Capítulo Extra 155.5: Pai
Angeline começou a chorar outra vez durante a noite. Do berço ao lado da cama, Belgrieve de repente ouviu seu lamento alto e se levantou de repente. Sem sequer perder tempo para amarrar sua perna protética, olhou freneticamente para dentro do berço e viu a criança com cabelos pretos que se fundiam com a escuridão da noite chorando com todo o coração.
“Vamos, vamos. Tudo bem.” Belgrieve a levantou com cuidado e a acalmou até que a criança parou de chorar e fechou os olhos. Ele a devolveu ao berço, mas não demorou muito para que ela voltasse a chorar. Nas últimas noites, desde que pegou a garota nas montanhas, Belgrieve quase não dormiu. Assim que cochilava, o bebê chorava até acordá-lo. Durante o dia, estava ocupado navegando em suas plantações ou nas montanhas, então queria pelo menos descansar à noite, porém o bebê não aceitava nada disso.
Resignado, Belgrieve massageou a têmpora e acendeu a lamparina a óleo. Não importa quantas vezes tentasse dormir, sabia que seria acordado de qualquer maneira, então era melhor ficar acordado.
Olhando para o bebê dormindo tão profundamente nesse momento, sentiu-se um tanto ressentido. Sua cabeça balançou — não sabia quem eram os pais da criança, contudo o bebê estava em um lugar desconhecido com um homem desconhecido. Talvez fosse a vaga imagem dos seus pais, ou a memória do seu cheiro ou da sua presença, que a acordasse do seu sono. Era compreensível. E assumiu a responsabilidade de criá-la quando a encontrou, então não fazia muito sentido ficar ressentido com a menina por algo assim.
O festival de outono estava próximo e, com o inverno que se seguiu, as noites se tornaram terrivelmente frias. Ele nunca deixaria as chamas da lareira se apagarem, entretanto mesmo assim, no momento em que saiu da cama, sua respiração saiu em nuvens de vapor enquanto andava pela casa.
Belgrieve folheou um livro antigo à luz de uma lamparina, desgastado pelas muitas vezes que o leu. O livro detalhou a ecologia, o perigo e os padrões de comportamento de vários monstros, do passado e do presente. Além do mais, detalhou a vegetação e os minérios que poderiam ser encontrados nas masmorras que esses monstros habitavam. Havia o trazido de sua época como aventureiro na cidade grande e iria lê-lo sempre que encontrasse tempo. Suas próprias anotações preencheram todas as margens de cada página. Cada vez que o relia, seguia encontrando algo novo para escrever.
Onde coloquei minha caneta? Perguntou-se, quando de repente sua mente se voltou para o bebê. Com a lamparina na mão, inspecionou o berço. O rosto do bebê estava vermelho sob a luz da chama, e seu cabelo preto e brilhante refletia a luz. Parecia estar dormindo. Belgrieve olhou para ela, aliviado, no entanto talvez a luz da lâmpada estivesse radiante demais, enquanto o bebê fazia caretas e gemia.
“Ah, desculpe...”
Belgrieve se apressou em puxar a lâmpada para longe e puxou as cobertas sobre a menina. Isso pareceu acalmá-la de volta. Estranhamente, parecia que o bebê não choraria enquanto estivesse acordado. Ela o mantinha acordado à noite e, ao longo do dia de trabalho, tinha que alimentá-la com leite de cabra, trocar suas fraldas ou embalá-la nos braços. Esses últimos dias foram terrivelmente ocupados. A esposa de seu amigo Kerry ajudou bastante, mas, por mais curioso que fosse, o bebê sempre queria Belgrieve. Sempre que estava de mau humor, não importava o quanto alguém tentasse acalmá-la — só parava de chorar no segundo em que Belgrieve a levantava nos braços. E então, não poderia apenas deixá-la aos cuidados de outra pessoa. Belgrieve saía para os campos ou montanhas com o bebê pendurado nas costas.
Foi bastante agitado. Já havia cuidado de crianças de outras casas antes, porém foram apenas tarefas temporárias. Quando chegasse a hora de partir, todas as crianças voltariam para casa. Contudo a casa desta criança era bem aqui. Não havia descanso quando ‘terminava’ de cuidá-la. Se tivesse uma esposa para ajudá-lo, talvez tivesse construído aos poucos sua constituição e consciência como pai ao longo da gravidez — só que essa criança foi deixada com Belgrieve do nada. Não havia nenhuma maneira de estar pronto para ser seu pai.
Com tudo dito, Belgrieve estava um pouco angustiado por ter sido obrigado a criar filhos que nunca havia previsto, além de seus trabalhos diários. Tinha amigos com muitos filhos, e eles faziam com que tudo parecesse bastante fácil, no entanto era muito mais do que poderia esperar. Tinha que atender a todas as necessidades do bebê, e as fraldas precisavam ser lavadas e secas todos os dias. Não tinha o suficiente e precisava pegar algumas emprestadas na casa de Kerry. Só quando estava cuidando de um bebê é que percebeu a enorme diferença entre ajudar como babá e ser pai.
O inverno estava chegando; uma vez que estivesse sobre eles, não seria mais capaz de secar roupa sob o céu azul, e a água também estaria fria. Havia menos trabalho que causava suor durante o inverno, então se acostumou a lavar roupa com menos frequência nos meses frios — não havia muito com que se preocupar quando era solteiro. No entanto não podia só deixar as fraldas do bebê sujas — ele já temia a dor de mergulhar as mãos em água gelada todos os dias.
Belgrieve abriu o livro, folheando distraído as páginas sem digerir as palavras. Com a aproximação do inverno, queria economizar no uso de óleo de lamparina, todavia quando considerou que precisaria se levantar de novo assim que ousasse deitar na cama, não se sentiu inclinado a apagar a luz.
Honestamente, havia muitas coisas que considerava um aborrecimento, e às vezes passava pela sua cabeça o pensamento de que havia tomado uma decisão precipitada. Mesmo assim, nunca pensou nisso como um erro. Depois que perdeu a perna, a ideia de se casar nem uma vez passou pela sua cabeça — entretanto, de alguma forma, um bebê veio para ele, entre todas as pessoas. Foi muito trabalhoso, mas sempre que olhava para o rosto adormecido do bebê, ou quando sentia a pequena mão dela agarrar seu dedo, sentia calor suficiente do fundo de seu coração para dissipar aquelas dificuldades.
Criar um filho trouxe muitos problemas, porém sua maior preocupação atual era encontrar um nome, já que o bebê ainda não tinha. As famílias com muitos filhos pareciam tornar-se bastante arbitrárias nas suas escolhas de nomes à medida que mais crianças nasciam — talvez um caso de pais desconsiderados com seus filhos, ou talvez um caso de pais que se tornam complacentes depois de se habituarem demasiado à criação dos filhos. Contudo este era o primeiro filho de Belgrieve, e nem sequer consideraria dar-lhe um nome sem pensar um pouco. Suas preocupações estavam aumentando agora — já se passaram sete dias desde que a acolheu, no entanto seguia não estando nem um pouco perto de decidir um nome.
Belgrieve apoiou a cabeça. Deveria ser pelo menos um pouco feminino, pensou. Sua mente vagou por várias flores e pássaros que poderia dar a ela o nome, só que nenhum deles soou satisfatório. Suspirou e voltou sua atenção para o livro mais uma vez. Sentiu que seria vergonhoso deixá-la ficar sem nome por muito tempo, entretanto estava tão fixado no problema que não estava conseguindo resolvê-lo. Apenas seguia perdido demais para se concentrar da maneira devida em primeiro lugar. Estava refletindo sobre esse dilema enquanto seus olhos passavam por uma determinada passagem do livro.
“Evangeline...” esse era o nome de uma aventureira que apareceu em uma lenda heroica em torno de um certo monstro — uma mulher cujas habilidades não eram menores que as de nenhum homem; uma mulher que era gentil, sábia e segura de si.
Dar-lhe esse nome não parecia uma má ideia. Talvez fosse bom nomeá-la com o desejo sincero de que se tornasse uma mulher lendária. Não que esperasse que ela se tornasse uma aventureira quando crescesse, mas queria que se tornasse uma pessoa forte e gentil.
Mesmo assim, o som do nome não combinava muito com o bebê.
“Ela não me parece uma Eva... Vamos tirar a parte da frente e... Angeline.”
Isso parecia se encaixar bem. Belgrieve assentiu.
“Angeline... Sim.”
Nada mal.
Belgrieve foi até o lado do bebê e encontrou-a dormindo um sono profundo. Olhar para o seu rosto encheu Belgrieve de felicidade sem limites.
“Angeline.” Belgrieve murmurou.
Ele estendeu uma mão gentil e acariciou sua bochecha com a ponta do dedo. O bebê moveu a boca incoerentemente e virou-se durante o sono. Não parecia descontente; na verdade, se não estivesse apenas imaginando, parecia um pouco feliz.
A lâmpada estalou e começou a soltar fumaça preta. Belgrieve refletiu sobre isso por um momento, porém no fim apagou a luz e deitou-se na cama. Por alguma razão, teve a sensação de que o bebê não voltaria a chorar naquela noite. E tal como previra, conseguiu dormir bem até de manhã.
○
Há pouco tempo, Belgrieve pensava que Angeline estava ficando muito boa em engatinhar, porém agora aprendeu a ficar de pé enquanto se agarrava a alguma coisa. A menina podia até caminhar uma curta distância, o que significava que tinha que estar muito vigilante a seu respeito. Não conseguia tirar os olhos de uma criança que acabara de aprender a se movimentar sozinha. Não foram poucas as vezes que escapara do berço, apenas para tropeçar e chorar enquanto tentava alcançar a liberdade.
Belgrieve decidiu que o dia em que a buscou seria o seu aniversário, e isso significava que já tinha mais de um ano. À medida que o inverno deu lugar à primavera e os botões frescos brotaram por todos os campos e montanhas, a menina de dezoito meses passou do engatinhar ao uso das pernas para andar. Angeline também movia as mãos com frequência e ficou boa em agarrar coisas. Desde que começou a se movimentar sem impedimentos, Belgrieve não podia mais deixar nada ao seu alcance. Houve um tempo em que tentou levantar a lâmina que ele havia deixado no meio do afiamento. Ele levantou a voz para ela, horrorizado, fazendo-a começar a chorar. Levou um longo período segurando-a antes que se acalmasse.
Angeline era uma garota enérgica. Amava o pai e sempre quis estar ao seu lado. A pequena resmungava sempre que Belgrieve a deixava com alguém para que pudesse trabalhar e, inevitavelmente, acabava levando-a consigo para o campo onde poderia brincar nas proximidades. Mesmo assim, não conseguia tirar os olhos da menina por muito tempo e se via observando-a sem parar.
“Pai...” Angeline caminhou pelo campo, irregular após o cultivo. Seus braços estavam bem abertos e parecia que estava apoiando as pernas. Contudo mesmo isso ainda era perigoso, e Belgrieve correu em seu auxílio.
“Oh, você realmente ficou boa em andar.”
“Uh-huh.” Angeline murmurou com orgulho. Ela colocou a mão sobre a de Belgrieve, agarrando o dedo dele e puxando-o. “Pai, sobe.”
“Sim, claro.”
Belgrieve a levantou. Angeline havia ganhado peso e estava muito mais pesada do que há um ano, embora não fosse suficiente para sobrecarregá-lo. Cada vez que o chamava de ‘pai’ com sua voz entrecortada, a expressão de Belgrieve se suavizava.
Angeline o agarrou.
“Hum.”
“Pronto, pronto.” disse ele, dando tapinhas de leve nas costas dela. Angeline fechou os olhos com o conforto e se aninhou em seu abraço. Pensando bem, é quase meio-dia. É hora de tirar uma soneca? No entanto Angeline deveria comer alguma coisa primeiro.
“Ange, vamos comer algo antes de você dormir.”
“Não.” Angeline balançou a cabeça, agarrando-se ainda mais a Belgrieve, como se quisesse insistir que não seria arrancada. Houve momentos em que o ouvia, todavia também houve momentos em que ficava com uma estranha obstinação. Ela ainda era muito jovem para repreender e trabalhava muito mais com a emoção do que com a lógica. Belgrieve, sorrindo ironicamente, virou Angeline nos braços e sentou-se com cuidado ao lado do campo. Sua perna protética tornava o agachamento um pouco desafiador, especialmente quando segurava uma criança. Mas por fim se acomodou, de pernas cruzadas, com Angeline no colo. Angeline recostou-se mais em seus braços, relaxando.
Belgrieve pegou a cesta de piquenique próxima. Pegou um cantil de leite de cabra que havia sido fervido e depois resfriado e colocou um pouco em uma garrafa.
“Aqui.” tentou dar a Angeline, porém esta não quis pegar.
“Nãooo.” insistiu, virando a cabeça para um lado e para outro para se desviar do caminho. Isso não estava levando a lugar nenhum, então segurou sua cabeça no lugar e pressionou a garrafa na boca dela. Contudo com uma respiração forte, ela borrifou o leite.
“Ah, pelo amor de Deus...” ele deu um sorriso amargo para Angeline, que parecia estar feliz com toda a diversão que estava tendo. Belgrieve limpou o leite da boca.
“Você vai ficar com fome mais tarde. Precisa comer direito.”
“Não!” era óbvio que sua rebeldia se tornou um jogo divertido, e Angeline não comia, não importa o que acontecesse.
Meu Deus... Belgrieve balançou a cabeça e guardou a garrafa.
“Então o papai vai comer.”
Belgrieve molhou o pão no leite e comeu. Ange parecia descontente por não a estar prestando atenção e começou a chutar e gritar.
“Ange também!”
“Vai comer?”
“Sim!”
Depois que começou a comer, foi simples. Angeline bebeu o leite ao qual sua língua estava acostumada. Também comeu pão amolecido e carne seca depois que Belgrieve os mastigou para amolecê-los. Como não tinha mãe, Angeline já estava acostumada com o leite de cabra e, desde seu primeiro aniversário, naturalmente acrescentava pão encharcado de leite e mingau de trigo cozido e macio à sua dieta. Algumas crianças agarravam-se aos seios das mães por muito tempo, por esse motivo, nesse aspecto, talvez fosse mais fácil para ele.
Com o estômago cheio, o sono começou a afetar. Seus olhos ficaram desfocados até que cedeu à exaustão e desabou contra Belgrieve. Tendo cuidado, este a segurou por cima do ombro com uma mão atrás das costas, que esfregou com suavidade.
O corpo de Angeline foi ficando mais quente aos poucos e então caiu em um sono profundo. Belgrieve verificou para ter certeza de que seus olhos estavam fechados. Aliviado, ele a deitou na cama sobre uma esteira no chão e colocou a capa cobrindo seu corpo.
Durante os cochilos da tarde, Angeline raramente acordava quando era colocada na cama assim. Essa era a hora do dia em que Belgrieve mais conseguia relaxar e trabalhar.
Mesmo assim, Belgrieve ficou ao seu lado por mais algum tempo. Sua mão pousou em sua barriga e deu um tapinha gentil enquanto a observava dormir.
Os bebês crescem em um ritmo surpreendente. Não era apenas uma questão de um dia para o outro. Ele tirava os olhos dela por um segundo e então parecia que o seu rostinho havia mudado por completo na próxima vez que a observasse.
Belgrieve pensou que tinha aprendido isso depois de cuidar dos filhos de seus amigos, mas quando compartilhou cada hora do dia com Angeline, ficou surpreso com as mudanças. Sua filha aprendeu a falar e começou a imitar inconscientemente as mesmas coisas que o via fazer. Houve momentos em que teve de refletir sobre seus próprios hábitos.
Belgrieve ficou encantado com toda a situação. Quando retornou para casa com uma perna a menos do que antes, ficou desesperado. Embora tentasse se comportar da maneira mais alegre e otimista possível, uma parte sua ainda não tinha esperança para o futuro. Foi por essa razão que fez o possível para contribuir com a vila e dedicou de forma imprudente o seu ser à busca do crescimento. Porém tais ações sempre foram acompanhadas por um sentimento de futilidade. Certamente, o trabalho de Belgrieve beneficiou a vila, e foi graças ao seu trabalho que melhorou a sua imagem aos olhos daqueles que o zombaram e desprezaram quando regressou. Todavia mesmo assim, quando pensava em como continuaria a envelhecer, era assaltado por uma espécie de ansiedade vaga que era muito potente para ele — a ansiedade de que, por mais que trabalhasse, acabaria por morrer e ser esquecido. Após o doloroso fracasso de sua experiência na cidade grande, Belgrieve teve uma avaliação muito baixa de si próprio. Passou a acreditar que seu trabalho na vila era apenas o que devia aos vizinhos, e não sentia que tivesse realizado nada que valesse a pena ou que deixaria algo para trás.
Contudo agora tinha uma filha. Esta criança tinha um futuro — tinha agora uma noção aguçada do que significava criar a geração futura. E assim, ainda que estivesse privado de sono e sempre houvesse muito trabalho a ser feito, para Belgrieve, seus dias tinham sido muito mais preciosos e cheios de alegria desde que Angeline chegou. Isso o fez se perguntar se teria sido o mesmo com seus próprios pais e, em caso afirmativo, se significava que estava compartilhando os mesmos sentimentos que eles tiveram antes. A essa altura, os rostos de seus pais haviam ficados enevoados em sua memória, no entanto talvez nesse sentido seguissem estando vivos em seu coração.
Angeline murmurou durante o sono, fazendo soar sons e palavras sem sentido e abrindo e fechando suas pequenas mãos. Belgrieve estava sorrindo quando se levantou e colocou o ancinho de novo no ombro. Ouviu ao longe o grito estridente de uma cotovia enquanto se dirigia para o campo.
○
Quando foi que Angeline disse que se tornaria uma aventureira? Belgrieve não conseguia se lembrar de quando foi que o disse pela primeira vez. Antes que percebesse, a menina estava dizendo isso o tempo todo. Foi por esse motivo que fez para ela uma pequena espada de madeira e a ensinou a brandi-la.
Assim que a preparação do chá e a tosquia das ovelhas no início do verão atingissem um bom ponto de parada, os moradores de Turnera seriam abençoados com a melhor época do ano. O curto verão animava à mesa de jantar com legumes e frutas frescas, e esta era a única época do ano em que podiam nadar no rio, para deleite de crianças e adultos.
Enquanto Belgrieve lavava legumes junto ao poço, Angeline aproximou-se com um saco e uma vara de pescar.
“Pai, estou saindo...”
“Ok, tenha cuidado. Conto com você para nosso jantar.”
“Deixe comigo...” a menina de sete anos sorria enquanto saía correndo de casa. De manhã ao meio-dia, ajudava no campo e, à tarde, aparentemente planejava brincar com os amigos à beira do rio. No verão, nadar no rio servia também como oportunidade para tomar banho. Era maravilhoso nadar na água fria depois de suar muito.
Até completar três anos, Angeline tinha uma notável tendência de ser obstinada, mas antes que Belgrieve percebesse, a garota começou a agir cada vez menos dessa maneira. Na verdade, começou a se prontificar para ajudá-lo em seu trabalho e assumiu várias tarefas para si mesma. É claro, Belgrieve não se opôs a este desenvolvimento. Sua filha começou a fazer de tudo, desde trabalhar no campo, cuidar das ovelhas, colher maçãs e fazer chá de folhas. Também aprendeu a cozinhar, limpar e lavar roupas, e muitas vezes trabalhava ao seu lado. Enquanto isso, Belgrieve a ensinou a usar uma espada e a navegar pela montanha, e lia livros para ela em voz alta.
Quando aprendeu a ler na igreja, Angeline não queria mais ficar ao lado de Belgrieve todas as horas do dia. De vez em quando saía para brincar com as crianças da sua idade. Porém em vez de brincar de casinha e tricotar com as outras meninas, Angeline preferia correr pelos campos e brincar de lutinha com os meninos. Gostava que seu cabelo fosse cortado curto e optou por usar roupas que não balançassem e que não restringissem seus movimentos. Queria ser uma aventureira, então talvez essas escolhas tenham surgido naturalmente. Entretanto, Belgrieve se perguntou se isso estava mesmo bem. Se tivesse crescido assim porque foi criada por um pai solteiro que constantemente balançava uma espada, então se sentia um pouco arrependido do que tinha feito.
Contudo Angeline parecia estar se divertindo muito sempre que balançava uma espada ou corria de um lado para outro. Teria parecido estranho neste momento tentar fazê-la agir de forma mais feminina. Quanto mais olhava para o umbigo, mais tolo lhe parecia pensar no que era ou não ‘feminino’ em primeiro lugar.
“Ange é Ange.” dizia a si mesmo.
Ainda assim, seguia sentindo vontade de vesti-la com roupas da moda de vez em quando — não que o próprio tivesse algum senso de moda. No final, nada resultou dessas fantasias passageiras, exceto a ideia de que era de fato um pai sem esperança. Ele coçou a cabeça e voltou a lavar os legumes antes de colocá-los em uma cesta de drenagem e voltar para casa.
Quando a noite chegou, Angeline voltou com três peixes. Ela já os havia eviscerado, limpou as escamas e os lavou bem. Estava nadando há pouco? Belgrieve se perguntou, notando seu cabelo molhado e roupas úmidas que grudavam em seu corpo aqui e ali.
“Estou em casa!”
“Bem vinda de volta. Você não se secou direito, não é?”
“Teehee.” Angeline riu, tentando se divertir. Era seguro apostar que estava se divertindo tanto nadando que não percebeu quando o sol começou a se pôr e, quando percebeu que horas eram, vestiu a roupa sem se secar primeiro.
Minha nossa... Belgrieve riu enquanto lhe trazia uma toalha e a acariciava.
“Você conseguiu uma boa pescaria.”
“Sim. Então, que tal? Peguei uma faca e cuidei do serviço eu mesma...”
“Entendo. Vejo que os preparou muito bem. Bom trabalho.”
“Hehe...”
Em Turnera, todos precisavam saber usar uma faca. Angeline dominou o uso da faca que lhe foi dada de presente há algum tempo.
O jantar foi composto de peixe e vegetais de verão, e nem um pedaço dele foi desperdiçado. Terminada a refeição, os dois sentaram-se junto à lareira e prepararam um chá. Em Turnera, as noites ainda eram frias, mesmo nos meses de verão, e uma pequena chama crepitava invariavelmente na lareira o ano todo.
“Quero ouvir o resto da história...”
“Claro. Quão longe chegamos da última vez?”
“A pastagem fora de Orphen. Um monstro apareceu quando você estava coletando ervas medicinais...”
“Oh, isso mesmo. Então o amigo do papai se assustou e soltou um grande grito. O monstro também ficou surpreso e...”
Todas as noites, Belgrieve contava histórias de seus dias como aventureiro ativo ou lia livros para Angeline. Algumas de suas histórias de seus dias de aventureiro seguiam fazendo seu coração arrepiar. Quando se tratava dos membros do seu grupo, seguia não tendo organizado seus pensamentos o suficiente para contar essas histórias. Sempre que apareciam, eram apenas ‘amigos’ — amigos indistintos que nunca descrevia.
Mesmo assim, Angeline ouvia com entusiasmo e todas as noites ela parecia relutante em dormir quando Belgrieve terminasse. Ainda assim, a sonolência a tomaria aos poucos e, antes que percebesse, a garota estaria roncando em seu colo, como foi o caso esta noite. Belgrieve ergueu Angeline com cuidado e a carregou para a cama.
○
Quando Angeline tinha doze anos, já podia cuidar da maior parte do trabalho que deveria ser feito em Turnera. Embora seguissem havendo algumas tarefas que exigiam a supervisão de um adulto, seus músculos estavam acostumados a todas as tarefas de trabalho no campo e sabia como cuidar de todo o gado. Tais tarefas eram muitas vezes deixadas para as crianças da vila e, lentamente, dessa forma, elas começavam a ser tratadas como adultos trabalhadores.
Nesse sentido, não havia nada de estranho em Angeline partir para a cidade grande aos doze anos de idade. Até agora, se tornar uma aventureira tinha sido apenas uma vaga antecipação na mente de Belgrieve, no entanto à medida que seu aniversário de 12 anos se aproximava, de repente parecia muito mais realista. Dessa forma, Belgrieve incutiu-a mais conhecimento do que antes. Cada caminhada pelas trilhas nas montanhas era uma oportunidade para dar aulas práticas, e a treinava estritamente no uso da espada. Angeline aprendia rápido e absorveu tudo o que lhe foi ensinado. O braço da espada dela já era melhor do que o de qualquer adulto da vila, e havia momentos em que até mesmo Belgrieve, como seu instrutor, se sentia pressionado em suas lutas. Mesmo assim, Belgrieve estava bem ciente de como eram seus movimentos e quais eram seus hábitos, então Angeline ainda não tinha o acertado um golpe. Curiosamente, Angeline pareceu gostar desse fato.
Belgrieve estava feliz por sua filha ter talento, mas também se sentia um tanto em conflito com esse fato. Supondo que não tivesse talento com a espada, nunca teria permitido que fosse uma aventureira, não importa o quanto implorasse. Mesmo que ficasse ressentida por isso, era muito melhor do que enviar sua própria filha para uma morte prematura. Porém Angeline tinha talento — um talento incrível, na verdade — e não tinha motivos para se opor à sua decisão. Por um lado, estava feliz por sua filha ter continuado o sonho de se tornar uma aventureira que ele uma vez perseguiu. Contudo, por outro lado, não queria enviar sua preciosa filha para algum lugar perigoso. De fato havia uma parte de Belgrieve que queria que Angeline vivesse com ele em paz.
Os pais com certeza são egoístas, pensou Belgrieve enquanto coçava a cabeça. Seus olhos observavam as costas de Angeline enquanto a menina lavava a louça. Parecia que a pegou nas montanhas ontem, no entanto já havia crescido tanto.
“O tempo voa...” Belgrieve murmurou enquanto observava seus pratos limpos. Ela já tinha doze anos. Seu cabelo era curto como o de um menino, no entanto seus traços eram distintamente femininos e fofos. Pensou que ela certamente teria sido uma boa esposa para alguém se não tivesse decidido se tornar uma aventureira, entretanto afastou esse pensamento.
“Não sei quando desistir, não é?” murmurou, sorrindo com tristeza.
Assim que a louça foi lavada, Angeline se lançou sobre seu pai.
“Whoa!”
“Pai... Me abrace...”
“Suas mãos ainda estão molhadas... Meu Deus.”
Belgrieve a abraçou com força e Angeline se derreteu em seu abraço. Vendo-a assim, o desejo de ter a filha ao seu lado para sempre se tornou avassalador. Em vez de mandá-la para Orphen, poderia continuar a ser agricultora em Turnera e aproveitar os festivais de primavera e outono todos os anos. Depois de algum tempo, encontraria alguém com quem se estabelecer, e talvez Belgrieve tivesse netos algum dia. Mas sabia que isso era apenas o seu próprio egoísmo vindo à tona. Essa garota tinha sua própria vida para viver. Belgrieve só se tornou um aventureiro depois que seus pais morreram, então não era como se ele os tivesse deixado por vontade própria, porém se ainda estivessem vivos na época, sabia que teriam se oposto à sua escolha — e com certeza como eles teriam sido contra, sabia que mesmo assim teria se tornado um aventureiro de qualquer maneira. Era apenas a sua natureza.
“Farei o meu melhor.” murmurou Angeline, acariciando o rosto dele com o nariz.
“Sim.”
“Mesmo se eu estiver sozinha... Farei o meu melhor para me tornar uma aventureira esplêndida que pode proteger os fracos.”
“Eu sei.” quando ela colocou assim, Belgrieve só conseguiu mandá-la embora com um sorriso. Sua filha era muito mais forte que ele. Ele vivia com medo do futuro que estava à sua espreita, contudo Angeline o encarava com firmeza.
Angeline respirou fundo antes de encontrar seu olhar.
“Então vou te acertar um dia.”
“Haha! Estarei esperando ansioso.” Belgrieve tinha certeza de que esse ‘um dia’ não estava muito longe.
Belgrieve então a questionou sobre como dar instruções, como encontrar água, como enfrentar monstros — perguntas que Angeline poderia responder sem perder o ritmo. Finalmente, Belgrieve assentiu satisfeito. Não tinha dúvidas de que sua filha se tornaria uma aventureira esplêndida — era justo por isso que se sentia tão solitário agora.
“Bom. Sobreviver é a principal prioridade de um aventureiro. Nunca ultrapasse seus limites.”
Angeline acenou de volta, esfregando o rosto na sua barba.
“Eu sei. Entendi... Macio e espinhoso...”
“As coisas que essa menina... Vamos, você terá um dia cedo amanhã. Que tal encerrarmos a noite?” sugeriu, levantando-se.
“Pai...” ela disse suavemente, puxando sua manga antes que pudesse ir embora. “Podemos dormir juntos hoje...?”
“Hmm? Você não estava treinando para dormir sozinha?” Angeline não teve resposta por um instante antes de decidir chamá-lo de ‘malvado’. A visão de seus lábios fazendo biquinho fez Belgrieve rir. “Estou brincando. Vamos.”
“Viva!” Angeline agarrou-se ao seu braço esbanjando alegria.
Belgrieve sufocou o fogo com cinzas e foi para a cama. Quando a lâmpada foi apagada, a casa ficou na escuridão total. Aos poucos, à medida que seus olhos se acostumaram com a escuridão, começou a distinguir os contornos das coisas que haviam ficado por aí. Estava silencioso. Podia ouvir a respiração e os batimentos cardíacos de Angeline deitada ao lado.
Angeline enterrou o rosto em seu peito e o abraçou com força. Ela estava tremendo um pouco. Belgrieve deu um tapinha nas suas costas.
“Está com frio?”
Angeline não respondeu, apenas o agarrou com mais força. Depois de um instante, ele falou.
“Ange.”
“Sim.” ela respondeu num tom suave.
“Você está realmente bem? Se estiver nervosa, não precisa se forçar a embarcar nesta jornada.”
O que estou dizendo? ele se perguntou enquanto sua boca se movia por conta própria. No entanto estes eram, sem dúvida, os seus sentimentos mais verdadeiros sobre o assunto. Olhando para sua filha tremendo em seus braços, as palavras vieram naturalmente de seu coração.
Angeline estava compreensivelmente assustada. Ela só conhecia Turnera, mas de repente estava partindo para a cidade grande, cheia de estranhos e um modo de vida desconhecido. A casa em que cresceu ficaria distante e precisaria deixar o pai que amava mais do que tudo no mundo. Independente de seu talento, independente do quão forte fosse com uma lâmina, ainda era apenas uma menina de doze anos.
Angeline não respondeu por um longo tempo. Por fim, olhou para seu pai.
“Vou ir. Estou nervosa, porém vou ir...”
Belgrieve lutou com suas palavras por mais um momento.
“Entendo.”
Seus braços a abraçaram e afagaram sua cabeça. Ele amava sua filha mais do que tudo.
Angeline felizmente o abraçou de volta.
“Pai. Vou fazer o meu melhor.”
“Sim, eu sei.”
Ele não sabia por que, contudo estava à beira das lágrimas. Enquanto sua filha estava em seus braços, lutava desesperadamente contra a vontade de desabar.
Após algum tempo, Angeline fechou os olhos com alívio. Seus roncos suaves encheram o quarto. No entanto, tantas lembranças passavam pela cabeça de Belgrieve que parecia que ainda não estaria dormindo.
“Que patético...”
Angeline se controlou muito melhor do que ele. Ao criá-la, sentiu que também havia crescido. Sua vida de aventureiro custou-lhe uma perna e seus amigos mais queridos; entretanto, seu retorno para casa o abençoou com algo muito maior. Para Belgrieve, Angeline foi a parte mais importante de toda a sua vida.
Sua mão acariciou o cabelo de sua filha adormecida e murmurou.
“Obrigado, Ange...”
Obrigado por ter vindo até mim. Eu sei que você ficará bem. Sei que vai conseguir. E um dia, depois de ter alcançado o sucesso, virá me ver novamente. Oh, as histórias que você terá para contar...
Belgrieve fechou os olhos. Seu coração estava em paz.
“Boa sorte.”
A história começou.
A história continuou.
FIM
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