terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Vampire Hunter D — Volume 02: Raiser of Gales — Capítulo 14

Volume 02: Raiser of Gales — Capítulo 14: Povo do Crepúsculo

Seus arredores estavam tingidos de carmesim.

O que os manchava era uma mistura de fome e sede. Fazia barulhos e acenava para sua vontade.

Sua vontade tentou resistir. Ela havia acumulado muito até então... Amor, esperança, gentileza, sonhos, tristeza e, por fim, raiva. Essa vontade se desenvolveu conforme vivia sua vida, e alguns a chamavam de sua ‘personalidade’. A resposta que sempre dava ao convite era não.

Todavia a hora estava se aproximando.

Os arredores carmesins sitiavam ativamente sua vontade, tentando diligentemente pacificar as duras paredes da razão com a carícia do instinto.

Aos poucos, as paredes estavam desmoronando.

Os fragmentos que caíam eram instantaneamente assimilados pela fome e sede. Sua vontade sentia algo doce, à medida em que seus sentidos eram arrancados. O sentimento era semelhante à alegria de descobrir o mundo ao qual ela de fato pertencia.

E, ainda assim, o cerne de sua vontade resistia.

Inchado de rancor, o carmesim avançou, pronto para engolir a vontade inteira.

A batalha horrível continuou.

Estou derretendo. Sendo absorvida. Mudando. Tornando-me uma...



Quando Lina abriu os olhos, D se preparava para sair do barraco. A luz que entrava pela janela e as rachaduras nas paredes eram de um azul nebuloso. Estava quase amanhecendo.

— Já está indo embora? — perguntou, esfregando os olhos. D parou no meio da tarefa e se virou.

— Ainda é cedo. Volte a dormir. E quando acordar de novo, vá para casa.

— De jeito nenhum! Eu queria que colocasse isso na sua cabeça. — enquanto conversavam, Lina saiu do saco de dormir.

— Você não está com frio?

Com essa observação de D, Lina percebeu que não estava vestindo nada além de uma blusa.

Agora que ele mencionou, embora o vento estivesse gelado, ela não sentiu o frio.

— Está meio agradável hoje, não é? Sempre fui de sangue quente.

Quer sua resposta o satisfizesse ou não, D saiu sem parecer dar muita importância. Se espreguiçando, Lina o seguiu.

— As ruínas de novo? Tenho certeza de que não tem nada lá.

D não disse nada enquanto colocava a sela.

— Espere, vou ir também.

— Você não pode. Vá para casa. E depois vá para a escola. O conselho de exames não deveria estar aqui agora?

Fazendo algumas contas rápidas, Lina estendeu dois dedos e acenou de volta.

— Ainda não. Tenho mais dois dias. — ela se lembrou de que logo um grande fardo sairia de seu peito. Em dois curtos dias poderia se despedir desta vila.

Mas, Lina pensou, todos os meus amanhãs estarão aqui em dois dias. Eu me pergunto se o amanhã chegando é uma coisa boa ou não?

— Por favor, D. — clamou Lina. — Não vou te atrapalhar. Se atrapalhar, pode me mandar para casa. Me deixa ir junto. Tenho medo de ficar sozinha.

— Faça o que quiser. — D disse com um aceno de cabeça, embora a garota tivesse certeza de que seria recusada. — Porém se vier, é porque quer. Não vou lhe dar qualquer atenção.

— Por mim, tudo bem. Deixe-me para trás quando quiser.

Lina caminhou alegremente em direção à carroça.

— Está se esquecendo de algo. — D fez um movimento de queixo em direção à entrada do barraco.

— Hã?

— Parece que alguém veio e deixou isso enquanto eu dormia. Não é para mim. Deve ser um cara sofisticado.

O rosto duvidoso da garota brilhou como o sol da manhã quando avistou uma coisa, uma pequena forma branca, deixada na entrada.

Uma única flor.

Pegando-a gentilmente, colocou-a no bolso do peito de sua blusa. Parecia que o misterioso entregador estava sempre cuidando de Lina.

— Parece que não está sozinha, afinal. — até a voz de D, tão sem emoção como sempre, soou como se estivesse a cobrindo de bênçãos. — Se alguma coisa lhe acontecesse, alguém ficaria de luto por você.

Talvez D já soubesse de algo.

Os pensamentos de Lina mergulharam num turbilhão de confusão.

— Quando a escola acabar, tudo bem se eu voltar para cá? — ela perguntou.

— Faça como quiser. Claro, não há garantia de que voltarei inteiro.

Lina ficou em silêncio. Por trás de suas simples palavras, havia um mundo de carnificina que uma jovem não poderia sequer começar a imaginar.

Lina balançou a cabeça. Balançou a cabeça várias vezes, desesperadamente.

— Não se preocupe. Tenho certeza de que voltará. — afirmou, tentando se convencer. — Vou esperar o tempo que for preciso.

D fez seu cavalo dar meia-volta sem fazer qualquer som e bateu os saltos de suas botas em seus flancos, levando sua montaria galopar para longe sem um momento de hesitação.

Depois que o trovão dos cascos desapareceu nas profundezas da floresta, Lina subiu em sua carroça e deu uma olhada no relógio solar no compartimento de armazenamento.

Era muito cedo para ir para a escola, contudo não achava que conseguiria lidar com sua ansiedade se ficasse sozinha por muito tempo.

Por que não contei a D sobre o que aconteceu ontem?, pensou. Sobre aquele buraco misterioso, a figura sombria e as criaturas bizarras que encontrei lá embaixo? Ou sobre aquelas palavras?

A sombra dos eventos abomináveis ​​de uma década atrás ficou ainda mais pesada no silêncio, e agora estava pronta para subir em seus ombros a qualquer oportunidade.

Lina de repente se lembrou de Cuore. Talvez as sombras do passado estivessem dando instruções a ele também.

Acho que vou vê-lo, pensou. Ela tinha ouvido onde o garoto estava pelo prefeito.

Lina deu uma chicotada nos cavalos.



Em uma estrada estreita, D parou seu cavalo de repente e examinou os arredores.

Era uma trilha perfeitamente normal pela floresta. Aqui e ali, os últimos traços brancos de neve pontuavam o que restava de grama, e a faixa marrom da estrada continuava sem fim. Nem havia nada fora do comum na brisa matinal soprando contra seu corpo. No entanto os sentidos de D, a percepção sobrenatural possuída apenas por dampiros, lhe dizia que não estava indo para onde queria ir.

Como isso era diferente da estrada que havia tomado no dia anterior?

Parando um pouco, desceu mais uma vez a estrada. Depois de cavalgar por um minuto ou mais, parou de novo. A cena que saudou seus olhos não diferia nem um pouco da última. A faixa marrom, a grama, as árvores.

— Pare de correr em círculos. — sugeriu sua mão esquerda.

— Então fomos selados em outra dimensão, como imaginei. — murmurou D. — Poderíamos continuar descendo a estrada assim até o fim dos tempos e não chegar a lugar nenhum.

Pegue dois pontos no espaço e funda-os em ambas as extremidades, e o que estiver entre os dois ficará preso para sempre, só podendo continuar se movendo dentro dos limites da dimensão fechada. A verdadeira questão era: quando seu inimigo aprendeu esse pequeno truque?

— Então, o que fazemos agora? — a voz perguntou com deleite.

— Não temos escolha a não ser sair.

— Ah. E como o faremos? Se estivéssemos do lado de fora seria uma história diferente, mas em toda a história da Nobreza nunca houve um caso de alguém rompendo uma dimensão de contenção por dentro.

— Havia um campo de contenção magnético no laboratório nas ruínas. — disse D, descendo do cavalo. — Como pode perceber observando como a colina funciona, ela foi feita para lidar com seres humanos normais. Não é nem metade do necessário para me conter.

A voz silenciou-se, porém era um silêncio preenchido de agitação e medo.

— Você é quem manda. — enfim respondeu. — Entretanto não sei de onde diabos tira essas ideias malucas. Não quero estar perto quando você passar.

— Como quiser. Contudo até lá, preciso que faça seu trabalho.

Amarrando seu cavalo a uma árvore próxima, D entrou na floresta. Reunindo galhos mortos enquanto caminhava, quebrou os gravetos antes de empilhá-los em seu ombro. Quando retornou à estrada cerca de dez minutos depois, ambos os ombros estavam carregados com o máximo que cabia.

Empilhando a pilha de madeira no chão como gravetos para uma fogueira, D começou a cavar o solo. Não usara sua espada, uma estaca ou qualquer outra coisa. Com todos os cinco dedos estendidos, enfiou sua mão esquerda no chão sem fazer cena, retirando torrões de terra como se sua mão fosse uma pá e empilhando-a em um monte ao lado dos gravetos.

Todavia este não era um solo plano. A terra era preta e dura, compactada por inúmeras cargas que passavam. Que força indescritível aquela mão possuía, para deslizar até o pulso na terra com tão consumada facilidade. Em pouco tempo, cavou um buraco grande o suficiente para uma pessoa se deitar confortavelmente e acumulou um volume correspondente de terra.

— Estamos prontos. — ele disse, batendo as mãos para limpá-las da sujeira.

— Ainda não. — protestou a mão esquerda. — Terra, água, fogo, vento... Estamos com falta de água. Trazê-lo de volta à vida é uma coisa, no entanto não podemos esperar ter sucesso em escapar de uma dimensão selada se estivermos com falta de pelo menos um destes.

— Não há motivo para alarde.

De pé diante do monte de terra, D enrolou o casaco e as mangas da camisa, expondo seu antebraço esquerdo ao vento. Seu dedo indicador direito foi colocado logo acima do pulso, em um ponto onde estava a artéria. Tanto o dedo quanto a unha estavam graciosamente de acordo com seu dono. Que tipo de truque havia empregado não estava claro, mas apenas passar o dedo pela carne branca deixou uma linha vermelha espessa, e sangue brilhante jorrou da ferida, caindo na terra preta e irregular como uma cachoeira quente.

Com a noite tão distante, esse era uma atividade estranha de se ver em uma pequena trilha ensolarada pela floresta.

Depois de se certificar de que seu sangue vital havia encharcado o bastante os torrões de terra, D limpou o mesmo dedo no corte. O sangramento parou, e não havia nem um traço do ferimento.

Não foi nenhuma surpresa ver que sua pele empalideceu um pouco, porém era perturbador ver quão habilmente colocou a ponta do dedo pingando com seu próprio sangue na boca, pegando aquele pouco de sustento.

Seria sua intenção usar esses materiais arcanos contra um fenômeno baseado na física como esta dimensão selada?

— Tirando da vida para dar vida, hein? — a mão esquerda gemeu. — Um negócio miserável, com certeza. Porém, sério, é assustador o quão indiferente consegue ser ao fazê-lo. Acho que não deveria ser nenhuma surpresa, já que você é...

— Chega.

Com aquela única palavra... Seu olhar pálido, frio e sobrenatural, alterado pela única gota de sangue que provou, a voz foi silenciada.

Pegando dois galhos da pilha de gravetos e segurando um em cada mão, D colocou a ponta de um contra o outro e esfregou-os. Não pareceu colocar muita força nisso, contudo ambos os galhos explodiram em chamas e, quando foram jogados de volta no monte de madeira morta, uma pesada fumaça preta e chamas ferozes instantaneamente saltaram para o céu.

Terra, água, fogo, vento... Todos os quatro elementos foram reunidos.

— Agora é sua vez. — ele disse.

Sua mão esquerda alcançou as chamas. Então adentrou as labaredas.

O vento uivava e, talvez adivinhando algo, até o cavalo relinchou.

Ali. O pilar de chamas flamejantes se tornou uma linha fina que foi sugada, como fumaça, para a palma de D!

— Isso faz fogo e vento, certo? Terra e água são os próximos. — murmurou em uma linda voz, enquanto sua pele pálida recuperava um brilho que poderia ser chamado de encantador.



Lina parou a carroça a uma curta distância da casa de Fern.

Não achava que confiar na cortesia comum a faria passar por essa visita com segurança. Talvez até fosse mandada de volta ao prefeito antes mesmo de ter a chance de ver Cuore.

Então decidiu fazê-lo por meios menos legítimos.

Caminhando até conseguir ver os muros do complexo de Fern, ela se abaixou na floresta. Seguindo o muro, nove metros abaixo, encontrou o que queria. Havia uma abertura na parte inferior do muro, grande o suficiente para Lina passar. Era um buraco de parafuso pouco usado que se lembrava de ouvir a filha de Fern mencionar. A precoce Bess tinha o usado para escapar do olhar atento de seu pai irritante e se encontrar com garotos.

Um pouco mais, só um pouco mais agora, Lina cantarolou mentalmente enquanto se espremia, saindo atrás de uma estrutura de plástico que parecia ser algum tipo de galinheiro de criação. Não muito à frente, podia ver a casa principal e, atrás dela, o telhado do celeiro. A propriedade estava envolvida em um tenebroso silêncio, talvez porque ainda fosse de manhã cedo, entretanto Lina sabia pelos rosnados e uivos que saíam de várias pequenas estruturas espalhadas pelo lugar que as bestas de guarda já estavam acordadas.

Estarei encrencada se alguma dessas criaturas tiver um nariz afiado e um latido alto, pensou Lina. Contudo acho que ficarei bem, desde que nenhuma delas crave os dentes em mim. Verificando se não havia ninguém por perto, Lina se apressou para o celeiro.

Por mais enlouquecedor que fosse, havia verdade no que o prefeito havia dito, não havia como um homem como Fern dar a Cuore um quarto na casa principal.

O celeiro era bem maior do que o da residência do prefeito. A porta não fora trancada. Isso era prova de que tinha alguém lá dentro. Quando abriu a porta, o motivo ficou óbvio.

O forte fedor das feras invadiu suas narinas.

O celeiro também servia como um local de reprodução para as bestas de guarda. Considerando que Fern havia perdido sua esposa cedo, e que só tinha Bess para ajudá-lo a cuidar das criaturas, havia um número extraordinário delas. Lina inclinou a cabeça.

O barraco era seccionado por painéis, divisórias feitas de ligas metálicas, vidro, plástico e vários outros materiais que tinham que suportar o ácido, as chamas e qualquer outra coisa que as bestas de guarda pudessem cuspir. A visão de uma aranha gigante como a que tinha visto um dia antes, uma criatura monstruosa parecida com um caracol com cerca de dois metros de comprimento, um quadrúpede mamute enlouquecendo atrás de uma barreira semitranslúcida e inúmeras outras criaturas estranhas deixou Lina enjoada. Com um súbito zumbido, uma explosão de chamas disparou no ar na extremidade do celeiro.

— Já estou farta disso. Que tipo de doente manteria essas coisas assustadoras? — Lina xingou em voz baixa, embora continuasse corajosamente em frente. Depois de passar pelos cercados dos monstros, entrou em uma área cercada por implementos agrícolas e pilhas de recipientes de ração. O fedor dos animais selvagens era mais rarefeito, no entanto o ar estava estranhamente frio.

— Cuore? — chamou em voz baixa. — Cuore, sou eu, Lina. Você está aqui?

— Que pena.

Por que aquela voz alegre a fez se virar e gritar?

— Bess! Pelo amor de Deus, não me assuste assim!

Enquanto Lina respirava aliviada, sua colega de classe se aproximou em um manto branco puro com a gola levantada.

— Se está procurando pelo Cuore, ele não está aqui. Está hospedado em outro lugar.

— Em outro lugar? Mas seu pai o acolheu.

Bess riu e se aproximou. Sem nenhuma razão específica, Lina recuou. Antes que percebesse, foi encurralada no canto da sala, sentindo-se acuada. Seu pé roçou em algo duro.

Ao se virar para olhar, o rosto de Lina ficou rígido. Era um caixão. Aparentemente, havia sido exumado de um cemitério, pois lama seca seguia grudada a sua volta. Tendo estado escondido ali atrás dos fardos de feno, não o vira antes.

— Bess, por que isso está aqui? Alguém morreu? — enquanto falava, Lina meio que se deu conta da verdade. — Aaaaaah!

Algo frio agarrou seu tornozelo quando começava a se afastar. Ela gritou, e a tampa do caixão escorregou de leve, revelando uma pálida mão.

Desesperada, forçou a perna e se libertou, todavia Bess bloqueou sua fuga.

— Relaxe e fique um pouco, Lina. — falou a garota. Os olhos injetados de sangue olhando fixamente para Lina a pregaram no local.

De suas costas, veio o som de algum objeto batendo no chão. Ela se virou.

Fern estava parado na frente do caixão. Seu colete isolante e calças um tanto imundas, roupas que já tinha visto tantas vezes antes, serviram para alimentar o medo que se abateu sobre a sua razão.

— É um lugar horrível para tirar uma soneca. — sua voz tremeu de maneira lamentável quando ela falou meio de brincadeira, e a boca de Fern se torceu em um sorriso.

— Eu ia sair para te pegar, mas fico feliz que tenha vindo até nós. Tenho certeza de que todo mundo ficará muito feliz.

— Espere aí. Quem exatamente é esse ‘todo mundo’? Vim aqui para ver o Cuore. Onde ele está? — Lina perguntou, estimando quanto tempo levaria para correr até a porta.

— Está com todo mundo. Vou te levar para conhecê-los em breve. — Fern riu outra vez.

Vendo as presas aparecendo em cada canto dos lábios do homem, Lina gritou para Bess em desespero.

Enquanto a garota de túnica branca mostrava suas presas, também desabotoava suas roupas.

— Eu tenho estado tão solitária, Lina. — murmurou. — Não podia sair para ver ninguém, e tenho estado com tanta fome. Afinal, desde que bebi o sangue do papai, não tenho nada para me alimentar além das bestas de guarda. E além disso, papai…

Sua mão pálida como parafina fez um movimento, e a vestimenta branca caiu no chão.

Pela primeira vez, Lina percebeu que havia algumas coisas tão terríveis que você não conseguia gritar, não importa o quanto quisesse.

Do pescoço para baixo, o corpo de sua colega de classe não era o de um ser humano vivo. Sua carne seca era preta e azulada, sob as costelas dolorosamente proeminentes, apenas o caroço que devia ser seu coração continuava martelando de forma grotesca, batendo o pulso de algo sem vida.

— Papai tem bebido meu sangue. — Bess sorriu num semblante enigmático. — Todo dia agora, todo santo dia, ele me beija no pescoço e bebe até se fartar, sabe. Ele diz que me quer há muito tempo. E depois de tudo, não me deixa nem beber um pouquinho do seu sangue.

— Isso é... Muito...

Novos medos destruindo os antigos. Quando Lina correu para a porta como um coelho assustado, um dos galhos secos que eram os braços de Bess a pegou e a trouxe para si.

Ela sentiu um hálito frio como o luar na nuca.

— Sabe, eu sempre te quis. Sempre pensava em você na escola. Queria te beijar pelo menos uma vez. E agora vou.

— Pare! — por mais que lutasse, o braço pressionando contra seu corpo tinha a força do aço.

— Está tudo bem, não está, papai? — a fome e a paixão agora estavam expostos na voz de Bess.

Fern pensou um pouco, então assentiu.

— É provável que os outros tenham um ataque, mas uma ou duas mordidas devem ser o suficiente. Afinal, mesmo se a deixarmos em paz, já sabe o que vai acontecer mais cedo ou mais tarde.

Essas palavras pesadas martelaram Lina com um forte medo primitivo.

O que aconteceria com ela mais cedo ou mais tarde?

Quando aqueles lábios crus e quentes roçaram sua nuca, a razão de Lina entrou em colapso total. A loucura abriu caminho através da parede de medo, e algo escaldante jorrou de uma só vez.

Bess foi jogada contra a parede mais distante, emitindo um grito terrível, seu corpo girando como um dervixe. Independentemente de como Fern se sentiu ao som daquelas tábuas grossas quebrando, nem mesmo um traço permaneceu do fraco sorriso de um vampiro observando sua presa.

— Bem, agora... Não deveríamos esperar menos. — ele gemeu. Lina começou a correr. Fern franziu os lábios, e sílabas assustadoras fluíram por todo o celeiro, chamando suas bestas de guarda.

Lina retornou com lentos passos na direção de Fern, andando para trás agora.

Alguns metros à sua frente, figuras grotescas começaram a entrar pela porta uma após a outra... Uma aranha gigante, um caracol colossal, uma criatura gotejando muco em forma de anêmona do mar, uma massa de tentáculos roxos se contorcendo. Havia um exército de bestas de guarda.

A multidão de formas se fechou em volta de Lina enquanto recuava, sua cor desaparecendo por completo do rosto.

— Não vamos deixá-la escapar de novo. — Bess riu, enquanto se levantava vagarosamente. — Então, venha até mim. De qualquer forma, você já está...

Lina cobriu os ouvidos, todo o seu ser recuando contra o que Bess estava prestes a dizer.

O anel de bestas fedorentas se apertou a sua volta.


— Ok, tudo pronto. — veio a voz da mão esquerda de D.

D assentiu.

Com exceção de um punhado de lama sangrenta e um punhado de cinzas emitindo uma fina nuvem de fumaça, os materiais estranhos haviam desaparecido. Quem acreditaria que tudo aquilo poderia ser consumido por uma boquinha do tamanho da ponta de um dedo mindinho?

Sem fazer nenhum som, D subiu em sua montaria.

Dando ao seu cavalo ciborgue um olhar dolorido por apenas um breve instante, ele o chicoteou com força.

Mas, nessa dimensão eternamente selada, qual era o sentido dessa investida a cavalo?

— Onde foi fundido? — ele perguntou, mirando seu olhar penetrante para a frente. O vento soava em seus ouvidos.

— A trezentos metros daqui. Vai começar a se distorcer a qualquer momento, então é melhor se cuidar. — disse o punho esquerdo num tom provocativo.

E o que significava? A dimensão estava atrás deles.

Observe. Veja como os grupos de árvores que margeiam a estrada, os arbustos, até mesmo o céu e a própria estrada se retorcem como uma verdadeira miragem, dissolvendo-se como tintas na água e surgindo atrás de D enquanto este galopava.

Era uma visão maravilhosa, enquanto o vendaval levantado por esse jovem deslumbrante derretia o mundo e o puxava atrás dele.

— Faltam cento e cinquenta. — disse a voz com prazer. — Cento vinte... Cem... Quase lá.

As pupilas de D refletiam apenas a paisagem à sua frente. Nenhum medo, nenhuma raiva, nenhuma tristeza ali. Parecia que sempre foi assim. Aumentando ainda mais sua velocidade, os gemidos do vento se tornaram um grito enlouquecido.

— Cinquenta... Trinta... Dez... Agora!

Com essas palavras, tudo derreteu e o universo desintegrado tocou as costas de D e inverteu a direção. Era como se a dimensão tivesse sido virada do avesso.

No instante seguinte, no entanto, no laboratório nas ruínas, o fogo jorrou de um pequeno dispositivo.

Um milissegundo depois, os circuitos de auto reparo entraram em operação, porém a velocidade da destruição causada pela força extrema de energia que havia rompido a dimensão selada excedeu em muito a das contramedidas.

Destruição contra reconstrução.

Perdendo a capacidade de fazer avaliações adequadas, os circuitos de reparo ajustaram os programas para extrair toda a energia das ruínas. O rasgo na dimensão selada se sobrepôs a dimensões em outros locais completamente diferentes.

O corpo de D voou pelo ar, navegando por um espaço que não continha nada. Pelo canto do olho, vislumbrou seu cavalo ciborgue sendo reduzido de volta aos seus átomos constituintes.

1945. Foi lamentável, para dizer o mínimo, que cinco bombardeiros torpedeiros Avenger estivessem voando sobre os mares ao redor das Bermudas quando a dimensão selada fez contato com a área.

1872 e 1888. A tripulação do transatlântico Marie Celeste, navegando pelo Atlântico com destino a Gênova, Itália, e Jack, o Estripador, rondando as favelas do East End da nebulosa Londres, foram simultaneamente sugados para a dimensão selada, desaparecendo das páginas da história. Os circuitos de reparo provavelmente devem ser elogiados pelo papel que desempenharam no último desses desaparecimentos.

3046. Um buraco negro de classe alfa movendo-se há mais de 7 milhões de km/h, com um perigeu¹ de 270 milhões de quilômetros, desapareceu de repente um instante após engolir Plutão. Por causa desse incidente, cientistas da Nobreza, que estavam no processo de construção de foguetes interestelares para escapar para outros planetas, foram submetidos a grandes críticas, e a equipe sênior do projeto, do diretor para baixo, foi transferida.

A sobreposição levou zero tempo real para ocorrer.

1901. Visitando o Palácio de Versalhes em Paris, Anne Moberly e Eleanor Jourdain encontraram uma certa Maria Antonieta enquanto ela desenhava em um caramanchão no jardim. Sob pseudônimos, elas escreveram um relato fiel de suas experiências, publicando-o em 1911 sob o título Uma Aventura². Nem é preciso dizer que Maria Antonieta não era outra senão a rainha francesa que, junto com seu marido Luís XVI, foi despachada para as brumas do tempo pela guilhotina da revolução em 1793.

4018. Enquanto jantava em sua casa, o artista humano Vernon Berry testemunhou um certo Nobre atacando uma bela mulher em seu quarto em Londres, em 1878. Embora Berry tenha levado três meses, conseguiu completar um retrato do agressor. E assim surgiu a pintura que permaneceu por quase seis mil anos como a obra-prima de coroação de todas as imagens do Ancestral Sagrado.

Todas as distâncias efetivas mais curtas entre dois pontos se sobrepuseram.

Um vendaval intenso derrubou Lina e os outros no chão e, enquanto tentava desesperadamente se levantar, Lina viu a figura mais linda do mundo parada entre ela e Fern, como se para protegê-la.

— D!

Compreendendo a situação de relance, o Caçador de Vampiros avançou sem fazer barulho. Nessa ventania terrível que tornava difícil até o levantar do rosto, essa figura ousada na verdade parecia estar gostando. As bestas monstruosas recuaram com gemidos.

— Então, era você, afinal. — a voz de D soou suave enquanto encarava Fern e sua filha. — Diga-me uma coisa antes de encontrar seu fim. Onde está seu mestre, a figura em cinza? Como você entra?

Mesmo esmagado como estava pela aura sobrenatural que emanava do físico do Caçador, lindo como a escuridão cristalizada, Fern mostrou suas presas.

— Eles estão todos nas ruínas. Porém não há mais como alcançá-los. De qualquer forma, você vai morrer aqui mesmo.

D se moveu antes de ouvir o chamado arcano às armas, movendo-se por sua própria vontade direto para o coração do bando de bestas selvagens que avançavam.

Sua lâmina nua rosnou. Uma cabeça com olhos compostos voou para longe, tentáculos como os de um cefalópode choveram. Sangue fresco jorrou, e as chamas que saíam de um dos monstros foram truncadas por um clarão de luz prateada.

Foi uma batalha incomparável e silenciosa.

Não houve nem o som de lâmina cortante nem o grito de osso cortado. O vento até mesmo abafou cada grito das bestas monstruosas. Por fim, as várias criaturas estavam aos pés de D, sem terem acertado um único golpe com suas garras, bicos ou presas perniciosas.

Um clarão de luz voou.

Prestes a atacar Lina, Fern caiu no chão com agulhas de madeira perfurando ambos os joelhos. Em seu desespero, tentou agarrar a arma movida a compressor em seu quadril, sua mão foi pregada no chão. Bess levantou as costas do chão, contudo não conseguiu se mover mais. O olhar que lançou sobre D era estranhamente febril.

A lâmina nua foi enfiada na frente do rosto de Fern.

— Responda-me... Onde fica o caminho para as ruínas?

Suas palavras suaves, desprovidas de ameaças ou coerção, congelaram o sangue de um vampiro destemido. Pela primeira vez, Fern percebeu que o jovem arrojado à sua frente não era um dampiro comum.

— O que... O que diabos é você? — perguntou em meio a um medo esmagador que o fez ignorar a dor em seus joelhos quebrados e sua mão direita agora com dois dedos. — Alguém que foi feito um da Nobreza deve ser mais do que páreo para um bastardo mestiço humano. E ainda assim, estou...

A lâmina nua atravessou o ar, e uma das orelhas de Fern voou.

— Eu sou um Caçador de Vampiros. Agora me responda. — seu tom era tão suave quanto antes, entretanto com uma força subjacente que era avassaladora.

— Eu... Sei. — Bess gemeu. Com pequenos passos, se aproximou do local da batalha sangrenta de seu pai com o jovem.

— Não ouse dizer... Arrrgh!

A ameaça de Fern foi cortada junto com sua outra orelha, que voou pelo ar.

— Vou te dizer... Só me deixe provar seu sangue, ó belo... — a voz de Bess tremeu de desejo e prazer.

Agarrando os braços que ela estendia como galhos secos em sua mão esquerda, D perguntou apenas uma coisa.

— Onde?

— É...

— Cuidado, D!

Com o grito de Lina, D deu um salto para trás de três metros. Ainda no ar, uma massa de energia que desafiava a imaginação atingiu seu lindo rosto.

O ar ressoou duas vezes, com um estrondo como se um saco de papel cheio de ar estourasse de repente.

Os corpos de Bess e Fern incharam por dentro, depois explodiram em uma explosão de sangue e pedaços de carne. Com respingos sangrentos e restos de carne caindo sobre ela, Lina soltou um grito.

O vento, que tinha acabado de diminuir, sacudiu o celeiro em uma escala completamente diferente. Vigas de liga de aço pesado dobraram e parafusos se soltaram.

O Caçador de Vampiros percebeu que a massa de energia que havia aniquilado os corpos de Fern e Bess era a mesma forma de vida que havia encontrado três vezes antes. As leis da física afirmavam que duas coisas não podiam ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo.

Então, eu estava certo... Afinal, isso é um inimigo, ele pensou. Mas a consciência de alguém convocou essa coisa. E, quem quer que fosse, nem seus próprios invocadores podem controlá-la com perfeição.

Uma ideia lhe ocorreu de quem era esse alguém.

O ser invisível levantou a voz.

Lina cobriu os ouvidos.

Foi então que os fragmentos de vermelho e rosa começaram a se mover em direção à massa de energia. O sangue e os pedaços de carne que antes eram Fern e sua filha foram sugados em direção à coisa, parando por um instante contra sua forma indiscernível, antes de serem absorvidos no momento seguinte.

Não era que essa manifestação de energia mental os desejasse. Em vez disso, os usava como sustento para seu criador.

Alguém ou algo estava logo além da porta.

Pulando, D foi atingido mais uma vez por um enorme punho invisível de energia, caindo de volta à terra. Ele balançou a cabeça dolorida levemente e colocou a mão esquerda no chão para apoiar seu corpo. Essa concentração de energia superou a imaginação.

Havia muitos poderes sobrenaturais que podiam criar algo do nada. As bestas espirituais geradas pela conjuração eram um exemplo. Todavia, os seres de energia estavam sujeitos às mesmas leis da natureza que tudo o mais, então, é claro, havia limites para seu poder. Teria sido uma questão diferente se não fossem nada além de energia bruta, no entanto essas formas de energia também tinham inteligência.

À luz disso, a massa de energia que impedia as ações de D deve ter sido criada por um ser de poder sobrenatural. D só sobreviveu ao primeiro golpe por causa de seus próprios poderes, e porque parte da energia da destruição da dimensão selada permaneceu com ele. Mas poderia não ser capaz de suportar outro golpe.

A forma de energia se virou e foi em direção a D. A parede rangeu, então estalou com um som horrível.

— D!

O rosto de D, que estava virado para o chão, olhou para cima agora.

A morte que o ameaçava teve um vislumbre dos olhos irradiando raios de luz carmesim, ou do par de presas salientes? A mão esquerda apoiada no chão agarrou o punho de sua espada.

Enquanto observava, Lina teve a impressão de que podia ver claramente o arco enquanto D balançava sua lâmina e a ‘forma’ da coisa enorme enquanto avançava implacável.

Quando os dois se encontraram, faíscas desprovidas de cor ou som voaram por todo o celeiro. O cérebro de Lina queimou.

A energia desapareceu.

D caiu de joelhos em exaustão.

Esfregando a cabeça o tempo todo, Lina correu em sua direção.

— D, você está bem?

— Não precisa se preocupar. Mas poderia dar uma olhada do outro lado da porta para mim? Veja se não tem alguém deitado lá fora.

— Só um momento, já volto.

Lina foi até a porta, olhou em volta um pouco e então retornou.

— Não tem ninguém lá fora. Acha que eles escaparam?

D pensou por um momento e então se deitou no chão.

— Tudo bem aí? Devo chamar um médico?

— Não precisa se preocupar. Vou me curar logo. O que quero saber é o que te trouxe aqui?

— Saí procurando por Cuore. Só um segundo, vou pegar um pouco de água.

Antes que pudesse impedi-la, a garota desapareceu pela porta.

Quando retornou um pouco depois, com uma caneca de lata na mão, D já havia se levantado. Mesmo quando estava no chão, sua expressão não mostrava que havia algo errado com ele, ou que estivesse com dor. Lina ficou meio tentada a perguntar se não apenas estava brincando com ela.

— Desculpe. Tive um trabalho danado para encontrar o poço. Aqui está.

Tomando o copo que lhe foi oferecido sem silêncio, levou a borda até os lábios e bebeu um gole. Não que seu corpo o desejasse. Apenas respondeu à boa vontade de Lina. Quando essa garota estava próxima, D fazia coisas que aqueles que o conheciam nunca imaginariam. Talvez percebendo isso, Lina ficou radiante, porém sua testa logo ficou nublada enquanto perguntou.

— Então, o que diabos era aquela coisa? É a mesma coisa que apareceu naquela noite em que encontramos Cuore?

— É provável. É uma massa de energia superdensa. Quando descobriram que não só falharam em me manter selado, como também tinha atravessado aqui, eles devem ter vindo para impedir que Fern e sua filha falassem.

Quando Lina o perguntou mais a respeito, D fez um breve relato sobre o incidente com a dimensão selada. Embora fosse apenas uma garota de dezessete anos, ele reconheceu que ela era inteligente o suficiente para compreender sua história.

— Wow. Vejo que você pode fazer coisas incríveis. — disse Lina, com os olhos arregalados de admiração, enquanto se afastavam do celeiro.

Quando todos os sinais dos vivos deixaram o celeiro, duas coisas permaneceram: uma depressão profunda no chão bem onde a mão esquerda de D esteve até o instante em que encontrou a forma de energia com sua lâmina, e algo caído em uma das gaiolas das bestas de guarda perto da porta. Não apenas o último estava escondido por uma divisória de metal, como também se encontrava em um estado que beirava a catalepsia, então não foi tão surpreendente que D não o tivesse notado.

Era Cuore Jorshtern.



— Outro fracasso, ao que parece...

Por fim, a voz baixa foi tingida pela impaciência. Em uma sala nas ruínas iluminada por uma fraca luz de uma única lâmpada, duas silhuetas mais profundas que a escuridão conversavam baixinho, como se esmagadas pela densidade da escuridão estigiana.

— Se eles não voltaram agora... — outra voz disse, sumindo sombriamente.

Se uma das vozes pertencia à figura sombria em cinza, quem poderia ser a outra?

— Ora, mas esse Caçador é durão. — disse a primeira sombra. — Nunca teria imaginado que poderia escapar daquela dimensão.

— Penso o mesmo.

— Oh, bem, já pensei em uma maneira de derrotá-lo. Fique tranquilo. Estou mais preocupado com Lina. Ela ainda não se lembrou?

— Tentei persuadi-la. — a segunda sombra fez uma pausa pensativa. — Sua hora apenas não chegou. Lembre-se, cada um de nós despertou separadamente, não é?

A primeira voz, pesando com seriedade a situação, não respondeu em seguida.

— Só faltam dois dias para a comissão examinadora chegar. — disse por fim. — Isso tem que ser resolvido hoje ou amanhã. Não temos escolha. Deveríamos trazer Lina aqui em vez de esperar por sua iniciativa.

— Contudo poderia ser... — era perceptível o abalo na segunda voz. — Não há nenhuma certeza de que o amplificador produzirá resultados favoráveis. Os processos mentais de Lina, em particular, são delicadamente complexos. Se não der certo, o dano pode ser irreparável. Basta olhar para Cuore.

Desta vez foi a vez da primeira voz gemer.

— Hmmm... No entanto, em troca, ganhou o poder de produzir aquela coisa. Muito bem. Vamos esperar só mais um dia então, certo? Neste meio tempo, podemos cuidar daquele intruso. Bom o suficiente?

Sem dizer nada, a outra sombra pareceu concordar.

Após um breve silêncio, uma das figuras sombrias começou a resmungar.

— E ainda assim... — não estava claro qual deles falou. — Você não consegue sentir? Que tem alguém aqui além de nós...

— Impossível.

— Alguém está nos observando. Alguém está rindo. Observando nossas ações e rindo delas… De algum lugar no passado distante.

— Pare de falar assim.

A voz foi silenciada e o par de sombras se moveu pela escuridão. Em seu rastro, apenas a escuridão permaneceu, quase como se dissesse que a escuridão sozinha lhes convinha.



Lina parou a carroça em uma bifurcação na estrada. Se continuasse em frente voltaria para a cidade, enquanto o caminho que se estendia para a esquerda levava à colina com as ruínas.

— Nada mais vai incomodá-la agora. — disse D a cavalo. A montaria havia sido tomada do lugar de Fern. — Vou para as ruínas. E você...

— Vou para casa. Já sei essa parte de cor agora. — Lina deu de ombros e mostrou a língua.

— Ótimo. Amanhã, tudo terá acabado.

Sentindo a gentileza na voz de D, Lina arregalou os olhos um pouco. Ela pensou que deveria dizer algo, todavia, quando seus lábios se moveram, a bela silhueta já havia diminuindo contra o sol que filtrava por uma peneira de árvores sobrepostas.

Por um longo tempo, Lina não se moveu do local, entretanto quando se moveu não foi para seguir em frente, e sim para o lado.

A carroça virou cento e oitenta graus, graças a um surpreendente manuseio magistral da jovem, e acelerou de volta pelo caminho que tinha acabado de chegar, as rodas rangendo nos sulcos da estrada o tempo todo.

Lina chicoteou. O vento açoitou implacavelmente seu semblante taciturno.

Em cerca de vinte minutos, havia voltado à casa de Fern.

Cavalgando até o pátio, saltou do assento do condutor, levando um cantil do compartimento de armazenamento na mão. Correndo para o celeiro como se tivesse esquecido todos os seus medos anteriores, ela puxou Cuore da gaiola da besta de guarda.

Lina enganou D. Cuore estava deitado perto da porta quando a abriu, e o escondeu na gaiola quando disse que ia buscar água. Nem a própria Lina sabia ao certo por que fez tal coisa. Será que não queria que D descobrisse algo que precisava que Cuore lhe dissesse? Não tinha certeza.

Apoiando a cabeça do garoto, que fedia a graxa e caspa, em seu joelho, ela forçou Cuore a beber um pouco de água, e o rapaz abriu os olhos, tossindo e cuspindo.

Ao espiar Lina, o bom senso tomou conta de suas pupilas lamacentas.

Embora tenha dado um suspiro de alívio, Lina sentiu seu coração apertado pelo quão horrivelmente emagrecido seu rosto parecia enquanto tentava, com pouco sucesso, formar um sorriso.

O jovem parecia um esqueleto coberto de pele. Era tão terrivelmente magro, como se tudo em seu poderoso corpo tivesse sido arrancado; parecia estar à beira da morte.

Seu corpo parecia anormalmente leve para Lina, enquanto o levantava, e, enquanto o carregava, não conseguia evitar que algumas lágrimas viessem aos seus olhos.

Por que agora, agora que uns bons dez anos se passaram, todas as engrenagens começaram a girar ao contrário? A forma desperdiçada de Cuore não pressagiava seu próprio destino e o do Sr. Meyer? Suas lágrimas brotaram desse pensamento.

Quando enfim colocou Cuore no banco do condutor, Lina ouviu cascos se aproximando em grande velocidade na direção do portão.

Lina mordeu o lábio. Quem deveria descobri-los senão as últimas pessoas que queria ver agora, os homens do Comitê de Vigilância.

— Bem, vejam só, olhem quem temos aqui. — disse o segundo em comando, Corma, enquanto se levantava nos estribos. Percebendo a condição de Cuore, seus olhos revelaram um brilho de crueldade. Pendurado em suas costas levava um mastro de ferro preto brilhante. Seu verdadeiro negócio era espancar dragões menores e ursos até a morte por carne e peles que pudesse vender. — Pelo jeito algo não está certo aqui. O que houve com Fern? Não está aqui?

— Como vou saber? — Lina respondeu, olhando de volta para os homens boquiabertos. — Vá em frente e procure. Eu só saí para falar com Cuore. Seu estado é péssimo e vou levá-lo ao médico. Se não tem mais nada a tratar conosco, por favor, saia do caminho.

— Isso é muito sério, não é? Bem, queria poder dizer para você ir embora, mas tem algo errado com o quão magro sua figura está. Terá que esperar um minuto.

A um sinal de Corma, alguns de seus homens entraram no celeiro e na casa principal, e voltaram pouco depois. Um saiu do celeiro com uma expressão agitada e relatou que os animais de guarda tinham sido massacrados.

Em um tom ameaçador, Corma disse.

— Parece que agora temos negócios com você. Então, vai vir conosco de boa vontade?



Depois de vasculhar o interior das ruínas, D retornou ao pátio. A passagem para o laboratório subterrâneo seguia selada por várias toneladas de entulho, e não havia sinal de outra entrada.

Por que seguia tão obcecado com as ruínas? Seu contrato como Caçador de Vampiros havia sido encerrado, porém sabia que seu trabalho não estava concluído. Poderia ter sido orgulho profissional que o manteve na vila? Bem, isto compunha parte do motivo. Contudo aquela beleza gélida, uma sublimação de raiva, tristeza, alegria e todas as outras emoções humanas, foi emprestada um tom semelhante à vingança pelo resultado das atividades que continuaram por séculos nas profundezas deste laboratório. Ainda assim, mesmo que esses sentimentos fossem a razão, o próprio D percebeu?

— Não consegue encontrar, hein? — sua mão esquerda riu com desdém. — No entanto mesmo se encontrasse, o que pretendia fazer? O que acontecerá quando souber com certeza os resultados daqueles experimentos de uma década atrás? Só vai fazer com que haja muitas noites mais escuras. O destino daquelas quatro crianças foi decidido há dez anos. Ninguém pode mudar esse fato. Ou poderia ser...

— Poderia ser o quê?

— Que está fazendo tudo isso para encontrá-lo?

A expressão de D endureceu por um momento, entretanto a calma retornou em pouco tempo.

— Você pode estar certo.

— Oh ho! Desenvolveu um lado humano, hein? Então parece que essa perambulação interminável não foi um completo desperdício.

De repente, o céu ficou escuro. Até o som do vento morreu bruscamente.

A mão direita de D se estendeu para a espada em suas costas.

O pátio não era mais o pátio.

Com cada centímetro de seu corpo, D o sentia surgindo.

Seus arredores eram escuros como breu. Não permitindo sequer a própria luz passar, sua densidade era comparável à de um buraco negro. Todavia por mais incrível que fosse a densidade da escuridão, era várias ordens de magnitude menor do que a presença que estava diante de D, bloqueando seu caminho.

D enviou toda aquela densidade de volta para a presença.

Eu deveria ter esperado. Você fez bem em resistir, disse uma voz desencarnada sem expressar interesse. Não era um elogio. Isto era algo cujo significado estava além das palavras. Qualquer outra pessoa teria ficado aleijada a essa altura, sua psique esmagada a nível físico. Você certamente é um sucesso.

— Silêncio! — disse D. Não precisava falar as palavras, nem ao menos pensá-las. Esta era uma conversa de um tipo diferente. — O que fez aqui? Quais foram os resultados de seus experimentos dez anos atrás?

Quer dizer os genes da escuridão e da luz? Simplesmente notável. Quão bem fez para compreender tanto, disse a presença, enquanto circulava em torno de D. Quão cruel é... Que os genes de uma pessoa, mesmo um gene solitário, podem provar ser o fator decisivo para toda a sua espécie. Mais cruel ainda quando sua raça conheceu glórias inigualáveis ​​com qualquer outra criatura, mas galantemente aceitou seu destino a tempo. Nesse sentido, não se poderia dizer que a Nobreza é de fato soberba?

— Então todos aceitaram de boa vontade sua morte? — D riu com desdém. — Se fosse esse o caso, não haveria necessidade de Caçadores de Vampiros.

Não é a Nobreza que precisa deles. São os humanos. Por que não nos dá o tempo que precisamos para morrer?

— Cansei de ouvir suas discussões. O que estava fazendo aqui, me responda.

Em vez de uma resposta, certa imagem apareceu.

A luz não surgiu de repente na escuridão. A imagem não foi projetada na mente de D ou em seu cérebro. Porém, havia aquela imagem.

Era o corpo nu de uma mulher.

Não apenas um. Havia incontáveis ​​corpos, pálidos e nus, existindo ao mesmo tempo em uma simples imagem.

Uma sombra negra se curvou sobre ela. O formato daquela silhueta sozinha eclipsava partes do corpo da mulher. Parecia que garras em forma de dedos se abriam em seus seios, e as pernas grossas da sombra pareciam cortar suas coxas escorregadias e contorcidas.

A mulher estava chegando ao auge. Seu clímax parecia se estender para sempre. Cravando as unhas nas costas da figura, ela mordeu a carne do ombro. O êxtase em seu rosto quando se virou se tornou uma voz saindo de seus lábios brilhantes e úmidos.

Contudo, um clímax eterno também pode significar angústia eterna.

Vários rostos foram gravados pela morte e desapareceram da imagem. E mais, muitos mais. D contou dezenas de milhões.

A presença perguntou... Não se lembra disso? Você, mais do que ninguém, deveria se lembrar. Foi o instante em que você veio a este mundo. Você foi meu único sucesso.

— Seu desgraçado, estava fazendo a mesma coisa de novo aqui, não estava? — D perguntou, recorrendo a palavras chulas, palavras ardentes com raiva incandescente, pela primeira vez.

Correto. Veja, este já foi um centro computacional para essas coisas. Ao longo de três milênios e meio, conduzi inúmeros experimentos e todos terminaram em fracasso. Todos os subprodutos foram apagados.

A cena mudou.

D se viu cercado por criaturas de aparência estranha. Embora suas aparências remetessem a seres humanos, eram seres tão estranhos. Crânios inchados, membros torcidos, olhos brilhando como os de um gato. Seus corpos inteiros cobertos de pelos. Bebês choravam fracamente.

D percebeu que cada um deles possuía uma força inimaginável. Ele viu seu poder. Cada um podia operar noite e dia, sem dormir. Também podiam respirar no vácuo. Podiam nadar livres debaixo d’água, e suas células podiam se regenerar até mesmo de golpes fatais.

Eram o auge da evolução biológica. No entanto, uma única desvantagem trouxe a morte sobre eles.

O ato amaldiçoado... A necessidade de beber sangue.

Essa foi a razão pela qual foram apagados. Centenas de milhares, ainda bebês e incapazes de oferecer qualquer protesto, foram enterrados na escuridão para sempre.

— Por que fez todas essas coisas? — a pergunta estritamente serena carregava um peso infinito de tristeza.

Na busca da possibilidade. Houve mais dez anos atrás. Entretanto tudo terminou em fracasso.

— E pretende apagá-los, como fez com todas aquelas jovens vidas?

Não é um hábito meu deixar fracassos por aí, disse a presença em conclusão. Sua palavra final sobre o assunto foi dita em silêncio, todavia foi ainda mais assustadora por sua importância. Eu me livrarei de todos os genes da escuridão. Você pode assistir para ter certeza, se desejar. Já viu tantas coisas. Mais algumas não devem doer.

Enquanto ouvia a presença, D semicerrou os olhos. Ele estava transformando esse ser que possuía a densidade da escuridão infinitamente compactada em uma forma como a sua.

Essa era sua única chance de vitória.

Claro, isso não tinha nenhuma relação com a forma física real de seu oponente. D apenas cortaria a forma manifestada, essa era a extensão disso. Em algum lugar dentro de D, uma figura gigantesca e poderosa movia-se em direção à conclusão. Uma imagem do Ancestral Sagrado, envolto em uma capa preta, um par de presas projetando-se dos lábios vermelhos esculpidos em sua pele pálida.

No instante em que ficou completo, D concentrou toda sua energia física e mental na espada correndo de sua bainha.

A luz cortou a escuridão.

Com a luz do sol do meio-dia caindo sobre ele, D enfiou sua lâmina no chão e se agarrou a ela quase como uma muleta enquanto se levantava. A sombra pesada da fadiga agarrou-se ao seu belo semblante.

— Parece que foi embora. — ele disse, até mesmo sua respiração irregular. Uma voz trêmula o respondeu.

— Você me assusta pra caramba. Que possa feri-lo... O seu próprio...

Sem responder, D começou a caminhar até o portão onde havia amarrado seu cavalo.

— Para onde estamos indo?

— Não sei o que os quatro planejaram, mas agora pelo menos sei o seu destino.

— Então vamos sair da cidade. Lave suas mãos desse assunto, D. Você não tem nenhuma conexão com essas pessoas.

— Amanhã, vai ser decidido se um deles vai ou não para a Capital. Só por essa razão ela conseguiu passar pelo inverno. Por um inverno que durou uma década.

— Então o que está tentando dizer é que gostaria de vigiá-la para que não saiba a verdade até o fim? Que belo sentimental molenga está sendo.

D não disse uma palavra enquanto chicoteava seu cavalo.



O chicote ricocheteou em suas costas brancas.

Soluços escapando por entre seus dentes cerrados, Lina abriu os olhos e lutou contra a vontade repentina de desmaiar.

Embora seu rosto e seu torso expostos estivessem encharcados de suor, seu corpo estava bem frio.

Quando abriu os olhos, viu diante de si um bando de homens zombando. Um Cuore manchado de sangue jazia no chão de pedra.

Os pulsos de Lina estavam amarrados por uma corda áspera, e estava pendurada em uma polia no teto. Havia muitos vergões em suas costas. Os homens riram e disseram que ainda estavam pegando leve. Embora houvesse algumas pausas ao longo do caminho, tinha sido chicoteada por quase vinte minutos até agora. Não se tratava de arrancar uma confissão sua. Era tudo sobre a dor de Lina... Sobre aproveitarem a agonia que seu chicote arrancava da carne da garota.

Os homens não tinham perguntas de nenhum tipo para fazê-la. Antes de levarem Lina e Cuore para a câmara de interrogatório, localizada em um dos anexos da casa de Fern, perguntaram coisas como onde Fern e Bess estavam ou qual era a sua conexão com os ataques de vampiros. Porém quando Lina firmemente afirmou que não sabia, os homens se entreolharam, sorriram e começaram a torturar o já meio morto Cuore. Talvez tentando proteger Lina o máximo que podia, Cuore aguentou mais de uma hora de choques elétricos e mergulhos antes de desmaiar.

— Ei, chame o xerife!

Ciente em seu estado de consciência nebuloso e turvo de que esse pedido não tinha vindo de seus lábios, Lina deixou um sorriso florescer no rosto. O quê, isso é o melhor que podem fazer? Além da dor física, não é nada comparado ao que passei nos últimos dez anos.

Um dos homens se aproximou. A julgar pela barba desgrenhada, tinha que ser Corma. Um aperto forte em seu queixo a fez virar para encará-lo.

— Oh, ainda tem um pouco de força de vontade sobrando, não é? Não precisamos chamar nenhum xerife, rapazes. Podemos lidar com essa situação muito bem. Pra começo de conversa, não ouvimos nada até agora.

— E não tenho nada para te dizer, seu sádico de cara de pelo! Não me toque!

Enquanto suas mãos sujas acariciavam seus seios brancos, Corma aproximou seus lábios vulgares do rosto de Lina.

— Oh, tem um milhão de coisas para nos contar. Tipo, onde está Fern? E como diabos está ligada ao Nobre que tem corrido solto na cidade nesses últimos tempos? Bem... Se não está inclinada a contar, teremos que obter as respostas do seu corpo nesse caso.

Uma língua quente traçou a nuca dela.

Lina tentou afastar o rosto de Corma, contudo sua mão a segurou firmemente pelo queixo.

— Ei, pare com isso! Me solte!

— Está ficando um pouco irritada, não é? — Corma se virou para os outros — Ei! Me ajude aqui.

Com acenos e grunhidos de concordância, mais três ou quatro homens se reuniram ao redor.

Mãos e línguas se contorciam contra suas costas, em sua barriga, entre suas pernas bem fechadas.

— Pare, me deixe em paz!

Contudo enquanto se contorcia, algo estava prestes a mudar bem no fundo de Lina. Sentiu uma raiva diferente de qualquer emoção que já conhecera, uma chama branca, direcionada mais à depravação sem limites da natureza humana do que aos ultrajes contra seu próprio corpo.

Esses malditos... Esses humanos malditos!

Seu corpo pálido voou para cima. Foi um estalo feroz. Os homens, sobre ela como uma matilha de hienas devastando um cadáver, foram jogados contra as paredes e o chão.

O ardor correu para os vasos sanguíneos em seu pulso. Com o esforço de apenas um mínimo de força, as grossas cordas arrebentaram e Lina caiu no chão.

— Sua... Vadia! — Corma exclamou, pulando de volta do chão.

O homem agarrou o porrete de ferro encostado na parede. Era uma arma cruel, com saliências cônicas afiadas saindo de todos os lados. Nas mãos de Corma, podia derrubar uma parede de pedra e, usada contra presas a curta distância, batia mais forte do que uma bala de um rifle de alto calibre.

Os outros homens se levantaram e cercaram Lina.

— Chega de misericórdia. Arranque essas roupas íntimas também, e então vamos fodê-la até morrer.

— Hehe. Vamos enfiar nela pela frente e por trás!

Promessas vulgares e ameaças violentas saíam de todas as bocas. Estavam prestes a avançar em sua direção quando...

A porta se abriu com um rangido surdo.

Todos os olhos se voltaram para lá, e enquanto cinco pares pareciam duvidosos, um par se arregalou de surpresa e alegria.

— Sr. Meyer! — pegando suas roupas do chão, Lina se escondeu atrás do jovem professor.

Não foi nenhuma surpresa que os homens estivessem tremendo. Pareciam envergonhados, desviando o olhar. Corma sozinho desafiou o professor, e por pouco.

— Por que está aqui? Por que se dar ao trabalho de vir todo esse caminho? Posso jurar que você estava entre os desaparecidos.

— Fiz uma viagem bem longa. — disse o professor, como se não estivesse nada surpreso com as circunstâncias estranhas. — Acabei de voltar para a cidade. Só passei por aqui com a intenção de perguntar a Fern quais eram os novos desenvolvimentos em nosso problema local.

— Fern não está aqui. — Corma cuspiu, apontando um dedo para Lina. — Agora ele é o desaparecido em vez de você. A garota sabe para onde Fern foi. Então estávamos apenas a interrogando.

— O que disse? — perguntou o Sr. Meyer com um aceno de cabeça. Olhando direto para Corma, tornou a falar. — Bem, pelo jeito, não parece estar ido muito bem. Deixe comigo. Deixe-me tentar conversar com calma com Lina em minha casa. Está tudo bem, não é?

Por algum motivo, Corma engoliu o ‘não’ que estava prestes a sair de sua garganta.

— Bem, então... Peço licença. — com uma simples reverência, o Sr. Meyer empurrou Lina e desapareceu pela porta.

Entre os homens que trocavam olhares idiotas, espíritos que continham quantidades iguais de alívio e medo estavam surgindo.



Assim que a carroça saiu pelo portão, o Sr. Meyer olhou para o pulso de Lina e disse.

— Teve uma pequena queimadura de corda, pelo que vejo. Isso foi horrível da parte deles. Como conseguiu se livrar das amarras, afinal?

— Uh, bem... Quando eu estava lutando, elas se desfizeram sozinhas.

— Mesmo?

O professor não perguntou mais nada, mas olhou para frente. Ficando um pouco ansiosa, Lina perguntou.

— Hum... Para onde estamos indo?

— Para onde quer ir? Te levo para onde quiser. Também estou de folga hoje.

O rosto de D e o barraco perto da roda d’água surgiram em sua mente, então Lina balançou a cabeça. Que memórias preciosas. A garota sabia que nunca haveria outro dia como aquele.

— Quero ir para a escola.

— Bom o suficiente pra mim. Porém antes disso, Cuore precisa de alguns cuidados, não acha? Vamos levá-lo ao médico.

Ele parece meio abatido, Lina pensou. Algo preocupante deve ter acontecido enquanto estava fora.

A carroça seguiu em direção à cidade.



Quando os membros do Comitê de Vigilância se reuniram no centro do complexo, o cavalo carregando D entrou a galope.

Com uma impressionante demonstração de habilidade, o Caçador executou uma parada mortal a cerca de um metro dos homens, que tinham expressões idiotas de espanto. Sem perder tempo, D disse.

— A garota deve ter estado aqui. Onde ela está?

— Como diabos podemos saber? — Corma respondeu, dando um passo à frente. Sua voz estava cheia de hostilidade, pensando em como eles precisavam de uma pequena distração. E agora o alvo perfeito havia caído bem no seu colo. — Estávamos a mostrando um pouco de diversão... — continuou. — E ela estava soluçando e se comportando mal, contudo quando terminamos, a garota criou asas e voou direto pela maldita janela. Acho que está na escola agora.

— Os trilhos da carroça levam de volta para cá. — D disse, em uma voz estranhamente suave. Dedos gelados de pavor acariciaram para cima e para baixo as espinhas dos rufiões. — Como exatamente estavam a fazendo se divertir?

O lindo jovem estava parado na frente dos homens agora, tendo desmontado sem fazer barulho. Uma sensação branca que não conseguiam enfrentar de frente atingiu seus rostos incipientes. Era sua aura misteriosa.

— O que fizeram com a garota? Responda-me.

Sabendo que D não aceitaria silêncio, Corma tentou blefar.

— Heh. A garota só estava aqui quando passamos. Tentamos fazer algumas perguntas sobre como estava ligada à Nobreza, no entanto a vagabunda não quis ajudar. Então a levamos para dentro e a presenteamos um momento agradável, é claro. Cara, quando abrimos suas pernas e enfiamos dentro, ela estava soluçando de alegria. Depois disso, nós a chicoteamos e todos nós limpamos suas feridas. Ah, sim, nós as limpamos com nossas línguas!

— Sério? — D falou com um aceno, sua voz não muito suave, apenas baixa. Então, sem outra palavra, virou as costas e começou a se afastar.

— Sua aberração!

Abrindo caminho no ar, o porrete de ferro balançou em um arco descendente em direção à cabeça de D.

O suspiro de surpresa dos homens pôde ser ouvido ao mesmo tempo em que o som do ferro encontrando o aço. Na base do pescoço de D, ou um pouco acima deste, o porrete de ferro parou, cravado na lâmina que havia sido parcialmente desembainhado.

Os olhos dos homens se arregalaram. Mais do que o tempo necessário para escapar do ataque de partir o crânio, mais do que tudo, os homens ficaram chocados ao ver que a lâmina fina de D resistiu às dezenas de quilos de pressão do porrete de ferro.

Todavia o verdadeiro choque ainda estava por vir.

Pouco a pouco, mas sem pausa, D puxou a espada da bainha. Com uma mão, é claro. Atrás dele, o gigante, que não podia pesar menos de 100kg, agarrou seu pesado porrete de ferro com ambas as mãos, tentando com cada grama de força em seu corpo impedir o desembainhar da lâmina.

Para aqueles não acostumados a ver tal exibição, tinha que ser a visão mais assustadora do mundo.

Quando terminou de puxar sua espada, D se virou devagar. Relutante em soltar, Corma deslizou uma mão para baixo até a extremidade mais distante do porrete, agora o homem estava equilibrado com ambos os braços apoiando o porrete sobre sua cabeça. Travados juntos, nem a espada nem o porrete tremeram nem um pouco.

Embora não pudessem ver nenhum sinal de movimento no rosto sem emoção de D ou nos músculos de sua bela e poderosa mão, os homens perceberam o afundamento do corpo corpulento de Corma, e ficaram paralisados ​​de medo e admiração.

O suor escorrendo de Corma encharcou sua barba. Seus músculos nodosos tremeram, e não conseguiu evitar cair de joelhos. Sua forma desajeitada foi forçada para baixo por uma espada empunhada com uma só mão.

Sem o uso de suas pernas semelhantes a um tronco, Corma teve que confiar na força de seus dois braços. Quando virou seus olhos temerosos para o inimigo parado sobre ele, a pressão sem limites desapareceu de repente. Ok, ele pensou, eu estava apenas me aquecendo, seu vampiro bastardo imundo.

Porém, no instante seguinte, Corma se perdeu em verdadeiro horror.

A lâmina de D estava descendo agora!

Percebendo que o aço estava lentamente cortando seu porrete de ferro, Corma entrou em pânico total quando ouviu a voz de D.

— Onde está a garota? — o lindo deus da morte perguntou.

Apesar de sua situação atual, Corma se viu intoxicado pela voz e pela beleza de quem o encarava.

— Meyer veio... Levou-a embora na carroça. Levaram Cuore junto também...

D assentiu e então, com um golpe, partiu o porrete de ferro ao meio e Corma do crânio à virilha.

Sem nem mesmo olhar para o corpo, enviando um jato de sangue quando caiu de costas e se partiu em dois, D montou em seu cavalo.

Só quando o bater dos cascos ferrados de ferro atingindo a planície desapareceu na distância que os homens, parados com os olhos vazios como se estivessem em um devaneio, enfim puderam respirar novamente.



No ponto em que poderia escapar da floresta e estar na entrada da cidade, a carroça parou de repente. Lina, que estava atrás cuidando assiduamente de Cuore, inclinou-se para a frente e gritou surpresa.

— O que houve Sr. Meyer?

Parada na estrada, cerca de cinco metros à frente deles, estava a temida figura em cinza.

— Temos que sair daqui, Sr. Meyer!

— Não adianta. Os cavalos não se movem.

— Sem problemas. Há uma arma de estacas no compartimento de armazenamento! — enquanto falava, Lina voltou para o interior e se armou com uma arma longa e fina que tirou da caixa. Com propelente³ espalhado na coronha das estacas ao redor da coronha de cinco centímetros de espessura e um pequeno isqueiro motorizado para disparo rápido, a eficácia da arma tendia a diminuir em longas distâncias. Contudo a curta distância demonstrava um poder tremendo.

— Para trás! Isto não é nada parecido com a arma de prata que eu tinha da última vez! — Lina gritou, ficando tão imponente e feroz quanto os guardiões do templo de antigamente.

A figura sombria se aproximou sem fazer barulho.

— Para trás! Não quero ter que atirar em você!

— Atire, Lina!

O som da voz do Sr. Meyer perturbou um pouco o poder que ela colocou em seu dedo, que já estava apertando o gatilho.

Deixando apenas um coice e um estrondo retumbante em seu rastro, à estaca perfurou o coração da figura sombria.

Girando seu corpo um pouco, a figura estendeu a mão direita para as costas. Lina estremeceu ao ver a ponta da estaca ser sugada pelo corpo da figura. Segurando a estaca ensanguentada em sua mão direita, a figura saltou no ar.

Ele balançou a estaca em direção a Lina na carroça. Madeira áspera cortou o ar.

Lina se viu parada na estrada.

Sem nem mesmo lhe dar tempo para se perguntar como tinha saído da carroça para o chão, a figura sombria atirou à estaca nela. Antes que pudesse gritar, o rosnado cortante do vento parou de forma abrupta na frente de seu peito.

Lina olhou distraída para a estaca que pegou enquanto voava pelo ar. De alguma forma, parecia que havia se tornado uma criatura completamente diferente.

— Ainda não entendeu? — a figura sombria perguntou da carroceria da carroça. — Seus movimentos, sua velocidade, você não é mais a mesma Lina de sempre.

— Seu maldito, se vai começar a falar dormindo, guarde para a hora da soneca! — parando sem esforço à estaca que Lina jogou de volta em sua direção, a figura levantou a mão direita.

— D?

Ao ver o jovem lindo parado silenciosamente ao lado, Lina ficou chocada.

— O que houve? — a figura perguntou. — Você não deseja esse homem?

Ao ouvir a voz distante da figura sombria, Lina sentiu um desejo repentino, quente e voraz queimando em sua carne.

Eu quero D. Quero que esses braços requintados me segurem.

— Essa imagem é seu próprio coração manifestado. Ele nunca lhe negaria o que deseja. Ame-o do jeito que quiser.

A voz baixa estava preenchida de expectativa. Embora estivesse ciente de que isso era um ataque psicológico, Lina tocou a mão no peito forte e duro de D. Seus lindos lábios ofegavam.

A respiração de D carregava um doce perfume.

Eu quero chupar... O coração de Lina murmurou. Quero sugar...

— Eu não posso!

Assim que se afastou desesperadamente, D se tornou o Sr. Meyer.

Um aroma enigmático flutuou até seu nariz do recipiente de vidro que ele segurava com as duas mãos.

Enquanto desviava o rosto da cor e do cheiro, Lina ouviu outra voz chamá-la.

Beba. Deve beber. Isto irá libertá-la. Volte para mim.

O recipiente foi oferecido.

Quando chegou à sua boca e o líquido carmesim avançou, Lina bateu no recipiente com as duas mãos. O vidro quebrou e seu campo de visão ficou manchado de vermelho profundo.

Não havia ninguém ao seu lado. Suas mãos também não estavam machucadas.

Lina começou a correr, mexendo suas pernas sem olhar para trás. Se parasse, a figura sombria a alcançaria. Pior ainda, estaria completamente mudada. Esse era seu maior medo.

A próxima coisa que soube foi que chegara na orla da floresta.

Vislumbrou o prédio familiar da escola. Embora tivesse a sensação de que não deveria ir lá, não tinha para onde ir.

— Lina! — a figura de cinza gritou, parando a garota quando estava prestes a continuar correndo.

Ela se virou com um grito de terror, no entanto, ao ver um rosto familiar, seu medo deu lugar ao alívio. Mesmo que fosse a mais desagradável das pessoas, em seu estado atual, Lina estava apenas feliz por ser um de seus colegas de classe.

— O que está fazendo aqui? — Callis, que estava a caminho da escola, perguntou. Um sorriso sedutor surgiu em seu rosto suave e bonito.

— Nada, nada mesmo. Indo para a escola agora.

— Essa é uma saudação e tanto. E depois de quanto tempo esperei para te alcançar.

— Quanto tempo esperou?

— Desde a última vez que te vi, você é tudo em que tenho pensado. Olha, eu colhi essas para você ontem.

Um buquê branco foi estendido à sua frente.

As discretas flores individuais tinham sido entregues em dias de verão e inverno, entretanto este buquê era um buquê enorme, com raízes arrancadas e tudo.

Lina se lembrou do peitoril da janela pela manhã, a leve vibração de seu coração quando abriu a janela, pensando que talvez hoje não tivesse vindo. Abraçando a flor branca para si gentilmente, sabendo que alguém a estava cuidando, todas essas coisas estavam a um milhão de milhas de distância.

Pegando o buquê, ouviu uma voz que não era a sua dizer.

— Uh, Callis, tenho um favor para pedir.

— O que é?

— Pelo que me lembro, sua família processa carcaças de animais, certo? Não há um armazém por aqui em algum lugar?

— É isso mesmo. — ainda enquanto o garoto franzia a testa em suspeita, a risada lasciva que surgiu em seus olhos finos não escapou da atenção de Lina. Não que importasse.

— Leve-me lá. Quero que me esconda por um tempo. Por conta do meu pai sempre fazer essas coisas nojentas comigo.

— Wow, eu não fazia ideia. — o jovem libertino engoliu em seco, afetado pela presença física de Lina. Ela parecia uma pessoa diferente daquela que tinha visto dois dias antes. — Claro. Não é como se eles o usassem durante o inverno de qualquer maneira. Quer ir lá agora, ou depois da escola?

Lina se virou para a escola. Vários alunos olharam para os dois antes de desaparecerem pelos portões. Ela teve a sensação de que Viska e Marco estavam entre eles. Alguém acenou em sua direção, e Lina levantou a mão um pouco em uma resposta sem entusiasmo. Quase como se fosse dizer adeus.

Então, com sua decisão tomada, pegou a mão de Callis.

Lábios que pareciam visivelmente mais vermelhos disseram.

— Ok, vamos.



Mais ou menos na mesma hora em que a menina e o menino enfeitiçado desapareceram nas profundezas da floresta, D chegou à escola. Os rastros da carroça que havia seguido desde a casa de Fern pela floresta tinham chegado a um fim repentino. Encontrando alguns sinais de luta no chão, correu para o pátio da escola.

Ele entrou no único prédio acadêmico. A sala de aula do ensino médio era a mais próxima do portão.

Sem bater, abriu a frágil porta. No instante seguinte, inúmeros olhos se concentraram na sua pessoa.

— Bem, entre. Não o vejo há um tempo. — com giz em uma mão, o Sr. Meyer fez uma reverência.

Ao comando de alguém de ‘fiquem de pé para nosso convidado’, os alunos se levantaram em uníssono. ‘Façam uma reverência’. Cada cabeça se curvou ao mesmo tempo, e então se levantaram de volta. Cada um deles tinha o rosto de Lina.

Ninguém os disse para retornarem aos assentos.

As pupilas de D emitiram uma luz estranha e bonita.

Um ataque psicológico. E caí direto nele. Repreendendo-se, D tentou concentrar seus sentidos na fonte do campo de força que cobria a área, todavia não conseguiu encontrá-la. Talvez tendo aprendido uma lição com o fracasso do ataque na noite chuvosa, o inimigo estava escondendo sua posição usando distrações em uma infinidade de níveis.

Não é que o campo não pudesse ser penetrado por um esforço mental concentrado, porém o esforço em si consumiria muito tempo e energia psíquica.

— Você está aqui para observar a aula? — perguntou Lina segurando o giz.

Um sorriso forçado surgiu nos lábios de D. Em algum lugar naquela psique gélida, capaz de congelar todos os pensamentos, poderia haver um traço da moça inocente, afinal.

Incontáveis Linas se aproximaram. Em suas mãos direitas, cada uma segurava uma estaca de madeira áspera. Cercando D, balançaram suas estacas em uníssono. O Caçador tentou pular para longe, contudo seus pés estavam presos no chão, e várias estacas cravaram em seu peito, espirrando sangue por toda parte.

Com extrema dor, no entanto sem mudar a expressão nem um pouco, D saltou para o canto da sala de aula. Desde que resistiu ao primeiro ataque, grande parte da eficácia do feitiço de seu oponente foi perdida.

Isso não quer dizer que realmente havia estacas cravadas no corpo de D. Toda essa batalha estava acontecendo na mente do Caçador. Se seu corpo, que era equivalente à sua vontade, se rendesse, o verdadeiro D poderia morrer sem um único ferimento físico. Por outro lado, se pudesse resistir, o resultado seria uma lâmina cortante para virar contra seu agressor. Foi uma batalha silenciosa.

Lina, Lina e Lina lançaram suas estacas. Duas foram desviadas, entretanto a última ficou presa em seu ombro.

Com estacas especialmente longas agarradas em suas cinturas, Lina e Lina correram. D sacou sua espada longa e cortou os pescoços de ambas.

A lâmina não encontrou resistência, e as duas estacas afundaram em seu abdômen. Soltando as estacas, Lina e Lina riram com doçura.

D olhou para a lâmina de sua espada. Era apenas um galho de árvore comum. Mesmo que na superfície sua consciência estivesse ordenando que a massacrasse, seu subconsciente estava tentando salvar ‘Lina’.

Ficando cada vez mais enervado pela perda maciça de sangue e calor escaldante, D revelou um amargo sorriso.

Lina saltou, balançando uma estaca para ele por cima da cabeça. Sua mão esquerda a pegou pelo pulso, e a jogou de volta no meio da rede de atacantes que se fechava a sua volta. Embora sua dor tivesse aumentado, a mobilidade estava retornando ao seu corpo. Seu oponente estava enfraquecendo também.

De repente, houve uma mudança no mundo.

D estava em uma seção do campo de gelo atravessada apenas pelo vento uivante.

Não havia nenhuma marca em seu corpo. A espada em sua mão direita havia retornado a ser sua arma incomparável.

D fechou a porta mais firmemente do que nunca na gaiola de sua psique.

Seu inimigo estava apostando sua vitória nesta imagem. Eles fariam todos os esforços letais para deixar um belo cadáver ali, exposto ao vento nos campos de gelo.

Estrelas cadentes voavam pelo céu escuro como breu.

D, alguém o chamou. A voz se contorceu no vento, tornou-se um grito desolado e correu pelas planícies geladas. O grito ecoou de novo, D.

À sua frente, a uma distância impossível de julgar, poderia ser um simples metro ou mil quilômetros, havia uma mulher solitária.


A longa vestimenta de branco puro que levava não era um vestido, mas sim uma mortalha. Não conseguia ver seu rosto, escondido como se encontrava por seus cabelos pretos. Assim como D, sua pele era quase translúcida.

D.

Parecia ser tanto uma voz vinda da mulher quanto a canção do vento.

O Caçador ficou parado, como se estivesse congelado.

De que parte sua seu oponente tirou tal imagem? Verdadeiramente, as vastas planícies de nada eram um mundo adequado a esse jovem. Por outro lado, a mulher...

D, por fim nos encontramos. A voz era como o vento varrendo os campos de gelo. Como eu esperei... Com apenas uma coisa que gostaria de perguntar.

Seu corpo inteiro ficou tenso.

Qualquer pergunta que ela fizesse, conceder esse pedido significaria a morte para sua psique. A armadilha de seu inimigo era perfeita.

Quero saber o nome do seu pai.

E então a pergunta surgiu. A pergunta para a qual essa mulher sabia a resposta melhor do que ninguém.

Pela primeira vez, uma sombra escura residia na beleza serena de D. O vento se tornou ainda mais insistente e, à medida que D ficava mais frio, as planícies geladas tingiam sua sombra ainda mais escura.

Por favor, me responda, D. Qual é o nome do seu pai? Qual é? Qual é o nome dele?

Seus lábios se separaram levemente. O pequeno tremor em sua bochecha testemunhou a intensidade da batalha de vontades na qual se via tragado.

Qual é o nome? Qual é o nome do seu pai?

O vento desfiou as bordas de suas palavras extremamente graves.

— Seu nome... É... Dra...

Os campos de gelo foram enterrados pela luz branca.



D tinha acabado de abrir a porta da sala de aula.

Com giz na mão, o professor de meia-idade virou uma expressão estupefata para o Caçador, e todos os alunos ficaram sem fôlego.

Ele havia triunfado sobre o ataque psicológico.

— Há algo que possamos fazer por você? — perguntou o professor, o substituto do Sr. Meyer.

— Você não viu Lina, viu? — D perguntou, movendo os olhos do professor para os alunos. Os campos de gelo, a mulher e sua pergunta já haviam sidos deixados para trás. Afinal, era um Caçador.

Não houve resposta. Incapazes de se virar, as meninas fixaram seus olhares no semblante do intruso, e até mesmo as bochechas dos meninos foram tingidas de timidez. Elas tiveram que se perguntar se tamanha beleza poderia de fato existir.

— A menina está em sério perigo. Não apenas sua vida, como sua alma está em perigo. Se alguém souber de alguma coisa, por favor, me diga.

Uma figura magricela, o menino Marco, levantou-se perto das janelas e o disse para onde ir. D correu para fora da sala.

Porém quando chegou à planta de processamento de Callis apenas o corpo do menino estava lá, caído no chão com a garganta arrancada. Nem uma gota de sangue permaneceu em lugar nenhum, e Lina se foi sem deixar vestígios.



A dúzia de cavaleiros subindo a colina a cavalo se virou ao som de cascos vindo atrás deles. Os cavaleiros eram o prefeito e o xerife, acompanhados pelos membros do Comitê de Vigilância.

— Para onde vocês estão indo? — D perguntou, parando há uma distância de 5 metros dos demais.

O xerife se adiantou e apontou para o cilindro prateado amarrado na parte de trás do cavalo. Uma bomba de prótons.

— Nós vamos cuidar dessas ruínas. Dessa forma, a visão delas não vai incomodar o pessoal do conselho de exames. Descobrimos por algumas crianças que estavam colhendo flores aqui que qualquer um pode subir normalmente agora.

— Momento perfeito! — o prefeito gritou, sua boca se espalhando pela maior parte do rosto. — Quando terminássemos com o trabalho, tínhamos planejado vir para prendê-lo, por suspeita de assassinar Corma. Então iríamos interrogá-lo sobre onde Lina está.

Quando o olhar de D caiu sobre os homens, vários dos que estavam lá quando Corma foi cortado em dois ficaram pálidos.

— Odeio ter de dizer, entretanto isso não constitui um crime. — disse o xerife, virando-se para o prefeito. — De acordo com o depoimento dos outros, Corma o atacou por trás. Sendo esse o caso, não importa como foi morto, são as consequências de suas próprias ações. Não temos nada a perguntar a esse Caçador, exceto informações sobre Lina.

O prefeito mordeu o lábio. Olhando para D com uma expressão alegre, o xerife continuou.

— Eles me disseram a verdade mesmo depois de verem um dos seus ser morto bem diante de seus olhos. Me parece que estão realmente, verdadeiramente com medo de você. Pra ser honesto, o relato me deixou sem palavras. O fato é que adoraria se você pudesse me mostrar a técnica que usou.

Percebendo o quão estranha a atmosfera havia se tornado, o prefeito gritou.

— De que merda está falando com ele? No mínimo, o maldito deve saber onde Lina se enfiou. Leve-o antes que fuja.

— Se fosse fugir, acho que teria saído da cidade quando o demitiu. — disse o xerife em um tom enérgico. — Mas aqui está. Não sei por quê. E arriscou a vida para proteger Lina quando ela pulou naquela confusão sem pensar duas vezes. Diga-me, senhor prefeito, acha que algum de nós se sentiria a fim de lutar por uma garota que era uma completa estranha com duas dessas bestas de guarda vindo em nossa direção? Um homem como esse não corre nem se esconde, mesmo diante da morte certa. Não há necessidade de apreendê-lo.

O prefeito ficou em silêncio, seu rosto vermelho.

— Eu sei que pode parecer muito cauteloso, porém seria sensato não mexer nas ruínas. — disse D em seu habitual tom suave. — Já que o caminho até o topo da colina voltou ao normal, é apropriado assumir que há algum outro tipo de defesa agora. Aquele castelo pertencia à Nobreza.

— Não estamos deixando nada ao acaso. — protegendo os olhos com a mão direita, o xerife voltou seu olhar para a parte de trás da colina.

D já havia percebido o som baixo e estrondoso.

Ele viu um cano de arma preto perfurando o céu.

Raios de sol se espalharam de seu gigantesco corpo metálico, exibindo uma massa avassaladora. O corpo plano do veículo foi tratado com um revestimento especial resistente a lasers e outras armas de feixe de luz. Apenas a antena do radar e as esteiras de lagarta eram vestígios de tempos antigos.

— É um M-8026 CT... Um tanque computadorizado. — disse o xerife em um tom caloroso. — Nós o desenterramos alguns anos atrás, depois que alguém o encontrou enterrado nos limites da cidade. Chamamos um mecânico da Capital para dar uma revisada. Graças a essa gracinha, nossas perdas para bandidos e bestas colossais nos três anos seguintes foram nulas, embora a vila continua tão pobre quanto sempre. Este modelo tem mais de dois mil anos, contudo ainda tinha o manual e faz o trabalho bem. Parece ter sido abandonado por algum motivo. De qualquer forma, pode ver que temos reforços de sobra.

D não disse uma palavra enquanto virava seu cavalo em direção ao pé da colina. Sem mencionar que a figura cinza e sombria poderia estar espreitando nas profundezas das ruínas, ou que havia uma possibilidade definitiva de que tivesse fugido com Lina, desceu a colina silenciosamente.

— Assim que cuidarmos dos negócios aqui, faremos uma visita à sua pequena cabana perto da roda d’água. — gritou o xerife atrás de D. Ele e os outros habitantes da vila continuaram acreditando que o Nobre estava morto. — Apreciaria se conseguisse descobrir onde Lina está até lá.

O que o xerife deve ter insinuado é que se o Caçador a entregasse em vez de escondê-la, as coisas poderiam ser resolvidas de maneira pacífica.

D não se virou mais.

— Tudo bem, saiam. — ordenou o prefeito. — Ok, xerife, vamos dar uma explosão, só para criar o clima!

O xerife sorriu ironicamente e deu o comando para atirar.

Levantando o cano de calibre 150 milímetros do canhão laser, o tanque mirou no contorno das ruínas sem um único movimento desperdiçado. Não havia nem mesmo o som de engrenagens rangendo.

O espesso feixe de luz fez com que um globo de luz incandescente irrompesse na parede do castelo. Aquela esfera escaldante de cerca de dez milhões de graus fez a parede de pedra evaporar quase instantaneamente, e brilhou como um arco-íris enquanto a luz do sol caía sobre ela.

Os homens deram vivas.

— Agora, entrem! — gritou o prefeito.

A colina respondeu.

De repente, o tanque virou. Levando um tiro de uma arma montada na torre de cerâmica uivante, alguns dos homens e montarias tiveram suas cabeças pulverizadas como caquis maduros.

— Recuem! Recuem para a base da colina! — a voz do xerife foi abafada pelo choque.

Enquanto isso, a forma enorme do tanque estava sendo sugada para o chão. Era como o naufrágio de um navio gigantesco preso em um redemoinho de terra e verde, uma visão além da imaginação.

O rangido de metal moendo subiu da terra, e quando o cano sozinho foi deixado apontando para o céu, um choque terrível sacudiu a colina. A energia do reator atômico ultracompacto tornou-se vermelho-lótus enquanto chamas jorravam no céu, manchando o mundo de vermelho.

— A colina o engoliu então? — D murmurou suavemente, observando de longe o grupo de homens e cavalos descendo a colina, rolando e tropeçando. Agora, o caminho para as ruínas também havia sido cortado.

D retornou ao barraco perto da roda d’água.

Dando água ao cavalo no riacho, pegou uma xícara de prata e uma garrafa cheia de pequenas cápsulas de suas bolsas. Ele pegou um pouco de água cristalina e colocou uma cápsula.

Em questão de segundos a água ficou da cor de sangue. Bebendo tudo de uma vez, respirou fundo.

As cápsulas, cheias de sangue seco, plasma e nutrientes, eram comida para dampiros. Dampiros comuns as tomavam três vezes ao dia. No entanto, esta foi a primeira vez que D tomou desde que chegou à vila. Sua resistência excedia em muito os limites do dampiro médio.

O céu começou a ficar mais azul escuro.

O amanhecer viria novamente para uma certa garota?

Colocando sua xícara perto da janela, caminhou de volta até seu cavalo. Não conseguia desistir, ainda que que seus esforços fossem em vão.

Por que passou por isso uma e outra vez, todas as mortes e esforços desperdiçados? Montando em seu cavalo, começou mais uma vez a refazer o caminho para as ruínas. Galopou por alguns minutos pela estrada e, de repente, parou.

Um jovem solitário estava parado ao lado da estrada. Era Cuore.

Em um instante, este desapareceu.

Desmontando e se aproximando, D avistou o pequeno buraco escondido no matagal. Era o mesmo buraco onde Lina teve seu encontro com a sombra cinza.

Talvez fosse uma armadilha. Sem a menor pausa, D se jogou.

Uma sensação estranha arrepiou seu corpo. Só podia significar uma coisa: uma distorção espacial. Dois pontos estavam conectados, distorcendo o espaço e a distância entre eles. Esses dois pontos provavelmente eram o buraco... E as ruínas.

Havia terra sob seus pés. A menos de 50cm de distância havia um lugar com um piso expansivo pavimentado em pedra. Era provável que esta fosse uma das saídas de emergência da ruína. Ou todos os circuitos explodidos quando D se libertou da dimensão selada foram reparados, ou a energia foi restaurada somente nesta área.

Pegando uma pedra perto do pé, lançou-a para frente. Na linha divisória entre o chão de terra e as pedras do pavimento, a pedra emitiu um clarão pálido de luz e caiu do outro lado. O formato era o mesmo, mas a substância da pedra era diferente.

— Então está morto? Parece que terei que passar por um teste de compatibilidade.

Havia um guarda poderoso de plantão aqui. Qualquer um ou qualquer coisa que não correspondesse aos critérios físicos predefinidos da fenda espacial encontraria uma morte material silenciosa.

Talvez D fosse transformado em diamante.

Sem pensar muito, deu um silencioso passo à frente.

Cada uma de suas células emitia o brilho de joias, e chamas sonhadoras coloriam seu semblante.

Assim que pisou no chão de pedra, o brilho cintilou e desapareceu.

Com apenas um leve movimento de cabeça, D se aventurou nas profundezas da escuridão.

Um fedor fétido e presenças se condensaram ao seu redor. Os olhos de D podiam discernir claramente a vastidão desta área e a forma daqueles que moravam aqui, antigos seres humanos retorcidos e transfigurados.

O vento assobiou, e dois deles que pularam em sua direção caíram no chão decapitados. Uma intenção maligna e maliciosa jorrava desenfreada dos olhos injetados de sangue em D, fazendo a escuridão ferver. Essas criaturas se deliciavam com matança e ódio. O que poderiam ter recebido em troca?

Mais alguns perderam suas vidas também, e então as coisas estranhas recuaram para as profundezas da escuridão. A porta de ferro na parede mais distante começou a fechar, engolindo seus passos.

D se tornou um vento negro, deslizando pela fina abertura.

Ele entrou em um corredor brilhante. Algum tipo de material luminescente deve ter sido misturado ao aço silício das paredes e do teto. O piso, que não havia se deteriorado ao longo dos milênios, refletia de forma vaga sua forma.

Seguindo os sons das criaturas distorcidas, D seguiu por um longo corredor. À distância, o gemido da maquinaria era audível.

Esses eram os restos de um sonho. Mas de quem e com o que eles sonharam?

O cenário mudou, e o caminho de D foi obstruído por uma parede de rochas ciclópicas. Degraus de pedra em ruínas se estendiam na escuridão acima. Depois de escalar todos, uma porta de aço apareceu.

O pingente azul no peito de D ficou mais brilhante, e a porta se abriu sem fazer barulho.

A vasta câmara estava preenchida por uma iluminação quase crepuscular. Era um laboratório que lembrava aquele que havia explorado com Lina. Porém este parecia várias vezes maior. A lembrança de vários castelos que tinha visto antes ia e vinha à sua mente. De fato, também estavam cheios de luz azul. Talvez essa fosse a cor da extinção?

No chão de pedra, dois corpos nus estavam entrelaçados.

A cada movimento da sombra cinza deitada no pálido corpo feminino, um baixo ofegar escapava. Suas mãos brancas arranhavam as unhas no tecido cinza-acinzentado, e suas coxas se apertaram em volta da cintura dele.

O rosto daquela linda mulher, que parecia estar sendo violada por uma múmia da antiguidade, era o rosto de Lina.

Abrindo inesperadamente as pálpebras que o arrebatamento havia pregado, seus olhos encontraram os de D. Sua expressão desapareceu.

A sombra cinza saltou sem nem sequer agitar o ar. A lâmina de sua espada bebeu a luz azul.

Ao mesmo tempo, surgiu o gemido da espada deixando a bainha nas costas de D.

— Entendo... A culpa é do Cuore, não é? — emitindo uma voz de raiva, a sombra espremeu as palavras. — Não foi sensato da minha parte deixá-lo sozinho daquele jeito, mesmo que toda a sua energia psíquica tivesse sido gasta e estivesse mais morto do que vivo. Contudo você chegou tarde demais, Caçador. Meu desejo foi realizado. E agora, terá coragem de cortar Lina?

Estreitando o olhar para captar apenas a sombra cinza, que exalava intenção assassina, e Lina, que havia levantado letargicamente seu torso suado, D analisou a situação.

— Então este é o nascimento de uma nova Nobreza? O que faria se eu pudesse cortá-la?

A figura sombria abaixou devagar sua lâmina até que esta raspou no chão.

— Conseguiria? Realmente conseguiria cortar um amigo?

Lampejos de luz branca se cruzaram.

A sombra se aproximou dele com uma velocidade inacreditável, cortando sua lâmina demoníaca do chão ao céu, no entanto a espada longa de D desviou o golpe e abriu o ombro da figura repentinamente desequilibrada.

A ferida vermelha profunda sofreu um grande rasgo, e sangue vívido voou... Entretanto o corte fechou pouco depois.

Um olhar de admiração percorreu as pupilas de D. Não importa o quão poderosas suas alardeadas habilidades de recuperação possam ser, ninguém entre a Nobreza havia levado um golpe de D e não sido afetado.

Enquanto a sombra se afastava, roçou a mesa de laboratório ao lado. Feita de carvalho, a mesa parecia ter cerca de três metros de comprimento. Movendo sua mão esquerda, a sombra fez a mesa voar em D, rugindo com a força por trás dela.

No instante em que pareceu impactar o corpo de D, a mesa mudou de direção, passou por cima de sua cabeça e caiu no chão as suas costas.

Percebendo que D a havia virado com a ponta de sua espada longa, a sombra ficou enraizada no local.

Este foi um confronto entre coisas que tinham a forma de homens, mas não eram homens.

D saltou no ar.

A sombra parecia ter esquecido de se mover, e seu coração foi perfurado por uma lâmina nua que atravessou suas costas.

Lina engasgou de espanto.

No momento em que as duas figuras se sobrepuseram, uma delas saltou para trás, com uma espada ainda cravada em seu corpo. Atrás de sua máscara, um sorriso irônico surgiu em seus olhos injetados de sangue.

Um vampiro invencível até mesmo para a espada de D no coração! Sim, sem dúvida essa deveria ser a prova de que o demônio que podia andar na luz do dia não precisava se resignar ao destino da noite.

Houve um clarão prateado de luz bem na frente do agora de mãos vazias D, e o Caçador voou pelo ar como a sombra. Quando se aproximou dele, a sombra cinza balançou sua mão esquerda.

Um cilindro de metal atingiu o chão, enviando colunas de chamas em direção a D.

Afastando as chamas nascidas da granada atômica ultracompacta com a bainha do casaco, D parou. Em suas costas havia um muro de pedra.

Podia ver a figura sombria sorrindo através da máscara.

O que congelou seu sorriso foi que o braço que acabara de proteger o peito de D de seu golpe mortal de espada foi realizado com a palma.

Enquanto a sombra aterrorizada observava, o rosto que surgiu na palma de D riu com vontade. A ponta de sua espada estava presa naquela boquinha perversa. Claramente alguém havia mordido mais do que podia mastigar.

Talvez o choque da figura cinzenta tenha sido grande demais, ou talvez não conseguisse igualar a força daquela boca misteriosa, porém, por alguma razão, a sombra largou sua espada longa e pulou para fora do caminho. Tentou extrair a espada que seguia presa em seu peito quando o estalo de vértebras cortadas veio de seu pescoço.


Desta vez, o sangue jorrou como uma fonte e, sem nem mesmo ver o tronco decapitado cair, D se aproximou da cabeça acinzentada rolando no chão.

O impacto após seu voo pelo ar arrancou a máscara, e o rosto do que ainda era um jovem olhou para o céu. A metade direita do rosto parecia ter sido presa em uma prensa, com o olho e a orelha encolhidos à metade do tamanho normal. Feio e grotesco, o rosto estava coberto de rugas.

— Esse é o preço de receber poderes que nenhum membro da Nobreza jamais conheceu! — Lina disse ao lado de D. Não estava claro de onde ela os havia tirado, contudo agora usava uma mortalha branca, vestimenta que até um dia antes seria a coisa mais distante de um traje apropriado para a garota. — Em troca da amplificação de sua energia psíquica, os poderes cognitivos de Cuore degeneraram. Entendo tudo agora. Esse era Tajeel Schmika.

— O Sr. Meyer está bem? — D perguntou, atento ao ambiente, entretanto sem pegar sua espada. Talvez estivesse se preparando para o outro, o vampiro não reconhecido renderizado na tela do computador.

Lina sorriu então.

— Você o verá em breve. Quer saber toda a verdade? Acho que já sabe a maior parte de qualquer maneira.

D olhou para Lina, para a garota de dezessete anos cujo corpo inteiro transbordava de energia, que talvez quisesse atordoar o Caçador com a visão de suas coxas flexíveis espiando pela fenda de sua mortalha.

— Então tudo isso é o resultado dos experimentos de uma década atrás? E agora tudo está vindo à tona.

Lina assentiu com a cabeça em seu tom sereno. Lançando um olhar simpático para as criaturas no canto da sala, com seus olhos brilhando, ela disse.

— Eles eram crianças tiradas de outras aldeias na mesma época que nós. Em sua forma atual, passaram uma década sem comida ou bebida... Sim, poderiam viver assim para sempre. Imagino se poderíamos dizer que se beneficiaram de alguma forma? O que acha? Acho que poderia dizer que, comparados a eles, tivemos sorte. Os experimentos não nos deixaram com nenhuma anormalidade externa, então pelo menos pudemos viver os últimos dez anos como seres humanos normais. Sem nem perceber que tínhamos morrido uma década atrás...

Com um breve olhar para a cabeça e o corpo de Tajeel, que emitiam uma fumaça arroxeada ao se dissolverem, D moveu os olhos para o enorme aparato eletrônico que cercava o laboratório.

Remanescentes dos experimentos abomináveis ​​que já foram realizados aqui, equipamentos de alteração genética, unidades cirúrgicas automatizadas, conjuntos de circuitos integrados de ultragrande escala... Todos ouviram sem dizer uma palavra enquanto a verdade trágica os alcançava.

— Por que Tajeel foi deixado aqui?

— Ele foi um fracasso, afinal. Desde o final dos experimentos ele era selvagem, com uma sede excessiva por sangue. É por essa razão que apenas nós três fomos liberados. Recebemos um período de carência de dez anos. Parece que éramos as melhores cobaias.

Dez anos... Um longo, longo tempo até que os resultados dos experimentos se tornassem claros. Durante esse tempo, as modificações feitas em suas células fizeram com que elas mudassem uma a uma, misturando uma tonalidade diferente no sangue que corria por suas veias e fazendo com que seus genes ansiassem pela escuridão...

— Suponho que poderia dizer que os experimentos, incluindo aqueles para aumentar minha inteligência, tiveram sucesso na maior parte. Agora posso enxergar perfeitamente bem no escuro, e as células do meu corpo produzem energia mesmo que eu não coma nada. Embora não tenha tentado, suponho que posso até sobreviver no vácuo ou debaixo d’água. D, você consegue fazer tudo isso?

Sem esperar por uma resposta, Lina pegou a espada que D havia descartado de cima dos restos mortais de Tajeel. Enfiando-a profundamente em seu próprio coração, ela o deixou assistir enquanto a puxava de volta.

— Contanto que não tenhamos nossas cabeças cortadas, somos imortais. Tajeel sabia disso, então me trouxe para o rebanho, e realizei seu desejo. Como tenho certeza que você pôde ver. Eu me pergunto se minha criança será um bom filho.

— Por que ele esperou até agora para fazê-la sua? Deve ter havido inúmeras oportunidades.

— Porque, como o único que havia despertado, não havia nada que pudesse fazer até que nossos genes da escuridão fossem aperfeiçoados. Tudo o que tinha que fazer era esperar. Eu automaticamente aprenderia a verdade sobre tudo e alegremente o deixaria fazer o que quisesse comigo. Para que pudéssemos aumentar nossos números.

Então, esse era o verdadeiro propósito das ruínas?

— No entanto parece que o experimento falhou, afinal. O mesmo desejo que Tajeel tinha habita em mim também.

Dentro de sua boca ligeiramente aberta, D viu um par de presas.

A garota brincando em uma estrada coberta de restos de neve porque iria para a Capital.

A garota no parapeito da janela, uma flor branca em seu peito, olhando por uma eternidade para a estrada que havia levado seu pretendente misterioso para longe.

— Não sei se já o encontrou ou não, mas antes de vir aqui matei um dos meus colegas de classe. Quando ficamos sozinhos, ele de repente me agarrou, me empurrou para o chão e exigiu que transferisse meu direito de ir para a Capital para ele. Disse que essa era a única razão pela qual fingiu estar interessado em uma vítima de Nobre como eu. Naquele momento, algo dentro de mim mudou para sempre. Me pergunto se justifica o seu assassinato?

D ficou em silêncio, apenas ouvindo. Não havia mais nada que tivesse de fazer. Pelo que lutou nesta vila, afinal?

— E você também tem o mesmo desejo? — oh, mas a voz do Caçador estava tão fria e clara como sempre quando enviou a pergunta por cima do ombro.

—Sim. — Cuore ficou paralisado na luz azul. Tinha uma expressão inteligente e racional que parecia pertencer a outra pessoa, e tinha presas brancas peroladas reluzindo por trás dos lábios.

— Ele tentou me proteger até o fim. Mesmo sabendo do destino que o aguardava, fez o melhor que pôde, pediu que não me trouxessem para o grupo. Embora tenha sido quem encontrou a entrada na floresta e libertou Tajeel em primeiro lugar, na noite em que Tajeel atacou a esposa de Kaiser pela segunda vez, Cuore estava se esgueirando tentando detê-lo. Por desgraça, não havia dominado o uso de sua energia psíquica e deixou tudo sair de controle em nossa casa.

Deixando um sorriso decepcionado surgir, Cuore se aproximou e ficou ao lado de Lina. Enrolando seus braços pálidos em volta do pescoço dele, Lina sorriu lascivamente.

— Pretendo deixá-lo fazer o que quiser comigo também. O que você vai fazer, D... Tentará me deter? Você não deveria ser um Caçador?

— Não trabalho sem remuneração. Além do mais, meu negócio aqui está feito. — essa foi sua despedida para a garota que ouviu a canção do vento e do riacho com ele.

D girou nos calcanhares na luz azul. Chegando até a porta, uma voz cheia de malícia sobrenatural surgiu de um canto escuro.

— Por que... Está o deixando ir embora?

D viu a sombra cinza se aproximando com uma arma laser na mão direita. O último... O homem que o computador havia renderizado.

— Pare com isso! — Lina disse em um tom estridente. — Matá-lo não resolverá nada. Podemos viver em qualquer lugar. Com o tempo, talvez possamos descobrir uma maneira de sobreviver sem desejar sangue.

A figura sombria balançou a cabeça. Foi um movimento estranhamente lento.

— Não nos deram tempo... De uma boa olhada.

Uma de suas mãos arrancou a máscara.

Houve suspiros de surpresa.

O que fez os olhos de Lina e Cuore se arregalarem não foi o fato de o rosto pertencer ao Sr. Meyer, é claro, e sim que o rosto em si estava deformado e derretendo, como uma estátua de cera. Um olho caiu até o queixo, deixando um rastro de tendões vermelhos atrás.

A memória de D repetiu uma certa frase. Devo me livrar dos fracassos.

— Você não... Parece surpreso. — disse o Sr. Meyer. — Já sabia, afinal, não é verdade?

D assentiu.

— Quando aquela casa de fazenda foi atacada por algumas criaturas que escaparam daqui, não havia sangue suficiente para justificá-lo. Só poderia haver uma razão. Porque você era uma delas. — sua voz parecia dolorida. O homem que deixou uma luz brilhar sobre o futuro de uma garota. Essas também eram palavras de despedida. — Aparentemente, sua natureza vampírica parece ter despertado sem que percebesse. Foi você quem atacou Fern e sua filha? Explicaria por que, quando as duas amostras de sangue de dois atacantes diferentes foram misturadas e analisadas, um rosto irreconhecível foi exibido.

Um feixe de safira converteu o chão aos pés de D em vapor e íons. D nem sequer vacilou.

— Por que você é o único que está bem? Nós não somos... Humanos feitos da mesma forma? Por que somos os únicos... Que devem morrer?

Houve um som como algo se quebrando, e o professor caiu no chão.

— Sr. Meyer!

— Fique longe de mim... — verificando Lina antes que ela pudesse correr até ele, o professor tentou se levantar de volta.

Uma luz azul atravessou o crepúsculo, queimando as paredes e o chão em sucessão.

O cano da arma caiu.

Uma voz carregada de raiva infinita e protesto rastejou pelo chão.

— Lina... Você não deve... Estudar... A história da Nobreza...

Observando o icor pútrido e as roupas caírem em uma pilha no chão, Lina perguntou a D.

— É esse o nosso destino?

D ficou em silêncio, relembrando a voz. Você foi meu único sucesso.

— Eu o invejo.

Como as palavras de Lina devem ter soado para D?

— Estou com tanta inveja que poderia odiá-lo. Quando vamos acabar assim, sabe me dizer?

— Não, não sei.

Distraidamente, Lina passou o braço em volta do pescoço do inerte Cuore e disse.

— Planejei apenas sair de cena, contudo vou comparecer perante o conselho de exames amanhã. Você também irá, não é? Fiel ao último desejo do Sr. Meyer, tenho que dizer a eles o quanto detesto a Nobreza. Dizer que não há amanhã para eles, nem história... Assim como nós quatro.

De repente, Cuore se afastou de Lina.

Sem palavras de surpresa, Lina estava pronta para segui-lo, no entanto D a pegou pelo braço.

— Ele não quer que você o veja.

Cambaleando, o jovem desapareceu nas profundezas da escuridão. Sua hora também havia chegado.

Na luz azul que provavelmente preencheria este lugar por toda a eternidade, o belo Caçador e a garota mantiveram seus olhos nas profundezas da escuridão enquanto ambos, individualmente, testemunhavam a crueldade do destino.



No dia seguinte, o trio de examinadores que chegou à vila no início da tarde recebeu uma proposta estranha do prefeito, que parecia um tanto pálido. Este disse que a cidade queria realizar o exame nas ruínas que pertenceram à Nobreza.

A seleção de um ser humano que ajudaria a construir o futuro aconteceria nas ruínas daqueles que governaram o passado. Não seria emocionante?

A proposta foi aceita. Naquela noite, muitos estavam presentes em um salão subterrâneo cheio de cadeiras.

Embora os membros do conselho examinador franzissem as sobrancelhas enquanto Lina estava em seu vestido branco na frente de dispositivos misteriosos, após um sorriso cativante seu, eles se sentaram sem reclamar. Os moradores se alinharam logo atrás.

Apenas uma pessoa, o prefeito, tinha uma expressão de descontentamento, e isso porque D e Lina o coagiram a usar este local. Se seu relacionamento com sua filha adotiva fosse tornado público perante o conselho examinador, teria sido expulso da cidade, independente do poder que detinha. Todavia, mais do que isso, mais do que tudo, foi a aura assustadora de D enquanto o Caçador o encarava que fez o prefeito tremer.

D ficou em silêncio atrás de Lina, escondido nas profundezas da escuridão.

Quando todos foram para seus assentos, Lina fez uma reverência silenciosa e o prefeito se levantou.

— Representante deste ano da vila de Tepes: Lina Belan. Sua pontuação nos testes de seleção... Mil e duzentos de um total de mil e duzentos pontos possíveis. Seu excelente trabalho lhe rendeu um lugar perante este conselho examinador.

Embora tentassem o seu melhor para preservar seu comportamento severo, as expressões dos examinadores suavizaram. Apesar do fato de que os resultados tinham sido comunicados com antecedência, o desempenho de Lina ainda tinha o poder de inspirar admiração.

— Muito bem. Agora, há apenas uma pergunta que devo fazer antes que a decisão final seja tomada. Quais estudos pretende fazer na Capital?

Uma onda de tensão passou pela assembleia.

Muitos de seus colegas sabiam do desejo da garota. Porém, dizê-lo em voz alta seria jogar fora todos os seus amanhãs. Mas eles não sabiam que para Lina não havia amanhã.

Enquanto D estava ali, ele tinha um leve tom de tristeza em seus olhos.

— Antes de responder, há algo que gostaria de mostrar a vocês.

A assembleia se agitou com o comentário de Lina. Tal proposta estava fora do normal. Este exame, que poderia ter sido concluído com uma breve resposta, estava se tornando um assunto longo e prolongado.

— Uma vez, este castelo foi chamado de Centro de Cálculo da Fronteira da Nobreza. — Lina começou. — Construído há cerca de cinco mil anos... Bem, cinco mil, cento e vinte e sete anos atrás, para ser exato... Certos experimentos ultrassecretos foram conduzidos aqui. Cinco mil anos, não há algo familiar sobre esse número? Do ponto de vista histórico, costuma-se dizer que o declínio da Nobreza como raça começou nesta era.

A luz azul se agitou. O que a garota estava tentando dizer a eles?

Lina levantou a mão direita.

Entre a garota e o público, uma imagem se formou. Embora fosse bidimensional, tinha profundidade e cor. Percebendo que a imagem era do mesmo salão subterrâneo em que estavam agora, as pessoas se entreolharam.

Máquinas abrigadas na escuridão brilhavam, pessoas sombrias corriam de um lado para o outro, frascos jorravam jatos de fumaça prismática. Crianças eram seladas em invólucros médicos no que pareciam ser mesas de laboratório, e homens em trajes pretos estudavam dados renderizados em estranhos pontos de luz brilhantes.

— Esta é uma gravação dos experimentos. — explicou Lina. — Experimentos da Nobreza que eram nada menos que uma tentativa de deter o declínio de sua espécie. Contudo, sua ciência já havia chegado à conclusão de que seu declínio era inevitável. Para a Nobreza, esse declínio inevitável também significava uma eventual extinção. Como os poucos que chegaram a essa conclusão devem ter amaldiçoado seu destino, talvez até mesmo chafurdado no mais profundo desespero, eu posso imaginar.

Aqui, Lina abriu um grande sorriso.

— Dá a você uma sensação calorosa e confusa, não é?

A assembleia se agitou um pouco, a tensão foi quebrada. Os examinadores trocaram olhares e riram. Ainda sorrindo, Lina continuou.

— A maneira como escolheram combater seu desespero foi por meio desses experimentos. Se a inevitabilidade de sua ruína estava escrita em seus genes como letras esculpidas em um marco, então só tinham que transformar esses genes em outra coisa. Transformar a noite em dia, a escuridão em luz. Tornar-se uma criatura com uma vontade muito maior de sobreviver como raça, uma energia potencial maior. Dessa forma, começaram a tentar combinar geneticamente os humanos com a Nobreza.

Demorou alguns segundos até que todos reunidos ali pudessem entender a importância das palavras de Lina.

Desta vez, ondas de choque percorreram a assembleia. O prefeito e um dos examinadores se levantaram.

— Como... Como você sabe disso? O que você é?

Como se respondesse à pergunta do examinador, a imagem pendurada no espaço mudou.

Crianças distorcidas nasceram uma após a outra, homens e mulheres transformados em algo que não era mais humano. Uma parte das ruínas foi subitamente consumida pelas chamas, desmoronando.

— Esses experimentos foram realizados em segredo em uma área da Fronteira, longe da Capital, e é fácil imaginar o que os resultados significariam para muitos da Nobreza. Assim como achamos repulsivo até mesmo considerar tal coisa, eles também detestavam a ideia de se misturar com humanos. Digamos que a destruição pela facção oposta que acabam de testemunhar foi uma resposta. Aqueles que tinham acesso ao segredo fugiram das ruínas, e o silêncio reinou aqui por cinco mil anos.

Prestes a dizer algo, o examinador viu um olhar surgindo nos olhos da garota. Ele segurou a língua. Que olhar misterioso era. Quando ódio e tristeza são misturados, eles poderiam produzir uma imagem de suprema felicidade?

— Dez anos atrás, as ruínas voltaram à vida. Um ser de tremenda importância, alguém que até eu acho difícil de compreender, pegou quatro crianças da nossa vila e realizou os mesmos procedimentos em nós. Por que tão tarde? E por que essas crianças foram escolhidas? Isso eu não sei. Talvez o declínio de sua raça tenha tido altos e baixos, como um biorritmo, e houve um momento ideal para recomeçar. De qualquer forma, as crianças passaram pelo tratamento e foram devolvidas à vila. Todas as memórias foram apagadas, sem saber que os resultados se manifestariam em seus corpos uma década depois. E agora os resultados estão aí. Tomando essa forma...

Os olhos das pessoas se concentraram em Lina, no par de presas saindo dos cantos de seus lábios.

Não houve mais agitação da multidão. Um silêncio mortal caiu sobre todos, e o prefeito cobriu o rosto com as duas mãos.

Apagando a imagem com um leve aceno de sua mão direita, Lina continuou numa suave voz.

— Sim, entretanto agora acabou. As quatro crianças, de acordo com o destino, deixarão a vila. Mesmo que esse destino tenha sido imposto a elas por outra pessoa.

Nesse ponto, Lina virou as costas para o público, como se quisesse deixar alguém parado na escuridão ouvir sua última maldição.

— Não há mais necessidade de lamentar por eles... — disse a garota. — Porque agora enfim entendem. O que era esperado para os quatro. O que os espera, para onde devem ir. E embora a longo prazo os próprios não tenham chegado ao topo, foram um passo no que continuará sendo uma escalada muito, muito longa.

— A Nobreza pereceu, e a raça humana permanece. — continuou Lina. — Todavia, não poderíamos dizer que a disposição biológica dos seres humanos, tanto em sua fisiologia quanto em sua psicologia, é superior à da Nobreza? Quem poderia alegar que o valor de uma criatura é baseado na altura do biorritmo de sua espécie? Brutalidade e crueldade a par da Nobreza, um desejo de destruir qualquer coisa mais bonita do que você... Essas coisas são muito familiares para mim.

Transfixado por aquelas pupilas geladas, o prefeito empalideceu.

Mais uma vez, uma imagem surgiu.

As pessoas viram estrelas brilhando em um oceano escuro como breu. À distância, mais cem bilhões de estrelas brilhavam, uma vasta nebulosa espiral alimentando uma multidão de formas de vida, o mar de átomos de hidrogênio dando origem à própria existência.

— As quatro crianças deveriam ir para lá.

A voz de Lina soou como se tivesse atravessado uma grande distância quando soou nos ouvidos daqueles reunidos nas fileiras.

— Livres do destino negro que pairava sobre os humanos e a Nobreza, deveriam sair e se juntar à consciência universal como uma forma perfeita de vida ‘inteligente’. Agora até esse sonho se foi, mas por causa disso, suponho que não lamentam por si mesmos.

De repente, a imagem mudou.

A escuridão desapareceu rapidamente e a luz encheu o salão. A luz branca que brotava afastou o crepúsculo, envolvendo os rostos exaustos das pessoas e cada centímetro de seus corpos em um tom maravilhoso e sereno.

— Este é o potencial da nova humanidade.

Com todo o seu corpo brilhando lindamente, Lina encarou D em silêncio, depois olhou para as pessoas brilhantes.

— As pessoas que descobriram esse potencial, os seres que guiaram a raça humana a um nível mais alto... Eram realmente tão amaldiçoados?

A garota de repente pressionou a mão no peito. A hora havia chegado. Se nada mais, sua voz estava orgulhosa.

— Acredito que gostaria de aprender sobre a história da Nobreza.



Assim que terminou de dizer as palavras, Lina desabou.

— Não chegue perto de mim! Não olhe! D!

As pessoas pararam onde estavam, e a bela sombra se ajoelhou ao lado de Lina.

— Só esconda meu rosto…

Um lenço preto caiu sobre o rosto da garota.

— Obrigado... D... Por ficar ao meu lado. Estou com tanto medo…

— Sempre estarei aqui.

— Aquela vez no barraco... — Lina arrancou uma voz de sua dor. — No barraco... A flor branca que encontrei de manhã... Aquilo... Foi obra sua, não foi? Se alguém a tivesse deixado, não tem como... Você não ter notado...

— Isso mesmo.

— Fiquei tão feliz... Tão... Feliz... Havia duas pessoas que se importavam comigo... Queria ter conhecido a outra...

— Não fale.

A mão de Lina se levantou. Pouco antes de começar a derreter e dissolver, D a segurou gentilmente. Foi a primeira vez que o fez. Nunca mais aconteceria.

— Adeus... D. Oh, o potencial que tínhamos...

O peso na mão de D diminuiu em poucos instantes, junto com sua voz.

Ninguém se moveu.

A luz ofuscante lançou longas, longas sombras pelo chão.

Quando um garoto magro levantou os olhos úmidos ao som de uma porta abrindo e fechando, o lindo Caçador de Vampiros havia desaparecido.



Alguns dias depois, um cavalo e seu lindo cavaleiro seguiam a estrada estreita onde os restos de neve incrustada conspiravam com os brotos de grama jovem.

Embora a noite tivesse acabado, uma espessa camada de nuvens sombrias cobria o céu oriental. Os raios do sol da manhã não atingiam o solo.

Uma brisa quase imperceptível agitava a bainha do casaco preto do cavaleiro enquanto este cruzava o mar de grama que se estendia ao longe.

Atrás do cavaleiro, havia o gemido do primeiro ônibus elétrico da manhã se aproximando.

Cerca de 5 metros à sua frente havia um pequeno banco. Por mais humilde que fosse, era uma parada em uma linha de ônibus que conectava a Fronteira e a Capital.

Ao notar o cavalo e o cavaleiro, o garoto magro sentado no banco olhou para cima, surpreso. No momento seguinte, sua expressão tornou-se tímida e tornou a olhar para baixo. Suas mãos sem luvas estavam completamente rachadas.

A pequena bolsa de viagem ao seu lado trazia o endereço de seu destino, bem como seu nome... Marco.

O cavalo e o cavaleiro passaram.

Pouco depois, ouviu-se o som do ônibus parando. Ele se aproximou, depois passou.

De repente, uma janela se abriu e o garoto colocou a cabeça para fora. Acenando freneticamente com a mão magra, ele gritou algo.

O gemido penetrante do motor e das rodas ofuscou sua voz. Porém D podia ouvi-lo. E foi isso que o garoto disse.

— Estou indo para a Capital. Vou fazer história da Nobreza.

Uma rajada de vento soprou, como se fosse perseguir o ônibus.

D lembrou.

O rosto de um garoto ouvindo as últimas palavras de uma garota. Um olhar de orgulho sem limites em seus olhos. O rosto de alguém que amava.

E D sabia.

O mensageiro que deixou as flores brancas e deixou uma garota sonhar.

Em algum momento, as nuvens se dissiparam e, enquanto observava o pequeno ônibus desaparecer na distância banhada pelo sol, um leve sorriso começou a surgir nos lábios de D.

Se aquele garoto pudesse ter visto, teria contado às pessoas pelo resto de seus dias como tinha sido o único a trazê-lo à tona. Era apenas um sorriso.



Notas:
1. Perigeu é o ponto mais próximo que um objeto pode chegar à Terra em sua órbita.
2. An Adventure é um livro de 1911 escrito por Charlotte Anne Moberly e Eleanor Jourdain. Nele, as autoras alegam terem sido transportadas de volta ao século VXIII e terem sido atormentadas pelo fantasma de Maria Antonieta.
3. Propelente ou propulsante é um material que pode ser usado para mover um objetivo aplicando uma força, que pode ou não envolver uma reação química.

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