Capítulo Extra 12.5: Pequena Aventureira
Esta é a história de quando Angeline tinha apenas oito anos.
Nos campos que se tornaram uma colcha de retalhos de terra preta e neve branca andaram alguns burros. Atrás deles, os fazendeiros içavam arados e cantavam alegres canções de trabalho, por vezes intervindo com uma reprimenda severa aos animais. Os burros avançavam com passos lentos, como se para acompanhar o ritmo das canções dos fazendeiros, indo para um lado e depois para o outro repetidamente enquanto o solo manchado aos poucos era arado em um uniforme preto.
O derretimento da neve foi quando o trabalho externo começou. Os corpos de todos pareciam rígidos por causa do inverno, mas não havia tempo para usar essa desculpa para relaxar. Era preciso preparar seus campos o quanto antes para enterrar suas batatas-semente, semear o trigo da primavera e debulhar o trigo do outono que brota da neve.
As ovelhas e cabras pousavam na grama fresca com gosto, crescendo em transe com toda a vegetação fresca que não podiam comer no inverno. Às vezes, elas também perambulavam pelos campos e comiam os brotos de trigo, arrancando gritos dos fazendeiros.
Belgrieve lutou muito com um pedaço de solo viscoso enquanto preparava um campo — não um dos campos da comunidade da vila, mas um campo próprio. Cada vez que martelava a enxada no chão, o solo escuro se enrolava e prendia a ponta.
Burros e cavalos eram usados para arar os vastos campos comunais, porém os menores para cada casa eram mantidos com um balanço de cada vez. O movimento foi como uma espada baixada de uma posição elevada, e Belgrieve considerou este trabalho uma parte de seu treinamento. No entanto, o ponto final de cada golpe seria sempre o solo, e o impacto reverberaria por seu corpo. Depois de aguentar por tanto tempo, começou a sentir nas costas e quadris.
Belgrieve trabalhou devagar, conduzindo uma longa negociação com seus músculos doloridos por todo o caminho. Às vezes colocava a mão no quadril e dobrava o torso para um lado e para o outro. Com o solo tão viscoso, cada movimento individual exigia um planejamento cuidadoso.
Estava quase na hora do festival de primavera. O trigo do outono já havia sido debulhado a essa altura, e cerca de oitenta por cento dos campos para o trigo e as batatas da primavera haviam sido semeados e arados.
Angeline correu até ele com os pés rápidos. Ela tinha uma pequena bolsa pendurada no ombro e uma adaga no quadril. “Estou indo, pai.”
“Hm? Oh, tome cuidado.”
Angeline cruzou o pátio e continuou correndo dali. Está indo brincar, certo? Belgrieve pensou, vendo-a ir embora com um olhar. Então começou a balançar a enxada mais uma vez.
○
A água da neve derretida corria por toda parte em córregos e riachos, gelando ao toque. Enquanto os típicos raios do sol irradiando pertenciam à primavera, o vento contra sua pele ainda retinha o frio do inverno, e cada respiração ainda era branca.
Angeline caminhou pelas planícies fora da aldeia. As crianças com quem costumava brincar não estavam em lugar nenhum, e ela cambaleava sozinha. Às vezes, o solo úmido embaixo de seus pés expelia água quando pisava. Havia alguns lugares onde a água era mais funda, e assim que seu pé atingiu aquele local, Angeline fez uma careta.
“Grr... Já estou encharcada hoje.”
Depois disso, Angeline por fim começou a agir com cautela. Evitando o que parecia ser um ponto lamacento e, se visse uma grande pedra, subiria ao invés de pisar no chão. Angeline conhecia bem este lugar; passava por aqui com Belgrieve todas as manhãs e costumava vir brincar com suas amigas. Os riachos que se formavam apenas nesta época do ano tornavam cada vez mais divertido brincar, e tinha estado aqui com amigos várias vezes durante o derretimento. Seus pés instáveis durante aqueles tempos davam a sensação de que estava em uma aventura.
Por um tempo, caminhou com os olhos no chão. Assim que levantou a cabeça, avistou uma cabra solitária nos penhascos — talvez tivesse acabado de sair do pasto. Sua mandíbula se contraiu enquanto mastigava, e seus olhos semicerrados se focaram em Angeline. Angeline franziu os lábios, olhando direto em sua direção.
“Você não me viu... É segredo.” Angeline levou um dedo aos lábios e o silenciou, antes de pressionar ainda mais rápido.
“Meh.” a cabra respondeu.
Um pouco mais abaixo, as árvores isoladas de repente cresceram em uma floresta mais densa. Algumas haviam perdido todas as suas folhas, porém havia muitas sempre-vivas também, e a neve ainda permanecia onde os galhos e a folhagem a protegiam dos raios do sol. Mesmo assim, aos poucos derreteu com o calor do dia, e os pingos dos galhos faziam parecer que estava chovendo na floresta.
Mesmo quando está tão claro lá fora, Angeline pensou, rindo para si mesma. Ela ainda se pegaria um pouco assustada cada vez que uma gota grande colidisse com seus ombros ou cabeça.
Esta foi a primeira vez que Angeline entrou na floresta sozinha. Suas aventuras sempre eram acompanhadas com Belgrieve para colher ervas, frutas e cogumelos. Assim como as outras crianças, Angeline adorava explorar a floresta. A vegetação ficava mais densa à medida que avançava em suas profundezas; aqui, árvores grandes às vezes desabavam e deixavam troncos cobertos de musgo, enquanto árvores novas e menores brotavam em seu lugar. Jovem como era, a cena tocou em seu coração. Angeline também adorava as refeições que eles compartilhavam enquanto se sentavam nas árvores caídas, e os maravilhosos contos de fadas que Belgrieve contaria lá — histórias dos espíritos e dos outros habitantes da floresta. Essas histórias eram intrigantes e até aterrorizantes às vezes.
Angeline parou e olhou em volta. Uma nova árvore crescia de um tronco morto e em decomposição — aqui, vida e morte existiam em harmonia. Se ficasse em silêncio, poderia sentir a linha que a separava da floresta tornar-se ambígua. Era como se pudesse sentir olhares estranhos daqui e dali. A floresta em que sempre entrava com Belgrieve parecia completamente diferente quando estava sozinha.
E então, seu coração disparou mais e mais alto quanto mais longe ia. Embora sua sede de aventura levantasse seu ânimo, Angeline também se sentia um tanto assustada e desamparada. Ela não se considerava fraca — treinava com a lâmina todos os dias e estava confiante de que a adaga em seu quadril poderia cuidar de qualquer coisa que aparecesse em seu caminho.
A escuridão, todavia, evocou um tipo de medo bem diferente. Terror correu por sua mente: o medo de ser incapaz de partir, de vagar pela floresta para sempre... Angeline balançou a cabeça para se livrar de todos os pensamentos ruins.
“Eu não estou com medo... Posso conseguir grama brilhante sozinha...” se convenceu a jovem, caminhando mais uma vez com passos ainda maiores do que antes.
○
Houve um pequeno jantar na casa de Kerry outro dia, e Belgrieve e Angeline foram convidados. Alguns agricultores afáveis se reuniram para restaurar o ânimo pouco antes do início do ano de trabalho. Os adultos conversaram transbordando alegria enquanto bebiam a sidra que havia sido servida com o pretexto de testar o lote.
Kerry se serviu de uma xícara e riu. “Finalmente primavera, eh! Vem mais cedo todos os anos!”
“Penso a mesma coisa... Isso vai ficar agitado.” Belgrieve murmurou, e os fazendeiros reunidos assentiram.
“Quase na hora do festival... Hey, o trigo não está brotando bem em alguns pontos.”
“Onde? Quais pontos?”
“Ao longo do riacho oeste. Talvez não tenhamos espalhado sementes suficientes.”
“Isso não é bom. Quer que adicione um pouco mais?”
“Nah, vamos manter a debulha com moderação e adicionar um pouco mais de fertilizante. Vamos administrar de uma forma ou de outra, uma vez que os caules engrossem.”
“É mesmo? Tenho esterco mais do que suficiente à mão. Quer um pouco, é só dizer a palavra.”
“Você é um verdadeiro salva-vidas lá.”
“Hey, Bell? Tem batatas suficientes na sua casa?”
“Sim, estou bem. Nossos campos não são tão grandes, de qualquer maneira.”
“Entendo... O fato é que armazenamos nossas batatas um pouco bem demais este ano e temos mais do que podemos dar conta.”
O fazendeiro conversando com Belgrieve coçou a cabeça e outro riu.
“Agora é um momento tão bom quanto qualquer outro — que tal expandir esse campo?”
“Talvez você esteja certo... Kerry, poderia me emprestar seu burro algum dia?”
“Claro, vá em frente — depois que eu terminar meu campo, no entanto.”
“Não seria de outra maneira. Vou lembrá-lo depois.”
Com Angeline sentada em seu colo, Belgrieve tomou um gole de sua cidra, refletindo sobre o trabalho de amanhã. Angeline, por sua vez, estava abraçando o gato de Kerry, extasiada com sua penugem.
O fogo na lareira queimava brilhante e vermelho, adicionando tons quentes modestos ao frio penetrante da noite de início de primavera. A casa de Kerry era bastante grande, acomodando sua riqueza e grande família. Sua sala de jantar cabia mais de dez pessoas — incluindo as crianças — e ainda tinha espaço de sobra. A esposa de Kerry estava assando as aves selvagens que Belgrieve havia caçado no início do dia. Estalando os lábios na carne aromática, eles juntaram força de vontade para começar a trabalhar.
As conversas fluíam sempre que os fazendeiros se reuniam, contudo todos ansiavam pelo festival da primavera que os esperava além dele. Ela acontecia todos os anos no primeiro dia da primavera no calendário oficial. Por essas partes, a neve começou a derreter um pouco antes disso, e o trabalho de campo já estava bem encaminhado. Sua primavera começou antes que o calendário determinasse que sim, e os aldeões fizeram tudo que podiam desde o final do inverno para garantir que seus deveres não se acumulassem. Quando alcançassem um bom ponto de parada, as festividades estariam vindo a seguir.
As festas do festival da primavera se concentravam em principal em seus estoques de inverno, então ficava aquém do festival de outono. Ainda assim, foi uma festa depois do primeiro trabalho árduo desde o início do inverno. Quanto mais se esforçavam, mais podiam saborear o que estava por vir e, portanto, não hesitavam em derramar suor. Os fazendeiros bebiam com moderação nessas reuniões menores, porém muitas vezes acabavam ficando bêbados no final do festival da primavera.
“A cidra deste ano não está um pouco azeda?”
“Nah, é provável que seja apenas o barril.”
“Estou ansioso para a competição de degustação. Quem você acha que vai ganhar este ano?”
“Teremos que esperar para ver.”
“Pretende colher grama brilhante este ano, Bell?”
“Sim.”
“De novo? Estou surpreso que não se cansou disso ainda. As lanternas de papel são suficientes.”
“Haha, apenas me deixe ser teimoso, por que não? Minha velha mãe e meu pai costumavam gostar...” Belgrieve sorriu e bebeu sua cidra.
Por volta do início da primavera, a grama brilhante floresceria com flores robustas, redondas, semelhantes a lâmpadas. Essas flores eram do tamanho de rebarbas e, quando a noite chegava, seu pólen liberava uma fosforescência azul fraca para atrair insetos. Se licor destilado fosse espirrado sobre o estame, brilhariam em vermelhão.
O festival da primavera também era uma cerimônia para descansar os espíritos. De acordo com os costumes religiosos locais de Turnera, o festival de outono acontecia quando as oferendas eram feitas a Toda-Poderosa Viena e aos espíritos para dar as boas-vindas aos fantasmas de seus ancestrais. Esses fantasmas ficariam na casa durante o inverno, cuidando de seus descendentes e garantindo que sobrevivessem ao frio. Por fim, assim que a primavera chegasse, estes seriam enviados de volta à terra dos mortos.
Para esse fim, o dia seria passado em folia com amigos e ancestrais e, assim que o sol se pusesse, o vermelhão da grama brilhante seria enviado à deriva pelos riachos de neve derretida para ver os espíritos em seu caminho. A festa de despedida deles continuaria até tarde da noite.
No entanto, já fazia um bom tempo desde que a grama brilhante tinha sido usada por outra pessoa. Hoje em dia, o papel seria esticado sobre uma estrutura de madeira entalhada e uma vela seria inserida em seu interior. Os anciãos da vila disseram que isso acontecia porque nunca foi tão fácil obter papel.
No passado, havia grandes campos de grama brilhante selvagem, mas eles foram transformados em campos de trigo na geração de seus avós. Afinal, a grama brilhante só crescia em solo fértil com boa luz solar, e esses lugares também eram perfeitos para campos. O desenvolvimento da terra avançou pouco a pouco até agora, quando apenas alguns caules inconstantes ainda cresciam ao redor da aldeia.
Embora lanternas de papel fossem agora a norma, desde que Belgrieve voltou para Turnera, o mesmo se aventurava a colher grama brilhante no início de cada primavera. Mesmo havendo muitas casas que usavam grama brilhante quando Belgrieve ainda era uma criança, e seus pais gostavam muito de suas luzes vermelhas.
As memórias de seus pais eram fracas. Seu pai morreu quando Belgrieve tinha sete anos, sua mãe quando tinha onze. Ele tinha certeza de que era amado, porém não conseguia se lembrar do rosto de seu pai e, ultimamente, estava prestes a esquecer de sua mãe também. No entanto, enquanto as imagens desbotavam, as emoções que sentia enquanto todos observavam a grama brilhante flutuar rio abaixo ainda estavam gravadas em seu coração.
Isso era o mínimo que podia oferecer aos pais que faleceram antes que pudesse retribuí-los, então colheria grama brilhante sem falta todos os anos. Cada vez que observava as luzes, Belgrieve sentia essas memórias se renovarem.
O jantar acabou antes do anoitecer e Belgrieve voltou com Angeline nas costas. Angeline estava um pouco sonolenta, contudo o ar frio a manteve acordada e ela se mexeu em suas costas.
“Pai.” disse ela.
“Hum? O que foi?”
“Você vai procurar por grama brilhante de novo...?”
“Sim, todo ano. Sei que estamos ocupados, porém sua avó e seu avô realmente adoraram.”
“Sim... Mas... O campo...”
“Haha, não podemos fazer muito a respeito. Acontece todos os anos, e estou acostumado a isso.”
“Entendo...”
Angeline enterrou o rosto nas costas de Belgrieve e fechou os olhos.
○
Quero ajudar papai de todas as maneiras que puder, pensou Angeline.
Belgrieve estava passando cada dia trabalhando seriamente em seus campos. Preparando o solo e se aventurando nas montanhas sempre que tinha tempo livre. Não só isso, também ajudava nos campos de outras pessoas e cozinhava, limpava e lavava a roupa em casa. Angeline ajudou, é claro, no entanto não era tão habilidosa. Com seu corpo pequeno, havia um limite para o que poderia fazer pelos campos.
Foi forrageando nas montanhas que ela se mostrou mais promissora. Angeline estava confiante em seus olhos — podia identificar ervas, frutas e cogumelos antes mesmo de Belgrieve, e era boa em escalar árvores, com as quais Belgrieve lutava por causa de sua perna de pau. No outono, subia para colher uvas e akebia.
Angeline decidiu que colheria a grama brilhante em seu lugar. A primavera já foi bastante movimentada e demorou muito para me aventurar nas profundezas da floresta e voltar. Sua intenção era diminuir a carga de Belgrieve, mesmo que apenas um pouco.
Angeline tinha ido colher a grama brilhante com Belgrieve antes. Naquela época, seu pai a havia levado para uma clareira no lado oposto da montanha oeste. Ficava no sopé da montanha, então não teria que escalar, contudo ainda era uma longa jornada pela floresta para chegar lá. No início da primavera, a floresta estava escura com pouca visibilidade e o solo muitas vezes úmido e esponjoso.
Angeline se lembrou de como a paisagem de repente se abriu em incontáveis pétalas redondas balançando sobre uma encosta suave — uma bela vista.
“O pai vai me elogiar? Heehee...” Angeline deu uma risadinha, imaginando Belgrieve acariciando sua cabeça enquanto voltava com os braços cheios de grama brilhante. Para poder surpreendê-lo, Angeline saiu em segredo e com certeza Belgrieve ficaria encantado em ver o quanto havia crescido.
Angeline encostou as costas em uma grande pedra para descansar. Estava à luz do sol e agradavelmente quente. Foi mais ou menos na época em que o sol começou a se inclinar para o oeste. Ela estava com fome. De sua bolsa, tomou um pedaço de pão duro com queijo de cabra e deu uma mordida.
Dando uma olhada ampla ao seu redor, estava nas profundezas da floresta agora e tinha feito isso sozinha. Excluindo Belgrieve, mesmo os adultos da vila não poderiam ir tão longe. O pensamento assustou Angeline, no entanto também a deixou orgulhosa. Talvez este tenha sido o primeiro passo para se tornar a aventureira que sempre quis ser.
“Hehe... Eu sou uma aventureira!”
Angeline sacou sua adaga, balançando-a de brincadeira como se um monstro tivesse aparecido bem na sua frente. Aos poucos, ela ficou mais e mais aquecida, e então não apenas sua lâmina — seus pés estavam se movendo para corresponder a esse inimigo inexistente também, e estava se exibindo sozinha. A história se desenrolou em sua cabeça.
Um poderoso monstro apareceu. Papai é muito forte, porém o monstro o pegou de surpresa e o feriu. E então, galantemente, pulo para lá! Angeline fingiu cobri-lo, olhando direto para frente.
“Pai... Você está seguro agora! Venha, monstro! Vai ter que passar por mim!”
É claro que o monstro tem que ser um dragão ou demônio ou algo forte assim. Quero dizer, é bom o suficiente para machucar o pai, afinal. Mas eu não vou perder. Aprendi a espada com meu pai e não vou perder para ninguém além de meu pai. Não importa o que.
Angeline ficou mais e mais animada, misturando gritos e falas que sabia que soavam legais no momento.
“En garde¹! Hyah! Hmm, nada mal... Deixe-me adivinhar, você é... o Dragão Lendário!”
Sua batalha com o dragão imaginário atingiu o clímax, e quando por fim usou seu movimento final para pegar sua cabeça, Angeline estava em completa exaustão. Tendo saltado tanto de lá pra cá em seu transe, suor começou a escorrer por seu corpo.
Mais uma vez, Angeline se sentou contra a rocha e soltou um suspiro profundo.
“Que batalha...” lamentou, seus delírios evidentemente continuando.
Ela almoçou, moveu-se muito e agora estava se aquecendo ao calor do sol. O senhor sono a pegou de surpresa, e já estava roncando antes de ter qualquer palavra a dizer sobre o assunto.
○
“Kerryyyyyyy...”
“Wow!”
Assim que Kerry estava voltando para casa de seus campos, ficou chocado ao se deparar com Belgrieve, que parecia como se o dia do julgamento estivesse sobre ele. O sol já havia se posto e estava quase escuro lá fora. Kerry não podia nem dizer quem era até que estivesse mais perto, e foi àquela hora exata do dia em que monstros assustadores costumavam vir atrás dos meninos e meninas maus. Kerry inadvertidamente gritou.
“B-Bell! Não me assuste, meu Deus...”
“Ange... Ange não voltou para casa... Já está tão escuro...”
“Hã? Ange? Não foi brincar com as outras crianças mais cedo?”
“Todas as outras crianças estão em casa seguras... O-O-O que eu faço, Kerry...? Não me diga que ela foi sequestrada... Ou talvez... Oh, Ange...”
O que quer que ele estivesse imaginando, fez Belgrieve cobrir o rosto e gritar de agonia. Kerry suspirou e deu um tapinha em seu ombro.
“Oi, Bell, não é do seu feitio agir assim. Primeiro, acalme-se.”
“C-C-Como é que vou me acalmar? Isso nunca aconteceu antes!”
Kerry quase abriu um sorriso ao ver Belgrieve — que na maioria das vezes era tão calmo e controlado — em um frenesi, mas não era hora de rir. Kerry agarrou o ombro de Belgrieve com força e o sacudiu.
“Idiota” De que adianta perder a cabeça? Fique assim e terá menos probabilidade de encontrá-la!”
“Erk... V-Você está certo... Desculpe...”
“Em todo caso, vamos sair por aí perguntando se alguém viu Ange. Vou chamar qualquer pessoa que esteja livre para procurar.”
“Sim, me desculpe...”
Tendo recuperado um pouco a calma, Belgrieve saiu perguntando aos outros aldeões. A maioria não sabia de nada, e nenhuma das crianças havia brincado com Angeline naquele dia. No entanto, um pastor que mandou suas cabras para pastar afirmou que a viu.
“Ela estava sozinha. Foi em direção à floresta, se bem me lembro.”
Belgrieve ficou pálido. A floresta? Sozinha? Para que?
“Não me diga... A grama brilhante?”
Não houve sequer tempo para pensar. Belgrieve correu para casa, pegou sua espada e uma lanterna e saiu correndo.
No caminho, ele passou por um aldeão curioso que gritou: “Bell? O que há de errado?”
“Vou encontrar Ange!”
A floresta estava bastante escura durante o dia e ainda mais escura à noite. Belgrieve não conseguia ver os próprios pés, e isso o tornava muito mais lento com sua perna de pau. Um ligeiro passo em falso seria o suficiente para fazê-lo cair, pois seria impossível segurar os dedos dos pés. Se pisasse em madeira apodrecida, a ponta de sua prótese afundaria; se pisar em pedras úmidas, pode escorregar. Quando estava claro, evitava sem sequer perceber todos esses perigos no momento em que seus olhos os registravam, entretanto era mais difícil discerni-los à luz da lamparina. Mesmo assim, seu coração não permitia que diminuísse o ritmo.
Belgrieve gritou com a voz repleta de ansiedade o nome de Angeline enquanto acelerava, sua voz reverberando inutilmente entre as árvores.
○
Uma repentina brisa fria varreu sobre Angeline. Tremendo, a mesma saltou sobre seus pés.
“Hum...? Onde eu estava...”
Tinha ficado muito escuro enquanto não estava olhando; evidentemente, a noite havia caído durante seu pequeno cochilo. Angeline inclinou a cabeça, por um momento se perguntando por que estava lá fora, no entanto logo em seguida lembrou que tinha vindo para a floresta. E então, entrou em pânico.
“O-O que eu faço...”
Sua intenção era sair antes que escurecesse. Então, contaria a Belgrieve sua aventura e jantariam juntos. No entanto, a noite tinha caído — estava escuro como breu aqui e ali, e Angeline podia apenas distinguir de forma bem vaga os contornos das árvores nas sombras contrastantes. As estrelas no céu pareciam sua única salvação.
“Oeste está... Longe.” disse ela, tirando sua orientação das constelações — uma habilidade que aprendera com Belgrieve. Esta era a primeira vez que entrava na floresta à noite, mas tinha ouvido histórias. Seus olhos não eram confiáveis, então ao que parecia deveria fazer bom uso de seu nariz e orelhas. Além disso, Angeline sabia que tinha que ficar parada, a menos que fosse absolutamente inevitável se mover.
“Mas...”
Era muito assustador ficar aqui. Até a grande rocha a que Angeline confiara seu corpo esfriou, como se a estivesse menosprezando. Sentindo como se algo sem forma a estivesse observando além da escuridão; Angeline teria preferido que fosse algo que sua lâmina pudesse cortar. O que quer que acontecesse, queria muito evitar ser arrastada para a escuridão para vagar para sempre.
Por enquanto, vamos em direção à grama brilhante, ela pensou. Não era como se tivesse um motivo claro. Simplificando, na mente frenética de uma criança, a solução mais simples parecia ser seguir seu objetivo inicial.
Angeline continuou avançando, movida pelo medo e pela desolação. Sua mente poderia ser distraída dessas emoções um pouco, desde que continuasse se movendo. Estendendo as mãos à sua frente enquanto caminhava, mas à medida que seus olhos gradualmente se acostumaram com a escuridão, ela desenvolveu uma visão nebulosa da floresta à noite. Angeline estava desesperada para não cair, porém seu ritmo estava cada vez ficando mais suave. Seu coração se acalmou e sua coragem estava voltando.
De repente, um pássaro da floresta grasnou e voou de seu poleiro. O som de suas asas e o farfalhar das folhas ressoou pelo ar. Angeline sacou sua adaga e se preparou. Estava desperta uma vez mais; seu coração disparou e sua respiração estava mais alta do que gostaria.
“Urgh...”
Angeline enxugou as lágrimas que cresciam devagar com as costas da mão e continuou a andar. O frio picou seu corpo e seu suspiro era de um puro branco. Esfregando as mãos para se aquecer, Angeline foi movida pela frieza e solidão, mas assim que voltou a si e olhou em volta, por fim foi tomada pelo desespero. Sabia em que direção estava indo, contudo não tinha ideia de onde estava. Mesmo enquanto se dirigia aos poucos para o oeste, ainda caminhava às cegas.
Depois de continuar por algum tempo, ela se agachou e abraçou os joelhos. Suas lágrimas caíram pelo chão, e seu coração foi dominado pelo arrependimento, perguntando-se por que havia vindo para colher à grama brilhante sozinha.
O pai está preocupado comigo? Está me procurando agora?
Angeline se sentiu patética por fazer Belgrieve se preocupar. Queria voltar para casa e que seu pai a elogiasse por quanto havia crescido, contudo agora seu próprio desenvolvimento era a menor de suas preocupações.
“Eu sou tão estúpida. Angeline, sua idiota...”
Angeline deu um tapa nas bochechas e as sentiu ficarem quentes. Em contraste, as pontas dos dedos estavam terrivelmente frias. Não poderia continuar agora, e por um tempo, permaneceu lá imóvel. Se abraçando, esfregando os ombros, todavia agora que havia parado, podia sentir o frio na espinha, e sentiu como se seus dentes não parassem de bater. Cada vez que tentava imobilizá-los, eles chocalhavam juntos.
Estou perdida, pensou. No entanto o tremor era muito forte para fazer qualquer coisa. Sua respiração tornou-se superficial e seu hálito branco permanecia incessante no ar.
Uma gota de luz verde fraca se ergueu do chão e Angeline ergueu o rosto em choque.
“Wow...” ela reagiu sem pensar.
Pequenos grânulos, como vaga-lumes, cintilavam em silêncio com a brisa, uma multidão flutuando a sua frente. Angeline estendeu a mão e agarrou um. No entanto, quando abriu a mão, a luz havia sumido. Não estava quente nem frio; nem era um inseto — em primeiro lugar, não era época de vaga-lumes.
As luzes forneciam um tênue alívio na escuridão da floresta. As árvores e rochas se destacavam em seu fraco brilho verde. Foi uma visão fantasmática e encantadora, diante da qual Angeline esqueceu suas tristezas. Talvez um dos contos de fadas da floresta de Belgrieve contivesse luzes como essas.
Ela ouviu uma voz à distância. Recuperando seus sentidos, Angeline olhou ao seu redor. Era sem dúvida seu nome em uma voz que nunca confundiria com outra pessoa.
“Pai! Estou aqui!” Angeline gritou. O matagal farfalhou e se partiu em resposta, e não demorou muito para que visse a luz amarela de uma lanterna e os cabelos ruivos iluminados.
“Ange!”
“Pai!”
A sensação de alívio surgindo dentro cortou todos os fios que a mantinham tensa, e ela mais uma vez começou a chorar, correndo para Belgrieve e pulando em seu peito.
Belgrieve deu afagou sua cabeça de maneira incomum.
“Você não está ferida, está? Não? Ah, que bom... Sua malandrinha! Me deixou preocupado!”
“Sinto muito... Sinto muito... Waaaaah!”
○
Por enquanto, Angeline gritou e agora estava sentada no colo de Belgrieve. Era grande e aconchegante, oferecendo muita paz de espírito.
A luz da lanterna mostrou que Belgrieve estava em frangalhos. Suas roupas estavam enlameadas aqui e ali — sinais de que havia sofrido mais do que algumas quedas. Havia arranhões em seu rosto por causa dos galhos que encontrou enquanto corria e restos de folhas secas e lama grudaram em seu cabelo. Angeline se desculpou profundamente, mas Belgrieve parecia estar imperturbável. Independente do que aconteceu, Belgrieve estava satisfeito por Angeline estar bem.
“Você se saiu bem, chegando aqui sozinha...”
“Sim...”
“Contudo não haverá uma segunda vez, ok? Seu pai estava muito preocupado.”
“Sim... Sinto muito...”
Angeline parecia terrivelmente desanimada, então Belgrieve sorriu e a pôs de pé.
“Tudo bem, vamos indo.”
“Sim. Vamos para casa?”
“Não — já que estamos aqui de qualquer maneira, vamos pegar um pouco de grama brilhante antes de irmos.”
“M-Mas você disse que a floresta era perigosa à noite...”
“Hey, se sabe disso, então sabe que não deveria vir aqui sozinha.”
“Erp...”
Vendo-a deprimida de novo, Belgrieve riu e colocou a mão em sua cabeça.
“Está tudo bem. Papai está aqui.”
Angeline estava um pouco tensa de culpa, porém todos aqueles nós se desfizeram de uma vez. Papai está comigo! Para Angeline, não havia palavras no mundo mais reconfortantes do que essas. Sua aventura de lobo solitário foi emocionante e maravilhosa, contudo sair com seu pai ainda era o melhor. Angeline se agarrou cheia de felicidade ao braço de Belgrieve e tomou sua mão.
“Vamos dar as mãos!”
“Certo, então não nos perdemos... Oh não, seu corpo ficou bastante frio...”
Belgrieve esfregou suas costas para aquecê-la, caminhando devagar para acompanhar seu ritmo. Eles só tinham a luz da pequena lanterna, porém desde que não corressem, não corriam o risco de tropeçar.
Quando Angeline absorveu tudo sem medo, a floresta noturna transbordava de um encanto peculiar. A escuridão onde todas as coisas assustadoras espreitavam de repente parecia tão quente e acolhedora. Os sons feitos pelo vento passando sobre sua cabeça e farfalhando as folhas eram lindos. Ela ficou maravilhada quando viu uma coruja agarrada a um galho e alegre quando um rato do campo passou correndo por seus pés.
Às vezes, Belgrieve parava e fazia um gesto para que Angeline abaixasse a voz. Incentivando-a perscrutar a escuridão. Quando Angeline focalizou seus olhos, pôde distinguir animais olhando quietamente de volta.
“A floresta noturna é o mundo deles.” Belgrieve falou. “Esses são aqueles que estão nos observando. Então você tem que aprimorar todos os sentidos do seu corpo.”
Angeline concordou. Essa sensação de ser observada de todos os lados provavelmente não era sua imaginação. De repente, as lembranças das fracas luzes verdes voltaram e se perguntou se aqueles eram seres vivos também. Ela perguntou a Belgrieve, que refletiu sobre a questão. “Isso pode ter sido espíritos do fogo.”
“Espíritos do fogo?”
“Acho que já te contei a história. Se lembra de Isolde, a Perdida?”
“Sim!”
Era um antigo conto de fadas — a história de uma jovem chamada Isolde que se perdeu na floresta, apenas por uma luz verde peculiar para conduzi-la de volta ao vilarejo. Angeline sabia que já tinha ouvido falar sobre isso em algum lugar antes.
“Há espíritos vivendo nas florestas. Às vezes, eles podem fazer algo milagroso por capricho.”
“Você quer dizer nos fazer andar girando e girando em círculos como aquelas fadas travessas?”
“Haha, às vezes. Esses também são um tipo de espírito. No entanto os espíritos gostam de crianças. Tenho certeza que vieram até você porque estava triste e sozinha, Ange.”
“Entendo...”
Angeline olhou em volta de novo, ficando um pouco tímida com o pensamento de que não eram apenas animais, mas espíritos olhando-a também.
Belgrieve procedeu com cautela, sua mente focada em cada passo. Logo, havia uma névoa de nuvens sobre o céu, obscurecendo qualquer boa visão das estrelas. Angeline também não conseguiu ver nenhuma grama brilhante. Seria impossível dizer para onde os dois estavam indo assim, mas Belgrieve continuou.
Angeline ficou um pouco ansiosa. “Pai...”
“Sim?”
“Sabe para onde estamos indo...?”
“Hehe, seu pai já esteve aqui muitas vezes antes, mesmo antes de eu ser abençoado com você.” Belgrieve sorriu. Essa floresta ao redor do sopé da montanha era praticamente seu quintal.
De repente, as árvores se abriram e o vento rugiu. Este vento frio e cortante forçou Angeline a cobrir o rosto com as mãos. Ela podia ouvir o farfalhar sedoso da grama.
“Dê uma olhada, Ange.” Belgrieve disse gentilmente.
Angeline abriu os olhos.
A grama brilhante balançava tanto quanto seus olhos podiam ver. Cada flor era como um orbe redondo castanho, emitindo uma luz azul pálida. A cada rajada de vento, o pólen cintilava e as luzes se moviam. O perfil de Belgrieve estava mal iluminado por baixo, fazendo-o parecer outra pessoa.
A cena não poderia ser deste mundo — por um tempo, Angeline ficou sem palavras. A última vez que Belgrieve a levou aqui, foi durante o dia. A grama brilhante tinha coberto o chão do mesmo jeito, mas não estava iluminada assim. Angeline se viu correndo adiante, abrindo caminho para as tênues fileiras de luz. Eles pareciam estranhamente brilhantes quando observados de perto.
Ela se virou, acenando com a mão. Belgrieve sorriu e acenou de volta.
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O céu escuro estava tingido de roxo ao longo do cume da montanha ocidental. Apesar de todas as estrelas no céu, muitas ainda estavam escondidas, talvez pela meia-lua no céu. Várias fogueiras em cestos foram acesas ao longo do caminho estreito para o rio.
Quando o banquete — que começava ao meio-dia — diminuiu um pouco, os moradores, cada um carregando uma lanterna de papel, acenderam suas tochas e se reuniram no rio perto da aldeia. O escoamento da neve derretida tornou o rio muito maior e mais violento do que o normal. Ainda havia um pouco de gelo remanescente em suas margens.
“À Todo-Poderosa Viena e nossos antepassados!”
O padre entoou uma prece e ergueu a chama. Os aldeões acenderam as velas em suas lanternas de papel e as colocaram sobre a água para serem carregadas pela correnteza.
Belgrieve jogou um pouco de licor no estame de sua flor de grama brilhante azul-claro. Aconteceu quase instantaneamente — a luz ficou vermelha como se uma chama tivesse sido acesa dentro.
“Tudo bem, deixe ir.”
Angeline acenou com a cabeça, um pouco ansiosa ao enviar a plumagem flutuante rio abaixo. Ela viu quando ele se juntou às lanternas de papel, balançando precariamente para frente e para trás antes de por fim afundar nas profundezas do rio. No entanto, embora isso pudesse ter apagado as velas nas lanternas, a luz de incandescência demorou um pouco mais.
Angeline olhou fixa enquanto o fraco brilho vermelhão era levado mais e mais rio abaixo.
“É lindo, pai...”
“Sim.”
Quando os moradores começaram a retornar à praça para continuar a festejar, Angeline ficou ao lado de Belgrieve e observou a água fluir. O luar derramou sobre a terra, fazendo a geada recém-descida brilhar abaixo dela.
Um vento frio a pegou de surpresa, fazendo-a agarrar a mão de Belgrieve. Angeline sentiu uma sensação de alívio de seus calos ásperos e sabia que no próximo ano se aventuraria a colher plumas com seu pai mais uma vez.
Notas:
1. Em garde seria traduzido como em guarda, mas como é um termo francês que foi mantido pela tradução norte-americana, optei por mantê-lo também.
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