Volume 02: Raiser of Gales — Capítulo 10: Aquele que Pode Sair
— Lina, tem algo te preocupando?
Sentindo o tom de suspeita subjacente ao seu tom suave, Lina se apressou em voltar sua atenção para o professor à sua frente. Seu rosto jovem e gentil exibia um sorriso. Quem acreditaria que um garoto que desapareceu nas ruínas do castelo de um Nobre por quinze dias cresceria e se tornaria um homem assim?
— Eu te chamei para a sala dos professores porque você ficou olhando para o nada o dia todo, e então vem e faz a mesma coisa aqui... O que diabos está acontecendo? Ainda não temos uma palavra oficial, mas o conselho examinador da Capital estará aqui em menos de uma semana.
Junto com Lina, este era uma das três crianças que retornaram em segurança depois que os quatro desapareceram... Lukas Meyer. Seguindo os passos do pai, trabalhou como professor para o Departamento de Educação Superior na vila. Ele era o professor da sala de aula de Lina, embora na verdade houvesse apenas uma turma no departamento de educação superior e menos de cinquenta alunos nela.
— É, uh, nada... Sério. — Lina passou as mãos no cabelo e tentou esconder o sangue subindo em seu rosto. Cavalos selvagens não conseguiriam arrancar de seus lábios o fato de que tinha se interessado por certo homem.
— Eu espero que sim. — disse o Sr. Meyer com um aceno de cabeça enquanto mantinha as mãos sobre o aquecedor atômico decrépito que gemia diante deles. De repente, tanto seu tom quanto seu olhar ficaram sérios. — Você não deve esquecer a responsabilidade que carrega.
Seu discurso sincero deixou Lina em silêncio reverente.
— Você é a esperança da vila. Quando o inverno acabar, tem que aproveitar sua chance de ir embora. Estamos todos torcendo por sua boa sorte, sabia?
— Sim, senhor.
— Então, o teste em si não deve ser um problema, mas já decidiu o que vai estudar na academia na Capital? — o tom do Sr. Meyer mudou. Sabia a resposta e, embora fosse uma área que a ajudou escolher, perguntou como se não soubesse.
Lina não respondeu.
— Matemática, não era? — ele pronunciou as palavras como uma advertência.
— Sim, senhor.
— Está tudo bem. Não pode se distrair antes do dia do exame. É melhor se concentrar no futuro. — disse o professor com uma alegre voz. Lina sorriu também. Houve uma batida na porta. Sua colega de classe, Harna, entrou.
— O que foi?
O rosto da garota estava vermelho e seus olhos estavam vidrados com sonhos. O Sr. Meyer se levantou instintivamente de sua cadeira de madeira e couro.
Por algum motivo, Lina ficou em posição de sentido.
— Tem uma pessoa aqui para vê-lo. Alguém... Muito bonito...
Isso não significava nada para o professor. Franzindo a testa por um momento, o Sr. Meyer disse a Harna para mandar o visitante entrar. Voltando-se para Lina, comentou.
— Bem, então tome cuidado no caminho para casa. O quê, tem mais alguma coisa?
— Na verdade não. É que o tempo está tão bom hoje.
De pé perto das janelas, que tinham sido especialmente tratadas para bloquear o brilho ofuscante da neve, a garota tentou pensar em algum estratagema para permanecer na sala.
— Não mais do que o normal.
— Este quarto está imundo. Posso começar a arrumar para você hoje.
Quando a expressão do Sr. Meyer se tornou de profunda preocupação, Lina pensou: Droga! Uma figura alta entrou pela porta baixa, embora ao fazê-lo quase tenha sido forçado a se abaixar.
Lina deu um suspiro de admiração e pegou uma série involuntária de apresentações enquanto elas ainda estavam no fundo de sua garganta. Observando-a, o motivo de seu comportamento suspeito e seu plano de permanecer tornou-se óbvio para o Sr. Meyer. Despedindo-se de Harna, que estava distraída na porta, o Sr. Meyer perguntou se o convidado era conhecido de Lina.
— Estou aproveitando a hospitalidade de sua casa. — disse D, enquanto estava perto da parede. Este era justo o tipo de visitante indesejado por um educador encarregado de alunas. — Eu sou D. Um Caçador de Vampiros. E suponho que pode adivinhar o que me traz aqui.
Não é de surpreender que o semblante caloroso e intelectual de Meyer tenha endurecido. Ao convidar D para se sentar, o olhar em seus olhos era o que daria a qualquer enviado para revelar o segredo obscuro que havia escondido em seu coração há muito tempo.
— Não, obrigado. — disse D secamente, recusando-se a se sentar. Seus modos eram curtos, porém não de todo desagradáveis.
— Lina. — disse o professor com urgência. O que estava prestes a começar não era uma história para uma jovem ouvir. Lina olhou implorante para D, então deixou a sala com um olhar um tanto mal-humorado, descontente com a indiferença do caçador.
Assim que a porta se fechou, o Sr. Meyer encarou D. Não havia mais ninguém na sala.
— Se está hospedado na casa de Lina, então acho que ouviu todos os detalhes do prefeito. Para ser honesto, há algumas coisas que gostaria de saber. De minha parte, se houver algum tipo de conexão entre esses eventos recentes e o que aconteceu conosco nos dias escuros da nossa juventude, quero estar lá quando descobrir quem ou o que está por trás de tudo. É assim que me sinto.
De alguma forma, D conseguiu desviar seu tom sério.
— Se tiver alguma lembrança do que aconteceu há dez anos, gostaria de ouvir. Só sei o que o prefeito me disse.
O fato de ter concordado sem hesitação testemunhou o fato de que a expressão dura do Sr. Meyer era de fato sem substância.
— Sinto muito dizer isso, contudo o que ouviu do prefeito é provavelmente tudo o que há para contar. Um dia, dez anos atrás, estávamos todos brincando no sopé da colina. Lina disse que queria colher flores e fazer algumas guirlandas, e me lembro de Tajeel... Esse seria o garoto que ainda não foi encontrado, sendo contra a ideia, dizendo que não seria divertido. No final, nós, garotos, tivemos que ceder. Mesmo nessa idade, as mulheres têm essa influência, e nos lançamos à nossa tarefa incômoda. Até peguei um monte delas e entreguei para Lina, e então...
— O que então?
— Fui para outro lugar, peguei mais um monte e então me virei. Foi isso. A próxima coisa que soube foi que duas semanas se passaram e estávamos na metade da colina e descendo de volta. Suponho que já saiba que todas as técnicas concebíveis foram usadas para tentar restaurar essa parte de nossas memórias, não é?
— Há algo que eu gostaria que você desse uma olhada. — disse D, mudando de lugar pela primeira vez. Aproximando-se de uma mesa de aparência resistente feita de troncos grossos, pegou uma caneta de pena de harpia de um porta-canetas feito de uma presa de dragão maior. Também rasgou uma página do bloco de papel reciclado.
— O que é?
— Só algo com o qual também tenho problemas. — a expressão de D não mudou enquanto fazia dois traços rápidos com a caneta, então enfiou a folha rígida reciclada diante dos olhos do professor.
— O que... O que exatamente é? — o Sr. Meyer se virou para dar a D um olhar duvidoso.
— Não é nada. Desculpe por perguntar. — D amassou a página de memorando na qual havia escrito uma cruz enorme e jogou no lixo. O barril também era de osso de dragão maior. Uma fera como aquela tinha 18 ou mais metros de ferocidade inigualável, contudo nenhum pedaço de osso ou um único tendão era desperdiçado quando caíam nas mãos humanas. Em uma pequena vila como essa, os dragões maiores eram vistos mais como uma forma dos moradores ganharem o pão de cada dia do que como uma ameaça às suas vidas.
— Desde então, já tornou a subir a colina?
— Não, eu não. Nem discuti o incidente com Lina.
— Mais uma coisa. Cuore Jorshtern enlouqueceu. Há algo incomum em você?
O Sr. Meyer forçou um sorriso.
— Talvez meus alunos pudessem lhe dar uma resposta mais confiável a essa pergunta. Acredito que sou uma pessoa comum, no entanto, para ser perfeitamente franco, não posso provar que não estive na cena desses crimes recentes. Moro sozinho e é possível que tenha saído à noite sem saber. Uma vez que o ato foi cometido, posso ter destruído todas as evidências do meu crime e depois voltado a ser um professor comum dormindo em sua cama até de manhã. Não posso dizer com certeza que não é o caso. Se a Nobreza que pode andar na luz do dia de fato existe, as vítimas de tal Nobre teriam as mesmas características fisiológicas do agressor... Não é verdade?
D assentiu.
Quando um humano caía nas presas malignas do vampiro e era transformado em um demônio da noite, o senso comum ditava que, em geral, a vítima herdaria as habilidades características daquele Nobre quando tornasse a se erguer. A vítima de um Nobre com o poder de assumir a forma lupina também seria capaz de assumir aquela forma quadrúpede selvagem à vontade; o Nobre que pudesse comandar certas feras selvagens ganharia um novo servo com maestria sobre animais.
Todavia, assim como um bebê recém-nascido não é uma cópia carbono de um de seus pais, havia certas diferenças óbvias nos poderes geneticamente vinculados. Uma vítima não poderia permanecer transformada por tanto tempo quanto seu mestre. Além do mais, enquanto estivesse naquela forma alterada, atributos físicos como velocidade, força e capacidade regenerativa seriam todos vários níveis mais baixos.
Esses vampiros recém-criados não eram da verdadeira Nobreza, eram pouco mais do que pálidas imitações.
No que diz respeito às pessoas do mundo, a coisa mais importante sobre esses pseudo-Nobres era que, sempre que um era capturado, podiam ser usados para discernir a força total da verdadeira ameaça... O verdadeiro Nobre. Cento e cinquenta anos antes, um oficial chamado Summers Montague investigou várias centenas de casos enquanto viajava pela Fronteira. Durante sua investigação, Montague dividiu as vítimas da Nobreza em diferentes classes e também deixou estatísticas precisas relacionadas aos poderes de seus mestres. Outro tomo sobre o assunto, Métodos para Discernir Níveis de Nobreza por Meio de Vítimas e Contramedidas Defensivas, do estudioso da Nobreza T. Fisher, foi amplamente lido e transmitido pelo povo da Fronteira, apesar do fato de o Governo Revolucionário da Capital ter proibido o livro.
Entretanto, a ameaça da Nobreza agora atacando esta pequena vila adicionaria uma nova página surpreendente ao conhecimento compartilhado da humanidade; ou melhor, a ameaça era tão grave que abalaria as crenças mais básicas que as pessoas tinham sobre a Nobreza, minando a sensação de segurança que permitia que as pessoas continuassem com suas vidas diárias. Nobres que andavam de dia!
— Estou ciente de que os Caçadores de Vampiros têm suas próprias técnicas especiais de identificação e classificação da Nobreza. Não pouparei esforços para ajudá-lo. Pergunte o que quiser, ou tente o que quiser. Veja, ainda quero saber o que aconteceu lá em cima na colina, tanto quanto qualquer outro.
Não parecia haver motivo para suspeitar da sinceridade do jovem professor.
A mão esquerda de D se moveu.
O professor se afastou reflexivamente quando a mão se moveu em direção à sua testa. O movimento foi interrompido quando uma batida soou e uma garota com tranças douradas entrou sem esperar por uma resposta. A bandeja que a garota carregava era apenas uma fatia transversal de um tronco de árvore. Um par de xícaras de metal estava sobre ela.
— O que é tudo isso? Se você terminou de limpar, vá para casa.
Como se as palavras duvidosas do Sr. Meyer tivessem passado direto por seus ouvidos, a garota colocou as xícaras na mesa, dizendo.
— Aqui está.
O perfil que ela mostrou a D era carmim corado.
— Eu diria que seu comportamento como anfitriã deixa algo a desejar. — disse o Sr. Meyer em um tom um tanto descontente. — Por que diabos há uma diferença tão grande no que nos serviu? Quero que saiba que o dinheiro para a bebida que temos aqui na escola sai do meu próprio bolso.
O copo de D continha mais de três vezes mais bebida que o do professor.
Nesta vila onde temperaturas de um dígito eram comuns no inverno, não havia tabus sobre o consumo de álcool durante a aula.
— Hum, bem, isso era tudo o que havia. — disse a aluna, devorando D em uma série de olhares esvoaçantes de paixão. — Você é um grande bebedor, Sr. Meyer, e bebeu nossa parte à parte. E além do mais, quase nunca recebemos visitas, então todos nós juntamos nossas cabeças para bolar um plano e ganhei o sorteio... Que rapaz bonito.
— Já chega de suas bobagens. — o Sr. Meyer se levantou com um olhar de desgosto e conduziu a jovem em direção à saída. Assim que abriu a porta, uma avalanche de garotas caiu no chão, e os olhos do professor quase saltaram de sua cabeça.
— Qual é o significado disso? Sua grosseria me espanta. É melhor todas vocês saírem agora mesmo. E amanhã, são trinta golpes com a correia para a líder deste grupinho!
— Faça quarenta para todos nós. — disse uma. — Mas, por favor, deixe-nos falar com ele também. Queremos ouvir sobre o mundo lá fora, sobre a Capital.
— Não é justo, Sr. Meyer... — protestou outra. — Você estar aqui sozinho com este pedaço de homem... Há algo muito suspeito aí.
— E-Ei, não fale besteiras!
Não surpreendentemente, o normalmente calmo e composto Sr. Meyer perdeu a cabeça. Afinal, ainda era jovem. Ordenando que saíssem, o professor fechou a porta na cara das alunas nada cooperativas, que seguiam o mais educadamente que podiam por um autógrafo de D, no mínimo.
O professor enxugou a testa e voltou para seu assento, porém seus olhos revelavam seu bom humor apesar de tudo.
— Sinto muito que tenha tido que ver essa grosseria toda. Espero que não se ofenda.
Para sua surpresa, D balançou a cabeça. A mente do Caçador era algo muito pouco exposto. Não só isso, contudo até mesmo a aura misteriosa de um dampiro que costuma emanar de cada centímetro seu parecia ter diminuído.
O Sr. Meyer aparentava ser sensível o suficiente para detectar essa mudança, e seu tom tornou-se infundido com familiaridade.
— Veja, é muito raro que um viajante visite nossa vila. Há algo errado com o controlador do clima neste setor; primavera e verão são bons, no entanto assim que o outono chega, a neve voa. E por conta dessa situação, não tem havido muitos visitantes... Bem, um comerciante ou outro viajante, que tenha ficado mais do que alguns dias em qualquer inverno. Para meninas chegando a essa idade, esta vila é um lugar muito carente de vida.
— Não apenas aqui. — D disse em um suave tom, mesmo enquanto admirava o céu azul além das vidraças. — É assim em todas as pequenas vilas. No entanto a primavera chegará em breve.
— Sim, a primavera chegará, mas elas não irão embora.
Pela primeira vez, D notou o pesado olhar sombrio que o jovem professor tinha.
As aldeias da fronteira eram pequenas e pobres. Até mesmo a menor mudança na população poderia ser desastrosa. A vida de arrancar colheitas do solo quase esgotado e afastar monstruosidades que estavam à espreita com olhos famintos fixos em presas humanas exigia a força de cada pessoa disponível, até a última criança racional. O Governo Revolucionário na Capital fez da recuperação da Fronteira um item importante em sua agenda; proibir qualquer movimento da população pendente sem uma ordem do governo era uma medida apropriada. Então, além da neve, outra barreira, invisível a todos os olhos, isolou a vila invernal.
— Aqui vai uma ideia... — disse o professor, observando D com nova determinação. — Se tiver algum tempo livre enquanto estiver na cidade...
— Tenho outro trabalho. — a resposta do Caçador foi fria como gelo. — Vou conclui-lo o mais rápido possível e deixar a vila assim que terminar. É só isso.
O Sr. Meyer se limitou a dizer.
— Entendo. — então esvaziou o conteúdo de sua xícara. Ele não pareceu nem um pouco ressentido. Como era raro que os professores tivessem permissão para se mudar, muitos se entregavam ao álcool e aos alucinógenos para escapar do desespero do futuro e da frieza do presente. Porém, mesmo com as dificuldades da profissão, o Sr. Meyer era uma grande pessoa. — Sei que pedi demais. Mas antes que me investigue, há uma coisa que gostaria de lhe pedir.
— O que seria?
— Poderia, por favor, deixar Lina fora desse assunto?
— Ela é uma das crianças que voltaram também.
— Ela vai para longe.
A testa de D franziu. Isso também era bastante incomum. Como se quisesse atraí-lo mais, o professor continuou.
— Tenho certeza de que deve conhecer o sistema pelo qual uma vez por ano o governo seleciona a criança mais promissora de uma determinada vila naquele setor da Fronteira para instrução no sistema educacional da Capital. Este ano, nossa vila foi selecionada. Ouso dizer que pode nunca mais acontecer. O lugar todo está em tal estado que se pensaria que o carnaval chegou à cidade. Depois de meses de testes de habilidade, Lina foi a escolha unânime.
— Entendo.
— Somos apenas uma pequena vila pobre lutando para sobreviver, contudo ela é uma estrela brilhante ascendendo para a Capital. Há rumores de que o governo pode até estar planejando lançar uma dessas naves de propulsão de energia galáctica para outro planeta. Se for escolhida para algo assim, poderá muito bem se tornar uma estrela em todos os sentidos da palavra. Imagine... Uma garota de uma vila presa em um inverno longo e escuro por metade do ano e agraciada pelo sol por uma primavera e verão escassos pode viajar para as estrelas. Consegue entender o quão orgulhosos isso nos deixaria, que impulso seria?
— Se a criança selecionada fizer tal contribuição, a vila merece algum tipo de remuneração. Isso eu entendo. — dizendo essas palavras, D fixou os olhos no rosto do Sr. Meyer. — Acha que serve ao melhor interesse da vila também?
Quando o semblante adequado do Sr. Meyer endureceu com essa pergunta inesperada, uma aura medonha jorrou de cada centímetro de D.
— Hein? — congelado pelo que parecia um ataque brutal à sua psique mais profunda, o professor seguiu o olhar de D, capturado pela visão de um aluno correndo para o portão da escola, que era visível da janela. Gotas de suor grudavam no rosto do menino. Suas mãos estavam manchadas de escarlate.
O professor entendeu em um instante.
Quando se levantou para seguir D, que já havia passado pela porta, ouviu uma voz bizarra e rouca dizer.
— Colocado em espera de novo? É só uma interrupção atrás da outra hoje.
Uma dúzia de minutos depois, o Sr. Meyer estava correndo pela floresta.
Não havia nem sinal nem som de D, que tinha avançado na frente.
A estrada bem drenada estava seca e vazia, exceto por um pedaço ocasional de neve restante, então a corrida do Caçador era desimpedida e sua velocidade era sobre-humana. Confiando o jovem manchado de sangue a um dos professores do ensino fundamental que se juntou a ele no terreno da escola, o Sr. Meyer foi atrás de D. Tendo saído do prédio antes do professor, o Caçador saiu correndo depois de trocar algumas palavras com o garoto. Naquele momento, estava a menos de três metros de distância. Até o próprio vento tem medo de ficar no caminho desse lindo jovem, pensou o professor.
Aqui e ali, manchas de sangue pontilhavam a estrada preta. Gotas que pingaram das mãos do garoto. O menino era filho de um caçador que vivia na floresta não muito longe dos limites da cidade. Brincando com uma balestra caseira no caminho para casa, acabou atirando uma flecha sem querer em um matagal. Ele a encontrou logo em seguida, e com ela algo mais. A próxima coisa que soube foi que estava nos portões da escola, pelo que disse. Sem saber quando conseguiu sujar as mãos de sangue. O menino tinha apenas nove anos.
O Sr. Meyer conseguia ver o matagal à frente. Neve carmesim se acumulava nos galhos.
Encontrando uma abertura estreita, o Sr. Meyer forçou sua passagem.
Suas pernas congelaram.
Antes que percebesse, todo o seu ser estava sendo martelado por uma aura lúgubre ao extremo, despertando um medo primitivo em cada uma de suas células. Embora sua mente exigisse que seguisse em frente, seu corpo se rebelou. O homem não era um animal de espírito e carne unificados.
Cerca de três metros à sua frente estava D.
E outros seis metros além do Caçador estava um corpo, de bruços e vestido com pelo vermelho. Não conseguia ver o rosto, mas pelo cabelo longo e preso em rabo de cavalo sabia que era uma mulher. Não havia mais nada, nem ninguém para ser visto.
Apesar disso, o professor teve a nítida impressão de que o próprio corpo pressionado pela sensação enervante do mal que o esmagava como uma rocha. Imaginou se D também havia sido vítima dessa pressão. Porém não...
A espada longa de D já havia sido desembainhada. A pose que assumiu, com a ponta da lâmina baixa o suficiente para furar a ponta do pé direito, era tão anormal que mal poderia ser chamada de postura de combate. Contudo, por extensão, sugeria que qualquer tática que tomasse em seguida seria sem dúvida sobrenatural.
E então o professor notou algo que fez a alegria flutuar em seu coração murcho. Enquanto a aura maliciosa estava girando em torno de D, nem sequer roçou o Caçador.
Ele não estava nem um pouco com medo disso!
A aura maligna sobre a garota se moveu. Ela atacou!
D voou pelo ar também, tal qual a imagem de um falcão gracioso, esculpido em toda a sua majestade no ar frio.
O professor viu apenas um clarão prateado.
Espaço e tempo se distorceram, ou pelo menos era como lhe pareceu.
Algo deslizou pelo lado do professor, irrompeu por parte do matagal e desapareceu. O Sr. Meyer correu em direção a D, que havia pousado ao lado da garota. O feitiço agora estava quebrado, e apenas um ar de fria tranquilidade se espalhava pela área. Eles podiam até ouvir o chilrear dos pássaros outra vez.
Ajoelhando-se ao lado da mulher, D tomou seu pulso. Seu rosto inexpressivo nem sequer olhou para onde a coisa, o que quer que fosse, havia fugido. E sua espada estava na bainha. O professor sentiu como se estivesse olhando para uma forma de vida diferente. Embora o jovem fosse lindo o suficiente para fazer até mesmo outro homem como Meyer desmaiar, o Caçador parecia ainda mais assustadoramente perturbador do que a coisa com sua aura de malevolência havia sido.
Soltando a mão da garota, D se levantou. Em seguida, pressionou a palma da mão esquerda no braço direito. Quando o professor perguntou se D havia se machucado, este negou balançando a cabeça.
— Parece que chegamos bem a tempo. — disse o Caçador.
O alívio se espalhou pelo coração do professor.
— Acha que aquela coisa era o que você estava procurando? — perguntou esperançoso, mas a consternação tomou seu rosto no instante seguinte.
— Não! — disse D. — a julgar pela temperatura do corpo e seu sangue drenado, o ataque ocorreu esta manhã. Além do mais, aquela coisa nojenta não deixou marcas de dentes em sua garganta. Parece que eu a encontrei quase no mesmo instante em que encontrou a mulher.
— O que diabos era aquela coisa?
— Não sei. Porém esta é a segunda vez que a encontro.
— O quê?
— Não importa. Essa mulher, você a conhece?
Por fim o Sr. Meyer poderia ser de alguma utilidade. Rolando a mulher, que tinha dois fios de vermelhão saindo da nuca, de costas. Vendo a pequena cesta perto, assentiu.
— Ela é casada com um fazendeiro chamado Kaiser. Deve ter saído para colher flores de alumínio para pomadas quando foi atacada.
— E onde você esteve esta manhã? Não precisa responder isso. Nós saberemos quem é o culpado em breve.
— Nós saberemos?
— Com base em seus ferimentos, quem a atacou é do tipo que se apega muito à sua presa. É bastante provável que virá atrás dela ainda esta noite. Vou ficar de olho. Se não vier...
Sentindo que deveria estar aterrorizado pela frase que D deixou inacabada, o jovem professor disse com uma voz oca.
— Se não vier, o quê?
— Então teria que ser alguém que sabe que estou aqui. Os alunos que me viram antes não sabiam da minha profissão, então só resta o prefeito, Cuore, Lina... E você.
Embora a estação estivesse tão perto da primavera, o rosto do Sr. Meyer tinha toda a cor de alguém que morreu de exposição.
Em pouco tempo, o xerife e o prefeito correram para o local e levaram a esposa de Kaiser após uma investigação superficial. O xerife olhou para D com desconfiança, contudo não disse nada. De sua parte, D não mencionou a entidade invisível.
Apenas D permaneceu no local. Quando todos os outros se despediram, falou para a palma de sua mão esquerda.
— Em que estado você está?
— Não muito bem, como pode ver. — veio uma voz exausta em resposta. — Foi um inferno de um monte de suco psíquico para ser atingido de uma vez. Não estarei de volta para o rapé por quatro, talvez cinco dias. Quanto a entrar fundo nesses outros três retornados, está fora de questão. Para esse assunto, não consegui fazer uma ordem chegar ao subconsciente deles, ou mesmo à camada mais alta de sua consciência.
— Isso é um problema.
— Se for, é sua culpa por sempre me tratar como um escravo. Em algum momento hoje ou amanhã precisará me alimentar com os quatro grandes.
— Que tal agora? É por essa razão que ainda está por aí?
— Hmm... Acho que vou tirar um cochilo primeiro.
— Tudo bem.
O diálogo bizarro terminou e D deixou a cena da tragédia. O sol de inverno seguia alto no céu. D escolheu a sombra enquanto caminhava. Que não houvesse sequer um toque de cansaço arruinando sua beleza era um fato surpreendente.
Independentemente do clima, durante as horas do dia, aqueles da linhagem vampírica ansiavam por descanso em um nível fisiológico básico. Se fosse apenas uma questão de permanecer consciente, poderiam fazê-lo por até oito horas se eles se confinassem em um lugar onde o sol virtualmente nunca brilhasse. No entanto se acabassem se envolvendo em qualquer caminhada ou ficassem parados ao redor da luz do sol, depois de quatro horas cairiam em um estado de quase morte. Caçadores de Vampiros de Super Grau A mal conseguiam administrar cinco a seis horas de atividade completa. Sua exaustão era totalmente diferente daquela sentida por um humano trabalhando a noite toda, e era somente por causa dessa grande fraqueza nos Caçadores que o desejo humano de ter toda a Nobreza exterminada permanecia não realizado.
Ao se aproximar da orla da floresta, os passos de D pararam de repente. Lá estava Lina, esperando-o em uma carroça. Ele sentou-se sem dizer nada no banco do carona e a carroça saiu em disparada.
Depois de um tempo, D disse.
— Se está indo para casa, está indo na direção errada.
— Sem problemas. Veja, estamos indo para o lugar mais alegre de toda a vila.
Depois, a carroça deixou o outro lado da vila e chegou à rodovia, onde parou diante de um pequeno barraco de frente para a estrada. Um banco de madeira de aparência robusta, mas áspero, havia sido enfiado no espaço, e a neve havia se acumulado no interior sem lâmpadas.
— O ponto de ônibus. — disse Lina alegremente. — É a única estação que sai da cidade. Os invernos são intransitáveis, porém em mais cinco dias o ônibus elétrico passará. E, nessa manhã, estarei no primeiro a sair daqui.
— Parece que você está indo para a Capital.
— Não está feliz por mim?
Enquanto o brilho nas pupilas negras se fixava no dampiro, D fez uma expressão um pouco estranha.
— Você certamente é uma garota estranha. Por que diria isso?
— Como vou saber?
D parecia confuso.
— É brincadeira. — disse Lina, como uma irmã explicando o funcionamento de um truque de prestidigitação para seu irmãozinho perplexo.
D ficou em silêncio. O guerreiro que evocava arrepios na Nobreza sugadora de sangue estava completamente à mercê de uma garota de apenas dezessete anos. Não havia nada que pudesse fazer. Se o Sr. Meyer ou o prefeito da vila pudessem vê-lo então e notado como a terrível sobrenaturalidade que era sua por direito havia desaparecido, seus olhos teriam saltado das órbitas.
— Ei, por que não sorri? Acha que te mataria rir?
Com essa pergunta coquete, D mais uma vez ficou sem resposta. Essa jovem era um desafio duro.
— Porém você chora, não chora? Deve haver muitos momentos difíceis, não é? Eu só sei que há.
Com alguma dificuldade, ele conseguiu responder um simples...
— Sim.
Lina de repente ficou muito séria.
— Você tem algum tipo de conexão com a Nobreza, não tem? Não precisa dizer nada; eu só sei. O prefeito não me disse nada, contudo nem um pássaro se aproxima de você. E olha! Mesmo que ande como qualquer outro, os rastros que deixa na neve não são um terço tão profundos quanto os meus. Então tem as ruínas... — Lina hesitou.
— E as ruínas?
Observada por olhos gélidos e brilhantes, Lina percebeu que suas bochechas de repente ficaram coradas. Como se tivesse acabado de perceber que o jovem à sua frente era um homem de tamanha beleza que fazia seus cabelos arrepiarem.
— Me escondi nas suas costas, lembra? — até seu tom de voz estava ardente. — A primeira vez que te vi, fiquei na verdade assustada, no entanto assim que ouvi o que disse, me senti tocada. “Embora seja impossível deter o progresso do tempo, faria bem em mostrar algum respeito pelo que foi perdido”... Quando disse essas palavras, seu semblante parecia tão triste.
Este jovem deve ter ouvido os ecos de outro mundo, ecos que ninguém mais conseguia ouvir.
— Seus ouvidos são bons e vejo que tem uma excelente memória. — elogiou D em seu tom habitual, olhando para a rodovia. — O sol vai se pôr em pouco tempo, então é melhor irmos embora. Já está na hora do demônio fazer outro movimento contra a mulher desta manhã.
— Ei... — Lina chamou de forma áspera em um tom totalmente inapropriado para a situação, cutucando D de um jeito significativo com o cotovelo. — Poderia terminar seu trabalho nos próximos cinco dias e deixar a vila comigo? Tenho um futuro brilhante pela frente.
— Talvez. É melhor entrar agora.
A dupla subiu na carroça e D pegou as rédeas.
Roubando olhares para o perfil dele, Lina exibiu um sorriso travesso.
— Realmente não quer perder essa carranca, não é, seu grande preocupado? Vou fazer uma previsão para você.
— Uma previsão?
Talvez sabendo como os olhos de D brilhavam e talvez não, Lina fechou as pálpebras cerimoniosamente e torceu o nariz como se estivesse sentindo o gosto do ar.
— Isso mesmo. Veja, os meus quase sempre acertam em cheio. Vamos ver... Ok, Já sei.
Então, olhando para o belo perfil ao seu lado como se estivesse em transe, falou.
— Com certeza haverá um sorriso no seu rosto quando sair deste lugar.
Oito rostos cercavam um único catre¹.
Estavam lá o xerife e o prefeito, o Sr. Meyer e Lina, três membros robustos do Comitê de Vigilância, e parado sozinho, de costas para a parede, estava D.
— Ainda não conseguiu pegar aquele Cuore? — o prefeito perguntou ao xerife com mau humor evidente, e o xerife olhou por sua vez para o indivíduo de porte bem construído que parecia liderar os justiceiros locais. Seu nome era Fern.
— Bem, ele não está escondido em seu ninho de rato de sempre. — Fern declarou. — Entretanto nós colocamos o Comitê de Vigilância e a Brigada Jovem com força total, e espero que o peguemos em pouco tempo.
— Se o tivermos aqui e um vampiro aparecer, isso deve esclarecer quaisquer dúvidas sobre os três. Resolva esse problema logo. — o prefeito acrescentou, lançando um olhar arrogante para Lina e o Sr. Meyer. Fern respondeu com um forte aceno em concordância e olhou para D. O ódio gritante girava como um redemoinho. Deve ter ouvido sobre as duas pequenas altercações com Haig e sua Brigada Jovem.
— O horário de visitas está prestes a começar. Vocês todos terão que ir para o outro cômodo.
Enquanto os outros se levantaram a mando de D, todos os três justiceiros viraram seus rostos mal-humorados. Seu olhar gélido focou neles e, embora seus olhos nunca tenham encontrado os dele, a maneira como de repente deixaram seus assentos sugeriu que suas costas tinham sido percorridas por uma gélida sensação.
— Pode contar conosco para ficar de olho nesses outros dois. Mas tem certeza de que ficará bem sozinho? — as palavras do xerife surgiram do medo de que se por algum acaso D fosse derrotado, a maldição dos mortos-vivos não apenas reivindicaria a mulher, como também mais vítimas seguiriam.
Realmente não importava o que acontecesse com a mulher. O tratamento dado às vítimas de vampiros variava de vila para vila, mas aqui elas eram expulsas em seguida da cidade e deixadas à própria sorte. Seu marido tinha ido para uma vila vizinha, porém estava sujeito às mesmas leis que todos, então o xerife não precisava se preocupar com nenhuma censura.
Contudo, esse novo Caçador de Vampiros planejava usar a mulher como isca para atrair o demônio. Além do mais, o Caçador não queria que o trio sob suspeita estivesse no mesmo local, no entanto pediu que todos esperassem juntos por perto.
Se não fosse pelo apoio do prefeito, o xerife teria protestado contra isso. Houve mais do que alguns casos no passado em que planos semelhantes falharam, e aqueles que estavam à espreita não foram os únicos a cair nas presas malignas, vilas inteiras se tornaram vampiras. Entretanto, acima de tudo, havia o salário que o xerife recebia da Capital a ser considerado, uma quantia quase cinco vezes maior do que o ganhava um morador médio. Não era o tipo de trabalho que só entregaria a outra pessoa.
— Confie em mim, xerife. — disse o prefeito, dando-lhe um tapinha no ombro. — Afinal, chamei o homem certo para o trabalho.
Em sua mente, ele murmurou: Você chamou o último Caçador também. Todavia, sem desperdiçar mais uma palavra, o xerife levou todo o grupo para uma sala adjacente.
Assim que o clique da fechadura sumiu, D fechou a mão direita em um punho frouxo, levou-a à boca e mirou a pequena abertura na luminária na mesa lateral. Com um sopro, a chama queimando dentro do vidro da luminária foi extinta. A sala caiu sob o domínio da escuridão.
Nuvens baixas obscureciam a lua naquela noite assustadora, enquanto vendavais de inverno incompreensíveis estando tão próximos da primavera sacudiam as molduras das janelas.
A mulher deitada no catre era a mesma que havia sido atacada antes. Embora estivesse inconsciente desde que a encontraram, com o aprofundamento da noite sua pele perdeu seu tom rosado; seu rosto agora era imbuído num estranho brilho de parafina. Naquela escuridão sem nenhuma centelha de luz, D conseguia discernir até os vasos sanguíneos pálidos que envolviam as bochechas da mulher.
De repente, girou em direção à janela.
Não havia nada além do barulho dos golpes incessantes do vento para ser ouvido, mas os ouvidos de D devem ter captado algum outro som.
Ao mesmo tempo, seu olhar voltou para a cama.
Da nuca da mulher, e do ferimento conhecido como Beijo da Nobreza, dois riachos vermelhos começaram a fluir.
A tensão era como uma linha esticada.
Algo preto como azeviche pressionou contra o vidro da janela. Um rosto com nariz e boca achatados estava espiando para dentro do quarto, revestido de um sorriso que não era deste mundo.
Com um bater de asas surdo, algo grosso voou pelo ar. Um cobertor.
O olhar de D foi atraído para a porta que era o limite entre este quarto e o próximo. Era para lá que a mulher vestida de camisola estava indo. Olhos vermelhos como sangue brilhavam em D. O chamado tinha vindo de seu mestre.
Um vampiro podia acenar para sua presa sem de fato ir vê-la, movendo sua vítima apenas por pura vontade. Era um estratagema comumente usado. Porém, na maioria das vezes, a vítima sairia por uma janela. O vampiro com certeza não enviaria a vítima até a porta da frente, onde era bastante provável que encontrasse outras pessoas. Além do mais, havia uma figura sinistra do lado de fora da janela. Uma distração?
A mulher deu um passo para trás e se preparou para forçar sua passagem pela porta. D correu. Com um barulho agudo, os vidros da janela voaram para fora em cacos e uma rajada repentina de vento entrou.
Gritos surgiram no quarto ao lado.
D conseguia discernir cada ruído individual. Antes mesmo que a mulher pudesse se jogar contra a porta, algo no cômodo ao lado fez a porta se dobrar para fora por dentro. Parafusos dispararam das dobradiças. Uma explosão concussiva irrompeu, e pedaços estilhaçados da porta rasgaram o piso de madeira, jogando cacos das janelas quebradas para fora. Tudo sem fazer barulho.
A mulher estava agora em um canto do quarto. Um grito gutural foi ouvido, contudo morreu nas sombras de um casaco preto. Assim que a porta se estilhaçou, D pegou a mulher debaixo do braço e pulou para a segurança. E levou menos de um segundo para a porta dobrada voar em pedaços. Sua velocidade era ímpia.
Parecia que aquilo tinha aparecido para um terceiro encontro com D.
O quarto foi tomado com intenso poder psíquico enquanto a coisa procurava seu oponente com um uivo furioso e mudo. Estranhamente, D conseguia até mesmo distinguir o corpo da coisa.
A cabeça estava de frente para D e a mulher.
Malevolência coagulada. Erguendo-se sobre todos os quatro membros, avançou de forma ameaçadora.
Olhando de soslaio para a mulher que havia ficado desacordada pela pancada, D sacou sua espada longa. O que se seguiu foi um final inesperado.
Com um grito que trovejou do lado de fora da janela, a malevolência foi dissipada por completo. Os rosnados do vento noturno reverberavam, contudo D apenas ficou ali, confuso, no ar invernal.
Isso não estava certo. Era impossível que uma aura tão feroz se dispersasse, apenas desaparecesse. Fragmentos dela... A energia restante sozinha, deveriam ter ficado no ar como coágulos gasosos. No entanto não havia o menor traço de algo assim no quarto. O melhor curso de ação, neste ponto, seria acreditar que a coisa não existia em primeiro lugar.
Em vez de refletir mais, D começou a trabalhar. Passando os olhos pela porta devastada e pela mulher caída, se atirou pela janela.
A fonte dos gritos estava caída no chão logo abaixo do parapeito da janela. O Caçador o rolou, revelando o semblante pálido de Cuore. Seu peito subia e descia de leve sob suas vestes esfarrapadas. Embora não houvesse sangramento ou ferimentos, seu corpo colossal parecia murcho da cabeça aos pés. Suas bochechas afundaram abatidas, traçando nitidamente os ossos abaixo. Parecia que a própria essência da vida havia sido arrancada dele.
D estava prestes a pegar o homem quando o corpo do Caçador voou pelo ar e voltou para o quarto.
Uma figura acinzentada, enrolada inteira em tecido escuro, agarrou-se à mulher. Um lenço de pano áspero cobria o rosto da figura e, do centro daquele semblante, olhos da cor de sangue encaravam D. A mulher não se moveu nem um pouco. Uma expressão de êxtase pelo gosto do prazer sobrenatural impregnou seu rosto de cera, e seus seios amplos e agora nus estavam esmagados contra o peito da figura sombria. Sim, até mesmo suas coxas flexíveis haviam sido expostas e agora estavam enroladas nas pernas da figura. O devastador e o devastado pintaram uma imagem de secreta lascívia.
No instante em que D avistou o par de presas projetando-se dos cantos dos lábios detestáveis da criatura, a única parte da figura visível enquanto lambia o sangue borbulhando dos ferimentos na garganta da mulher, a mão direita do Caçador liberou uma saraivada de luz branca.
Quando o som de cinco agulhas de madeira afundando nas tábuas da parede foi ouvido, aqueles lábios ensanguentados formaram um sorriso. Nenhuma mudança ocorreu no abraço retorcido da figura na mulher. Sem mover um músculo, a criatura evitou as agulhas que D havia atirado.
D saltou do chão.
O corpo pálido da mulher voou para cima, e evitá-lo introduziu um atraso de apenas um centésimo de segundo em seu ataque. Um clarão prateado cortou a manga da capa cinzenta, e D e a figura trocaram de posição.
Um ar de desolação encheu o cômodo.
Por fim encontrou um oponente digno. Em qualquer batalha, os fatores mais importantes eram, em grande parte das vezes, velocidade e, logo em seguida, força. Em termos de velocidade, pelo menos, a figura sombria era igual a D.
Todavia...
Da garganta daquela figura, um gemido que nunca poderia ser confundido com humano veio como se fosse levado pelo próprio vento de inverno.
Um respingo de preto parecia fazer uma faixa suave da borda superior do lenço da figura até o queixo. O tecido rasgado caiu para ambos os lados, cobrindo os ombros da figura sombria. Foi obra da lâmina de D, que na verdade deveria ter dividido o corpo de seu oponente ao meio. Sem perder um segundo, a figura protegeu o rosto com a mão e saltou pela janela.
D correu também.
A distância entre os dois permaneceu inalterada.
Uma estrela cadente prateada!
Com um dos sons mais requintados do mundo, a lâmina de D foi aparada pela espada longa que a figura empunhava. Como as faíscas dispersas, os dois rostos ficaram mais pálidos e mais distantes.
Ao mesmo tempo em que pousaram, uma série de ruídos ecoou no espaço entre os dois. Os estrepes de ferro que a figura havia lançado no ar enquanto segurava sua espada com os dentes interceptaram as agulhas lançadas por D.
Cada estrepe era uma massa de pontas de ferro irradiando em todas as direções.
Embora tradicionalmente espalhadas pelo chão por caçadores comuns ou caçadores especializados em feras terrestres, com prática elas poderiam ser usadas como mísseis. Um especialista poderia lançar três em um único segundo e colocá-las em um alvo de cinco centímetros de largura a uma distância de cerca de nove metros. Quando combinadas com a força horrenda exclusiva da Nobreza, as estrepes poderiam atingir o poder de impacto de uma arma Magnum, uma arma renomada por sua capacidade de perfurar a armadura de dragões maiores.
Um traço carmesim percorreu a bochecha esquerda de D.
Mas a figura sombria que havia causado o ferimento se deteve também. Ele recuou. Talvez a lua finalmente espiando através do banco de nuvens tenha revelado à figura o fato de que a mão esquerda que segurava sobre o rosto havia perdido o polegar até a base.
Os oponentes seguravam suas espadas longas na altura dos olhos, na tradição dos esgrimistas asiáticos. Preparando-se para a batalha, nenhum dos dois se moveu.
Levados por um vento que uivava sobre o fim iminente do inverno, ninguém sabia dizer quanto tempo essa batalha mortal entre um super-humano e um demônio iria durar.
Um relato ensurdecedor anunciou um fim repentino do duelo.
A parte superior do corpo de D deu uma leve sacudida. A tensão foi quebrada. Prestes a dar uma estocada, a figura parou. Um instante depois, a figura saltou pelo ar, ultrapassou uma parede de pedra e fundiu-se à escuridão com uma velocidade que envergonhava o próprio vento.
Não que a criatura temesse a arma que tinham acabado de dar dois tiros no corpo de D. Em vez disso, viu D levar os enormes tiros na lateral do peito sem deixar a ponta da espada tremer nem um pouco.
O vento especialmente forte espalhou todos os vestígios do inimigo, então D delineou um arco fluido de prata que retornou sua espada longa à bainha. No flanco direito de seu casaco, o material estava rasgado, marcando o local onde uma arma magnum havia acertado dois tiros diretos, porém não havia nenhum traço de emoção em seu rosto requintado.
Um emaranhado de gritos raivosos veio da direção da janela. As vozes de Lina e do prefeito se agitaram contra os protestos veementes do xerife de que tinha sido um acidente que seus tiros tivessem errado o alvo.
D se aproximou do corpo enfraquecido de Cuore e levantou o garoto sem esforço.
Embora os Caçadores mais ilustres fossem famosos por nunca usar seu braço de manejar a espada a menos que fosse absolutamente necessário, D desconsiderou essa convenção sem hesitar.
— Não adianta o perseguir. — ele disse para impedir que o xerife saísse pela janela. — E a mulher?
— Ela ainda está viva. — Lina respondeu de seu lugar ao lado da cama da mulher adormecida.
D voltou para o quarto sem fazer barulho.
— Leve esse garoto para a cama.
— Você não foi atingido? — perguntou o xerife enquanto alternava seus olhares entre a arma em suas mãos e D. Sem responder, o Caçador passou Cuore para os braços de Lina.
— D, você está sangrando!
— Vai sarar em breve. O que aconteceu?
— Eu não sei.
Balançando a cabeça, Lina olhou para o xerife. Ele parecia ileso. Havia um grande caroço subindo na testa do prefeito.
— Algo aconteceu, isso é certo... Do nada, começamos a flutuar no ar, então a próxima coisa que sei é que estávamos caindo de cabeça no chão. Acredite em mim, eu gostaria de saber o que diabos foi aquilo!
— E o Sr. Meyer?
— Aqui... — o professor estava caído na soleira da porta quebrada, com a respiração pesada. Havia vários arranhões em suas bochechas. A julgar pela maneira como segurava a parte de trás da cabeça, esse era o mais grave de seus ferimentos. — Pelo menos isso deve acabar com quaisquer dúvidas remanescentes sobre mim e Lina. — murmurou, então seus olhos se arregalaram quando viu Cuore.
O trio de vigilantes cambaleou em direção a eles, e, na confusão selvagem do cômodo, D podia ser ouvido murmurando como se nada tivesse acontecido.
— Então nós finalmente o expulsamos, não é?
Notas:
1. Catre é uma cama tosca, de aparência rústica.
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