Capítulo 13: Mayoi Snail 005
“Uma vaca perdida.” disse Meme Oshino no rosnado baixo de um homem que foi forçado a acordar de mil anos de sono selado e pacífico, tão incrivelmente mal-humorado quanto grogue.
Ele não estava anêmico, até onde sabia, porém ainda parecia ter dificuldades para acordar. A diferença entre a maneira como estava falando conosco naquele momento e suas brincadeiras usuais era impressionante.
“Aquilo seria uma vaca perdida.”
“Uma vaca? Não, eu disse um caracol.”
“Sabe como ‘caracol’ é escrito em caracteres. Tem uma vaca aí, certo? Não vá me dizer que escreve foneticamente. Você tem um QI tão baixo, Araragi. Pegue o caractere para ‘redemoinho’ e substitua o ‘Água’ da mão esquerda com ‘inseto’. Em seguida, adicione ‘vaca’ como um segundo caractere.”
“Oh, acho que entendi agora.”
“Esse primeiro caractere quase nunca é usado em qualquer palavra que não seja ‘caracol’. A concha de um caracol forma uma espiral, não é? Deve ser isso. Ainda que também esteja perto de um dos caracteres usados em ‘calamidade’... E talvez esse seja o mais simbólico? Existe um número incontável de aberrações por aí que fazem os humanos se perderem. Em termos de yokai japoneses que bloqueiam seu caminho, já deve ter ouvido falar do nurikabe¹... Se é um desses e é um caracol, tem que ser a Vaca Perdida. Veja, seu nome descreve sua natureza, não sua forma. Seja uma vaca ou um caracol, é tudo a mesma coisa. Quanto à forma, pode até encontrar algumas pinturas da coisa parecida com um humano... Araragi, a pessoa que dá um nome para uma aberração e a pessoa que inventa a aparência dessa aberração raramente são a mesma. É possível até dizer nunca — na maioria dos casos, o nome vem primeiro. Mais o conceito do que o nome, na verdade. Pense tal como as ilustrações de uma light novel². O conceito existe antes de ser visualizado — dizem que os nomes dão forma à natureza, mas ‘natureza’, neste caso, não significa aparência externa. Significa essência, então... Gaah.”
Parecia estar com muito sono.
Por outro lado, aquela sonolência o livrou de sua frivolidade normal a tal ponto que achei mais fácil de mantermos a conversar. Falar com Oshino é, no mínimo, cansativo.
Um caracol.
Um animal com carapaça, classificado como Mollusca Gastropoda.
As lesmas são vistas com mais frequência do que caracóis, no entanto esses são apenas caracóis sem concha.
Despeje sal em cima — e se derretem.
Depois disso.
Eu, Koyomi Araragi e Hitagi Senjougahara, junto com Mayoi Hachikuji, tentamos voltar e usar um total de cinco rotas. Tentamos atalhos que contornaram as bordas da lei, tentamos desvios longos ao ponto da desmoralização, tentamos tudo em que podíamos pensar, contudo, para ir direto ao ponto, acabou sendo uma perda de tempo espetacular. Sabíamos que tínhamos que estar perto de nosso destino — entretanto não podíamos alcançá-lo, pelo motivo que fosse. No final, até tentamos usar a força bruta, verificando cada casa uma por uma, mas também não nos levou a lugar nenhum.
Dessa forma, como último recurso, Senjougahara inicializou um sistema de navegação especial em seu telefone (não me pergunte sobre os detalhes) que usava GPS ou qualquer outra coisa—
Mas o sinal foi perdido momentos antes de os dados serem carregados.
Naquele ponto, por fim — ou talvez de má vontade — entendi perfeitamente o que estava acontecendo. Senjougahara parecia ter notado bem cedo, sem dizê-lo — e é provável que Hachikuji entendesse a situação melhor do que qualquer um de nós, porém deixando isso de lado.
Um demônio para mim.
Um gato para Hanekawa.
Um caranguejo para Senjougahara.
Parecia que para Hachikuji, era um caracol.
Isso significava — eu não estava mais em posição de desistir do assunto. Com uma criança perdida comum, se não pudesse ajudá-la, a entregaria a uma delegacia de polícia do bairro e presunçosamente consideraria o caso encerrado. Todavia se envolvesse aquele mundo—
Senjougahara também foi contra a entrega de Hachikuji à polícia.
Senjougahara ─ que esteve imersa naquele mundo por alguns anos.
Se Senjougahara o dizia — não havia engano.
Claro, não era um problema que Senjougahara e eu pudéssemos cuidar sozinhos — não era como se qualquer um de nós tivesse quaisquer habilidades especiais apropriadas. Foi apenas uma questão de sabermos que havia um outro lado, um que não era o nosso.
Pode-se dizer que conhecimento é poder.
Porém você está impotente se conhecimento é tudo que tem.
É por isso que ─ nós dois escolhemos a escolha fácil e segura, não a primeira, mas depois de alguma discussão, nossa escolha final, de perguntar a Oshino o que fazer.
Meme Oshino.
Meu — nosso salvador.
Se não fosse por esse motivo, Oshino seria sem dúvida o tipo de homem com quem não gostaria de me associar. Passado dos trinta, mas ainda sem endereço fixo, dormindo há mais de um mês em um cursinho falido. Essa descrição por si só seria suficiente para afastar qualquer pessoa normal.
─Estou interessado nesta cidade por enquanto.
Essa foi a sua desculpa.
Portanto, não há como dizer quando Oshino pode desaparecer. Ele é uma pedra que rola, o verdadeiro negócio, porém Senjougahara e eu tínhamos ido até Oshino na última segunda-feira devido o problema de Senjougahara — bem como na terça-feira, para lidar com pontas soltas. Também o tinha visto no dia anterior. Considerando tudo, tinha certeza que ainda estaria naquele prédio abandonado.
O que significava que o único problema era entrar em contato.
Oshino não tem um telefone celular.
Nossa única opção era ir vê-lo pessoalmente.
Não diria que Senjougahara tem um relacionamento muito forte com Oshino, já que os dois só se conheceram na semana passada. Estando mais familiarizado, parecia que caberia a eu ir vê-lo, no entanto Senjougahara falou, dizendo: “Eu irei.”
“Deixe-me pegar sua bicicleta de montanha emprestada.” ela disse.
“Se quiser, claro... Porém sabe como chegar lá? Posso desenhar um mapa se quiser─”
“Não me deixa nem um pouco feliz por ter alguém com uma memória tão pobre quanto a sua se preocupando comigo. Na verdade, está me deixando triste.”
“... É assim.”
Comecei a ficar triste.
De verdade, muito triste.
“Para ser honesta.” disse Senjougahara. “Queria tentar andar nesta bicicleta de montanha desde o momento que a vi no estacionamento.”
“Então não estava brincando quando disse como as bicicletas de montanha são incríveis... Estava convencido de que não tinha dito aquilo sério. Você não é muito boa em ser honesta, sabe.”
“Ou melhor.” Senjougahara disse, então praticamente sussurrou em meu ouvido. “Não me deixe sozinho com ela.”
“...”
“Não saberia o que fazer.”
Sim, isso parecia verdade.
Verdadeiro para Hachikuji também.
Entreguei a chave da minha bicicleta de montanha para Senjougahara. Lembrei que ouvi que ela não tinha uma bicicleta, então parecia perigoso emprestar minha amada carona — no entanto, já que era Senjougahara, pensei por que não.
Então.
Agora me encontrei esperando por Senjougahara entrar em contato conosco.
Estava de volta ao parque com a pronúncia ambígua e sentado em um banco.
Ao meu lado estava Mayoi Hachikuji.
O lugar onde Hachikuji se sentou, outra pessoa poderia se encaixar entre nós.
Era como se quisesse escapar.
Na verdade, parecia pronta para sair correndo.
Já tinha contado a Hachikuji um pouco sobre o meu passado e o passado de Senjougahara, e continuando, as circunstâncias — entretanto parece que só aumentou mais sua guarda. Tomei uma decisão ruim que saiu pela culatra para mim depois de tudo que fiz para fazê-la se abrir — e agora tudo que podia fazer era começar do início.
Afinal, a confiança é uma coisa muito importante.
Sigh...
Eu tentaria falar com ela.
Havia algo no que estava pensando, de qualquer maneira.
“Ei, um pouco antes ─ quero dizer, você estava falando sobre sua mãe? O que queria dizer? Não era essa senhorita Tsunade uma parenta sua?”
“...”
Hachikuji não respondeu.
Exerceu seu direito de permanecer em silêncio.
O que tentei antes pode não funcionar desta vez... Só funcionou como uma piada de qualquer maneira, e se repetisse com muita frequência, as pessoas poderiam pensar que quis dizer em sério — e por pessoas, quero dizer eu mesmo.
E assim.
“Oi, Hachikuji. Vou pegar um pouco de sorvete para você, então poderia chegar um pouco mais perto?”
“Estou indo!”
Hachikuji se aproximou de mim na hora.
... Parecia que não se importava de acreditar na minha palavra e esperar até mais tarde pelo seu pagamento.
Falando a respeito, não tinha lhe dado nem um único iene de mesada ainda... Que garota fácil de controlar.
“Então, do que estava falando.” retomei.
“Do que se trata?”
“Sobre — sua mãe.”
“...”
Hachikuji exerceu seu direito de permanecer em silêncio.
Segui em frente, imperturbável. “Você mentiu quando disse que estava indo para a casa de um parente?”
“... Não estava mentindo.” Hachikuji disse, fazendo beicinho. “Sua mãe conta como parente, não é?”
“Claro, tecnicamente, porém...”
Parecia uma confusão, como se estivesse tentando desenrolar fios.
E, em qualquer caso — uma garota carregando uma mochila para ir para a casa de sua mãe sozinha em um domingo era uma situação estranha...
“Além do mais.” continuou, ainda fazendo beicinho. “Embora a chame de minha mãe, infelizmente ela não é mais minha mãe.”
“... Oh.”
Um divórcio.
Vivia com seu pai.
Era uma história que tinha ouvido — outro dia.
A ouvi de Senjougahara.
“Meu sobrenome era Tsunade até a terceira série. Mas mudou para Hachikuji quando meu pai começou a cuidar de mim.”
“Hã? Espere.”
A coisa estava ficando complicada e decidi tirar um momento para resolver o problema. Hachikuji estava agora na quinta série, e seu sobrenome até a terceira série era Tsunade (deve ser por esse motivo que se importava o suficiente com o nome para gritar comigo), contudo mudou para Hachikuji assim que seu pai a acolheu. O que significava... A- ha, então quando seus pais se casaram, decidiram usar o sobrenome de sua mãe. No Japão, um casal precisava ter o mesmo sobrenome depois de se casar, no entanto poderia ser do homem ou da mulher. O que significava... Quando seus pais se divorciaram, sua mãe ─ senhorita Tsunade — deixou sua casa e se mudou para este bairro... Ou mais provavelmente voltou a morar com seus próprios pais. E é por esse motivo que ─ Hachikuji esteve aqui em um domingo.
Estava aproveitando o Dia das Mães.
Visitar sua mãe — era isso?
Seu nome era — um presente precioso de seu pai e mãe.
“Caramba... E eu tentei te dar um sermão, como mais velho, sobre ser uma filha melhor...”
Não admira que não quisesse ouvir.
Falando sobre ser um aborrecimento.
“Não, não tem nada a ver com hoje ser Dia das Mães. Sua casa é um lugar que eu visitaria a qualquer hora, se tivesse a oportunidade.”
“... Entendo.”
“Mas nunca chego lá.”
“...”
Após o divórcio, sua mãe saiu de casa.
Hachikuji não pôde se reunir sua mãe.
Porém queria.
Então veio vê-la.
Tentou.
Carregando sua mochila — e logo.
E logo — um caracol apareceu.
“E foi aí que você o encontrou.” falei.
“Não sei o que fiz.”
“Hmm.”
Desde então — não importa quantas vezes tentou visitar sua mãe. Hachikuji não conseguiu chegar lá, nem uma vez.
Sabia que seria insensível perguntar quantas vezes tentou e se de fato falhou todas às vezes — e o fato de ela não ter desistido era impressionante.
Foi impressionante — contudo.
“...”
Não é a melhor maneira de dizê-lo — nem deveria estar comparando com as experiências de outras pessoas, pensei, todavia parece muito menos perigoso do que os problemas que Hanekawa, Senjougahara e eu passamos. Não era um problema físico nem psicológico, mas fenomenológico em que não podia fazer algo que deveria ser capaz. O problema não residia na sua pessoa.
Foi externo.
Não colocando em risco sua existência.
Sua vida cotidiana não foi severamente afetada.
É por esse motivo que me senti assim.
Contudo, por outra parte, mesmo se fosse verdade, não deveria mandar em Hachikuji — não importa o quê. Não tinha o direito de dizer nada desse tipo para ela, independente do que passei nas férias de primavera.
Então, tudo que a disse foi: “sabe — parece que você também já passou por muita coisa.”
As palavras vieram do fundo do meu coração.
Quase tive vontade de dar um afago na sua cabeça.
Então o fiz.
“Grrah!”
Ela mordeu minha mão.
“Ai! O que diabos você está fazendo, sua pirralha?”
“Grrrrrrrgh!”
“Ai! Ai, ai, ai!”
E-Ela não estava brincando, não estava jogando, não estava encobrindo seu constrangimento, estava na verdade mordendo minha mão o mais forte que podia... Não tive que olhar para minha mão para saber que seus dentes haviam perfurado minha pele e entrado em minha carne, ou que estava jorrando sangue! Não era assunto para rir. Por que Hachikuji de repente — ou desencadeei algum tipo de evento sem saber?
O que significa que uma batalha começou?
Cerrei minha mão não mordida em um punho. Como se estivesse esmagando o ar. Então, peguei aquele punho e o dirigi certeiro para a boca do estômago de Hachikuji. O plexo solar é o principal ponto fraco de qualquer corpo humano. Para minha surpresa, Hachikuji manteve firmes seus dentes dentro da minha mão, porém não pôde deixar de aliviar por um momento. Usei essa abertura para balançar o braço ao qual aquela mão estava conectada em todas as direções com todas as minhas forças. Hachikuji quase arrancou um pedaço da minha mão, mas isso deixou o resto de seu corpo aberto — e com certeza, foi içada para fora do banco.
Abri meu punho e tentei segurar seu torso indefeso em minha mão — para uma criança do quinto ano, se sentia surpreendentemente gorda na minha palma, contudo este fato teve pouca ou nenhuma influência sobre mim, já que não era um pedófilo, o que significa que era capaz de usar esse impulso para virá-la. Hachikuji ainda estava mordendo minha mão, fazendo com que seu corpo fosse torcido em seu pescoço. No entanto não foi um problema; contanto que seus dentes estivessem dentro da minha mão, havia o risco de que qualquer ataque à sua cabeça me prejudicasse também. O importante é que isso expôs o torso de Hachikuji como se fosse um conjunto de peças empilhadas com cuidado em uma demonstração de karatê. E como é óbvio, mirei no alvo do meu ataque anterior, seu plexo solar!
“Ghhak─”
Acabou.
Hachikuji por fim liberou os dentes da minha mão.
Ao soltar minha mão, algo parecido com ácido estomacal saiu de sua boca.
E então — Hachikuji desmaiou.
“Heh ─ espere, não foi nada engraçado.”
Sacudi minha mão mordida como se para afrouxá-la.
“Que coisa vazia são as vitórias depois da primeira...”
Lá estava ele sentado, um colegial agindo como um niilista desapaixonado, tendo acabado de nocautear uma garota do ensino fundamental com dois socos em um ponto vital humano, ao longo da linha mediana.
Espere, esse também era eu.
...
Claro, poderia entender abofetá-la, agarrá-la e jogá-la, porém bater em uma garota com o punho cerrado? Sério?
Não havia necessidade de Koyomi Araragi fazer Hitagi Senjougahara se desculpar com ele de quatro enquanto estava nua. Já tinha o que era necessário para ser um ser humano horrível.
“Agh... Ainda assim, não sabia que ela era do tipo que mordia as pessoas do nada.”
Decidi dar uma olhada na ferida da mordida.
Wow, droga... Podia ver meus ossos... Nunca pensei que algo do tipo poderia acontecer quando um ser humano morde outro com força suficiente.
Claro, era de mim que estávamos falando.
A ferida pode ter doído, entretanto não era tão grave a ponto de não cicatrizar imediatamente — sem nenhum cuidado especial.
Rastejou e fechou-se a uma velocidade visível a olho nu, quase como se estivesse ocorrendo em avanço rápido ou retrocesso, e quando observei — me fez perceber mais uma vez o quanto de errado minha vida tinha descarrilhado. Comecei a me sentir deprimido — até sombrio, tudo de novo.
Sendo honesto – quão pequeno sou.
Uma pessoa horrível, no meu estado? Eu me obriguei a rir.
Pensei mesmo que tinha voltado a ser humano?
“... Ooh, que olhar assustador você tem no seu rosto, Araragi.” uma voz me chamou de repente.
Por um momento pensei que era Senjougahara — no entanto não poderia ser. Suas palavras nunca soariam tão ensolaradas.
Lá estava a presidente de classe.
Tsubasa Hanekawa.
O fato de Hanekawa estar usando o uniforme exato que usava para ir à escola apesar de ser um domingo deve ter sido natural para ela, parte de seu charme como aluna modelo — seu cabelo e seus óculos eram os mesmos também, e a única diferença em sua aparência que pude detectar, em comparação com quando estava na escola, era uma bolsa que carregava.
“H-Hanekawa.”
“Parece estar surpreso. Bem, acho que é preferível.”
Heh, heh, heh ─ Hanekawa sorriu.
Sim, assim como o sorriso que vi no rosto de Hachikuji um momento atrás—
“O que está acontecendo?” Hanekawa perguntou. “Por que você está aqui, de todos os lugares?”
“B-Bem ─ eu deveria estar te perguntando à mesma coisa.”
Não havia como esconder o quão agitado estava.
A única questão que restava era há quanto tempo Hanekawa estava assistindo.
Se Tsubasa Hanekawa, a personificação da decência, o livro que respirava o comportamento moral, o exemplo vivo de pureza, tivesse me testemunhado infligir violência a uma menina do ensino fundamental, isso representaria problemas, mas de uma forma totalmente diferente do que se Senjougahara tivesse me visto fazer o mesmo...
Não queria ser expulso durante meu último ano do ensino médio...
“O que quer dizer com me perguntando? Eu sou daqui. Se alguém merece a pergunta, é você, Araragi. Você às vezes vem aqui?”
“Hum.”
Oh, certo.
Senjougahara e Hanekawa frequentaram a mesma escola no fundamental.
E era uma escola pública, o que significa — claro. Considerando como os distritos escolares foram desenhados, não era estranho que a antiga casa de Senjougahara e o habitat de Hanekawa se sobrepusessem. Embora elas não devam coincidir perfeitamente, porque parecia que as duas tinham ido para escolas primárias distintas...
“Na verdade não, mas, bem, não tinha nada para fazer, então estava apenas passando o tempo aqui─”
Opa.
Disse que estava “apenas passando o tempo”.
“Haha. Só passando o tempo? Parece bom. É bom não ter nada para fazer. Significa que está livre. Acho que poderia dizer que estou apenas passando o tempo também.”
“...”
Hanekawa e Senjougahara eram organismos fundamentalmente diferentes.
Ou talvez fosse a diferença entre alguém que era inteligente e alguém que era a mais inteligente?
“Sabe, Araragi. É difícil para eu estar em casa. E a biblioteca não abre aos domingos, então caminho o dia todo. É bom para a minha saúde também.”
“... Não precisa se esforçar tanto para ser considerada.”
Tsubasa Hanekawa.
A garota com um par de asas incompatíveis.
Na escola, ela é a personificação da decência, um livro didático de comportamento moral, um exemplo vivo de pureza, uma presidente de classe entre os presidentes de classe, uma garota perfeita — contudo sua casa é problemática.
Perturbada, assim como distorcida.
Por isso — ela foi enfeitiçada por um gato.
Encontrou seu caminho através da menor greta em seu coração.
Talvez fosse um exemplo do fato de que ninguém é totalmente perfeito, entretanto — ainda que o problema foi resolvido e Hanekawa foi libertada do gato, enquanto suas memórias haviam desaparecido, os problemas e deformações de sua casa não.
Ainda estava perturbada, ainda deformada.
“É meio constrangedor ter sua biblioteca fechada aos domingos, não é? É como um símbolo de como sua área é inculta.”
“Nem sei onde fica minha biblioteca local.”
“Isso não é bom, não deveria soar tão resignado. Ainda há tempo para estudar para o vestibular, Araragi. Pode fazer isso se tentar.”
“Sabe, Hanekawa, encorajamento infundado às vezes pode doer mais do que insultos gritados.”
“No entanto, Araragi, você não é bom em matemática? No geral, pessoas com domínio em matemática também se saem bem em outras disciplinas.”
“Não há muito para memorizar em matemática. É mais fácil para mim.”
“Nossa, que difícil. Oh, tanto faz. Façamos passo a passo. Agora, Araragi. Essa menina é sua irmã mais nova?”
Os lábios de Hanekawa ficaram pontudos, e com eles ela indicou Hachikuji, que estava deitada perto do banco.
“... Minhas irmãzinhas não são tão minúsculas.”
“Não são?”
“Elas estão quase no ensino médio.”
“Hmm.”
“Hum, essa garota está perdida. O nome dela é Mayoi Hachikuji.”
“Mayoi?”
“Como o caractere de ‘verdade’ e o caractere de ‘anoitecer’. Quanto ao seu sobrenome─”
“Conheço o seu sobrenome. ‘Hachikuji’ é um termo bastante comum na região de Kansai, de qualquer maneira. Sim, acho que há um templo em Shinonome Monogatari que ─ oh, na verdade, pode ter sido escrito de uma maneira diferente lá.”
“... Você sabe de tudo, não é?”
“Não tudo. Só sei o que sei.”
“É assim mesmo.”
“Hm. ‘Mayoi’ e Hachikuji’ ─ que nome poético. Hnn? Oh, ela está acordada.”
Isso me fez olhar para Hachikuji, que estava piscando lentamente os olhos. Hachikuji parecia dar uma olhada confusa, mas meticulosa em seus arredores antes de por fim se sentar.
“Olá, Mayoi. Meu nome é Tsubasa Hanekawa, e sou amiga desse cara simpático aqui!”
Wow. A voz infantil do programa de TV pública veio natural para Hanekawa.
Hanekawa deve ser o tipo de pessoa que usa a linguagem dos bebês com cães e gatos e não se importa muito...
Hachikuji respondeu. “Por favor, não fale comigo. Não gosto de você.” Então ela usa essa frase com todos.
“Hum? Fiz algo para te fazer me odiar? Não é certo dizer essas coisas para as pessoas que está encontrando pela primeira vez, Mayoi. Pronto, pronto.” Hanekawa parecia imperturbável.
Ao contrário de mim, Hanekawa estava até dando tapinhas na cabeça de Hachikuji como se não fosse grande coisa.
“Então você gosta de crianças, Hanekawa?”
“Hum? Existe alguém que não goste?”
“Ei, não estou dizendo que não gosto.”
“Ah. Sim, gosto delas. Me faz sentir calorosa e confusa ao pensar que é assim que eu costumava ser.”
Aí está — Hanekawa continuou a dar tapinhas na cabeça de Hachikuji.
Hachikuji tentou resistir.
Porém a resistência foi inútil.
“Ur, urrr...”
“Você é uma gracinha, Mayoi! Posso acabar te comendo assim. Olhe para suas bochechas fofas. Ooh! Mas sabe...” o tom de Hanekawa mudou.
Para um que no geral usava comigo na escola.
“Não foi certo morder a mão dele sem motivo. Araragi vai ficar bem, mas se fosse uma pessoa normal, teria doído muito! Menina má!”
Whack.
Hanekawa a golpeou. Com seu punho. E não de brincadeira.
“Urr... Ur, ur?”
Tendo sido mimada e depois levando um tapa, Hachikuji parecia estar em estado de delírio, e Hanekawa a virou para fazê-la me encarar.
“Agora diga que sente muito.”
“... Sinto muito pelo que fiz, Senhor Araragi.” Hachikuji se desculpou.
Hachikuji, que falou o mais educado possível, mesmo sendo uma pirralha desagradável.
Fiquei chocado.
Ainda assim, Hanekawa estava me observando por um tempo... Certo, é claro, se pensar a respeito, tinha o direito de se defender quando alguém te morde com força suficiente para arrancar sua carne. Na verdade, nossa primeira briga também começou com Hachikuji me chutando...
Hanekawa não era do tipo que desrespeitava as regras, contudo também não era tão obstinada sobre as mesmas.
Apenas justa.
No entanto, eu tinha que dar o braço a torcer para Hanekawa. Ela sabia como lidar com crianças. Seu desempenho foi impressionante, especialmente porque estou certo que não há irmãos na sua família.
Assisti-la também me fez perceber que Hanekawa me tratava como uma criança quando estávamos na escola, mas poderíamos deixar esse fato de lado por enquanto. “E você também, Araragi! Por ter sido um menino mau.” Hanekawa usou o mesmo tom comigo.
Talvez não pudéssemos deixar o fato de lado.
Tendo notado o que fez, Hanekawa pigarreou e tentou de novo.
“De qualquer forma, não faça isso.”
“Não faça... Não ser violento, suponho?”
“Não. Ainda precisa repreendê-la adequadamente.”
“Hm? Oh.”
“A violência também é ruim, claro. Entretanto se bate em uma criança, ou se bate em alguém, precisa apresentá-los uma razão sensata.”
“...”
“O que estou tentando dizer é para que fale, porque eles vão entender.”
“... Sabe, aprendo muito conversando com você.”
Wow.
É como um antídoto.
Boas pessoas existem no mundo.
Só de pensar isso me anima.
“Então Hachikuji está perdida? Para onde está tentando ir? Em algum lugar por aqui? Nesse caso, devo ser capaz de mostrar-lhe o caminho.”
“Er ─ não, está tudo bem. Senjougahara acabou de pedir ajuda a alguém.”
Embora Hanekawa tivesse lidado com o outro lado também, suas memórias tinham desaparecido — se ela tinha, também seriam esquecidas. Não havia necessidade de cutucá-las, como se estivesse cutucando uma colmeia.
Embora sua oferta fosse muito apreciada.
“Está levando seu tempo, mas Senjougahara deve voltar em breve.” comentei.
“O que? Senjougahara? Você estava com Senjougahara, Araragi? Hmm? Senjougahara não tem ido à escola ultimamente, mas ─ hmm? Oh, agora que mencionou, lembro-me de tê-lo me perguntando sobre Senjougahara outro dia, não foi — hmm.”
Uh oh.
Hanekawa estava ficando desconfiada. Muito suspeito.
O poder ilusório da obstinação de Hanekawa estava explodindo nas costuras.
“Oh! Entendi o que está acontecendo!” exclamou.
“Não, não acho que te...”
Um idiota como eu dando retrucando uma pessoa brilhante como Hanekawa parecia tão errado, mas...
“Sabe, suas habilidades de fantasia superam até mesmo as lunáticas de yaoi.”
“Yaoi? O que é isso?” Hanekawa perguntou com a cabeça inclinada.
A aluna modelo não conhecia nosso termo nativo para Slash fiction³.
“É a abreviação de ‘sem clímax, sem desfecho, significado profundo’.” respondi errado de propósito.
“Acho que está mentindo. Bom. Vou pesquisar mais tarde.”
“Tão séria como sempre, pelo que vejo.”
...
Comecei a me preocupar. E se tivesse acabado de enviar Hanekawa para um caminho obscuro?
Seria minha culpa?
“Bem, não quero ser um incômodo, então irei embora.” Anunciou Hanekawa. “Desculpe pelo incômodo, e diga olá a Senjougahara por mim. Embora não vá reclamar muito sobre isso porque é domingo, não relaxe demais. Além do mais, não se esqueça de que amanhã haverá um teste de história. E também teremos que começar a levar a sério a preparação para o festival cultural, então se prepare, ok? Ah, e além─” Hanekawa continuou com mais nove desses.
A pessoa mais positiva de todos os tempos.
“Oh, é verdade, Hanekawa. Por precaução, se importa se eu perguntar uma coisa antes de você ir? Conhece a casa de uma senhorita Tsunade por aqui?”
“Senhorita Tsunade? Hmm, bem─”
Hanekawa fez pôs um dedo na bochecha tentando se lembrar. Ela fez um trabalho tão bom
Comecei a ter esperanças de que realmente sabia, porém então—
“... Não, não conheço.”
“Assim que há algumas coisas que você não sabe.”
“Como eu disse. Só sei o que sei. Fora disso, não faço a menor ideia.”
“Entendo.”
Verdade, Hanekawa também não sabia o que era yaoi.
Não ia ser tão fácil.
“Lamento não ter correspondido às suas expectativas.”
“Não, não.”
“Tudo bem. Tchau, e quero dizer isso sério agora.” Tsubasa Hanekawa disse e deixou o parque.
Eu me perguntei. Hanekawa saberia ler o nome do parque?
Se havia algo que deveria tê-la perguntado, uma parte de mim pensou, era isso.
E então ─ recebi uma ligação no meu telefone.
Um número de onze dígitos apareceu em sua tela de cristal líquido.
“...”
Domingo, 14 de maio, 14:15:30.
Foi nesse momento que adquiri o número do celular de Senjougahara.
Notas:
1. Nurikabe é um youkai japonês. Ele é descrito como uma parede que impede os aventureiros de viajar a noite. Pode se estender e fazer com que quem tente passá-lo caminhe sem sair do lugar, a menos que de meia-volta. Bater na sua parte inferior faz com que o viajante não seja amaldiçoado.
2. Light novels são romances ilustrados geralmente no estilo anime/mangá, compilados de revistas ou sites na internet.
3. Slash fiction, traduzido literalmente como ‘ficção de barra’, em alusão ao sinal gráfico / usado entre os nomes de personagens, é um subgênero de fanfic que se concentra na atração interpessoal e as relações sexuais entre personagens fictícios do mesmo sexo.
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