Volume 02: Raiser of Gales — Capítulo 13: Genes da Luz e da Escuridão
D acordou quando a luz fria encheu o celeiro até os beirados. Seu sono durou talvez umas três horas. Para um dampiro, não importava se trabalhava de noite ou de dia, mas até mesmo seu corpo exigia um descanso ocasional e sono. Talvez a sombra agarrada ao seu semblante requintado fosse devido à tensão de ter que trabalhar apenas de dia nos últimos tempos.
Uma névoa havia se movido, ao que parecia, e a brancura deslizava para dentro do celeiro pela entrada e pelas rachaduras ao redor das janelas, porém não era tão espessa a ponto de atrapalhá-lo. Ainda mais porque aos olhos de D não era diferente do meio-dia com tempo bom.
Fazendo seus preparativos com sua velocidade sobre-humana característica, deixou o celeiro.
Seu passo era suave. Mais como uma sombra do que um gato. Se a furtividade fosse uma característica inata dos Nobres, não poderiam esperar por um silêncio maior do que o que D possuía.
Entrando em um estábulo a uma curta distância, o jovem parou. Sete ou oito metros à sua frente, as paredes de pedra da casa principal refletiam a luz do sol da manhã. Vestida com uma camisola branca, Lina abriu uma das janelas e se debruçou para a rua. Logo abaixo do peitoril, havia uma pequena floreira pendurada. Esticando a mão, Lina pegou algo branco que estava nela.
D viu claramente. Era uma única flor branca. Embora não soubesse como era chamada, essa pequena expressão de vida era uma visão bastante comum ao longo das estradas da Fronteira. Quem poderia tê-la deixado?
Pressionando-a contra o peito, Lina olhou para a estrada com uma expressão beirando as lágrimas. A garota olhou distraída para a estrada branca, enevoada com neblina.
Em pouco tempo, a janela se fechou sem fazer nenhum som. D entrou no estábulo, saiu com sua montaria e apontou-a para as ruínas. Em plena quietude, como se tentasse não fazer barulho, como se tentasse não destruir o sonho de uma jovem.
Assim que D saiu da propriedade do prefeito, começou a galopar a toda velocidade. O cavalo rasgou a névoa. Os restos de neve incrustada voaram em todas as direções. Demônios da névoa que estavam devastando as plantações ficaram assustados com este cavaleiro matinal e desceram para ver o que ele estava fazendo, contudo foram esmagados antes mesmo de poderem tocá-lo, e foram deixados esparramados em seu rastro.
Correndo pela vila, em menos de vinte minutos subiu a colina e chegou à entrada das ruínas. Atrelando seu cavalo à beira de um muro de pedra quebrado, o Caçador entrou no pátio.
A névoa permeava as ruínas.
Passando do corredor para o salão, D ia direto para a entrada do laboratório, no entanto parou quase no centro do salão.
Seu olhar se voltou para uma imagem na parede. Era a mesma pintura que fez brilhar os olhos de uma jovem quando estava diante dela, dizendo que queria estudar história.
No instante em que se virou e começou a andar mais fundo nas ruínas, o teto e a parede ao redor da porta racharam. Um clarão vermelho de luz e energia gasosa selvagem saiu da rachadura, indo em sua direção. O tempo que D levou para ver isso e fazer uma escolha consciente de como evitá-lo foi a diferença entre a vida e a morte.
O impacto varreu os pés de D de baixo dele e o jogou contra a parede atrás. Pedaços grossos de pedra voaram, e o rugido ecoou pelo corredor.
Agora, uma montanha de entulho estava na frente da entrada. Seria impossível entrar nos cômodos além sem trazer equipamento motorizado.
D estava no chão, a parte superior do corpo apoiada na base da parede. A aba de seu longo casaco estava coberta de branco pela poeira que subiu com o impacto. Não havia como se mover. Tendo recebido uma explosão de energia que destruiu centenas de toneladas de rocha nas paredes e no teto, acabou esmagando sua cabeça contra uma parede de pedra. É claro que uma pessoa comum teria morrido no mesmo instante apenas por ferimentos internos.
Para dizer o mínimo, foi uma infeliz coincidência que D estivesse passando pelo local quando o projeto para bloquear a entrada que a figura de cinza mencionou na noite anterior estava em andamento.
Um viajante solitário avançava a cavalo por uma estrada florestal a alguns quilômetros da vila. Cerdas cobriam seu queixo de pedra, e o olhar atroz em sua face o complementava perfeitamente. Seu olhar e a arma de rebite em sua cintura davam um testemunho claro da natureza deste homem. Era um dos foras da lei que vagavam pela Fronteira.
Quando havia até mesmo um pouco de dinheiro a ser ganho, este homem se rebaixava à chantagem ou extorsão, e também não tinha escrúpulos em cometer assassinato. A pele sob seu casaco grosso e aquecido por eletricidade era esculpida por incontáveis ferimentos de balas e lâminas, e seu lóbulo da orelha direita estava faltando, embora vestígios horríveis permanecessem onde havia sido arrancado. Enquanto estrangulava uma jovem em alguma vila bem ao norte, a garota o arrancou em seus estertores de morte.
Nos últimos dias, esteve com dificuldade para encontrar uma boa comida ou uma mulher. Talvez estivesse imaginando os prazeres que o aguardavam na próxima vila, porque um sorriso vulgar surgiu em seus lábios imundos.
— O que...?
Antes de puxar as rédeas, o homem se viu duvidando de seus próprios olhos. Há quase 5 metros ou mais à frente, uma jovem saiu de trás de algumas árvores e entrou na estrada. Isso era atraente o suficiente. Entretanto sua figura curvilínea queimou nas retinas do homem.
A garota estava completamente nua.
O que é isso... Uma prostituta da Fronteira? Profissional ou não, não consigo entender por que estaria correndo por aí desse jeito... Seria alguma maluca?
Embora sua mente tivesse se arrastado até ali, a razão do bandido grosseiro derreteu em um instante, e seu cérebro ficou ocupado apenas com ações que poderiam ser feitas com a garota. Mesmo assim, esperou um momento, examinando os arredores com uma cautela que aprendera em seus inúmeros encontros sangrentos.
Ninguém por perto? Se sim, essa querida é uma maluca, com certeza. Posso tê-la de qualquer maneira e matá-la quando terminar. Aqui longe, não terei que me preocupar com alguém a encontrando até que ela não passe de ossos.
Todavia seu plano não se mostrou tão fácil.
Quando o homem desmontou com um sorriso desarmante, a garota olhou por cima do ombro e, dando-lhe um olhar sedutor, correu para a floresta. As curvas de seu traseiro o deixavam louco... Redondo e firme como uma fruta suculenta pronta para explodir, como só uma jovem poderia ser. Amarrando seu cavalo a uma árvore próxima, saiu atrás da garota, adentrando a floresta, para um mundo de escuridão do qual não haveria retorno.
Ele a perseguiu por talvez cinco minutos, a respiração raspando alto de suas narinas.
Mergulhando na mesma folhagem luxuriante que engolia a forma nua, o homem parou de repente.
A garota estava deitada no prado bem à sua frente. Seu olhar estava fixo em seus seios, virando-se para notáveis botões rosados e suas coxas úmidas e brilhantes. A garota gemeu e torceu sua metade inferior. Havia pouquíssima chance de perceber que sua intenção era mostrar mais de sua bunda do que o realmente necessário. Sua pele pálida estava sem sangue, e ainda assim seus lábios estavam tingidos num estranho tom de vermelho, mas o bandido não percebeu.
Este caiu sobre aquele corpo branco como um pedaço preto de pedra. Chupando e torcendo seus lábios, forçou sua língua em sua boca. E a garota respondeu.
Isso é fantástico!
Erguendo os olhos em deleite, vislumbrou o rosto da garota.
Ela estava rindo com a face de um demônio.
Enquanto tentava pular, um braço frágil segurou seu corpo para baixo, e os dedos do outro afundaram em sua mão direita enquanto tentava agarrar sua arma de rebites.
Quando os lábios que se curvaram para revelar presas se fecharam sobre ele, o homem finalmente gritou. E embora tenha durado muito, a floresta profunda bebeu tudo.
Quando foram informados de que o Sr. Meyer estava ausente da escola, Lina sentiu os olhos de toda a classe cutucando-a.
A vila soube do incidente na noite anterior.
Um monstro de tipo até então desconhecido invadiu uma casa de fazenda perto da escola, matando e devorando uma mãe, uma criança e alguém que estava passando. Para piorar, um dos membros do Comitê de Vigilância que desapareceu depois de verificar o nível da água foi encontrado morto esta manhã sob a ponte, e a confirmação de que o corpo estava livre de ferimentos causou um grande alvoroço.
Isso poderia ser desculpável, mas quando o prefeito soube e foi direto para o celeiro, não havia sinal de D ou do cadáver do monstro ali, apenas a mulher em um profundo sono como sempre, porém com uma marca como um “t” na testa. Lina ainda não tinha certeza se havia sido desenhada com sangue ou outra coisa.
É claro que o prefeito ficou indignado e criticou duramente o Comitê de Vigilância por sua negligência. Por um lado, disse a eles para verificarem o paradeiro atual de D, contudo também os advertiu para manterem essa informação em segredo. No entanto esta é uma vila muito pequena. Quando Lina e os outros foram para a escola, uma versão superficial dos eventos havia circulado por quase todas as casas da área. O fato de que o Sr. Meyer foi quem aparentemente foi levado pelo monstro talvez tenha sido vazado por um dos membros do Comitê que visitou a casa do professor na noite anterior.
Embora o instrutor da escola que veio informá-los da ausência do professor fingisse que sua ausência se devia a um resfriado, não havia chance de isso abalar a convicção sombria que fluía entre os alunos.
Oh, de novo não. Eu odeio isso, pensou Lina, suspirando de tristeza.
A escola nem sempre foi um lugar acolhedor e caloroso, em parte por causa do incidente ocorrido uma década antes. Sequestradas pela Nobreza, as crianças retornaram depois que algumas coisas horríveis foram feitas a elas; em uma vila da Fronteira, isto por si só era motivo suficiente para o exílio. A humilhação do exame que Lina passou nas semanas seguintes abriu feridas escuras em sua alma que seguiam estando à espreita, em algum lugar, até agora. A tensão matou seus pais em rápida sucessão e, mesmo depois que o prefeito a adotou, não teve permissão para chegar perto das outras crianças por mais dois anos. Durante esse tempo, não importava onde fosse ou o que fizesse, o olhar brilhante e investigativo do prefeito ou do Comitê de Vigilância estava fixo em cada movimento seu.
Aposto que todos eles sabem o que está acontecendo entre o prefeito e eu.
Lina queria chorar como um bebê.
O mais provável é que não soubessem como ele a forçou em seu aniversário de dezessete anos, mas o conhecimento de seu relacionamento imoral havia se espalhado por toda a vila.
Alguns relacionamentos bastante injustos eram comumente permitidos nas comunidades da Fronteira. Vilas que podiam ser isoladas do mundo exterior pela chuva ou neve precisavam de uma força de trabalho garantida... Essa era sua maior preocupação. Se não fosse apenas em busca de puro prazer, então qualquer relação, seja entre um homem e a esposa de outra pessoa, uma mãe e seu próprio filho, ou um pai e sua filha, poderia ser considerada valiosa na medida em que pudesse semear as sementes de uma nova vida.
Nesta era, deficiências mentais e outros problemas causados por endogamia não existiam mais. Por alguma razão, a Nobreza havia escolhido compartilhar o fruto de sua expertise em engenharia genética com a raça humana. Doenças hereditárias eram coisas do passado. Até mesmo os nomes das doenças não eram mais lembrados pela humanidade.
Sem dúvida, foi a sombra de dez anos antes que fez o espírito de Lina afundar como chumbo.
Cuore nunca se recuperou de sua demência, e esse fato por si só foi o suficiente para aterrorizar os moradores. E então, no extremo oposto, exames determinaram que a inteligência de Lina e do Sr. Meyer havia aumentado a um grau surpreendente. Essa foi a razão pela qual o prefeito adotou Lina; também foi o motivo pela qual todos os seus colegas de classe abominavam seu relacionamento com ele.
Uma mulher que se tornou inteligente nas mãos da Nobreza.
E, ainda assim, Lina não era abertamente provocada ou evitada, graças ao brilho de sua disposição, seu porte esplêndido e os esforços do Sr. Meyer, que suportou o ombro frio dos aldeões e fez um excelente trabalho ao passar no teste do comitê do circuito para se tornar um professor. Era impossível dizer quanta força Lina extraiu ao vê-lo, um garoto fraco e chorão na infância, enfrentando os valentões e protegendo-a agora.
Até Cuore, que começou a vagar sem rumo pela vila após a morte prematura de seus pais, salvou Lina do mal. Seu declínio em inteligência não fez nada para mudar seu inato caráter cortês e gentil. Lina ainda conseguia se lembrar de maneira vívida de quão confiável sua forma corpulenta a protegeu das pedras que outras crianças atiraram.
E agora não tinha mais nenhum dos dois para protegê-la. Embora Cuore estivesse sob os cuidados de Fern, o desaparecimento do Sr. Meyer foi mais do que suficiente para render a Lina os olhares malignos e desconfiados de toda a classe.
— Bem, Lina, enfim sabemos o verdadeiro motivo pelo qual você foi escolhida para ir para a Capital. — disse sua pior inimiga, Viska, alto o suficiente para todos ouvirem. — Não sei o que aconteceu naquele castelo, porém não precisava manter todos nós vivendo em terror pelos últimos dez anos. Assim que você se for, as coisas devem ficar bem pacíficas por aqui novamente.
— Sim, contudo vai ser um inferno na Capital! — um membro do grupo de Viska complementou com sarcasmo e uma risada estridente.
Ah, isso é tudo. Talvez eu tenha que bater em alguém agora, pensou Lina, prestes a se armar com um de seus chinelos de couro. No entanto se conteve porque sabia que os comentários refletiam o que todos na classe sentiam. Os outros apenas não disseram nada porque ainda a consideravam uma deles.
Dito isto, era inegável que toda a classe havia se tornado muito distante desde que foi decidido que Lina iria para a Capital. Quando se considera a importância de deixar a Fronteira, havia aqueles que nunca entenderiam por que a pessoa que representava a vila era alguém com uma conexão com a Nobreza.
Bem, deixe-os dizer o que quiserem.
Assim que Viska estava prestes a dizer mais alguma coisa para Lina, que agora estava em um estado de espírito mais contido, o professor substituto da escola entrou e as tribulações da manhã chegaram ao fim.
Avançando insipidamente em matemática e física, o dia escolar estava prestes a entrar no terceiro período quando uma sirene inesperada soou.
— Ei, o que houve?
— Três toques sucessivos... Significa reunir-se na praça!
— Talvez eles tenham capturado um Nobre vivo?
— Não seja idiota!
— Silêncio! — ordenou o professor. — Tenho que sair. Seu representante de classe terá que me acompanhar. O restante de vocês terá um período de estudo livre.
Mas ele sabia que os alunos o ignorariam.
Quando deixou a sala e levou junto Callis, o representante de classe, todos os outros se prepararam para sair, era justo o que estavam esperando. Alguns se agitaram nos armários cheios de armas guardadas para o caso de monstros atacarem, e outros correram para pegar suas lancheiras para levar para casa; em pouco tempo, o som da atividade cresceu para um grande alvoroço, e um segundo depois todos os alunos desapareceram, deixando as janelas e portas ainda tremendo.
Ao ver como até os olhos de Marco, o garoto mais tímido da classe, brilhavam de expectativa, Lina quis rir. Na Fronteira carente de diversão, as crianças eram mais propensas a ficar animadas do que assustadas quando feras assustadoras corriam soltas, desde que não prejudicassem a vila.
Além do gigante behemoth ou roc, ou outros monstros colossais das lendas, arranjos foram feitos para se defender contra a maioria das criaturas cotidianas.
Muitos adultos estavam agitados na rua, entretanto não disseram nada quando viram Lina com seus colegas de escola.
A praça ficava quase no centro da vila. Mesmo que todos os quase mil habitantes da vila se reunissem ali, desde o vovô Shakra de 120 anos até o bebê nascido cerca de quatro meses atrás, a praça seguia ostentando espaço mais do que suficiente para acomodar todos. Fosse um festival ou uma exposição de mercadorias por vendedores ambulantes, este era o lugar ideal para eventos de grande escala de qualquer tipo.
Quando os estudantes chegaram com lama voando dos pés, algum tipo de show bizarro estava prestes a começar no palco de madeira que havia sido arrastado para a praça.
Ali, ao lado do líder do Comitê de Vigilância Fern e seu peito arrogantemente inflado, havia uma gaiola eletrificada tipo três, um recinto de ferro que poderia conter bestas sobrenaturais ou pássaros selvagens do tamanho de humanos com corrente de alta voltagem. Tal visão por si só não era nem um pouco incomum, porém ao ver a presa que continha, os olhos de todos se arregalaram.
Era um humano. Contudo, o que mergulhou cada um nas profundezas do horror não foi o físico ou semblante ameaçador desse aparente fora da lei, e sim o par de presas saindo de seus lábios gordurosos.
Um vampiro que andava de dia.
Este é o líder deles? Esse pensamento gritava nas mentes de todos os presentes. A chuva havia diminuído perto do amanhecer, e as nuvens cinzentas que mascaravam o céu por fim se dissiparam. Ondas de luz tranquila tingiam tudo de um tom perolado, no entanto esta praça sozinha estava congestionada com medo escuro e evocador da noite. Empurrando os anciãos que estavam acomodados diante do palco, o prefeito subiu um lance de escadas dobráveis para ficar ao lado de Fern. O homem fez um grande show ao ignorar o homem na gaiola olhando para ele com olhos maliciosos.
— Boas pessoas de Tepes... — começou a dizer em uma voz muito mais alta do que o necessário, então parou enquanto pegava o microfone sem fio que acabara de notar no chão. Nem uma risadinha escapou de seus ouvintes. Fosse um Nobre ou uma de suas vítimas, estavam olhando para uma criatura de pesadelo que não poderia existir... Um vampiro que poderia agir sem restrições à luz do sol. A gravidade da situação abalou a todos até o âmago.
— Boas pessoas de Tepes... — a voz do prefeito finalmente ecoou em seus ouvidos estupefatos pelos alto-falantes ultracompactos espalhados pela praça. — Como vocês sabem, em nosso recente problema com a Nobreza, quatro membros de nossa vila morreram, e eu sobrecarreguei nossas escassas finanças contratando não um, mas dois Caçadores de Vampiros. Entretanto no final, foi em vão... Por sorte, parece que eles não são mais necessários. Para ser mais preciso, esta manhã cedo Fern aqui pegou essa coisa na estrada do norte. O líder do nosso próprio Comitê de Vigilância tem bons motivos para se gabar, pegar um vampiro vivo é algo que poucos na Fronteira fizeram.
Aparentemente congelados pela visão deste vampiro examinando seus arredores com olhos encharcados de sangue, os moradores enfim voltaram aos seus sentidos pelos elogios um tanto coercitivos do prefeito. A plateia reuniu uma salva de palmas. Claro, nenhum deles conseguia ver o humor sarcástico na situação.
Fern pegou o microfone e contou como, quando o perímetro de busca se estendeu além da vila, encontrou um homem na floresta que o atacou antes que pudesse dizer uma palavra. Com a ajuda de suas bestas de guarda, conseguiu pegar o atacante vivo.
Todos sabiam muito bem o poder das bestas de guarda, mas ainda assim essas criaturas não fariam muito contra um Nobre, ou mesmo contra uma de suas incontáveis vítimas. Porém, aqueles que estariam inclinados a duvidar tinham uma prova diante de seus olhos; quando o líder do comitê de vigilância terminou sua história de guerra, um aplauso tumultuado irrompeu.
— Isso é fantástico, Lina. Agora você está livre.
Virando-se para a voz encorajadora, Lina ficou surpresa. O representante da classe Callis estava sorrindo para ela. Um líder nato e organizador de primeira classe, ele era lúcido e muito bonito. Contudo Lina desprezava a frieza que espreitava como uma sombra por trás de seu rosto brilhante e sorridente, e raramente falava com o rapaz. De sua parte, Callis estava acostumado com as outras garotas da vila fazendo um grande alvoroço por ele, o que tornava a abordagem de Lina uma perda de tempo.
— O que quer dizer? Estava preocupado comigo?
— Claro. Afinal, somos colegas de classe, não somos?
Com suas palavras doces, Lina se contorceu nas profundezas de seu coração. Quão estúpido esse idiota pode ser? Lá vem ele, se aproximando um pouco mais.
— Ei, o prefeito está se preparando para nos dar outro aviso. — disse Lina, enquanto beliscava a palma que havia sido furtivamente colocada em sua mão.
— É quase certo que o demônio nesta mesma gaiola é a causa de todos os nossos recentes problemas. Sendo esse o caso, proponho que o matemos agora e rezemos para que esta oferenda nos dê paz. O que me dizem?
Nesse ponto, convencidos de que a verdadeira fonte de seu terror havia sido capturada, os moradores juntaram as mãos como uma só, e a praça foi enterrada em aprovação vocal. Nas vilas da Fronteira, não era incomum que animais fossem sacrificados ao rezar por uma colheita abundante ou segurança no ano seguinte.
— Isso é horrível! — sem perceber o significado das palavras que saíram de seus próprios lábios, Lina sentiu seu coração parar quando a expressão chocada de Callis se virou para encará-la. Foi a primeira vez que percebeu que se sentia assim.
Eu tenho pena de um vampiro?
De repente, faíscas roxas voaram das barras de ferro da gaiola, e o homem dentro dela se encolheu com um grito.
— Ok, Fern, acabe com ele.
Com uma reverência ao prefeito que acenava triunfantemente, Fern deu um passo à frente. As longas estacas de madeira que segurava em cada mão eram mais como lanças. Os outros membros do Comitê de Vigilância se aproximaram e cercaram o palco.
O vampiro na gaiola parecia assustado e recuou, apenas para receber um choque elétrico enorme. Percebendo inquietação e medo naquele rosto atroz, as pessoas soltaram risadas e assobios zombeteiros.
— Gostou disso? Vá em frente, tente fugir de novo!
— Haha, acho que vai começar a berrar. Que belo Nobre você é!
— Fern, não o mate com um tiro só. Vá devagar, bem devagar!
Como se para reconhecer os aplausos, o líder do Comitê de Vigilância acenou para a multidão. Intoxicados de prazer por esse show assassino, os moradores não conseguiam ver que seus lábios estavam mais vermelhos do que o normal e que algo assustador permanecia em seu sorriso. Ninguém questionou sua afirmação de que esse vampiro era de fato um Nobre e que o vampiro era a causa dos problemas da vila.
A lança avançou.
O vampiro se contorceu para fora do caminho. Faíscas saltaram de sua mão direita, e suas costas expostas foram perfuradas por um rápido golpe da ponta em seu ombro direito.
Aplausos sacudiram a praça.
Com um leve sorriso surgindo em seus lábios, Fern preparou sua lança outra vez.
Lina avançou bem no fundo da multidão. Jogando lama para todos os lados, gritou.
— Parem!
Empurrando as pessoas para fora do caminho enquanto corria, por fim chegou ao palco.
— O que diabos acha que está fazendo, Lina? Fique fora disso!
A garota não vacilou com as palavras do prefeito. Seu rosto bonito e corpo suavemente curvado tremendo de raiva, ela se opôs a tudo o que acontecia aqui.
— Você é quem deve ficar fora disso, senhor prefeito. Não posso acreditar que faria algo tão cruel. Está lidando com um ser humano.
— Não é ‘senhor prefeito’. — o velho berrou. Seus cabelos grisalhos esvoaçavam mais de raiva do que pelo vento. — Eu sou seu pai. Por que não pode me chamar assim? Fique fora desse assunto, sua idiota! Vou te dar uma surra depois!
— Já disse não, e quero dizer não. — Lina respondeu, e se colocou em posição de desafio. Eu não conseguiria nem ficar parada assistindo a um animal sendo abatido agora. Por que esses sentimentos tomaram conta de mim? Como se quisesse empurrar esses pensamentos de volta para seu esconderijo, ela disse.
— Não acha isso horrível? Se fosse humano, teria vergonha de torturar uma pessoa desarmada até a morte, e ainda por cima trancada em uma gaiola!
Contendo o prefeito, que estava prestes a explodir de raiva, Fern se inclinou para fora do palco. Enfiando a ponta ensanguentada da lança bem embaixo do nariz de Lina, falou.
— Ah, entendi. Então o que está dizendo é que seria melhor se entregássemos uma arma antes de o matarmos, certo? Tudo bem por mim. Por que não deixamos que faça as honras, pequena tagarela? Lembro que já ti vi tendo algum treinamento com espadas e lanças, não foi?
Na Fronteira, onde a vida e a morte existiam lado a lado, era costume que as mulheres aprendessem a usar armas. Embora não fosse necessário dominar armas de pólvora, bestas e armas de laser como era para os homens, todas elas sabiam empunhar uma lança curta, uma versão mais leve de uma espada longa ou um chicote.
Quando a ponta da lança foi enfiada à sua frente, Lina a agarrou sem hesitar. A ira que sentia pelo prefeito, Fern e os moradores... Por toda a raça humana, aliás... Não permitiria que essa garota de dezessete anos fosse intimidada.
O prefeito empalideceu, e um clamor percorreu os habitantes da vila.
Naquele momento...
Uma voz linda e enferrujada correu pelo chão, deixando o vento girando em seu rastro.
— Esse é o meu trabalho.
Cada rosto, até mesmo o do vampiro na gaiola, que parecia esquecer a dor de seus ferimentos, se virou para o jovem de preto montado em seu cavalo. Cada rosto assumiu uma expressão de admiração. Com a luz do sol se derramando através de brechas nas nuvens como pano de fundo, esse jovem de uma beleza raramente vista no mundo olhou para eles de sua montaria.
No instante em que puseram os olhos em sua beleza, os homens queimaram de inveja, e as mulheres se tornaram escravas do desejo. Contudo, no instante seguinte, essas emoções mais elevadas foram sopradas para longe, e um terror inefável tomou conta dos recessos escuros de suas psiques. Era um terror instilado pela aura sobrenatural da Nobreza.
A multidão se separou, e D chegou ao palco sem encontrar um atraso de um segundo sequer.
Pegando com facilidade a lança de Fern e Lina, que a mantinha firme, ele perguntou.
— Então, o que fazemos?
— Oh. — Fern respondeu, seus laços de paralisia por fim derretidos pela voz de D. — Não sei onde diabos você esteve até agora, mas com certeza é bom ver que pelo menos não fugiu com o rabo entre as pernas. Na verdade, é perfeito. Não importa como o corte, já está sem emprego de qualquer maneira. Se é um Caçador, então aja como um e nos dê um show antes de ir embora. Certo, Prefeito?
O prefeito hesitou e gaguejou. O olhar firme de D o atravessou. A pressão que Fern colocou nele não podia nem começar a se comparar à aura sobrenatural que irradiava daquele jovem.
— Ele, err... Bem, fui eu que o chamei aqui... E seu trabalho ainda não está terminado...
— Isso mesmo.
No instante seguinte, D saltou facilmente da sela e subiu no palco. Para alguém que havia sofrido uma explosão intensa poucas horas antes, os poderes de recuperação que exibia eram notáveis, no entanto sua resistência provavelmente se devia, pelo menos em parte, à coisa que vivia em sua mão esquerda.
Aparentemente desatento ao olhar apaixonado de Lina, ele foi até Fern e desligou a energia da gaiola eletrificada, já tendo removido a trava eletrônica.
— Espere... — veio o grito do que parecia ser o xerife, mas, vendo a porta da gaiola se abrir devagar, a multidão até então paralisada deu um grito e recuou.
O baque alto reverberando atrás de D era o som do prefeito em fuga caindo escada abaixo.
D jogou a lança de madeira áspera para o vampiro que aos poucos escorregava para fora da gaiola.
— É estranho nos encontrarmos assim, porém este é o nosso destino, caçador e caça. Vamos.
Ao dizer isso, ele não pegou a espada longa por cima do ombro.
O vampiro começou a se mover a lentos passos para a direita. Incapaz de usar a mão direita, segurou a lança com um único dedo da esquerda, todo o seu corpo fervendo com chamas de raiva assassina.
Sem um único movimento revelador, a lança se tornou um borrão em voo. Ao vê-la perfurar o peito de D, que era onde havia sido mirada, Lina ficou sem fôlego. O vampiro saltou em Fern, agarrando a arma de rebite em sua cintura. O cano, tão grosso quanto o polegar de um homem, apontava para o céu com uma velocidade que escapava a olho nu.
D estava no ar. O que Lina testemunhara era uma imagem residual deixada quando voou com supervelocidade.
Junto com um rugido, pólvora de alta energia enviou uma torrente de tachas de ferro correndo em direção ao coração de D.
Com um dos sons mais gloriosos do mundo, as tachas de ferro foram desviadas.
Antes mesmo que percebesse que tinham sido aparadas pela espada longa desembainhada, a mão do vampiro que empunhava a arma foi cortada no pulso pelo aço nu que descia de cima. Um impulso para trás da lâmina penetrou nas profundezas de seu coração.
Sem nem mesmo olhar para a forma enorme enquanto caía em uma névoa sangrenta, D começou a caminhar em direção a onde Fern havia congelado.
Percebendo que era sua mão esquerda que segurava a lâmina sangrenta agora apontada para a garganta de Fern, Lina franziu a testa. A garota não entendeu que, por causa do ombro direito ferido de seu oponente, D havia lutado apenas com a mão esquerda.
— Conseguiu o que queria. Da próxima vez, você será o único a fazer o que eu disser.
Sua voz era baixa, contudo não toleraria resistência. O rosto pálido de Fern balançava desprezivelmente para cima e para baixo. D enfiou a mão esquerda bem na frente dele.
Ao ver a cruz vermelha delineada no meio daquela palma poderosa, os olhos de Fern se arregalaram. Por alguns segundos, um vento preenchido de sede de sangue cortou a praça.
A mão de D desceu e Fern soltou um sinal de alívio. Não havia nada, ao que parecia, fora do comum.
A multidão tornou a se agitar.
— Então, o que vai fazer? — D gritou do palco para o prefeito, limpando o sangue de sua espada longa com um movimento e graciosamente a devolvendo à bainha. Devia estar falando sério sobre o que eles fariam com ele.
Com o rosto pálido e ainda segurando o galo na testa, o prefeito disse.
— Eu sei o que disse há pouco... No entanto, bem, acredito que quase cumprimos o que pretendíamos fazer. Nem preciso dizer que receberá o valor que combinamos. Bom trabalho.
— Tudo bem. — disse D, assentindo de forma impassível. — Porém não posso deixar a vila ainda.
— O quê?
— Segue havendo algo que devo investigar. Ou há algum motivo para me querer fora da vila?
Desta vez foi a vez do xerife estremecer quando aquele semblante lindo se virou em sua direção.
— No momento... Não. — respondeu com grande dificuldade. — Entretanto se sua presença aqui nos causar qualquer inconveniente, teremos que expulsá-lo da cidade.
— Concordo. Vou te dizer uma coisa: se esse homem foi responsável por suas dificuldades, então a vítima feminina que temos deve estar recuperando a consciência agora mesmo. Devemos verificar isso.
Todavia quando o prefeito e seu grupo chegaram ao celeiro a mulher que eles deixaram lá tinha uma estaca de madeira áspera cravada em seu peito, e o chão de terra parecia quase beber o sangue vital que escorria das mangas de suas roupas antes brancas, agora encharcadas de vermelho.
— Quem poderia ter feito uma coisa dessas? — o prefeito gemeu, olhando para o céu.
— Não sei quem foi, porém alguém na vila deve ter ficado meio precipitado. Não me importa se tê-la por perto dava arrepios nas pessoas, não havia necessidade de sacrificá-la assim. — dizendo essas palavras, Fern virou os olhos para D. — Como sabemos que não foi você? Se aquele outro cara não estava por trás de tudo isso, você ainda pode ganhar mais algum dinheiro...
A acusação de Fern desapareceu no fundo de sua garganta. Desviando o olhar de Fern para as profundezas do celeiro, D se afastou do grupo e começou a colocar uma sela e alforjes sobre o ombro.
— Ei, espere. Aonde pensa que vai? — perguntou o prefeito, correndo até o Caçador, nervoso.
— Você é suspeito desse assassinato. Não podemos deixá-lo sair da cidade quando quiser. Afinal, estava aqui com a mulher até esta manhã. — havia um tom de inquietação na voz do xerife.
Silenciosamente, D apontou para certa direção.
O prefeito e o xerife seguiram seu dedo com os olhos e se viraram para ele.
— Então é para lá que está indo? — perguntou o xerife. — O moinho de água abandonado que fica lá fora, nos limites da vila?
— Se me quiser, é lá que estarei. Voltarei mais tarde para receber meu pagamento.
Os homens apenas assistiram atordoados enquanto D galopava para longe.
Quando as aulas de Lina terminaram e ela estava entrando em sua carroça, Callis estava esperando perto do portão do pátio da escola. Era uma ocorrência rara, talvez até a primeira.
Quando passou sem nem perceber, ele a seguiu.
— Por favor, espere, Lina. Pensei que talvez pudéssemos ir para casa juntos.
— O que deu em você? De repente se sentindo tão amigável comigo? Tina, Miria e todas as suas amiguinhas não ficarão muito felizes com isso.
— Me poupe. Elas só têm essa coisa unilateral por mim!
Presunçoso como era, colocou o pé no degrau da carroça e, depois de se sentar, esse Romeu otimista chegou ao ponto de tentar pegar as rédeas. Lina deu um tapa na sua mão e fez uma cara de desaprovação.
— Não tente nada engraçado. Por que só não desce de volta?
— Oh, quão fria. Estava esperando porque queria falar com você. Diga, quer ir para a floresta?
— E o que, por favor, faríamos na floresta? Mais cedo, você tentou agarrar minha mão na frente de todo mundo. Não consigo imaginar o que tentaria se estivesse sozinho comigo. Se encostar um dedo em mim, eu te derrubo.
Encarando-o diretamente para impor a lei, Lina engoliu suas palavras.
Algo descansando no bolso do peito de Callis brilhou em seus olhos.
Uma única flor branca.
A que estava na minha janela esta manhã... Não pode ser…
— Ah, isso? Eu colhi só para você. Aqui. — o playboy de olhos afiados leu a reação de Lina como um livro e fez seu movimento de abertura.
Ela não disse uma palavra.
Essa garota corajosa era gentil demais para chamá-lo de mentiroso. A flor passou para sua mão pálida.
— Iremos à floresta em outra hora. — Callis disse, quase num sussurro.
Uma dúzia de minutos depois, enquanto o garoto observava a carroça desaparecer pelo portão da casa do prefeito, surgiu em seus olhos um olhar de astúcia e autoconfiança nada apropriado para sua idade.
A ira do prefeito aguardava Lina em casa.
No momento em que fechou a porta do seu quarto, esta foi aberta de volta. A bochecha de Lina doeu com um tapa enquanto ela se virava, e a garota caiu no chão.
— O que pensa que está fazendo? Isso dói, sabia.
Sabendo o que a esperava, Lina ainda ofereceu alguma resistência espirituosa.
O prefeito estava furioso.
— Você... Sua garotinha estúpida. Me envergonhando daquele jeito na frente de todo mundo. Defendendo um Nobre... Um maldito vampiro. Sua pequena...
Lina mostrou a língua vermelha para o velho enquanto seu rosto feio se congestionava de raiva.
— Nobreza ou não, o que há de errado em tentar impedir que alguém sozinho em uma gaiola seja morto como uma fera selvagem? Tinha algum tipo de prova de que era um Nobre? Talvez fosse apenas uma velha vítima. Se sim, não era assim porque queria ser. Se a Nobreza me fizesse um deles, eu com certeza não gostaria de morrer assim. E como não gostaria que fizessem comigo, não poderia deixá-lo fazer com mais ninguém. Vai me trancar em uma gaiola e fazer Fern me esfaquear até a morte também?
Os olhos do prefeito estavam esbugalhados de fúria. Embora seu pomo de adão estivesse se movendo, nenhuma palavra saiu.
Contudo, ainda que tivesse terminado seu pequeno discurso, Lina questionou sua própria posição. Sério, o que há de errado em trancar um Nobre em uma gaiola e torturá-lo até a morte?
Antes de Lina nascer, um grupo de Nobres atacou a vila e fez quase vinte vítimas antes de terminarem. O trágico quadro terminou com pais cravando estacas no coração de suas filhas, ou maridos no coração de suas esposas. O que as crianças ouviram mais tarde foi uma história de tragédia entre entes queridos contada com lágrimas de sangue, e elas aprenderam um profundo ódio pela Nobreza. No coração dessas pessoas, a Nobreza era uma fera cruel a ser massacrada... Um sentimento que a vida severa na Fronteira ajudou a fomentar. Se por acaso um fosse capturado vivo, qualquer um pensaria que seria perfeitamente natural que enfrentasse o mesmo destino do vampiro na gaiola.
— Sua vadia. Então vai ficar do lado da Nobreza, hein? Sua ingrata nojenta. Não vai escapar dessa. Claro que não! — o prefeito tinha a cara de um louco.
— O que me torna uma ingrata? — Lina retrucou. — A razão pela qual me adotou foi porque sabia que tipo de mente eu tinha e queria me mandar para a Capital, não é verdade? Estava ansioso pela recompensa que a vila receberia. E não é tudo. Você fez o que quis comigo quando eu não sabia de nada. Quem é que entra furtivamente no meu quarto toda noite, até agora? Até a Nobreza não age como bestas tão imundas. Até seu toque faz minha pele arrepiar.
O silêncio caiu. Lina observou um tanto enervada enquanto o rosto do prefeito empalidecia rapidamente.
— É mesmo? Não suporta nem meu toque? Já basta. Vou tocá-la com isso então!
Um chicote preto brilhava na mão direita do prefeito. Fios de baba pendiam dos cantos de sua boca, e seus olhos riam. A mudança foi extraordinária, como se alguma escuridão à espreita dentro dele tivesse jorrado de repente para a superfície.
Antes que Lina pudesse se virar e correr para a janela, a mão do prefeito agarrou a gola de sua camisa, rasgando-a com um rasgo alto.
— Pare com isso. Será que perdeu a cabeça, seu velho idiota?
Um estalo agudo transformou seus protestos raivosos em gritos. Lina caiu, e em segundos, vergões pretos e azuis estavam surgindo em suas costas, seu número aumentando a cada estalo.
Empurrando os uivos que haviam subido ao topo de sua garganta de volta com todas as suas forças, Lina suportou a surra. Decidiu que não queria deixar que esse homem a dominasse.
Ela tentou pensar na flor branca. Sua expressão ficou calma.
O prefeito descartou o chicote e subiu na garota por trás. Sua língua vermelha escura lambeu sua carne ferida.
— Pare! — Lina protestou, se contorcendo.
— Sem chance. — disse o prefeito, tirando suas mãos do caminho enquanto massageava seus seios bem torneados. — Dói? Aposto que sim. Mas vai melhorar agora. Vou fazê-la se sentir bem com minha língua.
Uma sensação úmida e morna percorreu sua nuca, e todo o corpo de Lina se contorceu descontroladamente. O prefeito continuou falando, mesmo enquanto sentia prazer com o corpo jovem lutando em seus braços. Sua voz era como uma obsessão coagulada.
— Eu poderia continuar assim e te foder até a morte agora se quisesse. Te expulsar da cidade também seria brincadeira de criança. Porém não posso fazer isso. Afinal, você está indo para a Capital pelo bem da nossa pequena vila. O Sr. Meyer desapareceu, e Fern assumiu a custódia de Cuore. Com certeza passará o resto dos seus dias como nada mais do que um garoto de recados idiota. Contudo você é especial. Não posso me desfazer. Por outro lado, também não posso deixar que escape. E vou continuar me divertindo até o dia em que tiver de vê-la deixar a cidade.
A boca do prefeito apertou a nuca de Lina. Um ato proibido. Incapaz de suportar, Lina soltou um grito. Como as marcas de beijo na nuca lembravam muito as marcas deixadas pela Nobreza, era tabu até mesmo para casais fazerem isso. A crueldade no coração deste velho rivalizava com a da própria Nobreza.
— Não, não, pare! Por favor... D! — Lina gritou com todas as suas forças.
Os lábios do velho se afastaram dela. Com evidente amargura, falou.
— Ah. Então é assim, hein? Aquele vagabundo chamou sua atenção? Bem, ele não está por perto. Já o demiti. Agora mesmo está numa casa sozinho no velho moinho. É o lugar perfeito para um andarilho com o sangue da Nobreza.
Quando a cabeça de Lina caiu para a frente, o velho tentou empurrar a garota para o chão e, por um instante, a força escapou de seus braços. Ela balançou a cabeça para cima, batendo no nariz do velho com um terrível golpe.
O prefeito caiu, gritando. Sangue vívido jorrou entre seus dedos em concha.
— Puta! Veja o que fez comigo!
Lina pegou o vaso da mesa e o quebrou na cabeça do prefeito enquanto este tentava se levantar. Feito das costelas de um dragão de fogo, o recipiente era leve, no entanto tinha saliências afiadas projetando-se de todos os lados. Vários fragmentos se alojaram em sua cabeça, e o rosto do velho estava manchado de sangue. Dando um grito, acabou por desmaiar.
O sangue de Lina ferveu. Agora suas situações estavam invertidas. E, para Lina, foi uma mudança agradável. Levou o pé para trás para chutá-lo onde importava, entretanto, fiel a si mesma, pensou melhor e parou.
Enquanto batia a porta com força, sua ladainha de maldições reverberou.
— Dane-se. Não voltarei aqui tão cedo. Espero que seu ferimento na cabeça infeccione e você morra.
Lina foi para o moinho em sua carroça. Nos últimos dias, essas ruas tinham visto pouco tráfego de pedestres, mas pelo visto todos se sentiam mais seguros desde que o vampiro foi morto, e vários rostos agora observavam com espanto a carroça passar.
Chegando lá em cerca de vinte minutos, porém, avaliando o velho moinho dilapidado, não viu nem ouviu nada além do guincho da roda d’água e os rosnados graves do motor hidrelétrico. As coisas de D nem estavam lá.
Talvez já tivesse saído da cidade.
A ansiedade logo murchou o espírito de Lina. Um calafrio que não sentiu nem um pouco quando saiu de casa agora a invadiu pelos poros.
Olhando para cima, viu que o céu ainda estava escuro.
O mundo estava cheio de medo.
Lina saiu do barraco.
O vento assobiava sobre sua cabeça. Embora o vento devesse ter trazido algum prenúncio da primavera, estava mais frio do que jamais poderia ter imaginado. Invadiu seu casaco de couro através da gola e das mangas, apunhalando suas costas expostas.
— Droga. De toda a má sorte... Será que devo voltar para casa? Mas não estou muito a fim de outra surra. O que fazer, o que fazer...
Decidindo andar um pouco enquanto refletia sobre o assunto, Lina voltou para a carroça e pegou uma arma de prata do compartimento de armazenamento para se proteger antes de sair a pé pelo caminho.
Parecia que até Lina estava confortada com a morte do vampiro esta tarde. Ainda não sabia que a vítima feminina havia sido morta, então a possibilidade de que o vampiro na gaiola fosse culpado seguia sendo uma base forte para considerar.
Quando chegou até ali, o contorno do moinho não estava mais visível, o vento chamou seu nome.
Ela se virou, porém não conseguia sentir ninguém ao seu redor.
A grama nova tremulava ao vento.
Apertando a arma com mais força, retomou sua caminhada. Antes de dar dez passos, ouviu.
Lina.
Desta vez, não havia absolutamente nenhuma dúvida sobre o som.
— Quem é e onde você está? — a jovem se virou e gritou, e o vento respondeu.
Lina, Lina, Lina.
— Vamos lá, onde você está? Apareça ou vou atirar. — sem se importar com a contradição nisso, a garota foi tomada pelo medo.
Desperte, Lina, disse o vento.
Era uma voz que já tinha ouvido antes. Lina vasculhou suas memórias atentamente.
Ainda não entende, não é, Lina? Desperte. Precisa despertar.
A voz dançava ao seu redor. Ria sob seus pés, sussurrava em seu ouvido, berrava acima de sua cabeça. Lina, Lina, Lina.
— Está começando a me irritar, sua praga misteriosa!
Quando levantou a arma de prata, ainda sem alvo, uma rajada de vento muito poderosa a atingiu entre os olhos. Seu equilíbrio desapareceu num piscar de olhos. A mão que tinha certeza de ter colocado no barranco ao lado varreu o ar sem encontrar a menor resistência. Lina caiu de cabeça no fundo de um poço escuro. A julgar pelo impacto, a queda não poderia ter sido tão grande.
Olhando para trás, para o lugar onde havia caído, viu uma abertura circular a cerca de dois metros acima. O solo se amontoou em direção a ela, formando uma inclinação. Presumindo que conseguiria sair de alguma forma, Lina deu um sinal de alívio.
Lina, gritou a voz. Sem dúvida era uma voz de homem, e dessa vez estava muito perto.
Fixando o olhar à frente, Lina foi envolvida pela surpresa.
À sua frente, havia uma área inquietantemente espaçosa... Uma câmara subterrânea. As profundezas estavam envoltas em escuridão, contudo na luz que penetrava pelo buraco acima, podia ver que era bem vasta.
Na fronteira entre a escuridão e a luz, estava uma figura cinza... A fonte da voz.
— Droga, isso doeu...
Começando a se levantar, Lina pressionou a mão no quadril. Desesperadamente se revestindo de um ar de calma, torceu as palavras de sua garganta.
— Você é a pessoa da noite passada. Sabia que o cara que eles pegaram esta manhã era outra pessoa. Então, devo supor que é minha vez agora? Se chegar perto de mim, vou atirar!
Sua mão apontou a arma de prata para a figura sombria, entretanto esta não pareceu nem um pouco perturbada. Em uma voz baixa e pesada, perguntou.
— Será que não entende? Vendo este lugar, não se lembra de nada?
— O que há com você? Continua dizendo as mesmas malditas coisas uma e outra vez. — disse Lina com raiva. — Esta é a primeira vez que caio neste maldito buraco. Não há razão para que me lembre de nada. Então pare de tagarelar e suma, ou eu atiro!
A figura levantou um braço. Assim que estava admirando esta exibição dócil, ele o balançou em um amplo arco.
— De uma boa olhada. Neste lugar. Neste laboratório. Lembre-se. Lembre-se do que aconteceu há dez anos.
Por fim Lina percebeu que a cena à sua frente era o interior de algum tipo de sala. Era evidente à primeira vista que a destruição havia devastado este lugar, deixando uma montanha de escombros no chão de pedra, todavia as mesas tombadas e as formas do que pareciam ser máquinas colossais pairando imóveis nas profundezas da escuridão testemunharam que o homem cinza falava a verdade.
Porém, havia algo estranho na cena.
Embora o lugar onde Lina estivesse fosse um chão de terra em um buraco no chão, o limite entre isso e a sala era terrivelmente indistinto.
A sala parecia tão perto que podia estender a mão e tocá-la, mas na verdade estava absurdamente longe... Pelo menos essa foi a impressão que teve.
Contudo, foi algo bem diferente que chocou Lina agora. A figura cinza sombria cujo rosto o computador de D havia revelado... Alguém que tinha certeza de nunca ter visto antes, sabia sobre o que havia acontecido uma década antes!
— Não se lembra, Lina? Muito bem então, que tal isso?
Desconsiderando o espanto da garota, a sombra fez um movimento com a mão.
Ondulações percorreram as profundezas da escuridão, coisas assustadoras desafiando qualquer tentativa de metáfora.
— Bem, Lina, que tal?
— Eu... Não sei. O que são essas coisas? Fique... Fique longe de mim... — sua voz foi cortada. Como se um bisturi branco tivesse aberto seu cérebro, memórias fragmentadas ganharam vida.
Isso mesmo, é aqui que... E onde eles...
A visão desapareceu de repente.
— Não entendo. Não chegue perto de mim! — ansiedade e alívio pairavam em seus gritos, e seu dedo trabalhou por vontade própria.
Disparado com um estalo semelhante a um suspiro, exclusivo de gás altamente pressurizado, uma pequena agulha de tungstênio perfurou o coração da figura sombria. A figura sorriu sem dizer nada.
As coisas assustadoras continuaram avançando.
As pupilas de Lina se abriram amplamente, como alguém que espiou o abismo para coisas que ninguém deveria ver.
Eles... As coisas assustadoras que se aproximavam... Chamaram seu nome. Lina, disseram.
Houve um clarão. E outro. A luz penetrou nas incisões em sua mente nublada. Todas essas pessoas são...
De repente, a figura sombria olhou para cima.
As coisas causaram comoção. E, no entanto, ela não conseguia ouvir suas vozes.
Um problema surgiu. Nós nos encontraremos de novo, Lina, disse a sombra minguante.
Um medo completamente diferente do que sentia antes agora a assaltava. Largando a arma de prata, começou a escalar a ladeira sem nem olhar para trás. Tinha a sensação de que assim que suas mãos alcançassem a borda do buraco a cerca de dois metros de distância, a visão desapareceria.
A floresta a esperava.
Lina saiu de um pequeno buraco no chão com pouco mais de 50cm de diâmetro. A grama crescia espessa e selvagem ao redor, e até mesmo o olhar mais concentrado teria dificuldade em descobrir a abertura.
Lina limpou em seguida a sujeira de si mesma.
Respirando fundo, voltou pela estrada. Depois de caminhar quarenta ou cinquenta metros, ouviu o eco de cascos se aproximando por trás.
Era esse o problema do qual o homem cinza se referia? Se sim, aquela figura sombria deve ter sido capaz de discernir esse som a várias centenas de metros de distância, e através do chão.
Tendo pisado para o lado da estrada, quando Lina se virou, seu rosto foi rapidamente tomado pela alegria.
— D!
Perturbadoramente lindo, o Caçador olhou para Lina de seu cavalo.
— O que você está fazendo? O que te traz aqui?
Lina parou por um momento, então deu uma resposta rápida.
— Bem... Na verdade, estava te procurando. Poderia fazer a gentileza de me hospedar esta noite?
Um olhar indagador veio de D.
Lina disse a ele que tinha ido embora depois de uma briga com o prefeito. Sem perguntar o motivo ou qualquer detalhe mesquinho, D ofereceu sua mão sem dizer nada, então a puxou para cima de sua montaria. Antes que o cavalo desse um passo, ela gaguejou.
— Er... Hmm...
— O que foi?
— Tudo bem se colocar meus braços em volta da sua cintura?
— Você cairia se não o fizesse, não é?
— Sim.
Sua bochecha pressionou contra as costas de D. Dura e larga, a firmeza da pele por baixo atravessava seu casaco. Ela tinha ouvido falar que os corpos dos dampiros eram muito mais frios do que os dos humanos, mas esse não parecia ser o caso de D. Tocá-lo a fazia se sentir aquecida.
Antes que percebesse, lágrimas se espalharam por suas bochechas.
— Está chorando? — D perguntou. Perguntou da mesma forma que alguém perguntaria informações na rua.
— E daí se estiver? Todo mundo fica triste de vez em quando. Não fique me enchendo o saco sobre isso.
Lina não sabia que beirava o milagre quando esse jovem perguntava algo sobre os outros que não fosse devido ao trabalho.
D ficou em silêncio.
— Diga, D... As ruínas estão além do caminho pelo qual estava vindo. Você estava lá em cima de novo?
— Sim. Procurando outra entrada.
— Outra? E a de sempre?
— Foi selada. Ninguém pode entrar por ali agora. — balançando a cabeça um pouco, continuou. — Você pode esquecer tudo isso. Não deveria estar estudando ou algo assim?
— Estraga prazeres. — Lina respondeu, dando uma cabeçada no ombro de D. — Com um cérebro como o meu, não é como se precisasse estudar mais a essa altura.
— Verdade. Você é a garota gênio.
— Sou mesmo.
O cavalo chegou ao moinho, e a dupla cruzou uma ponte sobre o riacho bastante cheio antes de entrar no barracão. Talvez devido à noite quase chegando, o vento soprava frio, porém estava muito longe da dureza da estação branca.
Enquanto Lina o observava por trás com uma expressão mistificada, D perguntou à garota.
— É tão estranho que eu tenha cruzado água corrente?
— Er... Sim. Afinal, você é um dampiro, certo? Ah, talvez não devesse ter mencionado nada.
— Com certeza a água é um problema para mim. Sabe-se que nobres se afogam em água com menos de um metro de profundidade.
— Imagino por que algo assim acontece. A biologia da Nobreza é tão misteriosa. — suas perguntas pareciam completamente em desacordo com sua voz inocente e semblante ingênuo. Por algum motivo, Lina tinha uma curiosidade intensa sobre a Nobreza.
Sem responder, D foi até o canto do barraco empoeirado e colocou a sela e as bolsas que trouxera do cavalo, então tirou um pacote preto do tamanho da palma da mão. Com um puxão na corda saliente, o pacote se expandiu em pouco tempo em um saco de dormir de aparência muito confortável.
— É melhor dormir aqui. Tem um aquecedor embutido. Precisa ter cuidado ao passar a noite para não pegar um resfriado.
— E quanto a você?
— Vou descansar lá fora. Ficar encostado na terra combina mais com minha natureza. Não pense muito a respeito... Nunca o usei antes.
— Mas... — Lina estava prestes a dizer mais, contudo notou D concentrando seus sentidos em algo lá fora.
— Parece que eles vieram buscá-la. — disse o Caçador.
— De jeito nenhum. Eu me recuso a voltar para lá.
Em pouco tempo, quase uma dúzia de homens a cavalo chegaram ao outro lado do riacho. O prefeito e o xerife estavam lá, e os outros eram membros do Comitê de Vigilância liderado por Fern. Todos tinham uma estranha expressão rígida. O que tinham que fazer, e o pensamento de quem poderia ficar em seu caminho, os deixava tensos. A oposição estava parada na frente do barraco.
O brilho azul do pingente em seu peito deixou os homens inquietos. Talvez os cavalos também sentissem algo, pois não havia fim para seus relinchos.
Em cima de suas montarias, os homens tremiam levemente.
— Digam o que querem. — disse D num suave tom. Seu tom era bem adequado à luz tranquila da tarde, entretanto os cavalos pararam no ato. Teriam seus cavaleiros percebido que estavam congelados de medo?
— Como se já não soubesse. — zombou o prefeito, que agora usava um chapéu preto, e esticou um braço para apontar para uma das janelas do barraco. — Estamos aqui para levar Lina para casa. Não adianta tentar escondê-la. Se não a entregar, faremos você desejar tê-lo feito.
— Não importa para mim de qualquer maneira, porém não sei o que a garota terá a dizer sobre isso.
De repente, as venezianas de madeira da janela se abriram, e Lina colocou a cabeça para fora. Bem preparada, já estava com a língua para fora.
— Vão se danar. Quem seria estúpido o suficiente para voltar para lá? Vou ficar aqui um tempo. Estou praticando sobrevivência na natureza. Por gentileza, fique fora do caminho, papai. Ah, sabia que seu rosto parece meio inchado?
A maldade especial que guardou para o final foi deliciosa. O rosto roxo e distendido do prefeito tinha uma aparência cinco vezes mais carmesim do que seus ferimentos deveriam causar. Com um olhar para o lado, respondeu.
— O que diabos está fazendo, xerife? O que temos aqui é um caso de um pai tentando trazer sua filha de volta. Nós a levaremos de volta à força se necessário, certo?
— Bom... — o xerife começou hesitante. O resto dos homens olhou para o outro lado. Cada um tinha testemunhado a esgrima de D na praça da vila. — Se Lina disser que não quer ir, não há nada que possamos fazer. E acredito que sua autoridade parental sobre ela acabou no ano retrasado, para piorar.
A autoridade parental expirou... Em outras palavras, um indivíduo se torna responsável por suas próprias ações aos quinze anos na maioria das comunidades da Fronteira. Seu ambiente exigia independência.
— Oh, seu saco de esterco inútil. Pretende ficar parado e deixar esse vagabundo mestiço arruinar minha filha? Está demitido. Quando voltarmos para a cidade, a primeira coisa que farei será convocar uma reunião do conselho.
O xerife deu de ombros.
— Ok, agora alguém vai...
— Deixe comigo. — Fern disse ao prefeito, sua voz cheia de autoconfiança enquanto desmontava vagarosamente.
Descansando as duas mãos nas cestas em seus quadris, tinha um passo firme enquanto se dirigia para enfrentar D.
— Sabia que chegaria a isso mais cedo ou mais tarde. — ele parecia estar bem protegido. — É tarde demais, então nem pense em dizer que podemos ficar com a garota agora.
D não fez nenhum movimento. Tinha o ar de um jovem poeta ouvindo a canção do vento.
Parecia que até a voz do riacho havia sido silenciada.
— Cuidado, D. Ele tem bestas de guarda nessas cestas. — as palavras de Lina injetaram tensão em uma situação que não perdeu tempo em explodir.
Clarões pálidos dispararam da mão direita de D, e as cestas ainda presas à cintura de Fern caíram em pedaços. Duas criaturas caíram no chão... Uma aranha estranha e uma nuvem que descarregava raios. Como as pernas da aranha estavam livres de ferimentos, ou ela já havia se regenerado ou era uma nova besta.
Fern os incitou com sílabas assustadoras.
Um relâmpago roxo atravessou o local onde D estava, borrifando a parede da cabana com faíscas; as agulhas lançadas por D no ar pararam no meio do caminho entre ele e os monstros. No instante em que percebeu que fios brancos ondulantes estavam se enrolando ao seu redor, cortou o vento com a espada longa em sua mão direita.
— Oh! — Fern exclamou. Ele tinha acabado de assistir ao líquido adesivo que segurava não apenas os gigantes, como até a figura em cinza, ser cortado em pedaços como fios de algodão.
Todavia, o corpo do Caçador desviou consideravelmente enquanto tentava pular o riacho em um único salto. No instante seguinte, caiu na correnteza até a cintura com um respingo.
Quem, se alguém, realmente viu o tentáculo que disparou da água e se enrolou em seu tornozelo como um chicote?
E não havia apenas um, no segundo em que D caiu, vários tentáculos idênticos voaram e se enrolaram em seus dois pulsos o mais firme possível. Algo com o que parecia ser uma carapaça listrada emergia agora à frente de D.
— Imaginei isso, não é tão afiado na água, não é? — Fern riu, mostrando muitos dentes. — Veja, quando ouvi que iríamos confrontá-lo, voltei para minha casa e peguei uma das minhas bestas de guarda aquáticas. Pelo que ouvi, dampiros são tão fracos na água quanto a Nobreza. Ok, então agora pode escolher... Fique onde está e se afogue, ou deixe as faíscas da minha nuvem elétrica te eletrocutarem até a morte.
— Pare com isso. Eu vou voltar! — enquanto Lina gritava essas palavras, a nuvem e a aranha se aproximavam da beira da água.
— Não faça isso, Fern!
— Não se preocupe, mate-o!
Os gritos conflitantes do xerife e do prefeito foram apagados por uma visão inspiradora.
O raio roxo apontado para o imobilizado D ricocheteou na carapaça oval que irrompeu pela superfície da água.
Todos os espectadores sentiram seus olhos saltarem das órbitas. Quem poderia acreditar que o lindo jovem estava saindo da água junto com a fera que o segurava? Aquele que havia sido arrastado para baixo estava agora arrastando a besta.
Todos tinham acabado de testemunhar o poder monstruoso da Nobreza, o que muitos diziam ser a força de cinquenta homens, e agora, diante de seus olhos atentos, a mão esquerda de D brilhou. Estendendo seus cinco dedos e fazendo um movimento de corte, cada tentáculo que sua mão tocou foi cortado. Livre de suas amarras, o belo jovem navegou pelo ar como um pássaro místico.
Uma luz prateada desviou o lampejo roxo, então dividiu o corpo da nuvem, balançando para trás com uma velocidade que o olho não conseguia acompanhar para cortar a cabeça da aranha gigante, assim como a teia de fios que deixou cair sobre ele.
O som do riacho retornou aos ouvidos dos espectadores.
Jogando fora o sangue de sua lâmina com um movimento elegante, D virou as costas como se nada tivesse acontecido.
— Demais para vocês, rapazes? Viram como meu guarda-costas é durão? — Lina zombou com uma voz cheia de alegria. Os homens perderam até a vontade de dizer qualquer coisa enquanto D se afastava.
Após a batalha abortada, seus visitantes rudes seguiram seu caminho.
A escuridão da noite penetrou entre as árvores, e a lua pálida apareceu.
Lina esquentou um pouco de café sintético em uma pequena lâmpada eletrônica de viagem. Ela trouxe a bebida de sua carroça. A lâmpada pertencia a D. Um cilindro prateado de quinze centímetros de altura e cinco centímetros de diâmetro, a lâmpada também poderia servir como termostato e aquecedor, ou como uma unidade de refrigeração. E, claro, também poderia cozinhar utilizando-a. Os viajantes não se incomodariam em carregar muitos itens volumosos.
Abaixando habilmente a panela de silicone absorvente de calor, a garota despejou o conteúdo em duas xícaras feitas do mesmo material e então falou com D.
— Está pronto.
— Achei que tinha dito que não queria.
— Ah, não disse não. Beba. Vai te aquecer. Oh, que lua linda.
Indo para o lado de D, Lina o forçou a segurar a xícara.
— Vou cortar um pouco de carne seca para nós também.
— Eu não quero nada.
— E o que você deve fazer se não comer? — mas mesmo enquanto dizia isso, Lina retirou a oferta. — Bem, tudo bem então. Também não estou com muito apetite hoje.
— Seu estômago está incomodando? — D perguntou sem se virar.
— Na verdade não. Não sou sempre assim... De qualquer forma, dampiros são mesmo incríveis.
D não respondeu nada.
— Há pouco tempo, dei uma olhada no cadáver daquela besta de guarda no meio do rio. As marcas em seus tentáculos quase faziam parecer que tinham sido mordidos. Fiquei muito surpresa.
D manteve-se em silêncio. Lina fechou os olhos e aproveitou o perfume da grama do luar que entrava pela janela. O vento cantava nas árvores. Talvez D estivesse ouvindo.
— D... Esse é um nome estranho. Para que serve o D? Diabo, ou algo parecido, talvez? Qualquer que seja o significado deve combinar com você.
— Amanhã, vá para casa. — D disse em um tom contido.
— De forma alguma.
— Você certamente já sabe o que sou. Se alguém contar isso ao conselho examinador, pode significar o fim dos seus sonhos de ir a Capital.
— Não me importo. — Lina riu, pegando o braço esquerdo de D. — Se acontecer, vou embora com você. A esposa de um Caçador... Agora, essa não seria uma vida de emoções em abundância?
Quando D virou seu rosto perplexo para encará-la, Lina acrescentou.
— É brincadeira, foi uma piada. Apenas diga que posso ir junto, e tudo bem.
— Pare com essa bobagem e vá para a cama. Tenho que sair cedo amanhã de manhã.
— Vou deixar o almoço preparado. — Lina juntou o polegar e o indicador no sinal de ok e piscou para ele. — De uma surra dos infernos neles... Maridão.
D deu um suspiro. Foi um suspiro longo, do tipo que não havia escapado nenhuma vez enquanto lutava contra monstros ou a Nobreza. Parecia que até este jovem, que era como um relógio feito de gelo, estava sujeito a um mau funcionamento ocasional.
— Diga-me, D, de onde você veio? — Lina perguntou com uma expressão sóbria. — De onde veio e para onde vai? Da Nobreza? Ou até mesmo da humanidade?
D se virou e olhou para Lina. Talvez tivesse percebido certa ansiedade nas palavras da garota.
— Perguntas difíceis.
— Não sabe? Mesmo alguém como você, que conhece os dois mundos, não sabe a resposta? O que é viver de dia e de noite, o que é ser humano, o que é ser um Nobre... Não sabe?
— Por que pergunta?
— Eu realmente quero saber. Me diga.
O aroma da grama do luar flutuou ao redor dos dois.
D foi até a porta sem dizer uma palavra, então encostou o corpo em uma parede. Lina sentou-se em um pedaço de estrutura pendurado a um pé do chão.
O mundo da noite estava diante de seus olhos.
— Ser um Nobre, muito provavelmente, é viver à noite. — D começou suavemente, com sua espada longa na mão direita e uma xícara de café fumegante na esquerda. — O poder potencial inerente à escuridão da noite e a influência sombria que ela tem sobre a Nobreza no nível molecular são mistérios hoje... Mesmo durante a era de ouro da ciência da Nobreza, eles não conseguiam começar a desvendá-los. A questão de por que a carne da Nobreza é invencível, o segredo de como podem viver para sempre, sem idade e imortais, desde que sejam poupados da luz do sol ou de um golpe de estaca, ou o enigma de por que esse golpe não tem efeito algum a menos que seja levado através do coração. Não é nada além de irônico que, as primeiras criaturas na história do mundo a atingir uma medida de longevidade que nunca poderia ser superada, ficaram angustiados como nenhum outro ao tentar descobrir o segredo de seus poderes.
— Eu me pergunto se o campo da engenharia genética poderia ter oferecido algumas pistas? Embora tenha ouvido que as informações de todos os genes possíveis foram coletadas nos computadores da Nobreza.
— O processo de decodificação das informações contidas em cada gene foi concluído há mais de cinco mil anos. Mas não é aí que está o problema. Depois que descobriram o gene que prevenia o envelhecimento, eles devem ter se perguntado por que tal gene surgiu.
— De onde viemos, para onde estamos indo? Acho que essa continua sendo a eterna questão para todos nós. Nobres e humanos. Porém o que o poder da escuridão que você acabou de mencionar tem a ver com tudo?
D assentiu e levou o copo à boca. Percebendo como Lina sorriu, franziu o cenho e tomou um gole.
— Está bom? —perguntou a garota em um tom alegre.
— Sim.
— Fico feliz em saber.
Limpando a garganta, D retomou a conversa.
— É de conhecimento comum que as funções vitais da Nobreza giram em torno da própria escuridão. Foi o que deu origem a uma certa hipótese. Esta sugeria que a escuridão da noite poderia ser a causa primária dos poderes da Nobreza, ou o gene responsável, se preferir. Ou seja, talvez a Nobreza tenha absorvido alguma informação fantasmagórica pertencente à própria escuridão na forma desse gene, ou assim dizia a teoria.
Os olhos de Lina estavam brilhando, brilhando com a expectativa e ansiedade mantidas somente por aqueles que abriram a pesada porta do desconhecido e contemplaram a luz da verdade se lançando livremente. Brilhando implacável.
— Esse é o gene da escuridão, não é?
— Correto.
— Se ao menos pudéssemos entender a estrutura dele, os enigmas da Nobreza seriam resolvidos. ‘De onde viemos, para onde estamos indo?’. E as respostas se aplicariam à humanidade também. D, eles nunca formaram essa hipótese... Que os humanos são dotados do gene da luz?
O luar fazia com que seus perfis elegantes se destacassem mais fortes e brancos.
A canção do vento, o aroma da grama.
— Isso mesmo. — D disse. — Ser humano é viver na luz. Quando você considera a duração de suas respectivas vidas, os humanos não valem muito quando comparados à Nobreza. De um ponto de vista fisiológico, também são terrivelmente frágeis. Contudo quando considera a energia potencial da raça como um todo...
— A luz supera a escuridão. — Lina murmurou.
Esse era um tipo de destino.
— No entanto os Nobres que temos visto agora... — Lina estava prestes a dizer mais, todavia hesitou e gaguejou.
Nas profundezas de seu coração, alguém estava gritando para ela. Não diga, eles disseram. Ela teve a sensação de que a voz sombria estava de alguma forma conectada ao seu destino.
— Nobreza que anda na luz do dia...
D levou a xícara à boca uma vez mais e olhou para Lina. Balançando sua cabeça como se para se tranquilizar, a garota disse.
— Não poderia haver tal coisa.
Algo brilhante surgiu nos olhos de Lina. Antes que pudesse transbordar da borda, Lina se jogou ao redor da cintura de D. Soluços chacoalhavam seus ombros.
Não entendia o que a deixava tão triste. Também não sabia do que tinha medo.
Sentindo-se impotente, como se estivesse sozinha à noite andando pela estrada. E aquela noite não veria o amanhecer, por toda a eternidade.
D colocou sua xícara no chão e acariciou seu cabelo suavemente.
Só quero sair desta vila, Lina desejou de todo o coração. Quero ir para a Capital com ele. Só nós dois, juntos para sempre.
A canção do vento podia ser ouvida. O par não se moveu por um longo tempo.
Inesperadamente, a tensão percorreu o corpo de D.
Lina caiu no chão, ainda na pose de quando o agarrou.
D se aproximou do riacho balbuciante.
Não houve mudança nos arredores.
Talvez a sensação de D deles sozinhos tenha mudado.
Por que ainda não veio? Era a mesma presença da noite chuvosa. Estou te esperando. Esperando lá.
Onde é ‘lá’? Qual é o significado dessas ruínas? D perguntou sem dizer uma palavra, sem nem mesmo pensar.
Essa era a única regra nessa conversa.
Posso ter falhado, disse a presença. Se for assim, devo me livrar de todos eles. Não há muito tempo. Estou esperando.
Esperando o quê, ou por quem? D perguntou. O que quer dizer com esperar?
Não houve resposta para essas perguntas.
Venha rápido. Preciso ir. Isso já dura tanto tempo, mas vai durar muito mais. Muito mais... Muito mais...
Em algum lugar dentro de D, a presença de repente desapareceu.
Então, são as ruínas, afinal? D olhou de volta para o barraco. Lina estava parada na porta. Os olhos de D se estreitaram.
Uma expressão que não era exatamente medo nem raiva ocupava o rosto de Lina.
— O que foi? — ele perguntou enquanto se aproximava dela.
Lina balançou a cabeça.
— Não é nada... Sério. Você saiu tão rápido... Só fiquei um pouco assustada, só isso.
Parando um pouco, D então assentiu.
— Você deveria descansar um pouco.
— Suponho que esteja certo.
Lina não perdeu tempo em retornar à cabana e entrar no saco de dormir. Estava tão quente, graças aos sensores térmicos que liam a temperatura do ar externo e a temperatura corporal e mantinham o nível de calor mais propício ao sono.
A presença de D desapareceu. Aposto que ele dormirá com a escuridão e a canção do vento como companheiros, seu ouvido tocando o chão, pensou Lina. Ou teria problemas para dormir à noite? O que são os dampiros, afinal?
Atrás de suas pálpebras fechadas, uma figura cinza-acinzentada flutuava e falava com uma voz estranha. Lembre-se do que aconteceu dez anos atrás.
Lina balançou a cabeça de leve.
Outra voz. Devo me livrar de todos eles.
Lina também ouviu a voz da presença.
***
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