com certeza um sonho incrível me espera...
○
A criatura estava morrendo de fome. Permaneceu completamente imóvel fora dos momentos de caça. Enrolada na escuridão, esperou uma eternidade pela aproximação da presa. Até pouco tempo, isso sempre foi suficiente. Contudo desde que a última presa escapou com a maior parte de seus membros, a comida parou de aparecer. A criatura não podia morrer de fome, no entanto o vazio que vinha da fome aumentava e se sentia muito mais sozinha do que nunca.
Além da névoa rodopiante de memórias, sentiu que havia algo que uma vez buscou. Esse pensamento trouxe consigo uma terrível sensação de solidão. Entretanto a coisa não sabia o que fazer. Não tinha motivação para sair em busca de nada e estava cheia de certa resignação de que tudo o que fizesse seria inútil.
De repente, sentiu algo à distância — sua primeira refeição em muito tempo. Ela se preparou para atacar e se concentrou com toda atenção na escuridão. Todavia, ao contrário das refeições anteriores que sempre o encontraram incautamente, este parou fora de seu alcance. A criatura podia ouvir sussurros.
“Este deveria ser o lugar. Há algo escondido nas sombras.”
“Sim, essa presença seria um pouco demais para aqueles de baixa classificação lidarem.”
“Bom, tanto faz. Pode ser uma espécie mutante, mas ainda é apenas uma masmorra de Rank E. Vamos cuidar disso bem e rápido.”
“Não baixe a guarda. Você sempre se adianta.”
Sentiu três seres e ouviu um deles desembainhar uma espada. Pretendem atacar? A criatura se preparou.
Ouviu o som de botas saltando pelo chão — duas delas estavam se aproximando. Não houve tempo para hesitação. Ela apoiou os pés e saltou da escuridão.
“Aí vem!”
Os dois inimigos pararam de repente e pularam para trás. Não vão fugir! Porém, naquele momento, ficou claro que os dois inimigos haviam dado cobertura a uma explosão de magia. O ser havia esquecido como se defender. Ao ter atacado de frente, foi jogado no chão.
“Está tudo acabado agora.”
“Morra!”
No momento em que a fera ficou ali se contorcendo de dor, os dois lutadores que haviam recuado antes de repente fecharam a distância com suas lâminas prontas para atacar. Poderia dizer que suas lâminas afiadas estavam atingindo seu corpo, contudo não conseguiram cortar. A dor surda que sentiu não foi suficiente para deixá-la imóvel e, após se contorcer, saltou sobre um dos espadachins.
“O que?”
Suas presas eram cruéis. Não eram meros dentes de animais, na verdade eram formados de mana altamente condensada, e perfuraram e rasgaram a armadura do espadachim sem dificuldade antes de rasgar seu flanco. Sangue e gritos dançaram no ar. Sem perder um momento, a criatura levantou-se sobre os membros traseiros e destruiu o espadachim com as garras dianteiras.
“Gah!”
“Não pode ser!”
O mago na linha de trás gritou o nome de seu compatriota espadachim, agora falecido, com a voz cheia de desespero.
Não foi um processo de pensamento consciente que levou a fera a cair sobre o mago e devorá-lo em seguida, apenas uma reação instintiva à sua voz. Suas presas perfuraram sua carne delicada e roubaram seu fôlego em pouco tempo.
“Hã? Q-Que diabos...”
O último espadachim restante ficou ali atordoado antes de seu rosto se contorcer de raiva. Sua lâmina foi erguida e desferida contra a besta.
“Seu desgraçado! Como ousa?”
Mais uma vez, a criatura foi atingida pelo golpe afiado da arma. Se este aventureiro tivesse enfrentado qualquer outro inimigo, teria sido o fim de tudo. No entanto a espada ricocheteou na carne da criatura, um ataque em vão. A fera lançou-se contra o espadachim com a boca aberta.
“Agh...”
O que restou do corpo do aventureiro caiu no chão com um baque surdo. A fera estava agora cercada por três cadáveres exalando a frieza da morte. Eles foram um tanto formidáveis, todavia o resultado permaneceu inalterado. A criatura devorou sua carne e bebeu seu sangue, completamente ocupada com sua primeira refeição em tanto tempo. Entretanto não demorou muito para sentir outra presença se aproximando.
“E pensar que encontraria você aqui...”
Era um homem com uma túnica branca. Este era diferente de todas as outras formas de vida que existiam apenas para serem comidas. O homem tinha um ar peculiar. A criatura se sentiu confusa. Pela primeira vez, sentiu algo parecido com medo — sua fonte, de todas as coisas, era humana, algo que a criatura sempre considerou como alimento.
“Entendo... Então mesmo os de alto escalão acabam assim.”
O homem soltou um suspiro sofrido enquanto olhava para os cadáveres antes de caminhar corajosamente até a besta sem um pingo de medo.
A criatura ficou perplexa com a ousadia sem precedentes do homem. Rapidamente esticou as pernas para atacar. Bastaria um único salto e tudo estaria acabado — como sempre esteve antes. Mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, de repente havia sido imobilizada. Da mão estendida do homem, uma fria e pálida luz azul brilhava na escuridão.
“Este cão precisa ser ensinado a seguir ordens.” o homem começou a cantar em voz baixa que fez com que a criatura se sentisse curiosamente sonolenta. Podia sentir sua consciência se esvaindo aos pouco.
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