segunda-feira, 10 de junho de 2024

Boukensha ni Naritai to Miyako ni Deteitta Musume ga S Rank ni Natteta — Volume 11 — Capítulo 154

Capítulo 154: Depois de passar pelo buraco além da neblina

Depois de passar pelo buraco além da neblina, a visão de Belgrieve ficou desobstruída mais uma vez, mas ainda estava tão escuro quanto antes. Nesse vazio sem fim, era difícil dizer o que estava na frente ou atrás. Belgrieve se virou; o fio pendurado atrás dele parecia apenas desaparecer em algum lugar abaixo da linha.

“Acho que preciso ir em frente.”

Sua única opção era continuar em frente. Era isso que pretendia fazer desde o início — não podia perder a coragem agora. Curiosamente, sua dor fantasma havia diminuído. Belgrieve se perguntou se talvez houvesse sido causada pela neblina, porém pouco mais pôde fazer do que especular.

Seus passos eram apressados, contudo sempre com cautela. Não tinha nada para guiá-lo, no entanto sabia que Angeline estava logo além. Não sabia até onde tinha ido. Até mesmo sua noção de tempo ficou nebulosa. Seguiu em frente de qualquer maneira e, eventualmente, conseguiu distinguir uma forma humanoide um pouco mais adiante no caminho.

“Ange!” Belgrieve gritou enquanto corria para se juntar a ela. Todavia à medida que se aproximava, logo ficou claro que não era Angeline. Sua mão se moveu até a espada, com o coração disparado, ao perceber a forma de um homem com uma túnica branca com capuz — era Schwartz. Seguia lhe faltando o braço esquerdo que Graham arrancara, entretanto não parecia estar sangrando.

Schwartz parou e encarou-o.

“Então você está aqui, Ogro Vermelho.”

Belgrieve estreitou os olhos, pronto para desembainhar a espada a qualquer momento. Schwartz riu.

“Não tenha medo. Não tenho motivos para enfrentá-lo.”

Isso é duvidoso, vindo de alguém que fez tanta bagunça, Belgrieve pensou sombriamente. Mas era verdade que não conseguia imaginar nenhum motivo para lutar contra Schwartz aqui e agora — não importava que Belgrieve não pudesse derrotar tal inimigo.

“Está procurando por sua filha, não está?” perguntou Schwartz. Belgrieve o observou. “Você sabe onde ela está?”

“Passou correndo por mim.”

Schwartz inclinou a cabeça na mesma direção em que ambos estavam indo. Belgrieve semicerrou os olhos e olhou para longe, mas foi inútil. Ainda não passava de um vazio escuro e sem fim.

“Quer vir comigo? De qualquer forma, estamos ambos indo na mesma direção.”

“O que está planejando?”

“Nós apenas compartilhamos um destino, nada mais. Então vem ou não?” Schwartz expôs tudo de forma simples, instando-o a fazer uma escolha rápida.

Belgrieve pensou por um momento; com certeza estavam indo na mesma direção, e por mais relutante que estivesse com a ideia, precisaria compartilhar a estrada com aquele homem. Assim, seguiu a uma curta distância atrás do homem de túnica branca.

Schwartz começou a falar sem desviar o olhar da escuridão à frente.

“Eu devo muito a você. Se não estivesse por perto, não teria conseguido chegar a este lugar.”

“Onde estamos...?”

“Em algum lugar além do tempo e do espaço. O mesmo lugar para onde Salomão desapareceu há muito tempo.”

“Salomão...” Belgrieve olhou ao redor, porém ainda não havia nada para ver. A julgar pelo seu tom, era evidente que Schwartz dizia a verdade sobre querer vir para cá, contudo Belgrieve não conseguia imaginar o que o motivava ao certo. Belgrieve olhou em dúvida para as costas do homem.

“O que estava tentando realizar no final?”

“Duas coisas. Primeiro, vir aqui e, segundo, para ver o outro lado.” explicou Schwartz com indiferença. “Estava doente e cansado daquele mundo. Parte disso era que eu tinha vivido um pouco demais. Conheci os limites da magia. E mais do que tudo, fiquei curioso para saber para onde foi o mago mais forte da história. Não era o mundo além da morte — isso descobri depois de toda minha pesquisa sobre necromancia — e foi assim que cheguei à magia do espaço-tempo como resposta. Meu interesse se voltou para a dimensão alternativa para a qual Salomão havia desaparecido.”

Com as cortinas abertas sobre seus motivos, Belgrieve achou-os surpreendentemente simples. Foi tal como Graham havia imaginado — Schwartz era movido pela curiosidade sem limites e pela natureza inquisitiva de um mago.

“Só por algo assim...” Belgrieve murmurou.

Schwartz começou a rir.

“Só algo assim? Com certeza pode parecer trivial para vocês. Todavia do meu ponto de vista, a felicidade que todos buscam é igualmente inconsequente. Alegria e deleite, no final das contas, nada mais são do que emoções passageiras. Não deixam absolutamente nada para trás quando vão embora.”

“A curiosidade é a mesma.”

“Não é. A curiosidade dá origem a algo novo. A magia em sua totalidade é fruto da curiosidade dos magos. O desenvolvimento e a inovação decorrem da curiosidade. Felicidade é satisfação e satisfação é estagnação. Não pode produzir nada. Embora também se possa dizer que a curiosidade tem uma natureza semelhante a um feitiço de vinculação.”

“E você estava vinculado a isso, então?” Belgrieve perguntou, surpreso ao ouvir aquela nota de cinismo de Schwartz, que apenas reconheceu sua pergunta com uma gargalhada.

“Isso também teve seus limites. O enorme fluxo de eventos necessários para abrir o caminho para este espaço só se moveria com uma forte onda de emoção. Quanto maior a altura, maior será o impacto da queda. Se quisesse produzir energia, a alegria e o amor eram indispensáveis. E estes eram impossíveis para mim, não importa o que fizesse. No entanto, então, você veio e o fez por mim.”

“Em primeiro lugar, qual é o fluxo dos acontecimentos? Por que usou Ange?”

“Deixe-me explicar as coisas uma de cada vez. Para começar, todo e qualquer evento está vinculado. Assim como o vento impulsiona as ondas do mar, uma respiração pode agitar o coração. Uma ação dá lugar a outro fenômeno, todos se tornando um grande fluxo que constrói o mundo.”

Belgrieve assentiu. Posso aceitar essa ideia. Qualquer coisa e tudo tem uma causa.

“Mas os seres humanos têm vontades — e não apenas os humanos. Aqueles que pesquisam a magia do espaço-tempo, ainda mais com foco no fluxo de eventos, chamam isso de alma. A alma faz exigências diferentes do instinto de sobrevivência animalesco e primitivo que todos os seres vivos possuem. Exigências de autoridade, fama, prazer... De minha parte, classificaria o amor como uma dessas também.”

“E eles se unem para formar um ‘fluxo de eventos’?”

“Exato. Um novo fluxo, um fluxo subconsciente. Ao contrário do fenômeno do vento que impulsiona as ondas, a alma age com a intenção de fazer ou manipular o fluxo. Aqueles que têm almas que podem afetar grandes coisas serão conhecidos como heróis. Essas pessoas levam consigo o ambiente ao seu redor e causam grandes mudanças nos acontecimentos. Um herói muda o curso de uma guerra, torna-se o fundador de uma nação ou caça um grande mal. Esses indivíduos se tornam o centro de um grande fluxo de eventos.”

“Todos eles acabam aqui, então?”

“Não necessariamente. Porém já ouvi falar de vários casos em que isso aconteceu. Aqueles que são elogiados como heróis na guerra tornam-se um incômodo do qual se livrar em tempos de paz. Alguns dizem que o lamento dessas almas abriu um buraco no espaço. E esse fluxo pode atrair aqueles que não são humanos. Presumo que seja por essa razão que a Dama do Inverno apareceu há pouco.” Schwartz parou por um momento.

Belgrieve estreitou os olhos e disse.

“E então?”

“O poder de atravessar o tempo e o espaço costuma nascer do desespero. Foi assim com Salomão antes — a percepção de que não há lugar no mundo causa uma explosão de emoções que pode criar redemoinhos na corrente. Esses movimentos em espiral podem penetrar no espaço-tempo. Então, a princípio, pensei em apenas semear o caos pelo mundo. Foi por esse motivo que criei Ba’al em Orphen, embora aquela garota tenha me frustrado naquela época.”

“Você estava tentando alcançar o desespero de um herói nascido no campo de batalha? Contudo...” Por que Ange? Belgrieve franziu a testa. Se o desespero pelo mundo fosse a chave, então sentia que Percival teria sido um candidato muito mais viável. Belgrieve comentou, com uma expressão interrogativa no rosto.

“O Lâmina Exaltada, hein?” disse Schwartz. “De fato, ele tem o calibre de um herói. Porém, quando se trata de grandes fenômenos, o fluxo que conduz a eles é tão importante quanto. Não apenas o Lâmina Exaltada, todos os seus camaradas têm as qualidades de heróis, no entanto nunca conseguiram chegar a esse ponto. Isso porque não havia fluxo que os levasse até aqui. Talvez o desespero deles tenha surgido um pouco cedo demais, de forma muito abrupta. Ao longo de suas viagens, aquela garota conseguiu levar consigo todos os seus fluxos. É precisamente por essa razão que ela conseguiu criar uma corrente tão massiva.”

“É quase como se estivesse tentando orquestrar o clímax de uma peça.”

“Sim, está correto — essa é uma maneira perfeita de colocá-lo. Quando vi aquela garota de perto na propriedade do arquiduque, percebi que o fluxo dos acontecimentos parecia estar centrado à sua volta. Ela tinha poder e a capacidade de superar as provações que enfrentava e seguir em frente. Aquela garota poderia repelir toda a pressão que a rodeava. Até a antiga floresta foi rechaçada por seus esforços.”

Belgrieve olhou para cima, horrorizado.

“Então aquele ataque...”

“Na verdade, fui eu. Dito isso, só pensei que um ex-demônio teria uma forte dependência de alguma coisa. Pretendia aumentar suas emoções atacando sua terra natal, entretanto errei o alvo. O fluxo de eventos é complicado. Simplificando, meu esquema estava errado. É por esse motivo que criei uma falsa persona para observar vocês.”

E esse foi Ishmael, hein? Belgrieve tinha ouvido falar desse assunto através de seus amigos. Pensar que o companheiro com quem lutou e com quem trocou histórias na fogueira acabaria sendo seu maior inimigo. Foi uma constatação devastadora.

Schwartz continuou.

“Encontro, crescimento, separação, amor, luta contra o mal... Todos esses vários fatores a elevaram, e todos que se envolveram junto contribuíram para seu fluxo. Estava convencido de que essa garota era o centro do fenômeno de que eu precisava. Todavia, não consegui prever o ponto terminal do fluxo. Então intervi diretamente para fazer com que tudo girasse por conta própria.”

“Como...?”

“Primeiro, escolhi propositalmente a derrota na capital. Uma reunião com amigos e familiares e um triunfo sobre o mal — todos os seus camaradas tinham as qualidades de grandes heróis. Esse feito aumentaria a força por trás do fluxo... Porém o efeito não foi tão grande quanto imaginei. As emoções positivas não foram suficientes; precisaria que suas emoções negativas explodissem. Foi aí que tive certa ideia. Primeiro, daria felicidade a ela. Em seguida entregaria o alívio por seus problemas terem sido resolvidos e seu objetivo alcançado. Deixaria que se agarrasse à esperança de que tudo continuaria para sempre. Então, tirei tudo dela.”

Belgrieve olhou para Schwartz, contudo o olhar do homem permaneceu desapaixonado.

“Tenho a capacidade de perceber o passado dos outros. No entanto preciso de mais do que um pequeno contato para fazê-lo. Foi por esse motivo que usei Ishmael para interagir com você enquanto examinava seu passado. Houve um tempo em que a elfa trabalhava ao nosso lado, então tinha uma infinidade de lembranças para escolher. Escolhi as cenas e emoções mais dolorosas e as mostrei para Angeline como sonhos usando isso aqui.”

Das dobras de seu manto, Schwartz tirou um galho de uma macieira e mostrou-o a Belgrieve — a Chave de Salomão.

“Foi exatamente o catalisador que eu precisava. Mas o argumento decisivo foi a sua perna. Foi ela quem infligiu a maior ferida àquele que amava e de quem mais dependia. Esse fato foi mais que suficiente para abalar seu coração. Como resultado, transbordou de emoção ao perder seu lugar no mundo.”

“Não me diga... Essa é a razão pela qual fez Satie dar à luz Ange?"

“Não, foi uma completa coincidência.” negou Schwartz categoricamente. “Estava fora das minhas expectativas. É claro, também nunca poderia imaginar que o bebê iria até você. Porém, talvez os acontecimentos tenham começado a fluir numa determinada direção a partir daquele exato momento. Como uma folha caída na correnteza de um rio caudaloso, a direção que a garota seguiria já estava decidida. É natural ver as coisas dessa forma; apenas percebi o fluxo e o direcionei.”

“Por que tentou transformar demônios em humanos?”

“Porque queria dar à luz a almas mais fortes. Os homúnculos de Salomão eram poderosos, contudo eram meras construções. Eles eram como programas sem alma. Era impossível dirigirem eventos em suas formas básicas.”

“É por esse motivo que os transformou em humanos?”

“Correto. Com isso dito, todos os outros pareciam considerá-los apenas como armas poderosas. Não que esperasse encontrar alguém que pudesse entender meus projetos. Estávamos apenas usando uns aos outros, e fazer armas com demônios acabou sendo uma completa piada. Não é exagero dizer que todos, exceto eu, falharam em tudo o que se propuseram a fazer.”

Schwartz jogou o galho de lado espontaneamente. Belgrieve olhou para ele e depois para Schwartz.

“Você está deixando isso aqui?”

“Não preciso mais da chave. Embarquei no fluxo. Agora que estou aqui, não há problema se for engolido por ele.”

A conversa dos dois parou ali, e ambos caminharam em silêncio por mais algum tempo, até que Schwartz interrompeu a conversa com uma pergunta.

“Você não está com raiva?”

“Eu?”

“Sim. Tenho lembranças de viajar com você como Ishmael. Sou o responsável por fazer sua filha passar por coisas tão terríveis. Do que observei, te considerei um pai bastante amoroso... Estava errado a seu respeito?”

“Estou furioso. Se matá-lo agora trouxesse Ange de volta, o faria aqui mesmo que tivesse que me sacrificar no processo.”

“Oh?”

“No entanto estou aqui para pegar Ange. Não vim para te matar.” Belgrieve suspirou. “Não consigo simpatizar ou entender nada do que fez. Mas, ironicamente... Nunca teria conhecido Ange se você não estivesse lá. Nunca teria conhecido o sofrimento de Satie e também nunca teria conhecido o lamento de Percy ou a tristeza de Kasim... Pra ser franco, estou um pouco enojado com meu próprio egoísmo.”

Schwartz riu alto.

“Minha nossa, que pessoa mais estranha! É raro encontrar um homem como você. Está arriscando sua própria vida para salvar sua filha, porém sequer direcionará sua raiva para a causa de seu tormento.”

“Seu objetivo era mesmo apenas vir aqui?”

“Isso mesmo.”

“É muito mais estranho, em minha opinião.”

De repente, Belgrieve percebeu que enfim havia uma divisão visível entre o céu e a terra. Um horizonte sem limites se estendia à sua frente e logo havia estrelas brilhando no céu escuro acima. Por mais que tentasse, não conseguia distinguir uma única constelação reconhecível. Eventualmente, ao longe, conseguiu distinguir uma luz fraca. Os dois fixaram os olhos nele e seguiram em frente com foco obstinado. O chão não era duro nem macio, todavia caminhar tanto tempo era cansativo da mesma forma. Assim que seus pés começaram a doer, os dois se aproximaram o suficiente para começar a distinguir o formato dessa peculiar fonte de luz.

“Uma árvore?” Belgrieve semicerrou os olhos.

Na verdade, era uma árvore com um brilho fraco — uma macieira, com galhos espalhados por toda parte. Estava repleta de inúmeras folhas, nenhuma das quais mostrava qualquer sinal de ter sido roída por insetos. Os galhos estavam repletos de maçãs vermelhas e roliças. Havia uma figura indistinta sentada ao lado do baú. Cabelo preto... Ange? Belgrieve pensou, entretanto logo ficou claro que não era sua filha.

Schwartz marchou direto até a árvore, enquanto Belgrieve o seguia com cautela. Ao estar próximo o suficiente pôde ver que a figura reclinada contra o tronco era um homem com uma túnica volumosa e cabelos pretos e grossos, longos o suficiente para alcançar o chão. O homem estava jogando uma maçã madura para o alto e depois a pegando com uma mão, como se fosse uma bola.

O homem de cabelos negros virou a cabeça na direção dos intrusos, revelando feições que ainda eram jovens — até infantis. Seus olhos pareciam sonolentos à primeira vista, embora tivessem um brilho intenso.


“Oh, minha nossa... Estou recebendo muitos visitantes hoje.”

“Salomão. O que há além daqui?” Schwartz perguntou.

Belgrieve virou-se para Schwartz surpreso. Da mesma forma, o homem de cabelos negros olhou para os dois com curiosidade.

“Hmm? Você me conhece? Quem é você?”

“Schwartz, um mago.”

Salomão jogou a maçã para cima e a pegou, com uma expressão divertida no rosto.

“Hum? Um mago? Então veio aqui depois de ficar sem coisas para ver lá embaixo, hein?”

“Se já entende, isso torna as coisas mais rápidas.”

“Sinto muito se teve muitas esperanças, no entanto não há nada aqui para você. Nem uma coisa.”

“Oh?”

“Parece que não acredita em mim.”

“O fato de haver algo aqui significa que deve haver algo além.”

“Tsk... Pessoas como você são as que mais odeio.” reclamou Salomão. Ele bufou na maçã e poliu-a com a manga. “Realmente quer ver o que há além daqui? Não é um mundo agradável e ordenado como este.”

“Não me importo.”

“Que gosto estranho. Bem, faça o que quiser.” Salomão estalou os dedos.

Belgrieve ficou surpreso com o gesto repentino e instintivamente pegou sua espada. Ao mesmo tempo, o braço direito de Schwartz desmoronou, como se fosse feito de pedaços de terra.

Schwartz ficou surpreso por um instante, mas logo deu lugar ao riso.

“Entendo! Isso é maravilhoso! Parece que ainda há tantas coisas que não conheço!”

“Você é tão estúpido quanto eu costumava ser.” Salomão murmurou cansado.

Schwartz voltou-se para Belgrieve. O rosto que espiava por baixo do capuz — o rosto que sempre esteve envolto em sombras — era a face de Ishmael.

“Esse rosto...”

“Esta é a primeira vez que mostro minha verdadeira face desde que comecei a me chamar de Schwartz.” os lábios de Schwartz se curvaram em um sorriso. “Adeus, Ogro Vermelho! Que nunca mais nos encontremos.”

“Espere! Hey!” Belgrieve estendeu a mão para o homem inconscientemente, mas o corpo de Schwartz continuou a desmoronar até que não passasse de pó. As partículas se dispersaram no ar, varridas por uma força imperceptível. Apenas os ecos de sua risada permaneceram, e mesmo estes logo diminuíram e depois silenciaram. Belgrieve ficou pasmo com o que testemunhou.

Salomão colocou sua maçã polida ao seu lado antes de pegar uma nova e começar a polir também. Seus olhos mal olharam para Belgrieve.

“E você?”

“Meu nome... É Belgrieve.”

Salomão parecia ter uma agradável surpresa.

“Oh, temos um educado aqui. Não fique tão longe. Aqui, chegue mais perto.”

Belgrieve aproximou-se cautelosamente, ainda surpreso com a surrealidade de sua situação. O jovem à sua frente já havia criado demônios e reinado no mais alto poder do mundo; era o mesmo arquimago cujo reinado de terror só terminou quando desapareceu nos confins do tempo e do espaço. Sem sequer pensar nisso, a mão de Belgrieve permaneceu no punho de sua espada, embora não conseguisse detectar qualquer hostilidade por parte de Salomão.

Salomão olhou para sua maçã polida e brilhante e assentiu satisfeito.

“Seu amigo foi para um mundo de magia sem forma. Lá, cor, som, emoção, tudo isso ao mesmo tempo te ataca com tanta substância quanto às construções físicas. É o suficiente para enlouquecer um sujeito.”

“Ele não era meu amigo. Se tivesse que dizer, éramos inimigos jurados.”

“Inimigos? Então por que vocês estavam andando juntos como amigos?”

“Vim aqui em busca da minha filha. Acontece que estávamos indo na mesma direção.”

“Sua filha?”

“Você a viu? Ela tem cabelo preto, igual o seu.”

“Ela estava aqui. Veio e se foi. Contudo a garota que veio aqui era minha filha, não sua.” Salomão jogou sua maçã para o alto. “Eu fiz uma coisa terrível com aquelas crianças ao deixá-las para trás... Sabe o que aconteceu com elas?”

“Eles ficaram furiosos. Ouvi dizer que quase tudo que você criou foi destruído depois que partiu.”

“Entendo.” Salomão pegou a maçã e respirou fundo. “Então o que aconteceu depois? O mundo desmoronou? Não, acho que não. Quero dizer, vocês vieram aqui, afinal.”

“Ao que parece, foram caçados por um herói com a bênção da Toda-Poderosa Viena.” explicou Belgrieve. “Mesmo assim, não poderiam ser completamente destruídos.”

O olhar de Salomão suavizou enquanto relembrava.

“Oh, que nome nostálgico... Entendo. Então, no final, ela limpou minha bagunça. ‘Toda-Poderosa’, hein? Bem, acho que todos os outros deuses se foram, então faz sentido.” Salomão continuou murmurando baixinho, sem se importar com a capacidade de Belgrieve de acompanhar. Era como se estivesse falando sozinho.

“Ela era uma boa menina. Amava a humanidade e odiava o derramamento de sangue. Eu só queria que ela sorrisse... Me pergunto onde tudo deu errado.”

“Tem certeza de que não foi no ponto em que assumiu o controle do continente à força?”

“Eu fiz isso, sim, depois de exterminar os deuses antigos que oprimiam a humanidade. Viena ficou muito feliz com isso, sabia? Naquela época, os humanos não passavam de escravos, esmagados como insetos ao capricho dos deuses antigos e forçados a travar guerras inúteis como se fosse algum tipo de jogo de tabuleiro. Aquela garota sozinha... Era diferente.”

Salomão jogou sua maçã para longe. A fruta quicou algumas vezes e rolou um pouco antes de parar.

“Parecia tão feliz sempre que a humanidade estava feliz. É por essa razão que fiz o melhor que pude. Porém assim que as coisas começaram a ficar muito convenientes, todos começaram a se deixar levar. Eles se tornaram arrogantes e brigavam por pequenas coisas. Até começaram a travar guerras outra vez. Ver aquilo a devastou. Procurei todos os reis e generais, implorando-lhes que acabassem com o conflito — todavia foi inútil. Fiquei desapontado e nem sabia mais por que havia derrotado os deuses antigos.”

“Então é por essa razão que tomou o poder?”

“Sim. Com meus poderosos setenta e dois filhos, foi feito bem fácil e não ficou mais difícil depois. Consegui reprimir todos os que se opunham a mim com força — afinal, ninguém era páreo para meus filhos. E, no entanto, a fila de pessoas que se opunham ao meu governo era interminável... Então matei todos e coloquei fim às guerras e às lutas humanas. Os que matei eram todos vilões traiçoeiros. Entretanto... Viena não sorria mais. Nós nos distanciamos cada vez mais; Fiquei irritado porque ela não conseguia me entender, mesmo quando fiz tudo por causa dela!”

Salomão coçou a cabeça frustrado com as duas mãos, bagunçando o cabelo.

“E depois de um tempo, os humanos começaram a me ver como um inimigo também. Como são egoístas — quando fui eu quem os libertou dos deuses antigos! Depois da partida de Viena, os meus filhos foram os únicos aliados que me restaram — mas é claro que foram! Nasceram imbuídos de uma sequência de feitiços que os fez me reverenciarem. Eram meras construções, impostores... No final, ninguém nunca me entendeu de verdade! Tudo parecia tão inútil para mim. Então corri para cá, onde permaneci desde então.”

Salomão tagarelou animadamente antes de se voltar para Belgrieve. Havia loucura em seus olhos.

“Hey, o que acha? O que você acha que eu deveria ter feito? Acha que estou errado?”

“Eu penso que... Você já sabe a resposta.” Belgrieve respondeu gentilmente.

Salomão congelou, seu olhar se demorou sobre Belgrieve, que apenas retribuiu o olhar, indiferente à atenção. Aos poucos, a loucura nos olhos de Salomão diminuiu. Por fim, seus ombros caíram e seus olhos cerraram.

“Imagino que sim. Verdade seja dita, entendi naquela época, porém não queria aceitar. Estava com medo de entender.” Salomão abraçou os joelhos e parou de falar.

Belgrieve olhou em volta.

“Você disse que minha filha passou por aqui. Sabe para onde foi?”

“O que vai fazer se encontrá-la? Claro, ela tem o corpo de um humano, contudo metade sua voltou ao mesmo estado em que eu a coloquei. Acha que pode trazê-la de volta?”

Belgrieve olhou em silêncio para Salomão. Salomão se mexeu desconfortavelmente.

“Ela é sua filha, certo? Você a criou ou algo assim?” ele murmurou.

“Sim, desde quando era muito pequena.”

“Você a valoriza?”

“Ninguém no mundo poderia ocupar o seu lugar.”

“A garota é um homúnculo que fiz — não há dúvida a respeito. Uma farsa de alma. Mesmo assim?”

“Essa garota não é uma farsa.” Belgrieve olhou para Salomão. “É minha filha, Angeline.”

Salomão abaixou a cabeça. Depois de algum tempo, apontou com uma das mãos.

“Por ali. Siga em frente.”

“Obrigado.” a capa de Belgrieve tremulou atrás dele quando se virou para sair. Antes que pudesse dar mais do que alguns passos, ouviu a voz de Salomão de novo.

“Hey.”

Belgrieve se virou e viu Salomão observando-o, inquieto.

“Um pai... Deveria orar pela felicidade de seu filho, certo?”

“Pelo menos é assim que eu vejo.”

“Entendo...” Salomão disse antes de se recostar na árvore e fechar os olhos. “Angeline, hein... Esse é um bom nome.”

Belgrieve fez um ligeiro acenou com a cabeça antes de sair.

As estrelas brilhando no céu o estimularam a acelerar o ritmo. Não demorou muito para que Salomão e sua macieira se perdessem ao longe, e até mesmo a luz da árvore não o alcançasse mais. Antes que percebesse, o céu foi tomado por nuvens negras e um leve vento morno roçou seu rosto.

Mais ainda, a névoa negra estava ficando pesada e sentiu mais uma vez o latejar da dor fantasma.

“Ange...” Belgrieve murmurou.

Quanto mais perto chegava, mais a perna direita amputada doía. Mesmo assim, não conseguiu parar e logo seu corpo ficou envolto em névoa.


Angeline se agachou e se encolheu, segurando a cabeça. Era como uma criança tentando diminuir de medo. Seus braços e pernas já haviam ficado tão pretos quanto às outras figuras sombrias, e essa escuridão já havia aos poucos progredido por seu corpo, agora invadindo seu rosto.

O vento chicoteava ao seu redor como uma tempestade violenta, fazendo com que a névoa negra girasse a sua volta. O vento uivante era quase como uma risada desdenhosa, zombando de seu infortúnio.

“Urgh...”

É sua culpa. Se não fosse por você, ninguém teria que sofrer.

Uma voz continuou a gritar em sua cabeça o tempo todo. Percival, Kasim, Satie e Belgrieve — parecia que todos eles estavam apontando para ela em repreensão.

“Pai... O pai nunca diria algo assim...”

As palavras inconscientemente saíram de sua boca. Todavia no momento em que entrassem em seus ouvidos, uma voz diferente clamaria em seu coração.

Quem está chamando de ‘pai’? Você roubou a perna dele e roubou o futuro brilhante que teria. E então se infiltrou na sua vida, fingindo ser sua filha como se nada tivesse acontecido.

Ishmael — ou melhor, Schwartz — estava certo. Ela era um parasita de ninhada, um cuco. Ela — o parasita que sou — roubou seu calor e seu amor como se tivesse algum direito a isso. Um cuco expulsaria os outros ovos, mas seu caso era pior. Havia levado o futuro de Belgrieve e de todos ao seu redor.

Se ele tivesse continuado como aventureiro, então com certeza aqueles quatro teriam vivido uma vida abençoada como aventureiros renomados. Kasim não teria ficado preso ao seu próprio pessimismo e caído em delitos, enquanto Percival não teria se afogado no ódio, se lançando em uma batalha sem fim. Satie não teria passado por tantas despedidas trágicas. E, sem dúvida, Belgrieve também teria vivido uma vida melhor.

Angeline cerrou os dentes diante da interminável zombaria daquela voz crítica ressoando em sua cabeça. Também ouviu a mesma voz que ouviu quando lutou contra aquela sombra em Bordeaux uma vez.

O mesmo! O mesmo!

“Não... Eu não...”

Lágrimas escorreram de seus olhos. Ansiava pela salvação, mas sabia que não tinha o direito de buscá-la.

Por que eu nasci? Por que tentei encontrar a felicidade?

Por fim, todo o seu corpo se tornou um com as sombras, sem características exceto pelas roupas que usava. Seus olhos, nariz e boca não podiam mais ser discernidos, e ainda assim as lágrimas continuavam a escorrer de onde antes estavam seus olhos.

Apresse-se e torne-se um demônio. Apresse-se e esqueça tudo.

Angeline tentou se convencer, porém lá estava ela, lamentando não ter conseguido. Uma voz continuou a condená-la; uma voz continuou a chamá-la. Sentiu como se estivesse ficando louca.

“Urgh...” ela gemeu. A voz que saiu não parecia mais a sua.

Sua mente ficou nebulosa. Memórias calorosas de dias agradáveis ​​que passou enquanto Angeline passavam diante de sua mente, uma por uma, antes de desaparecer.

Ah, agora posso esquecer.

Sentiu alívio — finalmente, não precisava mais ser Angeline. Seu coração, implorando e lamentando pela salvação, ainda estava no caminho, contudo era apenas uma questão de tempo. Assim como as memórias, também acabaria por desaparecer.

Só mais um pouco.

“Ange.”

Seu coração disparou quando ouviu a voz de Belgrieve além do vento uivante. Não foi uma alucinação — ouviu aquela voz com seus próprios ouvidos. Seu olhar se voltou para cima e viu uma figura parada logo além da violenta tempestade.

Por quê?

Seu coração lentamente acalmado foi mais uma vez assolado por ondas tempestuosas.

Por que ele veio aqui? Por que não me deixou esquecer?

Angeline ficou de pé, apertando seu coração inquieto.

“Ange, você está aí?”

Não chegue mais perto! Tentou gritar, embora fosse mais como se o próprio vazio tivesse vibrado de acordo com sua vontade.

Mesmo assim, a figura além do vento aproximou-se, primeiro um passo, depois outro. Angeline cambaleou para trás, assolada pelo desejo simultâneo de correr em sua direção e agarrar-se a ele e pela vontade de fugir.

“Venha para casa. Você não pertence a um lugar escuro como este.”

Seu corpo fugiu com passos vacilantes.

Não tenho o direito de fazer isso! gritou. Então me deixe em paz!

Era quase como se o estivesse implorando. A figura parou, no entanto já estava bem perto agora.

Belgrieve olhou para Angeline, seu cabelo ruivo balançando na brisa, seus olhos tão gentis como sempre. Todavia agora, sua presença era ainda mais dolorosa para Angeline e parecia uma adaga em seu coração.

Ele sabe tudo. Sabe que é tudo culpa minha, então por que segue me olhando desse jeito? ela se perguntou, suas lágrimas ainda caindo incessantemente.

Por favor, vá embora. Angeline enterrou o rosto nas mãos. Todo mundo ficou magoado por minha causa. Não tenho o direito de ser amada. É doloroso. Alguém como eu... Nunca deveria ter nascido.

“Hey, Ange.” Belgrieve chamou-a num tom de voz suave.

Angeline estremeceu.

“Quando você era mais nova, saímos para passear uma noite. A lua estava linda e fazia o orvalho noturno brilhar ao nosso redor como estrelas. Você correu e molhou as calças enquanto corria pelo campo.”

Angeline apertou o peito. As memórias que deveriam ter desaparecido estavam voltando vividamente.

“Uma vez, quando acordou no meio da noite... Bebemos leite de cabra quente juntos.”

Belgrieve gentilmente colocou o pé à frente, mais um passo à frente.

“Lembro que me disse que teve um sonho ruim, que estava sozinha na escuridão. Que estava apavorada.”

Papai não vai a lugar nenhum. O Belgrieve em suas memórias lhe deu um sorriso caloroso.

Angeline caiu de joelhos, segurando as orelhas. Pare. Pare!

“Pouco antes que partisse para Orphen, papai fez uma promessa. Mesmo que o mundo inteiro esteja contra você, sempre estarei ao seu lado.”

Pare!

“Ange... Obrigado por ter nascido. Obrigado por ter vindo até mim.” Belgrieve estava bem à sua frente agora, estendendo os braços. “Venha para casa.”

Angeline se contorceu de dor. Houve um conflito violento dentro dela entre a parte sua que ansiava pelo pai e a sua parte que o rejeitava. Lutou para respirar. Estava com dor.

Não, não! Vá embora!

Suas mãos foram estendidas para afastá-lo, mas sem querer, seus braços sombrios se transformaram em lanças longas e pontiagudas. Ela ouviu um som de respingos e sentiu um calor repentino — o topo de sua mão direita havia perfurado o flanco de Belgrieve.

Ah, agh...

Seu braço retraiu. Estava coberto de sangue. Seus joelhos tremeram ao perceber que o havia ferido uma vez mais. A voz de condenação em seu interior ficou mais alta, falando sobre todos os outros pensamentos em sua cabeça.

Eu sabia, eu sabia, eu sabia. Estou sem esperança. Não há esperança. Não tenho o direito de estar aqui com ele.

Então, sentiu uma mão grande e gentil afagar suas costas, acalmando no mesmo instante as palavras de reprovação. Seus olhos encararam seu pai com surpresa.

Belgrieve estava sorrindo. Não parecia estar nem um pouco dolorido.

“Está tudo bem, Ange. Está tudo bem agora.” ele gentilmente a puxou para perto e acariciou sua cabeça com as mesmas mãos ásperas que a ensinaram a manejar uma espada, até um campo, e que a abraçaram muitas vezes — as mesmas mãos que amava.

Ah, ahhh... A carapaça sombria se desfez do rosto de Angeline, revelando sua pele clara. Continuou a desaparecer até que todas as sombras que cobriam seu corpo desaparecessem.

“Agh...” ela murmurou em meio às lágrimas.

Belgrieve segurou Angeline com força, acariciando suavemente seus cabelos.


“Deve ter sido doloroso. Você fez bem em voltar.”

“Sim... Sim...” o interior de seu peito estava caloroso. Este era o calor que ansiava antes mesmo de existir. A força foi drenada de seu corpo. “Me desculpe, me desculpe...”

“Está tudo bem, Angeline. Tudo bem.”

“Você... Me perdoa...?”

“Eu te perdoei desde o início. Por tudo.”

“Posso... Posso... Posso realmente estar aqui?”

“Claro que pode. Você é a garotinha do papai.” Belgrieve passou a mão pelos cabelos dela.

Angeline fungou. Afinal, seu pai era seu pai, agora e para sempre. Seus olhos foram erguidos. Belgrieve colocou uma mão suave em sua bochecha.

“Essa expressão não combina com você.”

Com o rosto cheio de lágrimas, Angeline forçou um sorriso. O que devo falar? Isso mesmo. Quando voltei, sempre quis dizer isso.

“Pai... Estou em casa!”


Belgrieve sorriu.

“Bem-vinda de volta, Angeline.”

***

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