Volume 02: Raiser of Gales — Capítulo 11: Aqueles que Desejam Escuridão
Os pálidos raios do sol derreteram a maior parte da leve neve na encosta. Brotos jovens erguiam-se do chão, diligentemente atraindo para si a energia que precisariam para florescerem na estação que viria.
Como uma pintura pastoral, o verde já cobria o terreno e sua suave ondulação, e ao longe um jovem Adonis estava em alto relevo contra o céu azul, caminhando enquanto o vento agitava a bainha de seu casaco.
No entanto, bastava dar um passo mais perto para ser atingido pela aura inefável e misteriosa que se expandia daquela forma alta trajada de preto para perceber que era uma entidade sobrenatural em pleno acordo com aquela beleza perfeitamente preservada.
O Caçador de Vampiros D... Na primavera, no verão, seus olhos sem emoção refletiam uma escuridão assombrada por demônios.
Na metade da encosta, D parou.
Uma carroça se aproximava da cidade. Era Lina, com seus cabelos negros como juba esvoaçando atrás dela. Percebendo que D a tinha visto, um sorriso surgiu em seu rosto e sua mão acenou.
Embora não tenha acenado de volta, ainda não era comum o jovem esperar enquanto Lina parava a carroça, pegava sua longa saia azul e subia a colina até ele. Parecia que não apenas os humanos, mas todas as criaturas vivas tinham dificuldade para atravessar a colina.
— O que a traz aqui? — perguntou o Caçador com um olhar severo.
— Ora, se não é o Senhor Aborrecido? Acontece que ia lhe perguntar a mesma coisa. Porém o mínimo que posso fazer é lhe fazer companhia. Afinal, foi gentil o suficiente para esperar por mim.
Embora sua respiração estivesse irregular, um sorriso tranquilo surgiu nos lábios de Lina.
Não era apenas a beleza do jovem que lhe dava arrepios, como também achava divertido ficar ao seu lado... Se ‘divertido’ não fosse bem o termo certo, ficar ao lado dele era sem dúvida intrigante. Lina não tinha como saber o quão poderoso Caçador D era, ou como as pessoas mais rudes da Fronteira se encolhiam com a simples menção de seu nome. Ela tinha dezessete anos, garotas naquela fase tendiam a ver garotos de sua idade como garotos rebeldes, que é talvez como Lina visse D. Contudo, apesar das aparências, quem poderia de fato dizer quantos anos o Caçador tinha, surgindo como fez do sangue eterno e imortal da Nobreza?
— Não estava te esperando. — respondeu D em seu habitual tom frio. — Ia aconselhá-la a você se virar e ir para casa.
— Sem chance! — Lina fez beicinho. — Estou muito mais segura ao seu lado do que estaria de volta na cidade.
Isso era certamente verdade.
— Faça como quiser.
D se virou sem dizer outra palavra. Embora seu ritmo vagaroso, no entanto deliberado, permanecesse inalterado, não importava o quanto Lina se esforçasse, não conseguia diminuir a distância entre os dois. Ao chegar ao topo da colina, a garota desabou na sombra das muralhas. Por mais cruel que parecesse, D entrou nas ruínas sem nem olhar para trás e desapareceu.
— Não acredito nisso! De todos os sangues-frios... — Lina estava gritando e batendo os pés quando algo branco caiu de seu peito. Pegando-o com pressa, ela o sacudiu com cuidado e colocou na frente de sua blusa. E então, com um grito de “Espere por mim, seu idiota de coração frio”, avançou por uma brecha nas ruínas.
Os humanos continuaram com medo de entrar nos castelos da Nobreza. Seus donos desapareceram por razões desconhecidas, as casas e os terrenos abandonados costumavam ser invadidos por ervas daninhas e ratos. Em alguns casos, dispositivos de manutenção automatizados quebraram, em outros a Nobreza os desconectou antes que desaparecessem. Tais ações pareciam declarar que esses seguiam sendo lugares que nenhuma mão humana deveria tocar. Ver essas ruínas com isso em mente era o suficiente para causar arrepios na espinha do espectador.
Apesar das muralhas, o portão principal e o tabernáculo, que já foram os principais edifícios aqui, foram todos arrancados de suas fundações. Até mesmo a figura lamentável do campanário, agora sem a metade superior, encarava a abóbada azul empírea. Pilhas de entulho e restos de edifícios formados a partir de materiais misteriosos estavam espalhados por todo o pátio central coberto de neve. O pátio também mal retinha sua forma original, embora agora fizesse um excelente trabalho em diminuir o ritmo de Lina.
Claro, Lina não sabia quando o castelo tinha sido reduzido a esse estado, ou por quem. Toda a verdade envolta pelo véu escuro da história e, além dos tentáculos de terror desconhecido que estendia, este lugar não tinha relação com a existência dos humanos.
Mesmo por dentro, a história dessas ruínas permanecia indescritível. Cada parte sua era um mistério.
Muitos castelos foram construídos pela Nobreza na região da Fronteira, todos com o propósito expresso de fornecer uma base da qual pudessem governar os mortais. A Nobreza tendia a escolher um local em terreno alto para construir seus castelos, para que pudessem olhar para baixo e ver os humanos labutando a seus pés. Por consequência, descrições desses castelos e contos de seus inquilinos tornaram-se parte da tradição oral dos humanos que trabalhavam abaixo. As histórias foram inevitavelmente passadas de geração em geração, mas nada parecido aconteceu na vila de Tepes.
Como a Nobreza vivia e que trabalho havia realizado neste vale cercado pela neve e escuridão eram questões que os moradores não queriam considerar.
D estava na escuridão do mesmo salão onde Lina o conheceu. Ao vê-lo estudando silenciosamente algo na parede, teve a nítida impressão de que o fluxo azul-claro do tempo havia parado de fluir.
— Uma dessas pinturas chamou sua atenção? — chamou a garota enquanto se aproximava. D, que não havia respondido, não importa o quanto ela falasse, virou-se para vê-la. Por fim ela conseguiu relaxar um pouco.
— Ah, sim, tenho que lembrar que você pode subir aqui normalmente. Suas visitas aqui são frequentes?
— Uh-huh. — ela disse com um aceno afirmativo. — Quando se trata do castelo aqui, diria que sou a pessoa mais bem informada da cidade. Sabe, não tenho certeza do que veio fazer aqui, contudo por que não olhamos algumas delas juntas?
Por um breve instante, D examinou o rosto da garota e seu inofensivo sorriso, então assentiu.
Os dois contemplaram uma peça após a outra na prodigiosa coleção de pinturas colocadas nas paredes.
Ao olhar para essas pinturas, todas rodeadas de mistérios pelo simples fato de terem sido deixadas para trás, Lina sentiu a mesma emoção profunda da primeira vez que as viu. Seu peito se encheu de calor quando as encarou uma vez mais.
Amantes, envoltos nas asas finas de alguma máquina voadora, deslizando pelas sombras pálidas de um bosque iluminado pela lua.
Uma Nobre pálida rindo enquanto persegue um orbe brilhante e lunar através da névoa espessa de uma margem de lago.
Um Nobre vestido de preto estimulando a besta sobrenatural que puxa sua carruagem flutuante, enquanto relâmpagos do céu escuro e turbulento banham os dois.
O luar brilhando no chifre de um unicórnio, dançarinas prismáticas espalhando pétalas de flores, a terra se transforma em um jardim de gramas luminescentes nessas pinturas, que mostravam sombra e luz, sinfonias de brilho e sombra...
— Nobres pintaram tudo isso?
Lina não dirigiu essa pergunta a ninguém em particular, no entanto parecia uma canção ecoando de sua boca.
— O cenário é sempre sombrio e a escuridão, noite, luar e névoa... Então por que parecem tão lindos? Como puderam pintar aquele mundo tão suavemente, tão surreal, quando não podemos pôr os pés fora da vila sem ficarmos tão assustados ao ponto de desabarmos? A noite da Nobreza é de alguma forma diferente da nossa?
D observou a garota em silêncio. Seus olhos eram grandes e brilhantes, cintilando com uma curiosidade abundante que arrancava o véu da inocuidade... Essa garota de dezessete anos que aprenderia sobre o futuro na Capital.
— Desde quando éramos crianças, todos nós crescemos ouvindo sobre o quão feroz a Nobreza é, o quão assustadora. — Lina continuou, esquecendo que D estava ao seu lado. — A civilização não produz nada que não seja adequado para servi-la. É por esse motivo que a Nobreza maligna morreu, eles dizem. E, ainda assim, quando olho para essas pinturas, meu coração dispara. A primeira vez que as vi, pensei: ‘Se é isto que eles podem pintar, então me tornem um Nobre a qualquer momento’. Depois, estudei sobre elas às escondidas. O Sr. Meyer, que desapareceu comigo há muito tempo, bem, ele também se interessa pela Nobreza, e como colecionou todos os tipos de literatura, me emprestou alguns de seus livros... Embora nesses últimos tempos esteja me dizendo para apenas me concentrar na matemática e não me deixa ter mais nenhum momento de sossego. Na maior parte, são todas coisas que os humanos registraram sobre a Nobreza e quase todas são do mesmo ponto de vista que os adultos da cidade têm, entretanto havia esse volume, um livro sobre a história da Nobreza. Ah, como era o nome mesmo...
— O Alvorecer da Nobreza, de J. Sangster. Foi banido assim que foi impresso, e o autor foi exilado para a Fronteira.
— Estou impressionada. É exatamente dele que estava falando!
Lina estalou os dedos bruscamente, não tão surpresa que um Caçador à deriva soubesse de uma informação tão arcana, mas estava encantada por encontrar um tema para conversar.
— Pelo que me lembro, analisava a arte que a Nobreza havia deixado para trás... As pinturas, imagens holográficas e música tridimensional de algum tipo, e trazia alguns dos pontos mais sutis de sua civilização à luz. Li e reli até que suas páginas começassem a rasgar. Queria aprender sobre o outro mundo, a civilização noturna e a Nobreza, é claro. Sobre o conhecimento que tinham e sua beleza. E eu...
Nesse ponto, as palavras da garota morreram como se estivesse voltando aos seus sentidos, e ela se virou de novo para encarar D.
— Já foi decidido que vou estudar matemática na Capital. Porém o que realmente gostaria de saber é sobre a história da Nobreza.
Por um tempo, a dupla ficou estudando o rosto um do outro enquanto sentiam o peso da escuridão.
— Estou brincando. — Lina riu de repente, como a rajada de vento que apaga uma vela. — Ah, é verdade que quero estudar sua história, contudo como uma candidata, tenho que me colocar na frente de um painel da Capital e declarar para registro exatamente em que pretendo me formar. Matemática, física, música, arte... Que diabos, posso até escolher ginástica e eles ficariam bem com isso. No entanto, se dissesse algo sobre a história da Nobreza...
Lina não precisava dizer que significaria o fim de suas esperanças para o futuro. A história havia sido escrita no sangue daqueles esmagados por um peso insuportável de medo, e os oprimidos nunca perdoariam isso.
— Bem... — D começou. — Ouvi dizer que as políticas na Capital estão mudando gradualmente. Parece que o diretor do Ministério da Educação é um homem com alguma apreciação pela herança da Nobreza.
— Nem pensar. — Lina deu uma risada maliciosa, voando atrás de D como uma borboleta. — Não vou perder minha única passagem para fora desta cidade. A decisão final depende dos sentimentos do painel, sabe. Vou dizer a eles ‘matemática’, e pronto.
D não disse nada em resposta, entretanto se virou para encarar uma pintura a vários metros de distância.
Era uma pintura sobre a qual a própria Lina sempre se perguntou. De todas as pinturas deixadas para trás, apenas essa teve toda a sua superfície de três metros de altura e dois metros e meio de largura pintada em preto-breu. Parecia irradiar a intenção mais sinistra.
— Me lembro de ter visto esse tipo de coisa algumas vezes em minhas viagens. De dezenas de milhares de pinturas, centenas de milhares de peças de arte, encontro uma estranheza como essa misturada de vez em quando. Algumas foram destruídas por completo, outras foram queimadas. De todas elas, apenas uma havia sido restaurada novamente.
Embora Lina não soubesse que ter esse jovem relatando suas experiências pessoais não era apenas incomparável, como beirava o milagroso, seus olhos brilharam mesmo assim.
— Não me deixe em suspense. De que é a pintura?
— Nobres saindo de seus caixões, suas mãos alcançando o sol.
O mais infrutífero dos sonhos.
Quem poderia tê-lo pintado, Lina se perguntou.
Quem pintou, quem estragou, quem restaurou? Poderia esta pintura aqui ser outra? A Nobreza realmente almejava ser como nós?
Não havia respostas.
Sem que ela soubesse, a bainha de sua saia começou a tremular. Havia uma brisa vindo de algum lugar.
— Por que me contou isso, D? — Lina perguntou em uma suave entonação. — Você diz que sou estranha, porém se for, acho que faz de você um louco. Não importa o que pergunte, sei que não vai me dar uma resposta, só que há uma coisa que gostaria de saber ainda assim. Quando te conheci, senhor grande e malvado Caçador de Vampiros, você estava aqui olhando as pinturas, não estava? Tem certeza de que odeia mesmo a Nobreza?
D olhou de volta para a escuridão.
— Perdi mais tempo do que pretendia. Hora de voltar ao trabalho, então espere lá fora.
— Não nessa vida. Não depois de chegar até aqui. Vou junto, é simples assim.
— Estará por conta própria se algo acontecer. Não vou te socorrer.
— Não, sei que vai salvar minha pele com certeza. Sou sua valiosa assistente, afinal.
— Ei, não se engane... — D retrucou com agitação. Lina era uma espécie de especialista em causar milagres.
— Por enquanto, por favor, diga-me o que o traz a essas ruínas, chefe. — disse ela com uma cara séria. D suspirou. Mais uma vez, parecia que uma mera garota o tinha justo onde queria.
— Para descobrir o que aconteceu aqui há dez anos.
— Sabia! — disse Lina com um aceno firme. — Não importa como olhe para essa situação, há algo estranho sobre nós. Não há como os Nobres andarem por aí em plena luz do dia. E então há a condição de Cuore.
Embora o garoto tivesse recuperado a consciência naquela manhã, sua força física estava esgotada a um grau fenomenal, e não respondia aos questionamentos do prefeito e do xerife.
Era extremamente difícil acreditar que apenas estivesse no lugar errado na hora errada durante aquele incidente na noite anterior. Mesmo que tivesse ouvido sobre o ataque à mulher, o que era improvável... Todos os envolvidos no caso foram instados a ficar em silêncio, ele ainda tinha sido alvo de uma caçada humana por toda a Brigada Jovem. Bem, nem é preciso dizer que tinham vasculhado minuciosamente a área ao redor da casa. E a criatura que, por falta de um nome melhor, poderia ser chamada de “espírito-fera”, tinha aparecido em outra ocasião quando Cuore também se fazia presente.
— Mesmo agora, todos ainda suspeitam de nós. É de conhecimento geral que eu e Cuore podemos subir a colina sem sermos afetados, e aposto que o Sr. Meyer também não teria problemas. E você sabe, nós três fomos atacados por capangas da Brigada Jovem local, só porque acham que podemos ser os Nobres que andam a luz do dia.
— Foi sorte que não tenha se machucado.
— Isso é por conta do prefeito. Ele é o cabeça desta cidade. Sempre bom em obter recursos da Capital e pensa muito em nos manter protegidos de monstros. Se não fosse por ele, a vila teria sido exterminada há muito, muito tempo... Embora penso que teria sido melhor.
Talvez percebendo a dureza de suas palavras, Lina baixou os olhos.
O prefeito era seu pai adotivo, afinal.
— Nem o prefeito conseguiu provar que não estamos conectados a esses ataques. Veja, não havia ninguém por perto durante os incidentes passados.
Esse fato, junto com a lista que o prefeito lhe entregou na noite anterior, foi devidamente guardado na memória de D.
O Sr. Meyer era solteiro e morava sozinho, Cuore, é claro, morava sozinho em uma casa deserta na cidade, e Lina tinha o hábito de se esconder em seu quarto logo após o pôr do sol.
Deixando de lado todas as táticas de imposição e autoridade do prefeito, a verdadeira razão pela qual o trio não foi ferido até agora foi que quase uma década havia se passado desde seu desaparecimento.
— Você já escalou a colina antes. Aconteceu mais alguma coisa fora do comum? — D perguntou enquanto mantinha a mão direita perto do rosto.
Enquanto se perguntava sobre esse gesto curioso, esse aparente teste da direção do vento, Lina balançou a cabeça. Foi uma resposta honesta.
D assentiu e murmurou.
— Aqui, eu diria.
Não estava claro se o aceno estava relacionado à resposta de Lina ou não.
Eles se moveram a passos largos pela escuridão. Uma elaborada porta esculpida surgiu diante do par pouco depois. Embora soubesse de sua existência, Lina nunca tinha ido além dela. Não estava na idade em que a curiosidade poderia superar seu medo.
Embora a garota estivesse preparada para ser mandada mais uma vez para casa, D prontamente abriu caminho pela porta e desapareceu em uma escuridão ainda maior. Seguindo-o sem hesitar, Lina ficou surpresa quando passou pela porta. Era uma placa de quatro polegadas de espessura de uma renomada liga de superaço. Talvez nem vinte homens fortes conseguissem movê-la sem dificuldade. Pela primeira vez, Lina sentiu que indivíduo estranho era o jovem que tinha adentrado a escuridão.
Ela deu um passo à frente, mesmo quando o terror de ser engolida pela escuridão de um mundo inimaginável lançou arrepios por sua nuca.
A floresta transbordava de vida. A luz subjugou a aura emitida pelas árvores sem folhas, espalhando-se dos pulmões de Bess Fern para todo o seu corpo e adicionando uma alegria aos seus passos.
Saindo da trilha, ela descobriu que o ar havia assumido de repente certa umidade. Embora ainda fosse inverno, esse canto da floresta estava estranhamente quente. Nos troncos das árvores havia musgos e fungos em todos os tons, de azul, verde e roxo até tons que eram nauseantes.
Bess entrou, tomando cuidado para não escorregar, e por fim se ajoelhou nas raízes de um tronco colossal.
A notícia do gabinete do xerife de que ninguém deveria andar sozinho pelos próximos dois dias só chegou à sua casa depois que havia saído.
Um sorriso se espalhou por seu rosto rechonchudo e juvenil.
Como esperado, o musgo comestível que supostamente tinha sido arrancado três dias antes preencheu o espaço entre as raízes serpenteantes. Ela não dormiu com medo de que alguém já o tivesse colhido, mas estava certa em vir verificar.
Nas vilas e aldeias da Fronteira, esse musgo era um valioso substituto alimentar, usado em quase qualquer tipo de culinária, de bifes a sopas e geleias. Quando seco ao sol, o musgo durava de seis meses a um ano. Além do mais, a essência do musgo podia ser extraída usando um separador centrífugo. Feridas emplastradas com essa pomada fechavam quase instantaneamente, e sua utilidade em neutralizar o veneno de homens-mariposa venenosos o tornava um item indispensável para viajantes e outros no campo.
Bess planejou trocar o musgo que havia colhido com o comerciante, que deveria chegar à vila no início da primavera, por algumas roupas da moda da Capital. Os olhos da adolescente flutuaram com imagens de si mesma em suas novas roupas elegantes.
Colocando uma pá com cuidado onde o musgo encontrava o solo, colocou os despojos verdes em sua cesta de forma a não esfarelar a superfície friável.
Depois de dez minutos, a cesta estava cheia até a borda.
Ainda havia um bom pedaço. E tinha certeza de que aquelas coisas que seu pai guardava também deviam ter uma queda por musgo.
Talvez pegasse só mais um pouquinho... Porém as mãos que estendeu com essa intenção pararam na metade do caminho para a marca. Uma nuvem havia se movido pelo sol. Não, não era nenhuma nuvem, a escuridão que cobria Bess delineava de forma clara a sombra de algo humanoide.
O grito que soltou foi seu último ato de desafio antes de perder seus dezessete anos.
Cyrus Fern reconheceu no mesmo instante o grito que ecoava nas copas das árvores como o de sua filha. Ao ouvir a transmissão do xerife e perceber que sua filha tinha saído sozinha, ele saiu à procura da garota com um forte pressentimento de que estaria na floresta coberta de musgo sobre a qual tanto falava. Seu corpo inteiro tremia de raiva e desespero.
Chamando o nome de sua filha enquanto corria para frente, colocou as mãos nas tampas das cestas de tamanho razoável que havia amarrado em cada quadril e as destrancou. As coisas dentro ficaram cada vez mais inquietas e, da abertura da cesta à direita, um rosnado baixo e brutal escapou.
De repente, faíscas violetas dispararam da boca da cesta à esquerda, e Fern não perdeu tempo em puxar sua mão. Você pensaria que ele estaria acostumado, contudo essas coisas sempre foram difíceis de manusear. As pontas dos dedos da luva não condutora que tinha na mão esquerda estavam queimadas, e uma fumaça azulada subia para o céu.
No instante em que correu para o lugar que procurava, os olhos de Fern se arregalaram de indignação.
Embalada nos braços de uma figura em um pano de cor cinza, Bess encarava insipidamente o céu, enquanto duas correntes de sangue vital corriam por sua garganta. Sua pele desbotou para parafina. O desespero se tornou uma torrente de raiva que inundou cada fibra do ser de Cyrus Fern. Abandonando qualquer chance de salvar sua filha, abriu as tampas da cesta.
A figura cinzenta se virou em sua direção.
Com o baque do corpo de Bess caindo no tapete musgoso, as coisas monstruosas nas cestas de Fern pousaram no chão.
Havia um par delas, e ainda assim dificilmente era um par combinado.
Reprimida pela raiva monumental de seu mestre, uma aranha titânica, cujo octeto de pernas plantadas tinha mais três metros de comprimento, e uma nuvem de roxo cintilante, ambos olharam furiosos para a figura cinzenta.
Qualquer um que conhecesse a linha de trabalho de Fern sabia que haveria um amargo arrependimento por tocar em sua filha. Aqueles que viajavam muito precisavam de algo para se defender contra bandidos implacáveis e demônios gerados pela Nobreza, e na maioria das vezes fazia sentido comprar uma criatura sobrenatural de poder semelhante... Uma besta de guarda. E aconteceu que Fern, o chefe do Comitê de Vigilância, treinava-as e vendia.
Embora as bestas de guarda descendessem dos demônios originais e monstruosidades mágicas propagadas pela Nobreza, com o passar das gerações, inúmeras mutações e novas espécies nasceram. Cerca de dois mil anos antes, algumas raridades extremas, capazes de serem domesticadas pelos humanos, surgiram. No que diz respeito ao treinamento das bestas, eram ensinadas desde o nascimento a serem estritamente inativas até que algum tipo de onda sônica ou fórmula mágica fosse usada para acioná-las, algo que ninguém mais entenderia.
E que monstros Fern tinha.
Se parecia incompreensível que o enorme aracnídeo tivesse sido trancado em uma cesta do tamanho de uma gaiola de pássaros, a nuvem roxa adjacente apresentava uma visão ainda mais estranha. A massa esfumaçada fervendo do coração da nuvem formava um perímetro de mais de 50cm de largura e, toda vez que uma luz de algum tipo pulsava na porção central, faíscas de tons violeta voavam de toda a nuvem.
Era uma das formas de vida mais bizarras da Terra, uma besta elétrica.
Fern soltou um grito arcano e indecifrável, um comando severo para atacar.
Com velocidade desmentindo seu tamanho, a aranha avançou. A nuvem cintilante se ergueu no ar.
A figura cinzenta se agachou um pouco.
Prata brilhou, e então faíscas violetas se espalharam como não-me-toques¹, misturando escuridão e luz em um canto da floresta.
Uma perna de aracnídeo, cortada na segunda articulação, voou pelo ar.
Enquanto a figura cortava a perna da aranha que se aproximava com um único floreio de sua espada longa, ele também havia defendido um ataque elétrico da nuvem com uma de suas mangas.
Espanto tomou conta do rosto sempre vigilante de Fern. As faíscas da nuvem carregavam mais de meio milhão de volts.
A espada longa girou, defendendo-se dos próximos dois ataques da besta elétrica e avançando em direção ao corpo da besta. A manga da figura estava em chamas.
A ponta da espada parou de repente.
Embora a figura sombria colocasse toda a sua força nela, a lâmina não tremeu nem um pouco, como se estivesse incrustada em pedra sólida.
Abandonando sua arma, a figura pulou do chão em um grande salto. Acima de sua cabeça, algo como fios brancos frágeis flutuaram para a terra, fixando a figura no ar.
Logo acima da cabeça esticada da figura estava à aranha supostamente presa a terra. Mas à luz de como o fio foi expelido entre as mandíbulas enormes em vez do abdômen, parecia provável que o monstro fosse na verdade um mutante que apenas se assemelhava a uma aranha. Por um único fio, mais fino do que o de uma aranha verdadeira e de um muco com grande poder adesivo, o pseudo-aracnídeo pendurou-se em um galho enorme em um tronco ciclópico. A força daquela linha sedosa era evidente; a aranha balançou a forma maciça da figura abaixo dela sem nenhum problema, puxando de forma firme sua presa em direção às suas assustadoras mandíbulas gigantes.
Talvez a figura sombria já tivesse desistido, pois seu corpo imóvel foi atingido por uma série de raios violetas e chamas. Fumaça preta subiu do contorno da forma.
— Tome isso, seu filho da puta esquisito. Pedaço de merda, sugador de sangue renascido. Essas explosões vão te queimar até virar carvão ou minha aranha vai te esmagar com suas grandes e velhas pinças. — uma risada cheia de ódio ecoou de Fern. — Contudo antes que façam isso, vou dar uma olhada no seu rosto, seu desgraçado. Quem diabos é você? Cuore? Lina? Aquele professor Meyer? Ou será...
Outro fio se prendeu à máscara que escondia as feições da figura sombria e habilmente a arrancou.
— Mas você é...
O que foi que fez seu grito de choque morrer pela metade? Seria a visão dos raios de luz vermelha ardente brilhando no meio daquele rosto nu? Talvez tenha sido causado pela suave imposição de mãos frias como gelo em ambos os ombros.
— Oh, papai...
As palavras cadenciadas de sua filha rastejaram pela nuca dele, bem à frente de suas presas.
Da cobertura de uma árvore titânica a uma curta distância, alguém viu o desfecho. Tendo saído da cama, Cuore ficou com seus olhos já sombrios brilhando em seu rosto esgotado e abatido, esforçando-se com todas as suas forças para suprimir um grito.
Quando sua visão se acostumou à escuridão, Lina descobriu que ela e D estavam descendo por uma passagem larga. As paredes e o teto eram de pedra, embora para sua estranheza o corredor estivesse desprovido da sensação usual de claustrofobia esmagadora sentida em túneis apertados. Ao contrário, Lina teve a sensação de que havia grandes e espaçosas câmaras logo além das paredes pelas quais passavam.
Em vários pontos das paredes e do teto, os brilhos do que pareciam ser sensores de intrusão e dispositivos contendo radiação podiam ser vistos.
— Sabe, é muito difícil acreditar que ainda existam câmaras subterrâneas tão grandes. Devemos estar, tipo, a uns cem metros abaixo da terra agora. — Lina disse com desgosto para D, que seguia alguns passos à frente. Ambos estavam andando por cerca de meia hora, e Lina não sentia mais nenhuma diversão com a aventura.
— Nós nem descemos dez.
— Só pode estar brincando!
— Você pode relaxar. Nós chegaremos ao fim da linha em um minuto.
Assim como disse, menos de sessenta segundos depois, a dupla chegou a uma veneziana feita do que parecia ser aço.
D apontou o pingente de seu peito para o dispositivo de identificação computadorizado.
A veneziana desapareceu no instante seguinte e a dupla entrou.
Silêncio como o abraço azul do crepúsculo os esperava.
O queixo de Lina caiu.
Parecia um enorme laboratório, no entanto nunca poderia haver outro lugar de pesquisa que se igualasse a este.
Como o corredor, as paredes eram de alvenaria, muralhas em forma de pedregulhos subindo a uma altura de nove metros. As mesas, dispostas em fileiras no chão, eram feitas de madeira resistente e adornadas com frascos, béqueres e frascos de líquidos coloridos inquietantes... Parecia o laboratório de um alquimista medieval. Aqui e ali, coisas medonhas apropriadas para tal lugar se projetavam, misturando-se à luz azulada para criar um clima que desafiava a descrição. Entretanto posicionado perfeitamente entre aquele aparato antiquado estava o que só poderia ser um cérebro de pósitrons, um eletro analisador, um conversor de matéria... A própria personificação da tecnologia super científica. Aqui jazia um exemplo perfeito da ambivalência que sintetizava o mundo da Nobreza.
— Não acredito que este lugar siga estando intacto. — disse Lina, examinando os arredores. — Parece que era algum tipo de centro de pesquisa, não é? Consegue dizer no que eles estavam trabalhando, D?
Sem receber resposta, ela olhou de volta para o jovem, que estava diante de um banco, examinando atentamente os frascos e globos bizarros que foram empilhados em cima. O Caçador se aproximou de um painel de controle próximo e suas mãos começaram a deslizar pelas inúmeras teclas.
— Não me diga que você também usa computadores...
Antes que Lina terminasse de dizer as palavras, o ar começou a zumbir, e todas as máquinas da sala começaram a ganhar vida.
Os designs mais estranhos imagináveis, símbolos ininteligíveis e expressões numéricas, nenhum destes familiares para Lina, dispararam em uma corrida desenfreada pela tela do computador. D olhou para a tela por não mais do que um ou dois segundos antes de desligar o interruptor e começar a atravessar a câmara espaçosa sem nem mesmo olhar para a garota.
— Ei, me espera. Está sendo um belo de um babaca. Não pode deixar sua assistente para trás, pode?
Todavia, quando estava prestes a segui-lo, seu pé escorregou e, gritando e segurando uma prateleira de copos meio cheios, caiu no chão com um barulho impressionante e uma quantidade considerável de objetos quebrando.
— Isso doeu...
Por sorte, não tinha batido a cabeça, porém, enquanto massageava sua bunda que latejava com a dor, olhou para o D que inevitavelmente retornava com o mais profundo ódio.
Seus olhos se estreitaram de repente.
Ali. Onde os respingos de líquido semelhantes a gavinhas se misturavam, não estava se formando uma parede de cor misteriosa? Não estava subindo do chão no que não era nem névoa nem fumaça? Sim, e parecia que algo estava se contorcendo dentro do vapor. Lutando. Como se estivesse amargo e xingando.
Quando algo redondo e gordo de repente saiu da fumaça e agarrou seu tornozelo, Lina gritou.
Cruzado com tendões e vasos sanguíneos vermelho-escuros, encharcado em algum lodo desconhecido, era o braço gigantesco de um bebê, contudo tinha apenas três dedos.
Lina se soltou com um abanar selvagem, e os dedos agarraram-se em vão ao ar antes de se enrolarem impotentes no chão.
Enquanto observava atordoada o braço se liquefazer em uma gosma, D a agarrou e a levantou sem esforço.
— É um homúnculo. — explicou. — Uma forma de vida artificial gerada por raios e éter congelado.
— Sim? Bem, o que um está fazendo aqui? Que diabos era esse lugar?
— É melhor vir comigo. Se aquilo é tudo o que é preciso para assustá-la, você realmente deveria ir para casa, no entanto acho que é tarde demais para dar meia volta.
— Acha mesmo que há alguma chance de me fazer ir para casa?
Imperturbável, D examinou o laboratório. Sem aviso, disse.
— Ouvi dizer que havia outra criança perdida com vocês que não retornou. Consegue se lembra se algo aconteceu com você aqui?
— Não. E tentei me lembrar centenas de vezes antes. Eu tentei, o Sr. Meyer tentou, até Cuore tentou.
— Até Cuore?
Lina olhou para D. Ele era uma cabeça mais alto do que ela. Sua expressão era tão perturbada que fazia alguém se perguntar onde poderia ter se escondido por tanto tempo nesse jovem.
— Logo depois que voltamos, eles nos tiraram de nossos pais e nos colocaram em um asilo. Por uma semana inteira, o xerife e o Comitê de Vigilância nos examinaram. Quando perceberam que as drogas e o hipnotismo não estavam funcionando, nos despiram e nos espetaram com agulhas. Veja, esse é um método de encontrar Nobres exclusivo da nossa própria vila. Colocam agulhas de prata em seus mamilos e traseiros e, dependendo de como o sangue sai, adivinham se você é da Nobreza ou não.
D não disse nada.
— No caso de uma garota, o normal é que a esposa de alguém do comitê de vigilância o faça, mas ninguém além de homens me examinou. Eles estavam se revezando, negociando... Quando me espetavam, trocavam de pessoas. O velho Gaston do moinho estava lá, e os meninos do matadouro, e o prefeito. Suponho que deve ter me adotado como uma forma de compensação.
De repente, Lina deu um sorriso brilhante e mirou no rosto de D com o dedo indicador.
— Meu Deus, não faça essa cara de bravo. Sou do tipo que perdoa e esquece, afinal. Quando olho para seu rosto, não penso em velhos rancores. Então por que não tenta sorrir para variar?
— Eu nasci assim.
— Wow! Essa é a primeira vez que diz algo sobre si mesmo. — riu Lina com a cena. — Sente simpatia por mim? Não é nada do seu feitio.
— Não se incomode com isso.
Quando D a respondeu, a luz azulada que enchia a sala foi extinta abruptamente.
Sem nem mesmo tempo para pensar que alguém o tivesse feito de propósito, Lina foi agarrada por trás com grande força e arrastada em direção à parede.
— D!
Algo como uma palma estranhamente pegajosa e fria parou sua boca alargada pelo grito, entretanto no instante em que viu um clarão prateado correr por seu campo de visão, um baque como o som de um osso sendo cortado ressoou e a garota foi libertada.
Um lamento surgiu que a fez querer tapar os ouvidos com as mãos, e toda vez que a espada longa de D cortava o ar, havia o som de algo sendo cortado e caindo no chão... Um som que seria ouvido várias vezes.
Por fim, Lina percebeu que estava cercada por criaturas desconhecidas.
Uma conjectura obscura sufocou seu coração. O que acabara de sentir tocando-a era, sem dúvida, uma mão humana. E significaria, tinha que ser... Tajeel. Mas certamente havia mais de um deles ali no escuro.
Sonhando acordada, Lina vasculhou sua memória em busca de alguma lembrança de Tajeel como tinha sido em sua infância. Lembrou-se do olhar de seu rosto moreno tentando parecer mal-humorado, enquanto lhe entregava colares de flores que fazia com mais habilidade do que ela, embora ainda reclamasse sobre o quão chato era colher flores. E foi Tajeel quem veio correndo com pregos em uma mão e um soldador de arco na outra quando o telhado de sua casa foi arrancado em uma ventania, então trabalhou metade do dia para consertá-lo. Era natural que o pensamento dele fazendo essas coisas por amor a ela a fizesse guardar orgulho e presunção em seu pequeno coração de sete anos. Mais do que seus próprios pais, foi Lina quem sofreu com a perda do garoto.
— Pare com isso, D! Pare!
Como se esperasse por aquele grito, uma luz azul projetou a sombra de Lina no chão de pedra.
Alguns passos à frente, D embainhava sua espada longa. No lugar das figuras grotescas que esperava ver, havia uma profusão de fluido vermelho escuro espalhado pelas pedras do chão. Sangue. Quando forçou os olhos, vários dos finos fluxos vermelhos correram para uma parede de pedra em um lado da câmara. Instintivamente correndo para mais perto, Lina perguntou.
— O que é, D? Você deve ter dado uma boa olhada.
D não respondeu, mas enquanto fixava seu olhar na parede de pedra em questão, murmurou.
— Estranho, não estava sozinho.
— O que quer dizer?
— As respostas estão atrás das pedras daquela parede. Poderíamos seguir em frente, porém agora que sabemos que há algo aqui embaixo, eu diria que por hoje nossa melhor aposta é ir para casa. Quando essas coisas têm uma mão decepada, elas vão embora, carregando tudo, menos o sangue.
— Que diabos, não poderia ser Tajeel...
Lina não recebeu resposta, contudo, olhando de soslaio para D enquanto este virava sua forma sempre gelada em direção à veneziana, Lina foi atingida por uma emoção profunda mais intrigante do que pavor. Seu olhar continuou a se fixar na parede de pedra.
Sem nem mesmo trocar uma palavra, a dupla voltou para a base da colina.
O belo perfil do Caçador não traiu nem um indício de tremor pelas monstruosidades assustadoras que encontraram antes. Lina vislumbrou o rosto de D, aterrorizada por seu silêncio implacável.
Havia um milhão de coisas que desejava perguntá-lo: o motivo pelo qual foi tão fácil encontrar o laboratório subterrâneo; o que notou lá; o que aqueles monstros eram; onde Tajeel estava; e, mais do que tudo, o que foi feito com ela e os outros lá embaixo uma década atrás.
Enquanto observava o perfil do jovem Caçador de Vampiros, um que alguns poderiam chamar de melancólico, sua curiosidade sobre todas essas coisas diminuiu e algo caloroso cobriu seu coração.
Estava mesmo acompanhando D em uma tentativa de lançar alguma luz sobre as sombras de uma década antes? Ela tinha suas dúvidas.
— Vou dar uma volta pela vila. — disse D de repente. Lina percebeu que já estavam parados próximos de sua carroça. Não muito longe, o cavalo de D estava mordiscando a grama, sem prestar atenção na dupla.
— Bem, então irei junto... — Lina disse reflexivamente, no entanto a decepção bateu em seu coração.
— Nós nos separamos aqui. E no futuro, agradecerei se não interferir no meu trabalho.
Nem sua expressão nem seu tom diferiam em nada do habitual, entretanto Lina sentiu o frio cortante como uma geada repentina. Por hábito, começou a refutá-lo, apenas para ter sua voz presa em sua garganta.
— Vá para a escola ou vá para casa, só não faça nenhuma parada ao longo do caminho. E não seja descuidada, mesmo com aqueles que conhece. — D disse de cima de sua montaria.
Sim, certo. Malvado. Não se importa com o que os outros sentem?
De repente, tentando parecer mal-humorada, suas bochechas incharam. Tentou dizer algo de volta, mas nenhuma palavra saiu. Para piorar as coisas, os cantos de seus olhos ficaram úmidos. Não, não podia começar a chorar tão cedo no dia.
Neste ponto, o ar ficou tenso abruptamente. Era devido à aura lúgubre que D emanava. Podia sentir cada centímetro de sua pele se arrepiando.
A sensação era tão assustadora que Lina não conseguia nem perguntar o que aconteceu, porém só conseguia virar o rosto na direção que D olhava agora.
Um cavalo ciborgue solitário descia a trilha da cidade. Com seu tom castanho familiar e tanque de energia tipo dez pendurado no abdômen, Lina viu que era a montaria do xerife. Vindo a galope, cavalo e cavaleiro pararam com uma pequena chuva de torrões de terra.
— Pensei em encontrá-lo aqui. É melhor vir comigo. — o rosto e a voz do xerife tingiam-se de impaciência.
— Como sabia onde estávamos? — D perguntou com uma suave voz.
— Um fazendeiro viu a carroça de Lina indo para a colina. Cuore fugiu.
— Achei que alguém tinha sido encarregado de vigiá-lo.
— Um dos caras do Comitê de Vigilância cochilou enquanto o garoto dormia. Não posso evitar. Somos apenas carne e osso.
— Talvez se disser isso ao próximo Nobre que te atacar, eles apenas se desculpem e sigam seu caminho alegremente.
O xerife não respondeu ao sarcasmo amargo do Caçador.
— Para onde ele foi? — D perguntou.
— Não sei. Contudo temo que se não o encontrarmos rápido, teremos um linchamento em mãos. Veja, já que Cuore esteve na cena ontem à noite, todo o Comitê de Vigilância tem a ideia de que não é o culpado, mas que ainda estaria de conluio com o responsável. Estamos de olho em onde Cuore mora, no entanto parece que ele não voltou para lá. O que deixaria as florestas. Vou verificar nas florestas do norte. Quero que vá para o sul.
Sem dar uma resposta, D girou sua montaria. Tudo o que sabia sobre a geografia local havia aprendido em uma única olhada em um mapa que o prefeito lhe dera um dia antes.
— Depressa, vá para casa. — ordenou para a imóvel Lina, quando estava prestes a galopar para longe. — Você tem um encontro com a Capital.
Quando a garota levantou o rosto em consternação, D estava correndo como uma foice pelo vento.
O xerife correu atrás.
Enquanto o perseguia, o xerife observava com olhos incrédulos. Apesar de sua própria velocidade, a distância entre os dois aumentou em pouco tempo. Não foi por causa do cavalo de D. Devido à sua linha de trabalho, uma das primeiras coisas que o xerife notou sobre qualquer forasteiro era sua montaria. Descobriu que se tivesse alguma ideia de que tipo de animal todos estavam montando, seria muito mais fácil criar alguma estratégia no caso de ter que persegui-los. O cavalo de D era apenas o tipo padrão e comum que poderia ser encontrado em qualquer vila. Mesmo ajustado, não deveria ser capaz de se igualar ao corcel personalizado do xerife, duas milhas por hora mais rápido e vinte por cento mais durável do que a média. Não deveria, e ainda assim foi.
Que diabos... Esse cara usa magia ou algo do tipo? Acho que ouvi algo sobre ser um dampiro...
Por fim, alguma ideia do poder sobrenatural do Caçador de Vampiros... Habilidades das quais só ouvira rumores começou a penetrar no entendimento do homem da lei.
Seguindo bem à frente do xerife, D entrou na floresta ao sul. Parando seu cavalo, fechou os olhos. Um momento depois, apontou sua montaria para um bosque de árvores à sua direita. Tinha ouvido as palavras do vento ou percebido alguma presença tingindo o ar?
Antes que outro minuto se passasse, encontrou alguns vigilantes com expressões estranhas correndo mais para o fundo da floresta.
— Cuidado! — avisou um.
— Whoa! — gritou outro.
Os homens vacilantes e dispersos observaram o manejo das rédeas de D enquanto parava de repente seu corcel até então galopante.
— Onde está Cuore?
Ao som da voz do Caçador, que poderia ser corretamente chamada de suave, quase uma dúzia de brutamontes congelou como se costurados no lugar. D fixou seu olhar no homem que liderava o bando, seu aparente líder... Aquele que estivera no local da perturbação na noite anterior.
— Ele... Uh, está bem. Não fizemos nada. Sim, íamos dar umas pancadas no maldito, eu acho, porém quando o encontramos, o Sr. Fern apareceu.
— Fern? Ele também estava procurando por Cuore?
O homem balançou a cabeça com uma ansiedade desconfortável.
Eles partiram em uma busca por Cuore da qual Fern não participou, e encontraram o garoto parado estupefato no meio da floresta. Determinados a fazê-lo desabafar, o cercaram e estavam apenas começando suas ameaças quando Fern apareceu. Um homem bruto que costumava ser o primeiro da fila a atacar Cuore com um chicote, Fern estava como um homem mudado, defendendo Cuore e o levando para ficar em sua própria casa. Ou assim afirmou esse homem. Isso certamente ajudou a explicar a perplexidade estampada nos rostos dos homens.
— Fern tinha mais alguém o acompanhando?
— Não.
— Há quanto tempo partiram? E onde encontrou Cuore?
O homem apontou para trás deles.
— Siga em frente e saberá quando chegar lá. O local tem musgo por todo o lugar e deve haver muitas pegadas. Não faze nem dez minutos.
O anel de ferraduras de ferro se misturou às palavras do homem.
D primeiro foi na direção da casa de Fern. Em menos de cinco minutos, seus olhos pousaram em uma estrutura que parecia troncos rachados colocados no chão, o canil dos animais de guarda. Uma paliçada de madeira contornava o perímetro, e duas pessoas... Cuore e Fern, estavam diante do portão de formato estranho.
— Qual é o seu negócio? — Fern perguntou, mesmo com sua expressão registrando surpresa com a parada repentina de D.
— Por que você foi para a floresta? — perguntou D do dorso de seu cavalo.
Fern lhe devolveu um sorriso diabólico e colocou as mãos nas cestas em cada quadril.
— Imagino que não saiba em que linha estou. O fato é que saí para pegar um pouco do musgo e insetos que alimento minhas bestas de guarda. Não sei o que está tentando fazer com uma pergunta dessas, entretanto tenho dois deles aqui. Quer ver se estou falando a verdade?
Nesse momento, Fern teve a impressão de que uma luz branca instantânea brilhou entre ele e D. Fern piscou os olhos.
D ignorou a provocação.
— Quero o garoto de volta.
— Oh, realmente tem um jeito engraçado de colocar as coisas. Aqui está você, falando comigo como se fosse algum tipo de ladrão furtivo. Bem, o garoto estará muito melhor aqui na minha casa do que com uma tentativa meia-boca de Caçador de quem-diabos-sabe-onde. Há um toque feminino aqui, e não acho que lhe faria mal algum aprender como vivem as pessoas civilizadas.
— De repente dominado pelo amor pelo seu semelhante? — D questionou, uma aura sobrenatural condensando-se ao seu redor. Em um tom baixo e cortante como a melhor lâmina, perguntou. — O que aconteceu na floresta?
Fern ficou em silêncio. Seu rosto estava solene, transbordando de intenção assassina, e seus dedos ossudos rastejaram até as tampas das cestas. D não se moveu. Todavia era preciso imaginar como esperava afastar um par de feras de cima de sua montaria, restritos como seus movimentos seriam.
Uma grande figura interrompeu de repente o fluxo medonho de sede de sangue entre os homens.
Cuore parou diante de D, bloqueando seu caminho. Com os olhos implorantes, balançou a cabeça e apontou para o portão. Estava tentando dizer que queria que ele fosse embora?
Pouco depois, D girou seu cavalo.
— Já está indo para casa? Da próxima vez que aparecer aqui, é melhor ter essa coisinha nas suas costas em mãos. Veja, tenho todos os tipos de ‘bens’ aqui do tipo assustadoramente ruim. Como estes!
A voz confiante de Fern vacilou. As tampas não tinham saído de suas cestas.
O rosto que ergueu, agora pálido pelo conhecimento de que agulhas cônicas de madeira inacabada espetavam as tampas e cestas, foi golpeado pela risada calorosa de cascos.
Correndo todo o caminho de volta para a floresta, D desmontou no pântano envolto em malícia. Assim como o homem do Comitê de Vigilância disse, havia uma confusão de rastros. Foi aqui que encontraram Cuore, sim, e o lugar onde, pouco antes disso, Fern e sua filha encontraram as presas malignas do vampiro.
É discutível se esse jovem também estava apreensivo com o calor desagradável, mas D pôs os pés no mundo caleidoscópico sem nem mesmo franzir a testa.
Da mão esquerda levemente apertada de D, uma voz maliciosa e distante sugeriu.
— As coisas estão começando a ficar interessantes.
— Como assim?
— Aquele tal de Fern, há algo engraçado na maneira como está agindo. E tem o garoto, que é bem inexperiente. Por que diabos iria querer ir com aquele cara? O velhote dos cestos está no comando dos caras que o espancaram, não é verdade? Então, qual é a história? Parece que você já está no caminho certo.
— Aquele garoto queria ir com ele mais do que qualquer coisa. — um raro tom de provocação entrou na voz de D. — Tente ler minha mente sobre o resto. O que me lembra, se já recuperou suas forças, preciso da sua ajuda com uma coisa.
— Ainda estou longe de me recuperar. Não pode me dar mais dois ou três dias para me recuperar no meu próprio ritmo? Quando chegar a hora, terei uma história muito interessante para vocês ouvirem.
— Mal posso esperar.
Parando o passo, D encerrou a conversa. Estranhamente, foi bem no local onde a figura cinzenta atacou a filha de Fern.
D olhou para o chão diante de seus pés.
Um tapete multicolorido já escondia todos os sinais da luta. A taxa de crescimento desses fungos era absurda de rápida.
Seus olhos atentos e escaneadores aos poucos emitiam um brilho vermelho. O miasma a sua volta turbilhonou suspeitosamente, e seu rosto lindo se tornou o de um vampiro.
Seu olhar vermelho parou em certo pedaço de chão. Tirando um cilindro translúcido do tamanho de seu dedo mindinho de uma bolsa em seu cinto, D se ajoelhou no chão.
O que poderia estar procurando que exigiria se tornar um vampiro? Colocando o que parecia ser um pedaço do chão no tubo, D examinou devagar os arredores. Como se atraída por aquele olhar ameaçador, uma nuvem negra surgiu do céu distante.
Notas:
1. Mimosa pudica, também conhecida como dormideira, maria-fecha-a-porta ou não-me-toques é um pequeno arbusto perene da América tropical. Este nome é devido à forma como os folíolos das folhas se juntam quando é tocada ou exposta ao calor.
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