Volume 02: Raiser of Gales — Capítulo 09: Uma Vila no Inverno
A luz do sol invernal caía do alto do céu oco para o vale abaixo. Brilhante o suficiente para arrancar um sorriso de você e fria o bastante para esvaziar seus pulmões em uma cadeia branca e nublada de tosses, os raios direcionados para a trilha estreita e mais ou menos reta também eram bastante refrescantes. Talvez fosse porque a primavera não estava tão longe.
Não muito longe dali, a estrada através do vale chegava a uma planície modesta cercada por bosques negros e conduzia os viajantes a uma pequena vila da Fronteira.
Incluindo os ranchos e fazendas solares espalhadas pela área, ainda havia provavelmente menos de duzentas casas. Os telhados das casas de madeira e plástico tensionado estavam incrustados de branco com restos de neve, assim como becos que nunca viam a luz do dia. E as pessoas na vila, tão embrulhadas em peles pesadas que poderiam facilmente ser confundidas com animais, esboçavam expressões severas. Mesmo para as crianças mais novas, a determinação obstinada de viver fazia uma máscara dura de suas feições.
Um riacho estreito corria pelo centro da cidade de leste a oeste. A superfície de suas águas claras refletia uma ponte resistente, e naquele momento uma procissão silenciosa de pessoas a cruzava com um andar pesado.
Dez homens e duas mulheres estavam no grupo. Soluços saíam dos lábios de uma mulher enquanto escondia seu rosto com a manga bem gasta de um sobretudo isolante. Cabelos grisalhos chegavam aos ombros. A outra mulher, na casa dos quarenta, pela aparência, seguia ao seu lado, com um braço em volta das costas para apoiar. Sem dúvida, eram vizinhas. Embora essa dupla tenha dado o tom para todo o ambiente, sua dor não havia provocado uma resposta simpática dos homens.
O velho na frente usava um manto recheado de adornado com fórmulas mágicas e todos os tipos de símbolos estranhos, e seu rosto estava tomado pelo terror. Os outros homens tinham expressões quase idênticas, embora seis deles também estivessem numa clara dor física causada pelo fardo abominável cavando seus ombros.
Um caixão de carvalho.
Contudo, muito mais inquietante era a pesada corrente enrolada no caixão. Parecia quase que um esforço concentrado havia sido feito para impedir que o que quer que estivesse dentro do caixão não voltasse para fora, e a maneira como a corrente chacoalhava de leve na luz do inverno ecoava o medo desesperado daqueles que carregavam a caixa de carvalho.
O grupo parou no centro da ponte. Era onde a estrutura se projetava um metro extra de cada lado, formando um pequeno local de encontro sobre o rio.
O velho que os liderava apontou para um lado.
Com muito arrastar de pés, os homens carregando o caixão avançaram para o parapeito.
Estremecendo, o homem robusto ao lado do ancião pegou as armas presas em sua cintura... Estacas de aço de 50cm de comprimento. O homem tinha pelo menos meia dúzia delas em uma bolsa em seu cinto. Sua outra mão puxou o martelo que usava no lado oposto de seu cinto. O revólver de pólvora antiquado que havia guardado ali nem merecia um olhar.
Soltando um grito angustiado, uma das mulheres correu em direção ao caixão, no entanto sua vizinha e o restante dos homens conseguiram contê-la.
— Acalme-se. — o velho gritou para ela em tom de reprovação.
A mulher escondeu o rosto nas mãos. Se não fosse por aqueles que a apoiavam, sem dúvida teria desmaiado no local.
Lançando um olhar sem emoção para o caixão fino, o ancião levantou a mão direita até o ombro e começou a entoar as palavras adequadas para tal cerimônia.
— Estou aqui hoje, meu coração como um abismo triste além da descrição. Gina Bolan, filha amada de Seka Bolan e moradora nº 8009 da vila de Tepes, Setor Sete da Fronteira Ocidental, foi vítima da desprezada Nobreza e faleceu ontem à noite...
Com isso, os rostos dos carregadores ficaram visivelmente mais pálidos, todavia o ancião pode não ter notado.
Seis pares de olhos se moveram inquietos, seu olhar coletivo se voltando em feições implorantes para a superfície calma do rio.
Não havia nada para ver ali. Nada fora do comum.
Dentro do caixão, algo se mexeu. Não alguém. Algo.
Os rostos dos homens se aproximaram do caixão, como se estivessem presos em sua gravidade.
Clanc clank, fizeram as correntes.
Os rostos dos homens ficaram brancos como um lençol.
O prefeito gritou o nome do homem com as estacas.
— Abaixem! Abaixem agora! — disse o homem armado em um tom de terror enquanto se aproximava. Os outros homens não obedeceram ao seu comando. Cérebros, nervos e até músculos enrijeceram enquanto o medo corria por seus corpos. Esta não era de forma alguma a primeira cerimônia desse tipo em que se envolveram. Porém, o fenômeno que agora acontecia naquela caixa em seus ombros era patentemente impossível. Pelo amor de Deus, era dia!
Vendo a condição dos outros, o homem com o martelo e a estaca bateu suas armas juntas, gritando num tom conciso.
— Coloquem no parapeito!
O resultado foi evidente o suficiente.
Qualquer que fosse o feitiço que havia prendido os homens, desapareceu, e o caixão, que estava a um passo de ser jogado para o lado, pousou no grosso parapeito. Três dos homens ainda seguravam o outro lado.
Era um frenesi estranho de atividade na ponte naquele belo dia previdente.
O homem bem armado correu e colocou a ponta de aço afiada de uma estaca contra a tampa do caixão.
Seu rosto rígido como granito estava profundamente marcado pelo medo e pela impaciência. O momento disso foi contra sua vasta experiência pessoal e minou a confiança que extraiu de longos anos no trabalho.
Sons continuaram a sair do caixão. Pela maneira como tremia e pelos sons que fazia, parecia que o que quer que contivesse havia despertado e estava tateando sem nenhuma ideia de sua situação atual.
O homem levantou seu martelo bem alto.
De repente, os sons vindos do caixão mudaram. Golpes poderosos atingiram a tampa por dentro, sacudindo não apenas o caixão com uma pancada forte, como também os homens que o carregavam.
O ancião gritou algo.
Com um rosnado baixo, o martelo rasgou o ar. Gritos e sons de destruição se fundiram em um.
A estaca perfurou o caixão quase no mesmo segundo em que uma mão pálida quebrou as tábuas pesadas e arranhou o ar. A mão de uma mera criança!
Contorcendo-se com força, a mão agarrou o ar uma e outra vez. Em uma fração de segundo, a mão voou para a garganta do homem que estava ali, o martelo ainda na mão e completamente pasmo.
— Caixão... Largue... O maldito caixão!
O sangue jorrou da garganta do homem junto com essas palavras.
Este quadro medonho fez mais do que suas ordens para despertar a consciência dos homens. Com os músculos dos ombros inchados, eles inclinaram o caixão bem alto no parapeito. O caixão caiu com o outro homem ainda preso à tampa, enviando um respingo que floresceu em inúmeras gotas pela superfície do rio.
Certamente o caixão deve ter sido pesado, pois afundou em pouco tempo e se fundiu com o fundo cinza-acinzentado. Em meio às ondulações restantes, um líquido carmesim borbulhou de um dos que afundaram junto, contudo no mundo acima a luz tranquila do inverno cobriu toda a criação. Apenas os soluços de uma mulher permaneceram para testemunhar a tragédia horrível que acabara de acontecer.
Folhas de grama que há muito suportavam o peso da neve aproveitaram as reverberações dos pesados passos para aliviar seu fardo.
Afinal, seu dia chegaria em breve.
Os passos vinham de várias pessoas, cada uma delas parecendo tão resistente quanto uma pedra e tão musculosa quanto um boi marciano. Mesmo através de seus pesados casacos de pele, a protuberância de seus músculos bem desenvolvidos era evidente. Todos estavam na casa dos vinte. Nem mesmo seu aparente líder, um homem um pouco mais alto que os outros, tinha chegado aos trinta ainda. Todos pertenciam à Brigada Jovem da vila.
A razão pela qual estavam com a respiração pesada era porque já estavam subindo essa ladeira por quase nove horas. No entanto se fazia claro pelas suas expressões e pelo olhar em seus rostos que não estavam ali para um piquenique. Com os rostos endurecidos pela melancolia, frustração e raiva, pareciam à beira das lágrimas. Pelo que parecia, estavam tentando em vão conter o terror negro que crescia em seus corações. A dupla que vinha na retaguarda estava especialmente sem fôlego, em parte porque cada um tinha uma caixa de madeira cheia de armas amarradas nas costas, mas ainda mais por causa da suave ondulação da colina que tentavam escalar.
Era um pedaço estranho de geografia.
Com mais de 2km de diâmetro na base e cerca de 20 metros de altura, parecia uma colina comum tanto do chão quanto do ar. Entretanto aqueles que pisaram em suas encostas descobriram que levavam várias horas para chegar ao cume, não importa o quão bons fossem em caminhadas.
Ruínas negras se erguiam do cume da colina.
Era para lá que os homens estavam indo. Todavia, esse objetivo simples, olhando furiosamente para a paisagem ao redor de uma altitude escassa de 20 metros, não era diferente das miragens que se dizia ocorrerem nas regiões desérticas da Fronteira, provocava esses homens enquanto tentavam alcançá-lo, e faria o mesmo com qualquer outra pessoa que aceitasse o desafio.
A distância nunca diminuiu.
Seus pés pisavam a encosta, e seus corpos lhes diziam que de fato seguiam ganhando elevação de forma constante. E, ainda assim, os alcances mais distantes da inclinação e as ruínas que procuravam nunca se aproximavam.
Levando em consideração os relatos de todos que vivenciaram esse fenômeno, estimou-se que um homem em ótimas condições levava trinta minutos para subir um metro. Dez horas até o topo, mesmo em terreno plano, tanto caminhar deixaria um homem exausto. Subindo a colina, só piorou, pois a encosta ficou mais íngreme e a caminhada se tornou cada vez mais cansativa. De fato não foi nenhuma surpresa que ninguém tivesse tentado escalá-la nos últimos três anos.
O homem na vanguarda do grupo... Haig, seu líder, não deu atenção aos seus companheiros enquanto examinava o horizonte ocidental. O sol se poria em duas horas, ficando atrás da floresta e da cadeia prateada de picos muito além deles. Isso dava aproximadamente três horas da tarde, horário padrão da fronteira.
Se não chegassem ao topo, cumprissem seu objetivo e fossem embora nos cento e vinte minutos restantes, Haig sabia tão bem quanto qualquer um qual o destino que os aguardava quando a escuridão caísse.
Para piorar a situação, quando enfim chegaram ao cume, o fato é que não tinham a menor ideia de onde nas ruínas a coisa que procuravam estaria adormecida. Embora um mapa grosseiramente esboçado estivesse enfiado no bolso do peito do líder, este havia sido desenhado décadas antes por alguém que já havia falecido, então não tinham certeza se podiam confiar nele ou não.
E então havia seu estado exausto a considerar. Embora este grupo tivesse sido selecionado entre os mais orgulhosos e fortes da Brigada Jovem, a escalada cansativa era na verdade muito mais fatigante para sua mente que seus corpos. Embora nenhuma quantidade de esforço os aproximasse de seu objetivo, a pura impaciência poderia destruí-los. Este teste psicológico era considerado uma defesa bastante eficaz contra intrusos do mundo abaixo. Uma vez que os membros da Brigada Jovem pisaram nas ruínas, havia alguma dúvida sobre se teriam ou não força suficiente para procurar seu local de descanso.
A única coisa que tinham trabalhando a seu favor era o fato de que, pelo menos na descida, a colina perdia seu poder místico sobre os escaladores. Se corressem todo o caminho, poderiam chegar ao pé da colina em menos de dois minutos. De repente, o semblante manchado de suor de Haig estava cheio de alegria.
Sabia que a distância entre o cume à sua frente e ele era “real” agora. Restavam menos de nove metros. Ignorando a respiração ofegante de seus pulmões famintos por ar, gritou.
— Chegamos!
De suas costas, grunhidos satisfeitos surgiram em resposta.
Poucos minutos depois, todo o grupo estava descansando no pátio das ruínas. A sombra da fadiga pesava sobre cada rosto, tornando-os quase risíveis.
— Já é hora de começar. Peguem as armas. — ordenou Haig.
Ele sozinho permaneceu de pé, examinando os arredores.
O grupo se amontoou em volta das duas caixas de madeira.
As tampas foram retiradas. Dentro havia cinco martelos, dez estacas de madeira afiadas em pontas amoladas e vinte coquetéis molotov feitos de garrafas de vinho cheias de combustível de trator e tampadas com trapos. Além destes, tinham cinco pacotes de poderosos explosivos de mineração com temporizadores individuais. Cada um dos homens também tinha uma faca bowie, espada ou facão enfiado no cinto em volta da cintura.
Todos pegaram uma arma.
— Todos sabem o plano, certo? — Haig disse, só para ter certeza. — Não sei se podemos dar muita importância a esta cópia do mapa ou não, mas agora não temos outras opções. Se acha que está em apuros, de um assobio. Se descobrir onde está, de dois.
Olhos injetados de sangue balançavam para cima e para baixo enquanto os homens assentiam e se levantavam. Seu grande plano estava entrando em ação.
Uma voz totalmente inesperada os parou no meio do caminho.
— Só um segundo. Onde diabos vocês estão indo, rapazes, armados desse jeito?
Cada um deles se moveu como se tivesse sido puxado para trás por uma coleira, virando-se em direção à voz mesmo enquanto pegavam suas armas.
De uma entrada sombria na única parede restante das ruínas de pedra, uma abertura cavernosa que dava para o pátio, uma garota solitária entrou casualmente na luz da tarde. Cabelos negros caíam até os ombros de seu casaco de inverno, e o que aparecia de suas coxas parecia frio, mas convidativo.
— Ora, se não é a Lina! O que te traz à tona... — um dos homens começou a perguntar, engolindo o resto da pergunta. Os olhos de todos assumiram um tom de terror, assim como o tom desdenhoso de alguém cujas suspeitas se mostraram corretas. Sabiam a resposta para essa pergunta há algum tempo.
— O que diabos vocês, garotos, pensam que estão fazendo? É melhor não irem fazer nada estúpido. — a garota disse, enquanto olhava direto para os olhos de Haig. Embora seu semblante ainda fosse tão inocente que não poderia parecer severo se tentasse, seu rosto brilhava com a sagacidade e o encanto de uma mulher madura. Ela estava naquele estágio estranho, um pequeno broto elegante esperando pela primavera, a um passo de explodir em uma flor gloriosa.
— Suponho que me dirá o que diabos te traz aqui. — disse Haig, suas palavras pingando como melaço. Seu olhar caiu para os pés descalços de Lina. — Não é como se não soubesse a merda que está acontecendo na cidade. O lugar inteiro foi virado do avesso e ainda não o encontramos. O que significa que este é o único lugar que resta para ele se esconder, não concorda?
— Bem, isso não significa que tem que carregar uma carga de bombas até aqui, não é? Estacas e coquetéis molotov devem resolver.
— Não é nada com o qual tenha de se preocupar. — Haig disse com desdém. — Agora responda a maldita pergunta. Por que diabos está aqui em cima? Nós com certeza não te vimos quando subimos para cá. Há quanto tempo está aqui em cima, afinal?
— Acabei de chegar. E para sua informação, vim do outro lado. Então é claro que não me viu.
Enquanto os homens se olhavam, eles tinham um brilho estranho nos olhos.
— Bem, nesse caso, acho que a colina não pode te enganar... Parece que tínhamos tudo acertado o tempo todo. A menos que eu esteja errado, você é a responsável pelo que está acontecendo na cidade.
— Poupe-me de suas conjecturas. Sabe muito bem que estive em casa toda vez que alguma coisa acontecia.
— Não diga. Caramba, vocês todos estão malucos desde que aquilo aconteceu. Não temos como saber que tipo de poderes tem usado pelas nossas costas.
Haig de repente não tinha mais nada a dizer. Ele deu um aceno de queixo para seus companheiros. Todos esboçaram lascivos sorrisos enquanto começavam a se aproximar de Lina.
— Nós vamos ter que dar uma olhada em você agora. Vamos te deixar peladinha.
— Pare com essa tolice agora mesmo. Tem ideia de quanta confusão vai se meter se tentar?
— Hah! Isso deveria ser uma ameaça? — um deles zombou. — Todo mundo na cidade sabe muito bem o que está acontecendo entre você e o prefeito, mocinha. Se pudermos provar que você é uma simples mulher agora, o velhote vai ficar mais feliz do que um porco na merda.
— E não vai ser nem a metade... — outro acrescentou. — Depois que todos nós tivermos nossa vez, vai se sentir tão bem que vai perder a língua por nos dedurar.
Haig lambeu os lábios. Esses jovens eram conhecidos por serem clientes rudes, era justo por essa razão que eram perfeitos para proteger a vila de grupos brutais de bandidos errantes ou bestas ferozes. Contudo agora, sua exaustão e o medo do trabalho que viria se misturaram em uma bagunça viscosa que sufocou o pouco senso com que nasceram.
Lina não fez nenhuma tentativa de escapar. Haig a agarrou pelos braços e a puxou para perto. Seus lábios gordurosos agarraram-se selvagemente à sua boca fina. Puxando seu casaco para cima com uma mão, apalpou suas coxas, enquanto sua língua tentava forçar seu caminho entre seus dentes perfeitos.
De repente, houve um estalo surdo e seu enorme corpo dobrou-se na cintura. Com a velocidade da luz, Lina bateu o joelho nas partes íntimas de Haig, deixando-o sem palavras e de joelhos. Ela sequer olhou para trás enquanto desaparecia em uma entrada das ruínas.
— Sua vadiazinha! — gritou um dos três homens que foram em seu encalce.
Como ainda era dia, apenas a raiva e a luxúria conseguiram afastar o medo dos bandidos de entrar nas ruínas.
Máquinas e móveis estranhos pareciam flutuar na escuridão fria, no entanto ignoraram esses objetos enquanto corriam. Girando e virando por um corredor adornado com esculturas e pinturas uma após a outra, enfim alcançaram Lina em uma sala vasta, algum tipo de salão.
Tirando o casaco quando a pegaram pelo ombro, ela tropeçou e caiu de cara, no entanto os três a agarraram e a rolaram de costas.
Lina gritou.
— Pare com isso!
— Pare de se contorcer. Nós vamos te fazer se sentir muito bem. Nós três de uma vez!
Assim que os homens estavam prendendo suas pálidas e debatedoras mãos, seus doces lábios cerraram e...
Eles foram atingidos pela sensação mais assustadora. Até Lina esqueceu suas lutas e assumiu um tom de terror. Daquele estranho nó de humanidade, quatro pares de olhos focaram no mesmo ponto na escuridão ao mesmo tempo.
Das profundezas insondáveis da escuridão, uma única figura sombria emergiu. Uma figura que lhes parecia muito mais escura do que a escuridão que envolvia todo esse universo.
— Uma civilização encontrou seu fim aqui. — disse uma voz suave salpicada de ferrugem, as palavras flutuando pela escuridão. — Embora seja impossível deter o progresso do tempo, fariam bem em mostrar algum respeito pelo que foi perdido.
Lina se levantou e se escondeu atrás da figura, mas os homens nem se mexeram. Não conseguiam nem falar. Instintos animais aprimorados por mais de duas décadas de batalhas com as forças da natureza lhes diziam o que essa pessoa era. Era algo muito maior do que esperavam encontrar ali.
Passos soaram na entrada do salão, porém logo pararam. Haig e o resto dos homens irromperam no local com expressões enfurecidas, contudo congelaram no lugar.
— O que... O que diabos é você?
Não surpreendentemente, foi o líder do esquadrão suicida que por fim conseguiu falar, ainda que por pouco. Sua voz trêmula e o bater de seus dentes diziam muito sobre como também havia sido perturbado por essa aura medonha além do alcance humano. Naquele momento, os únicos pensamentos que passavam pela mente dos homens de Haig diziam respeito a descer a colina o mais rápido que fosse possível.
— Vão embora. Este não é um lugar para vocês.
A mando do estranho, os homens se levantaram e começaram a recuar. A razão pela qual permaneceram virados para frente não foi tanto devido ao velho ditado sobre nunca deixar seu inimigo ver suas costas, e sim devido ao terror de não saber o que poderia acontecer se viessem a se virar.
Algumas coisas são piores do que morrer, todos os homens murmuraram em seus corações.
Uma vez que recuaram para a entrada do salão, os homens recuperaram um pouco de seu espírito. O teto do corredor sem janelas estava cheio de rachaduras que deixavam a luz do sol entrar.
Haig pegou um coquetel molotov e outro homem puxou alguns fósforos. Riscando o fósforo em suas calças, colocou a chama nos trapos. Haig lançou a bomba incendiária com um arremesso tão exagerado que parecia estar tentando explodir seus próprios medos. Nenhuma consideração foi dada à segurança de Lina.
A garrafa em chamas delineou um arco suave pelo lugar e pousou aos pés da dupla. Porém nenhum lago de chamas de dois mil graus se espalhou a partir daí. A garrafa apenas ficou em pé no intricado chão de mosaico. Houve um tilintar quando o gargalo da garrafa e o pano em chamas que continha caíram no chão.
Os homens provavelmente nem tinham visto o clarão prateado que havia cortado o ar.
O pânico se instalou.
Soltando um coro audacioso de gritos, os homens se atropelaram em um esforço para fugir pelo corredor. E não olharam para trás. O medo do mundo sobrenatural borbulhava de uma ferida aberta onde sua razão tinha acabado de ser cortada, e esse medo ameaçava agora tomar forma. Os homens empurraram suas pernas com toda a sua força desesperada para evitar ter que ver que forma isso tomava.
Assim que teve certeza de que seus passos haviam sumido, Lina por fim se afastou das costas do estranho. Colocando sua pequena língua para fora, se virou para a saída e fez o gesto mais rude que conhecia. Ela devia ser incrivelmente calma por natureza, porque não parecia mais nem um pouco preocupada enquanto seus olhos olhavam primeiro para a garrafa truncada e a chama que gotejava, depois para o estranho musculoso com admiração.
— Você é realmente incrível, seu... — ela começou a dizer, mas sua voz falhou.
Agora seus olhos se acostumaram à escuridão e tinham visto o rosto de seu salvador. Um rosto requintado, como uma noite silenciosa de inverno preservada para sempre.
— O que foi?
Recuperada de seus sentidos pelo som da voz dele, Lina, sendo uma garota bastante direta, disse a primeira coisa que lhe veio à mente.
— Você é realmente bonito, ao ponto que tirou meu fôlego.
— É melhor ir para casa. Este lugar não é para você. — o dono daquele semblante lindo disse mais uma vez, suas palavras não tão frias quanto sem emoção.
Lina já havia recuperado seus sentidos o suficiente para olhar sem pudor o homem da cabeça aos pés.
Sua idade não devia ir além dos vinte anos. Seu chapéu de viajante de aba larga e a espada longa e elegante que usava nas costas de seu longo casaco preto deixavam claro que não era um turista. Um pingente azul balançava em seu peito. O tom profundo e envolvente de azul parecia uma combinação perfeita para o jovem.
Como se eu fosse ir embora. Vou aonde bem entender, Lina queria dizer, porém as palavras que proferiu as pressas foram o justo oposto do que de fato sentia.
— Se insiste, o mínimo que pode fazer é me acompanhar até a saída.
Com esse pedido inesperado, o jovem foi em direção à saída sem fazer barulho.
— Ei, espere só um segundo, ei. Não somos nós os apressados!
Confusa, Lina correu atrás do rapaz. Pensou em se agarrar na bainha do seu casaco ou talvez no braço dele, contudo não o fez. Esse jovem tinha uma intensidade que o isolava do resto do mundo por completo.
Seguindo-o em silêncio, a garota saiu para o pátio.
Para o espanto total de Lina, o jovem se virou logo em seguida e voltou para a entrada. Ela pulou de novo.
— Pelo amor de Deus, pode esperar um minuto? Nem me deu a chance de dizer obrigado, seu grande idiota!
— Vá para casa antes que o sol se ponha. A descida é normal o suficiente.
A figura sombria não se virou para encará-la enquanto falava, no entanto suas palavras fizeram os olhos de Lina se arregalarem.
— E como sabe disso? Pensando bem, quando chegou aqui, afinal? Não pode ser que você consiga subir aqui normalmente, pode?
Pouco antes da entrada, o jovem parou. Sem encará-la, respondeu.
— Então, consegue subir a colina normalmente também?
— Isso mesmo. Minhas circunstâncias são meio especiais. — Lina disse, soando estranhamente decidida pela primeira vez. — Quer ouvir a respeito? Claro que quer. Afinal, veio até aqui para ver essas ruínas... Os restos do castelo de um nobre.
O jovem começou a se afastar outra vez.
— Oh, maldito seja! — Lina gritou, batendo os pés com raiva. — Pelo menos me diga seu nome. Se não disser, não vou para casa, com sol se pondo ou não. Se eu for atacada e mutilada por monstros, isso ficará na sua consciência pelo resto dos seus dias. A propósito, eu sou Lina Sween.
Sua insistência valeu a pena, pois uma voz baixa surgiu da silhueta enquanto se fundia com a escuridão que preenchia a porta. Ele disse apenas uma única palavra.
— D.
Mais tarde naquela noite, um Caçador de Vampiros fez uma visita à casa do prefeito da vila.
— Bem, estarei...
Depois de vestir um roupão sobre o pijama e descer as escadas, o prefeito de olhos sonolentos esqueceu o que estava prestes a dizer quando viu o belo Caçador parado do outro lado da sala de estar, de costas para a parede.
— Agora entendo por que nossa empregada está andando por aí como se algo tivesse sugado sua alma. Bem, não posso deixa-lo ficar muito tempo aqui em minha casa. Tenho uma filha, para começar, e os grupos de mulheres estão sempre entrando e saindo por aqui.
— Já coloquei meu cavalo e meu equipamento no celeiro... — a suave voz de D respondeu. — Gostaria de ouvir sua proposta.
— Antes de começarmos, por que não se senta? Deve estar vindo de uma longa cavalgada, aposto.
D não se moveu. Sem se preocupar, afastando a mão que usara para indicar um assento, o prefeito assentiu. O manobrista, que acabara de jogar uma carga de gravetos e combustível condensado na lareira e aguardava mais instruções, foi ordenado a sair.
— Nunca mostre suas costas ao inimigo, hein? Na verdade, suponho que não tenha provas de que estou do seu lado.
— Eu tinha a impressão de que você contratou Geslin antes de mim. — D sugeriu. Quase parecia que não estava ouvindo uma palavra do que o prefeito tinha a dizer.
Pela aparência, o prefeito era um homem agressivo, todavia não deixou o menor sinal de descontentamento aparecer em seu rosto. Em parte, isso foi porque ouviu rumores sobre a habilidade do super Caçador de Grau A com quem estava lidando. Contudo mais do que isso, foi porque apenas ter o Caçador ao seu lado fez o prefeito sentir em sua carne e ossos que o Caçador era um ser de um mundo totalmente diferente. Embora tivesse características requintadas muito mais belas do que qualquer humano, a aura medonha que emanava abalou algo que a humanidade costumava manter enterrado nas profundezas de sua psique... O medo da escuridão desconhecida.
— Geslin está morto. — o prefeito cuspiu. — Ele era um Caçador de Grau A de primeira linha, no entanto não conseguiu encontrar nosso vampiro, e ele foi e foi morto por uma menina de oito anos para começar. Sua garganta foi rasgada, então não precisamos nos preocupar com seu possível retorno, mas o pagamos cem mil dalas adiantado, que fiasco!
— Entendo que as circunstâncias foram um tanto incomuns.
O prefeito franziu os lábios em surpresa.
— Já está ciente, não é? Bem, como esperado de um dampiro! Parece que pode haver algo, afinal, naqueles rumores de que pode ouvir os ventos soprando do Inferno.
D não disse nada.
O prefeito fez um breve relato do desastre que ocorreu na ponte cerca de duas semanas antes, dizendo em conclusão.
— E tudo aconteceu em plena luz do dia. Pela sua aparência, aposto que viu mais do que eu em meus setenta anos nesta terra. Porém suponho que não inclua vítimas de vampiros que podem andar na luz do dia, certo?
D permaneceu em silêncio e, por si só, foi sua resposta.
Era apenas impossível. A Nobreza e aqueles cujas vidas reivindicaram tiveram permissão para sua farsa de vida somente à noite. O mundo da luz do dia foi cedido à humanidade.
— Acho que você tem uma boa noção do porquê te chamei aqui. Pense a respeito. Se aqueles malditos Nobres e sua comitiva fossem livres para se mover não apenas à noite, como também à luz do dia, faz alguma ideia do que seria do mundo?
A escuridão e o frio da sala pareciam aumentar exponencialmente. Para economizar o desgaste dos geradores, era comum usar lâmpadas alimentadas com gordura animal para iluminação noturna na Fronteira. Os olhos do velho pareciam arder enquanto olhava para as mãos que estendia para aquecer. D não moveu um músculo, como se tivesse se tornado uma estátua.
Realmente fisguei ele agora, o prefeito riu do fundo do coração. Suas palavras foram escolhidas para causar o máximo efeito na psique de seu convidado, e com certeza teriam desferido um golpe severo no belo Caçador mestiço. Ah, sim... Amanhã, as coisas devem ser um pouco mais administráveis por aqui.
Entretanto, nem tudo saiu como o esperado.
— Poderia explicar melhor o que aconteceu neste caso até agora?
A voz de D não continha medo ou inquietação e, por um momento, o prefeito ficou pasmo. Então, o pensamento horripilante de vampiros sanguinários correndo soltos pelo mundo durante o dia não teve impacto neste dampiro? Lutando contra sua surpresa uma fração de segundo antes que esta pudesse se apresentar em seu rosto, o prefeito começou a falar em um tom mais contido do que o necessário.
Tudo começou com as ruínas e quatro crianças.
Mesmo agora, ninguém sabia ao certo há quanto tempo as ruínas estavam naquela colina. Quando os fundadores da vila pisaram pela primeira vez neste território quase dois séculos atrás, as ruínas já estavam sufocadas com vinhas. Várias vezes a colina foi escalada por esquadrões suicidas que produziram grosseiros mapas esboçados e estudaram sua história antiga, mas enquanto o faziam, uma série de fenômenos estranhos ocorriam. Cinquenta anos atrás, um grupo de investigadores veio da Capital para vê-la, e eles foram os últimos... Depois disso, havia muito poucos com interesse em escalar a colina.
Foi cerca de dez anos antes que quatro crianças da vila desapareceram.
Em um dia de inverno, quatro crianças desapareceram da vila. A filha do fazendeiro Zarkoff Belan (oito anos na época), o filho do colega fazendeiro Hans Jorshtern (também com oito anos), o filho do professor Nicholas Meyer (dez anos) e o filho do proprietário do armazém Hariyamada Schmika (oito anos). Houve algum furor sobre a possibilidade de que pudesse ser obra de uma fera destruidora de dimensões que estava aterrorizando a área na época, porém também havia moradores que tinham visto as quatro crianças brincando no meio do caminho até a colina no dia em que desapareceram. Seus desaparecimentos forçaram a comunidade a encarar as ruínas com suspeita.
Pela primeira vez em cinquenta anos, um esquadrão suicida foi formado, contudo, apesar de uma busca bastante extensa nas ruínas ter sido feita, nenhuma pista sobre o paradeiro das crianças foi encontrada. Em vez disso, no final de uma semana de busca, os membros do esquadrão suicida começaram a desaparecer em rápida sucessão, e a busca teve que ser cancelada antes que todas as passagens e câmaras subterrâneas obscuras que compunham o vasto complexo de ruínas pudessem ser investigadas.
Os pais aflitos foram informados de que seus filhos provavelmente haviam sido levados por traficantes de escravos que passavam pela vila, ou haviam sido perdidos para a besta destruidora de dimensões. Qualquer que fosse o destino que aguardava as crianças em qualquer um desses cenários, era uma hipótese muito mais reconfortante do que a ideia de que elas desapareceram nos restos da mansão de um vampiro.
Uma noite, cerca de duas semanas após todo o incidente ter começado, a tragédia chegou ao seu grandioso, embora um tanto hesitante, final. A esposa do moleiro estava na floresta próxima colhendo cogumelos lunares quando notou algumas pessoas descendo a colina, e soltou um grito capaz de derrubar metade da cidade.
As crianças haviam retornado.
Isso seria motivo de alegria e fonte de novos medos.
— Para começar, apenas três das crianças voltaram. — a voz do prefeito idoso era tão fina que se perdeu no estalo das toras na lareira. — Veja, Tajeel... Esse seria o filho de Schmika, do armazém geral, nunca voltou. Até hoje não sabemos o que aconteceu com ele. Não posso dizer que foi uma grande surpresa quando seu pai e sua mãe faleceram de tanto sofrimento. Não estou dizendo que não ficamos felizes em ter o resto deles de volta, no entanto talvez se ele não tivesse sido o único que não sobreviveu...
— Você examinou as crianças? — D perguntou enquanto virava o olhar para a porta, em guarda, sem dúvida, contra qualquer inimigo que pudesse invadir a sala. Dizia-se que mesmo entre os Caçadores, havia uma quantidade incrível de animosidade, com hostilidade direcionada aos mais famosos e capazes com considerável frequência. Os olhos de D estavam semicerrados. O prefeito foi atingido de repente pelo pensamento de que o lindo jovem estava conversando com os ventos noturnos através da parede.
— Claro que fizemos. — disse o prefeito. — Hipnose, drogas de sondagem mental, o método da psicotestemunha, tentamos tudo o que podíamos pensar. Infelizmente, usamos alguns dos métodos antigos também. Eu lhe digo, até agora os gritos daquelas crianças atormentam meus sonhos. Mas não adiantou. Suas mentes estavam em branco, vazias de memórias pelo exato período de tempo em que estavam desaparecidas. Talvez tenham sido deixados assim por forças externas, ou então talvez tenha sido algo que as próprias mentes subconscientes das crianças fizeram para evitar que todos enlouquecessem. Embora se fosse o último, suponho que você teria de dizer que, no que diz respeito ao filho de Jorshtern, os resultados não foram bem o que esperava... Até hoje, Cuore continua louco.
— O resultado disso é que seja o que for que tenha acontecido no castelo em ruínas e o que podem ter visto lá permanece envolto em mistério. Suponho que a única graça salvadora foi que nenhuma das crianças saiu com o beijo da Nobreza. O caso de Cuore foi infeliz, porém os outros dois cresceram muito bem, tornando-se um dos nossos professores e o aluno mais brilhante da vila, respectivamente.
Tendo progredido até aqui em sua história, o prefeito parecia enfim estar à vontade. Caminhando até um aparador contra a parede, pegou uma garrafa do vintage local e um par de taças e voltou.
— Aceita uma bebida?
Enquanto oferecia uma taça, sua mão parou no meio do caminho. Tinha acabado de se lembrar o que os dampiros costumavam consumir.
Como se para confirmar isso, D respondeu em uma voz suave.
— Nunca toco nessa coisa.
O olhar do Caçador então voou para a escuridão imaculada além das vidraças.
— Quantas vítimas houve e sob quais condições os ataques ocorreram?
— Quatro até agora. Todas perto da cidade. Em termos de tempo, é sempre à noite. Todas as vítimas foram eliminadas.
Nesse momento, a voz do prefeito falhou. Certamente a tarefa medonha de se livrar deles havia voltado para assombrar sua memória, pois sua mão e a bebida que segurava tremiam. Afinal, nem toda vítima teve a chance de se transformar em um vampiro antes de encontrar seu fim.
— Encontrar crianças desaparecidas e sacrificá-las... Esse é um negócio desagradável de se passar, com a primavera tão perto e tudo mais.
Com um barulho estridente, o prefeito bateu o cálice de aço em sua mesa. O conteúdo espirrou, encharcando sua palma e a manga de seu vestido.
— Não é de forma alguma certo que o garoto de Schmika, Tajeel, tenha participado disso. Há uma grande chance de que um dos Nobres restantes tenha entrado aqui, ou uma vítima vampira que fugiu de outra vila esteja rondando a área. Gostaria que você explorasse essas possibilidades.
— Acha que há Nobres que podem andar com suas vítimas à luz do dia?
Com essa pergunta, o prefeito fechou os lábios. Era justo a pergunta que havia feito a D antes. De repente, o prefeito assumiu uma expressão perplexa e voltou os olhos para a cintura de D. Embora o som fosse fraco, poderia jurar que ouviu uma voz estranha rindo.
— Amanhã, preciso de todas as informações que tem sobre como as vítimas que foram atacadas, suas condições após o ataque e como foram tratadas. — disse D sem alguma preocupação específica. Sua voz era insensível, desprovida por completo de qualquer emoção em relação ao trabalho que estava prestes a realizar. Pelo jeito, esse Caçador de Vampiros não conhecia o medo, mesmo quando confrontado com um inimigo como o mundo nunca viu, demônios que podiam andar na luz do dia. Com um tipo de terror diferente do que sentia pela Nobreza, o prefeito focou seu olhar no rosto incrivelmente belo do jovem. — Além disso, gostaria de fazer uma visita aos três sequestrados sobreviventes. Se for uma grande distância, vou precisar de um mapa para as suas casas.
— Não vai precisar de um mapa. — uma voz feminina arrulhou.
A porta se abriu, e um rosto sorridente como uma verdadeira flor atraiu os olhos dos dois homens.
Olhos que brilhavam de curiosidade retornaram o olhar de D, e ela disse.
— Nem um pouco surpreso, hein? Você sabia que eu estava lá fora ouvindo o tempo todo, tenho certeza. Vou te contar tudo o que precisa saber. Lukas Meyer estará na escola. Depois das aulas, posso te levar para onde Cuore mora. E não precisa procurar muito para encontrar o terceiro. Então, nos encontramos de novo, D.
A filha do fazendeiro Belan, agora filha adotiva do prefeito, fez uma leve reverência para D.
— Diga, tem certeza que está tudo bem? — Lina perguntou na manhã seguinte, segurando as rédeas da charrete de dois cavalos que conduzia em direção à escola.
— O que está tudo bem?
— Saindo assim logo de manhã e tudo mais. Dampiros não gostam do dia, certo, por terem parte do sangue nobre neles.
— Sou cheio de coisas estranhas, não é? — D murmurou, olhando por cima das costas dos mutantes equinos de seis patas. Se um telepata estivesse lá, poderiam ter captado um sussurro de um sorriso profundo nos recessos de sua consciência friamente fechada, mas humana.
Herdando características de seus pais humanos e vampiros, os dampiros eram fisiologicamente influenciados por ambos os pais em diferentes aspectos.
Os humanos dormiam à noite e ficavam acordados durante o dia, enquanto o oposto era verdadeiro para a Nobreza. Quando os genes das respectivas raças entravam em conflito, no geral era os traços fisiológicos da metade nobre, o pai vampiro, que se mostravam dominantes. O corpo de um dampiro ansiava por dormir durante o dia e queria ficar acordado à noite.
Contudo, da mesma forma como uma pessoa canhota poderia aprender com a prática a usar as duas mãos bem, era inteiramente possível para os dampiros seguirem as tendências de seus genes humanos e viverem como os mortais. E, embora pudessem ter quase metade da força, visão, audição e outras vantagens físicas de um verdadeiro vampiro, era essa adaptabilidade que era seu maior trunfo. Com esses cinquenta por cento, tinham uma medida de poder dentro deles que nenhum ser humano poderia esperar atingir, permitindo-lhes cruzar espadas com a Nobreza de dia ou de noite.
Ainda assim, embora fosse verdade que pudessem resistir a seus impulsos biológicos fundamentais, também era inegável que operar à luz do dia degradava de maneira severa a condição de um dampiro. Seus biorritmos caíam de forma brusca após a meia-noite, atingindo seu ponto mais baixo ao meio-dia. A luz solar direta podia queimar sua pele a ponto de até mesmo a brisa mais suave ser pura agonia, como agulhas sendo cravadas em cada célula de seu corpo. Em alguns casos, sua pele pode até formar bolhas como uma queimadura de terceiro grau.
Biorritmos em declínio traziam fadiga, náusea, sede e exaustão entorpecente. Menos de um em cada dez dampiros poderia suportar o ataque do meio-dia sem experimentar essas torturas.
— Ainda assim, parece que você não tem nenhum problema. Isso não é divertido. — Lina franziu os lábios e puxou as rédeas de volta. Os cavalos relincharam, e a tábua de freio pendurada no fundo da charrete cravou-se na terra.
— O que houve? — D perguntou, sem soar nem um pouco surpreso.
Lina apontou para frente.
— São aqueles idiotas de novo. E Cuore está junto. Ontem foi ruim o suficiente, no entanto agora o que diabos eles estão fazendo?
Cerca de nove metros à frente, um grupo de sete homens passou por um muro de pedra em ruínas e virou a esquina. Três deles, mais notavelmente Haig, encontraram-se nas ruínas no dia anterior com Lina e D.
Um jovem de dezessete ou dezoito anos, vestido com trapos esfarrapados, andou a frente do grupo enquanto os outros o empurravam e forçavam. Seu corpo é enorme, mais de um metro e oitenta de altura e pesava mais de 90kg. Com um olhar vago, continuou pela pequena trilha, empurrado por um homem que mal chegava ao seu ombro.
— Momento perfeito. Íamos vê-lo. O que tem ali embaixo, afinal?
— Os restos de uma instalação de criação de duendes. Não é usada há séculos, mas há rumores de que ainda há algumas coisas perigosas lá. — disse Lina. — Você não acha que aqueles bastardos levariam Cuore para lá, né?
— Vá para a escola.
Quando a última palavra chegou aos ouvidos de Lina, D estava seguindo para o caminho estreito, a bainha de seu casaco esvoaçando ao seu redor.
Assim que contornou a esquina do muro de pedra, os prédios do criadouro apareceram. Embora “prédios” não fosse de fato a palavra para eles. Parecia que o proprietário havia removido toda a madeira utilizável e vigas de plástico, deixando nada mais do que alguns barracos de madeira desesperadamente tombados e cheios de buracos que estavam à beira do colapso. O sol de inverno brilhava branco neste terreno árido, que era cercado por árvores nuas congeladas com as últimas crostas de neve.
Os homens deslizaram para dentro de uma das estruturas mais firmes. Pareciam bastante confiantes de que poucas pessoas passavam por ali, pois nem sequer olhavam para trás pelo caminho que tinham vindo.
Talvez trinta segundos tenham se passado.
Gritos explodiram de dentro do prédio. Houve gritos. Muitos gritos. E não apenas o tipo de som que alguém faz quando encontra algo que o assusta. Assustados, talvez, pelos gritos horríveis, os galhos de uma árvore que crescia ao lado do prédio jogaram para baixo sua cobertura de neve. Houve a cacofonia de algo enorme se despedaçando.
Poucos segundos depois que as reverberações cessaram, D entrou no prédio.
Os gritos cessaram.
Os olhos de D assumiram um leve tom vermelho. O cheiro forte de sangue havia chegado às suas narinas.
Todos os homens estavam caídos no chão de pedra, convulsionando em uma poça de seu próprio sangue. Além de algumas gaiolas de aço ao longo de uma parede que evocavam o passado do prédio como uma instalação de criação de duendes, o vasto interior estava tomado com o fedor de sangue e gemidos de agonia. Para algo que havia sido realizado no meio minuto em que os homens estavam lá dentro com Cuore, o trabalho foi completo demais. Não havia dúvidas de que algum tipo de força sobrenatural havia enlouquecido.
Duas coisas chamaram a atenção de D.
Uma era a estrutura enorme de Cuore, agora esparramada na frente das gaiolas. A outra era um buraco aberto na parede de pedra. Com dois metros ou mais de diâmetro, a abertura irregular deixava a luz do sol da manhã cair no chão escuro. O que quer que tenha deixado os oito homens robustos encharcados em um mar de sangue havia saído por ali. Sem olhar para os outros jovens, D caminhou até Cuore. Agachando-se, o Caçador disse.
— Eles me chamam de D. O que aconteceu?
Seus olhos azuis turvos eram dolorosamente lentos para focar em D. Sua loucura não era fingimento. A mão direita do garoto levantou-se devagar e apontou para o novo buraco na parede. Seus lábios ressecados vomitaram um pequeno nó de palavras.
— O sangue...
— O quê?
— O sangue... Não eu...
Talvez estivesse tentando jogar a culpa por esse enorme derramamento de sangue.
A mão esquerda de D tocou a testa suada do jovem.
As pálpebras de Cuore se fecharam.
— O que você viu no castelo? — a voz de D soou indiferente à cena que os cercava. Ele nem perguntou quem era o responsável por esse banho de sangue.
Todavia, poderia até mesmo sua mão esquerda arrancar a verdade da mente de um louco?
Certa quantidade de ‘vontade’ pareceu brotar na expressão desconexa de Cuore.
O pomo de adão do garoto balançou para cima e para baixo, preparando-se para derramar algumas palavras.
— O que você viu? — D perguntou mais uma vez. Ao fazer a pergunta, estendeu a mão direita por cima do ombro e se virou.
Os homens meio mortos estavam se levantando do chão.
— Possuídos, hein?
O olhar de D percorreu os pés dos homens. As sombras desengonçadas que se estendiam de suas botas não eram de nenhum humano. A silhueta do corpo lembrava estranhamente uma lagarta, enquanto os braços e pernas finos e rijos eram uma incompatibilidade grotesca com o tronco. Aquelas eram sombras de duende!
Um único duende maligno que foi mantido aqui deve ter escapado e permanecido escondido em algum lugar da fábrica todo esse tempo. Ao contrário da vasta maioria das bestas criadas de maneira artificial que a Nobreza havia semeado pela terra, a maioria das variedades de duendes era excepcionalmente amável. Mas outras variedades, baseadas em goblins, púcas e diabretes da antiga Irlanda pré-holocausto, mantinham o povo da Fronteira aterrorizado com sua pura selvageria. Uma grande variedade de púcas cortava as cabeças dos viajantes com o machado que nasceram segurando, então usavam o sangue de suas vítimas para tingir o capacete que lhes dava o nome. Poucas dessas criaturas possuíam a habilidade de manipular humanos meio mortos, porém com o manuseio adequado, poderiam ajudar a fazer unicórnios indomáveis limparem vastas extensões de terra, ou poderiam aumentar a produção de pelotas de urânio das galinhas Grimm de um pedaço a cada três dias para três pedaços por dia. À luz disso, algumas das aldeias mais empobrecidas da Fronteira estavam dispostas a assumir os riscos de criar esse tipo de criatura. Os homens respingados de sangue e ainda inconscientes estavam sendo animados por um indivíduo da espécie mais atroz.
A sombra segurava um machado nas mãos.
Aos poucos a arma se ergueu.
Cada um dos homens levantou um par de mãos vazias sobre suas cabeças.
Enquanto os machados inexistentes zumbiam pelo espaço que a cabeça de D ocupava, o Caçador saltou para o lado da sala com Cuore embalado em seus braços.
Com passos mecânicos, as marionetes da sombra o perseguiram.
Lâminas invisíveis afundaram na parede e amassaram o teto de uma gaiola de ferro. Cortando apenas o ar rarefeito, um dos homens caiu de cara e soltou uma chuva de centelhas um metro à sua frente.
Esta foi uma batalha pelo controle das sombras.
Um fluxo de luz prateada espirrou das costas de D, então cortou direto para o machado invisível que um dos homens inconscientes levantou contra ele.
Não houve contato brusco, contudo uma brisa passou pela bochecha de D e algo incrustou na parede.
Essas armas não eram apenas invisíveis, elas eram inexistentes. No entanto eram mortais.
Três golpes uivantes se aproximaram do Caçador, todos de direções diferentes. As lâminas se chocaram, entretanto D e Cuore voaram acima da chuva de centelhas resultante.
Dois raios gêmeos de luz branca correram pelo chão.
Os homens ficaram rígidos e agarraram seus pulsos. Baque após baque soou no que parecia um grande peso após o outro atingindo o chão. Na verdade, eram os homens derrubando suas armas.
Tendo embainhado sua espada longa, D foi até um dos homens que havia caído em um jato de sangue.
Ajoelhando-se ao lado do homem, perguntou.
— Você pode me ouvir?
Quando o olhar fraco do homem se encheu com a visão de D, seus olhos se arregalaram. O homem caído não era outro senão Haig.
— Bastardo imundo... Como diabos você...?
Sua voz lamentável, que mal combinava com seu rosto áspero, parou quando notou algo no chão.
Agora presa ao chão de pedra por duas agulhas rígidas, a sombra sobrenatural que se estendia dos pés de Haig estava rapidamente desaparecendo de vista. Mais estranho ainda, não era apenas a sombra perfurada duas vezes que era afetada. As sombras dos outros homens se contorciam e se retorciam em meio à dor intensa. E mesmo assim os movimentos de todos permaneceram em perfeita sincronia!
Deve ter sido necessária uma habilidade incrível para lançar aquelas agulhas do ar e pregar a sombra precisamente no pulso e no coração, todavia parecia duvidoso que alguém como Haig pudesse compreender de fato a quantidade de foco que D precisou para aperfeiçoar tal técnica.
Porque, surpreendentemente, as agulhas cravadas na pedra eram feitas de madeira.
Logo, as sombras inquietantes desapareceram e as dos homens retornaram.
— Estou ferido... Maldição, isso dói! Apresse-se, chame o médico... Por favor...
— Quando responder minha pergunta. — o tom de D evocou imagens de gelo. Não é de se surpreender, já que agora lidava com os mesmos caras que tentaram estuprar uma garota inocente. — O que aconteceu depois que vocês trouxeram Cuore aqui?
— Não sei... Nós estávamos pensando que um deles era o culpado... Então planejamos pegá-los um por um, espancá-los um pouco para ver se estávamos certos... E depois...
A luz nos olhos de Haig diminuiu rapidamente.
— E depois o quê?
— Como diabos vou saber...? Chame um médico... Rápido... Assim que entramos aqui e o cercamos... Tudo que pude ver foi vermelho sangue... Como se algo estivesse escondido ali...
A última palavra que saiu da boca de Haig se tornou um suspiro áspero e pesado que rolou pelo chão. Ele não estava morto. Apenas inconsciente, assim como o restante dos homens. Embora finas trilhas de sangue fresco vazassem de seus ouvidos, narizes e bocas, sua condição era bem bizarra, já que não mostravam sinais de ferimentos externos.
D se virou.
Cuore estava parado grogue na porta, contudo muito mais longe havia o som de vários passos se aproximando. Lina ou um dos moradores que tinha visto a Brigada Jovem com Cuore deve ter chamado os homens da lei. Aparentemente, a intimidação que esses jovens faziam estava longe de ser apreciado nessas partes.
D olhou para Cuore, então se virou em seguida para encarar o buraco aberto na parede.
— O que foi? Não vai continuar interrogando-o? Nunca vai chegar ao fundo dessa bagunça se tiver medo de pisar nos pés do xerife. — repreendeu uma voz do nada.
A voz não perturbou D nem um pouco. Ele e seu casaco preto se fundiram ao sol da manhã.
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