Capítulo 08
Todas as investigações de Asai depois disso não deram em nada. Ele levou a foto de Eiko para o Hotel Mori, mas ninguém se lembrava de tê-la visto. Ele até visitou outro lugar, uma pequena pousada de estilo japonês um pouco mais distante da rota, porém, uma vez mais, sem sorte.
No caminho para cima e para baixo da colina, deu uma olhada na Cosméticos Takahashi. Desta vez, a boutique estava aberta, podia ver Chiyoko Takahashi em seu jaleco branco, contudo não foi corajoso o suficiente para entrar. Não tinha nenhuma desculpa para falar com a mulher; eles não eram próximos o suficiente para dizer que tinha vindo porque estava na vizinhança. E com certeza não podia fingir que estava lá para comprar maquiagem. A única razão pela qual poderia estar lá era que estava apegado de maneira obsessiva a qualquer vestígio de sua esposa morta.
Com o passar do tempo, a história que ouvira da empregada começou a parecer menos real. Tirada do contexto, não era prova de nada. Afinal, a jovem não conhecia Eiko; as duas nunca tinham sequer falado. Ter uma boa memória não significava que não poderia ter se enganado sobre a identidade da mulher na fotografia. Afinal, aquele dia foi talvez a primeira vez que Eiko esteve nas dependências da boutique de cosméticos.
Embora não tivesse perdido todas as esperanças, Asai decidiu por enquanto esquecer a colina e tudo o que havia nela. Talvez algo tornasse a surgir em algum momento no futuro que oferecesse uma pista sobre o que havia acontecido com Eiko. Só tinha que ser paciente. Não havia sentido em apressar as coisas. Assim como no trabalho... Às vezes, se apenas esperasse e não corresse atrás de soluções para os problemas mais desafiadores, eles viriam até ele por conta própria.
E, de qualquer forma, tinha seu trabalho. De fato não tinha tempo para investigar todas as circunstâncias da morte de sua esposa. E era exaustivo continuar voltando a isso um pouco de cada vez. Exigia continuidade, persistência. E então, prometendo a si mesmo que daria toda a sua atenção se houvesse algum desenvolvimento, decidiu se concentrar em seu trabalho por enquanto. Era a pessoa mais experiente em sua seção, até mesmo o chefe da divisão dependia por completo de sua pessoa.
E então, cinco meses depois que a trilha esfriou na colina em Yoyogi, houve um desenvolvimento.
Era agosto. Dentro de sua seção, as pessoas estavam planejando suas férias de verão. Asai pensou que pediria a última semana de setembro. Não gostava de tirar férias durante o período mais quente. Não tinha interesse em ir para as montanhas ou para o mar. Nunca gostou muito de esportes e não tinha filhos para importuná-lo para levá-los.
Asai tinha sido deliberadamente vago sobre o tempo que queria de folga e não tinha planos específicos. Não havia nenhum lugar para onde quisesse mesmo ir. Para dizer a verdade, estava ocupado no trabalho e não se importava em abrir mão de suas férias. Sempre foi assim; gostava de trabalhar. Relaxar era para os preguiçosos. Asai supôs que, do ponto de vista de um estranho, deveria parecer um tipo de marido muito chato.
Um dia, no final de agosto, Asai estava no metrô. Não era como os jovens de hoje, que vão de carro. Odiava o trânsito, o deixava irritado e desperdiçava tempo. Era muito mais fresco e rápido de trem. Então abriu o jornal semanal que tinha acabado de comprar na estação. Havia uma matéria especial: Quantas pessoas morreriam se um grande terremoto atingisse Tóquio? Isso mesmo, pensou Asai, daqui a cinco dias será 1º de setembro... Dia da Prevenção de Desastres. Todos os anos, os jornais e semanários estavam cheios desse tipo de artigo. Asai não tinha idade suficiente para ter vivenciado o Grande Terremoto de Kanto.
Em 1º de setembro de 1923, ocorreu o Grande Terremoto de Kanto. Em Tóquio, sua magnitude foi de 7,9 na escala Richter; 6 na escala japonesa e tirou a vida de 600.000 moradores; na verdade, muito mais pessoas morreram nos incêndios subsequentes do que foram esmagadas até a morte no próprio terremoto. A população atual de Tóquio é de doze milhões, cerca de três vezes o que era em 1923. Tóquio hoje tem uma alta concentração de edifícios altos e áreas residenciais densamente povoadas nas quais proliferam blocos de apartamentos multi familiares. E está sempre se expandindo. Se, por exemplo, um terremoto da mesma magnitude de 1923 atingisse a Tóquio atual, quantas vítimas causaria? Pegamos as previsões de várias autoridades eminentes e preparamos...
Como esse era um desastre que poderia acontecer com qualquer pessoa, o artigo tentava despertar uma mistura de curiosidade e desconforto em seus leitores. Também incluía lições sobre o que fazer quando chegasse o momento crítico.
Asai apoiou a parte de trás da cabeça contra a janela do trem e continuou lendo. Estava vestido com uma camisa de manga curta e gravata. Dobrou o paletó com cuidado e o colocou no colo. Era vital ter um paletó com você, mesmo no meio do verão, caso tivesse que encontrar um cliente importante. E a gravata era uma marca de dignidade entre os funcionários do governo no ministério.
O artigo continuou dizendo que se um terremoto do tamanho do de Kanto acontecesse hoje, pelo menos 560.000 pessoas seriam mortas. De acordo com dados diferentes, o número pode chegar a um milhão. Destes, apenas cerca de dois mil seriam esmagados por estruturas em queda; o resto morreria em incêndios, uma repetição do passado.
No pior cenário possível, as estradas ficariam congestionadas, impedindo as pessoas de escapar a pé. Por causa das enormes multidões de pessoas tentando escapar ao mesmo tempo, fugir de carro seria impossível. Haveria empurrões entre pedestres e motoristas. Brigas iriam acontecer. Tudo seria tomado pelo fogo e pela fumaça, e não haveria mais para onde correr. Seres humanos seriam queimados vivos.
Carros também pegariam fogo. Por todas as ruas, veículos começariam a explodir. Seria como se tanques de gasolina estivessem alinhados ao longo de todas as ruas de Tóquio. E os postos de gasolina também. A cada quinhentos metros ou mais pela cidade, cada posto de gasolina pegaria fogo, aumentando os incêndios. Era possível que mais pessoas morressem por esses incêndios do que por ficarem presas dentro de um prédio em chamas. Isso era algo que não aconteceu em 1923.
Por toda a cidade, havia pontos de evacuação designados, em parques, escolas e terrenos de santuários ou templos, no entanto estes não seriam capazes de acomodar a enxurrada de pessoas. Muitos seriam queimados antes mesmo de chegarem lá. A única coisa para a qual esse tipo de plano de evacuação servia era para tranquilizar as pessoas de que havia medidas em vigor. As linhas subterrâneas de gás que cruzavam a cidade seriam expostas por rachaduras no solo e lançariam chamas no ar.
Isto não é um conto de fadas. Há uma chance real de que esse tipo de desastre extremo possa ocorrer. Quase meio século se passou desde o Grande Terremoto de Kanto. Todos vivem com medo do que pode acontecer. Só neste ano, já houve vinte e três terremotos que puderam ser detectados por humanos. Onze deles mediram 2 na escala japonesa, e três mediram 3. Destes, o terremoto de nível 3 que ocorreu em 7 de março às 15:25 fez com que muitos objetos caíssem das prateleiras. Um número significativo de pessoas correu para a rua. Embora os principais especialistas afirmem que isso não é um sinal de que outro grande terremoto seja iminente, os cidadãos de Tóquio não podem ser tranquilizados apenas por palavras. Não existe garantia absoluta.
Asai continuou seu dia de trabalho normalmente. Mas naquela manhã, algo o incomodava e afetava sua capacidade de concentração: o artigo de jornal prevendo o grande terremoto em Tóquio. Bem, não a coisa toda. Foi apenas uma frase curta enterrada no meio do artigo alarmista que o perturbou: “... o terremoto de nível 3 que atingiu Tóquio em 7 de março às 15:25...”
Asai estava em Kobe em 7 de março, então não sabia que havia ocorrido um terremoto em Tóquio. O Dr. Ohama estimou a hora da morte de sua esposa por volta das 16:05 da tarde daquele dia. Havia alguma ligação entre o terremoto e a morte de Eiko?
Asai ponderou essa possível conexão. Não teria dito que Eiko tinha medo de terremotos. Se você morasse em Tóquio, se acostumaria a eles. Mesmo com o problema cardíaco que ela tinha, o choque de um tremor provavelmente não foi o suficiente para desencadear um ataque cardíaco. Ele não conseguia se lembrar de vê-la entrar em pânico antes quando um terremoto aconteceu.
Asai desceu para almoçar no refeitório dos funcionários. Enquanto comia seu curry e arroz, decidiu fazer uma pergunta ao jovem sentado à sua frente, tomando um copo de refrigerante com creme.
— Você leu aquele artigo na última edição da R-Weekly prevendo um grande terremoto na área de Tóquio?
— Não, não vi esse. — o outro homem fez uma careta, como se dissesse que não tinha interesse em nada além do presente imediato.
— Bem, no artigo dizia que houve um forte terremoto no dia 7 de março em Tóquio. Se lembra disso?
— No dia 7 de março? — o homem levantou os olhos para o teto, aparentando um esforço para se lembrar da data.
— Eu estava em uma viagem de negócios para Kansai, então não estava aqui na hora, porém de acordo com o artigo era nível 3... Forte o suficiente para coisas caírem das prateleiras. Dizia que várias pessoas correram para as ruas. O nível 3 é bem forte.
— Agora que mencionou, houve um terremoto. — respondeu o jovem. — Não sei dizer a data exata, contudo houve um por volta do início da primavera. Este prédio ficou bem, no entanto minha esposa disse que algumas coisas caíram das prateleiras em casa. Ela disse que o relógio de pêndulo do nosso vizinho parou.
— Sua esposa ficou assustada?
— Pelo que disse que não foi particularmente assustador. A casa rangeu e gemeu um pouco, entretanto parou pouco depois. Estava frio, então não se incomodou em sair.
Em Tóquio, para que terremotos fossem um tópico animado de conversa, tinham que ser bastante significativos. As pessoas nunca ficavam muito surpresas com alguns itens leves caindo das prateleiras.
Asai voltou para sua divisão e entrou na sala de referência, pegou emprestado um resumo de bolso de artigos de jornal de março e abriu as edições matinais de 8 de março. Havia uma pequena reportagem sobre o terremoto no final.
Às 15:25 do dia 7 de março, houve um forte terremoto de nível 3 na área de Tóquio. Os moradores locais ficaram assustados com itens caindo das prateleiras. De acordo com o escritório meteorológico, o terremoto foi centrado na Península de Boso, a uma profundidade de cinquenta quilômetros abaixo do nível do mar.
Bem, nem todos os moradores ficaram assustados; isso foi um embelezamento da parte do jornalista. Asai folheou algumas das páginas anteriores e encontrou um mapa do tempo.
A partir da noite do dia 6 e durando todo o dia 7, uma frente fria passará pela área de Kanto. As temperaturas serão cerca de três graus mais baixas do que a média. Há possibilidade de neve em áreas montanhosas.
Asai saiu da sala de referência.
“Estava frio, então ela não se incomodou em sair”. Foi o que o colega júnior disse. Estava quente em Kansai. Quando Asai chegou de volta a Tóquio na manhã seguinte, a frente fria já havia passado, e não se lembrava de ter feito muito frio.
Ainda assim, ele não conseguia conectar o terremoto de 7 de março com o ataque cardíaco de Eiko, e a presença de uma frente fria ainda menos. Assim, decidiu banir o artigo da revista para o fundo de sua mente.
Em 1º de setembro não houve terremoto.
Em um domingo em meados de setembro, um membro do círculo de haicais de Eiko apareceu para entregar uma cópia do boletim informativo da Associação de Haiku. Mieko Suzuki foi a mulher que encorajou Eiko a se juntar, uma de suas antigas amigas de escola.
Escrito na capa do boletim informativo estava o título “Coleção Memorial Eiko Asai”.
Depois de prestar suas homenagens no altar budista da família, a Sra. Suzuki explicou sobre a coleção especial.
— Nossa professora selecionou cerca de cinquenta poemas dos cento e cinquenta ou mais que Eiko havia composto. — ela explicou.
— Eiko escreveu cento e cinquenta haicais?
A falta de interesse de Asai em haicais significava que nunca havia prestado atenção aos poemas que sua esposa havia escrito. Ele sentia o mesmo sobre as aulas de canto e pintura, e não tinha percebido que sua esposa era uma escritora tão prolífica.
— Foi um caso de quantidade em vez de qualidade, imagino. — comentou.
— Não. Absolutamente não. São verdadeiras obras de arte. Se Eiko tivesse vivido mais, teria acabado com um conjunto de obras que nenhum de nós poderia ter alcançado. Nossa professora ficou muito devastada com sua morte. Não é bajulação, é a verdade.
— Tenho certeza de que Eiko ficaria feliz em ouvir isso.
Asai começou a folhear a revista. A coleção memorial apareceu logo no começo, organizada por data de composição e abrangeu os últimos dois anos.
Asai parou em dois dos poemas mais recentes: “Solemn Somin Shorai and the spring cow” e “The blossoming light of the golden Yamaga lantern”. Ele pareceu confuso.
— O que esses dois títulos significam?
— Somin Shorai é o nome de um deus que protege contra o mal. O haicai foi escrito sobre um tipo de amuleto que se pode obter de um templo. Este é uma pequena torre hexagonal, esculpida em madeira e com o nome de Somin Shorai. Ao que parece, é pintada à mão e muito delicada. Dependendo da região de onde vem, as formas, tamanhos e designs desses amuletos são diferentes. Porém todos têm uma qualidade solene ou majestosa.
— É um artefato religioso?
— Mais como um tipo de talismã.
— E spring cow?
— Havia uma vaca no terreno do templo onde ela obteve o talismã. O contraste entre o talismã solene e a vaca descontraída na primavera era divertido.
— Existe um templo como esse em Tóquio ou nos arredores?
Eiko participou de passeios que visitaram lugares famosos, buscando inspiração para sua poesia. Também costumava vagar sozinha.
— Hmm. Não tenho certeza. Nunca ouvi falar de um lugar assim, contudo pode não ser real. Pode ser uma paisagem que imaginou em seu poema.
— E o quanto ao golden Yamaga lantern neste outro poema?
— Yamaga é um resort de águas termais na província de Kumamoto. Desde os tempos antigos, têm o costume de fazer lanternas de papel e oferecê-las no santuário local. No entanto essas não são lanternas antigas quaisquer, são palácios e castelos elaborados, às vezes cenários de teatro, todos feitos completamente de papel. Como escreveu “dourado”, então aquela lanterna em particular deve ter sido construída com papel folheado a ouro. Posso tê-la ouvido mencionar que era uma lembrança de uma viagem a Yamaga. Acredito que foi isso que disse a professora quando enviou o poema.
— Não acho que Eiko tenha visitado a área de Kyushu.
— Então deve ter visto em outro lugar. Talvez tenha ido a uma loja de departamentos quando eles tinham uma exposição especial de produtos de Kyushu ou algo assim. Ela viu a lanterna dourada com o padrão de flores e isso lhe deu a ideia da luz florescendo. Este haicai em particular é bastante vívido e elegante. Também perfeitamente feminino. Eiko sempre teve uma imaginação muito rica. Admito que fiquei com um pouco de inveja.
— Sério?
De cantar para pintar, depois para haicai, Eiko tinha um lado muito criativo, afinal.
— Ela era uma pessoa tão adorável, tirada de nós cedo demais. Não consigo imaginar como você deve se sentir. — a Sra. Suzuki falou como se estivesse surpresa que Asai conseguisse se virar sozinho sem ninguém além da idosa solitária da vizinhança que vinha ajudar durante o dia.
No final de setembro, houve uma reorganização de pessoal. Um novo chefe de divisão foi contratado, e Asai se tornou chefe de divisão assistente. Uma promoção para um funcionário público sem carreira como ele era concedida por mérito. Se conseguisse se manter firme, o próximo passo seria chefe de divisão.
No final, Asai nunca tirou suas férias de verão.
O novo chefe de divisão convidou Asai para jantar em sua casa em Harajuku. No final da noite, Asai partiu para casa no carro que seu chefe havia encomendado para ele, mas no caminho mudou de ideia de repente; Yoyogi não estava longe de Harajuku. Já fazia um tempo que não visitava a colina onde sua esposa havia morrido, e não demoraria muito de carro.
O motorista se virou. Eles chegaram ao topo da colina por uma rota diferente daquela que Asai estava acostumado. Passaram pelo Midori e saíram pela entrada do Tachibana. Já passava das 21h e o letreiro de neon piscava no céu noturno. Fazia seis meses desde a última vez que tinha visto essa vista.
— Você quer que eu pegue essa estrada ladeira abaixo? — perguntou o motorista, olhando para Asai.
— Sim, por favor.
Asai, observando a vista à frente pelo para-brisa dianteiro, de repente perdeu a noção de onde estava. A estrada parecia diferente desse ângulo. Havia um prédio alto à frente, à esquerda, com um letreiro de neon no telhado: HOTEL CHIYO.
O vermelho do neon se destacava, vívido contra o fundo escuro de casas particulares. Era novinho em folha. Mesmo desse ponto de vista, o letreiro dominava o horizonte. Não havia nada parecido aqui antes. Asai havia perdido o rumo.
Enquanto o carro continuava descendo a colina, olhou pela janela do lado esquerdo. O prédio era um hotel novo de três andares, com uma fachada muito larga; a Cosméticos Takahashi havia desaparecido. Mas o táxi passou rápido demais e, num piscar de olhos, a vista desapareceu.
— Só um minuto! — Asai rapidamente fez o motorista parar. — Está tudo bem. Vou descer aqui. Acabei de me lembrar de algo que preciso fazer.
O motorista deu a volta e abriu a porta do carro.
— Devo esperá-lo?
— Não, não. Está tudo bem. Vou demorar um pouco. Por favor, vá em frente e vá embora. — Asai se virou e começou a subir a colina de volta.
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