Volume 01 — Capítulo 08: O Lampejo de Aço que Corta a Curta Cerimônia
— Deixe-nos sair daqui, seu maldito! Solte a gente agora!
— Se não deixar meu irmão sair, juro que vou te procurar toda noite quando a Nobreza me fizer um deles!
Wham!
Batendo a porta com toda a força e cortando mais alarde dos Langs, o homem voltou para seu escritório apertado. Momentos antes, o prefeito e outros membros importantes da comunidade tinham ido para casa. Aqui no asilo, sem mobília, exceto uma mesa e uma cadeira surradas, o burburinho ainda parecia pairar no ar.
— Aquelas crianças malditas. Imaginei que pelo menos uma delas estaria chorando e implorando, mas as duas vão e ameaçam um homem adulto.
Enquanto resmungava para si mesmo, o homem puxou a cadeira de madeira e assumiu o posto em frente à porta de aço que separava o escritório da área de detenção, também conhecida como gaiolas. Havia dez celas individuais nas gaiolas, cada uma cercada por barras de aço de super alta densidade. Estas foram construídas para serem de um tamanho confortável, e Doris e Dan foram trancados juntos. A princípio, uma família gentilmente se ofereceu para cuidar de Dan enquanto Doris estava confinada, já que o garoto não estava envolvido na situação, porém Dan lutou como um tigre e disse que morreria sem sua irmã. Também havia uma chance muito boa de que, se deixado por conta própria, o garoto tentaria libertar Doris, resultando na situação atual.
As vítimas da Nobreza eram confinadas aqui, independente do grau de sua aflição; se o Nobre responsável fosse destruído, a maldição pairando sobre suas cabeças seria suspensa e tudo ficaria bem. Se não, o procedimento operacional padrão era libertar a vítima após um determinado período e expulsá-la da cidade.
Esse “determinado período” era o número de dias até que o Nobre frustrado atacasse outra pessoa, contudo isso variava de vila para vila. Em Ransylva, eram cerca de três semanas. O motivo de demorar tanto foi porque, com base em experiências passadas, eram necessários em média três ataques antes que o Conde terminasse de drenar sua vítima, e por vezes havia um intervalo de três a cinco dias entre os ataques.
Claro, como cada vila poderia esperar que seu asilo fosse invadido pela Nobreza durante o confinamento da vítima, na maioria das vezes os asilos eram guardados por homens bem armados e confiantes em suas habilidades de luta. Como teriam que lidar com a Nobreza, nenhuma vila economizou na compra de armamentos para o local. Na verdade, além dos cinco lançadores de lança de aço totalmente automatizados e das dez catapultas controladas remotamente ao redor deste edifício de meio cilindro de nove metros de comprimento, havia também três canhões laser para neutralizar os veículos da Nobreza e um par de lança-chamas da Capital. Os moradores também queriam uma barreira eletromagnética, no entanto os estoques da Capital estavam acabando, e era difícil encontrá-los, mesmo para aqueles dispostos a pagar preços de mercado negro.
O homem que guardava as jaulas era um membro da multidão que invadiu a fazenda de Doris. O motivo pelo qual o prefeito deixou apenas um homem de guarda foi porque decidiu que, depois de sugar o sangue de três pessoas esta noite, o Conde não teria tanta pressa em atacar Doris. Todavia se chegasse a isso, o guarda poderia acordar a aldeia inteira com uma única sirene, e as armas do lado de fora poderiam ser operadas pelo painel de controle em sua mesa. Mais importante, em mais quatro horas o céu oriental estaria clareando. O homem não estava preocupado.
Assim que estava começando a cochilar, houve uma batida na porta. O homem se apressou até o painel de vídeo e apertou uma única tecla. O rosto de Greco apareceu em um pequeno monitor de vídeo dentro do asilo.
— O que você quer? — o homem disse ao interfone operando através da parede.
— Seja um amigo e abra. Eu vim ver Doris.
— Sem chance. Seu pai foi bem rígido quando deu a ordem para não deixá-lo entrar.
— Vamos lá, não seja um idiota. Sabe o quão louco sou por Doris, certo? Fica só entre nós dois, mas quando o dia amanhecer eles vão levá-la para a casa do velho de presas por ordem do meu pai. O que significa que esta noite é minha última chance de ver a mulher que amo. E, como pode ver, vai ganhar um pouco pelo seu trabalho.
Greco tirou algumas moedas de ouro do bolso e as balançou na frente da câmera. Elas não eram a nova moeda dalas que o governo revolucionário começou há emitir cinco anos atrás. Essas eram as “moedas aristocráticas” que a Nobreza havia usado. Quando os revolucionários enfim conseguiram tomar o poder, destruíram grandes quantidades dessas moedas para dar um bom começo às políticas econômicas de seu novo governo. Uma delas valia pelo menos mil dalas no mercado negro. Era o suficiente para viver por meio ano na Fronteira.
Depois de olhar para o ouro reluzente por um bom tempo, o homem apertou um botão sem dizer uma palavra. A fechadura eletrônica da porta foi desengatada, a maçaneta girou permitindo a Greco entrar.
— Obrigado, amigo. Aqui está!
Três moedas de ouro caíram na mesa. Esquecendo-se de fechar a porta, o homem pegou uma das moedas e logo balançou o olhar entre a moeda e o rosto de Greco antes de por fim concordar com satisfação. Enquanto colocava as três no bolso da camisa, falou.
— Acho que vai ficar tudo bem, porém só tem três minutos para vê-la.
— Vamos, faça cinco.
— Quatro.
— Ok, você negocia muito.
O homem deu de ombros, então se virou para a porta das gaiolas e pegou o chaveiro em seu cinto. As chaves tilintaram juntas quando escolhera uma e a encaixara na fechadura. Não seria bom ter essa porta abrindo automaticamente.
— Diga...
Quando o homem se virou outra vez, seu olhar captou o estranho semblante sem sangue de Greco, e um lampejo de luz branca foi direto para seu próprio peito.
Morto instantaneamente por uma facada no coração, o corpo do homem foi deitado em um lado da sala, e então Greco girou a chave ainda presa na fechadura, abriu a porta e entrou na gaiola. Sua faca já estava de volta no estojo em seu cinto.
— Greco!
Havia celas de cada lado do corredor estreito, e o grito de Doris veio da primeira à esquerda.
— Seu desgraçado, veio aqui para que eu possa espancá-lo ou o quê?
— Cale a boca.
Doris ficou em silêncio. Ela teve um mau pressentimento pela expressão de Greco, que era mais agourenta do que já tinha visto. O que diabos ele está fazendo?
— Vou tirá-la daqui. Você vai fugir comigo.
Além das barras de ferro, as crianças Lang se entreolharam. Em voz baixa, Doris disse.
— Não me diga que... Você não matou mesmo Price...
— Ah, matei sim. E não foi o único. Meu pai também teve o que merecia. É o que ganha por tentar me dar uma surra quando cheguei em casa. O velho bastardo. Ajudo a tornar o seu trabalho mais fácil, e é assim que o ingrato me retribui. Porém não importa agora. De qualquer forma, tenho que sair da cidade hoje à noite. Está comigo? — seus olhos tinham um brilho animalesco, contudo sua voz era como melaço.
Deixando de lado a propriedade de suas ações, alguns podem até dizer que a devoção que demonstrou à mulher que amava era admirável, no entanto Doris disse categoricamente.
— Desculpe. Prefiro ir até o castelo do Conde do que fugir com você.
— O que diabos está querendo dizer?
Lágrimas brilharam nos olhos da garota. Lágrimas de ódio.
— Se aliando a aquele assassino e... Matando todas essas pessoas... Espere só. Não me importa o que aconteça comigo, vou ter certeza de garantir que seja mandado para o inferno.
Doris sempre foi obstinada, entretanto vendo naqueles lindos olhos com uma luz fundamentalmente diferente e desolada, Greco abandonou todos os seus planos e sonhos.
— Então é assim? Está dizendo que prefere a Nobreza a mim?
Quando ele olhou para cima, toda a emoção havia sumido de seu rosto, todavia o brilho em seus olhos era excepcionalmente forte.
— Se é assim que tem que ser, acho que quando tem que deixar ir, tem que deixar... E você está prestes a se juntar àquele vagabundo no além. — dando um passo para trás, Greco tirou a arma do quadril.
— Mana! — Dan gritou e agarrou o pescoço de Doris com força enquanto sua irmã tentava esconder o garoto atrás das costas.
— Está louco, Greco!
— Diga o que quiser. Mas prefiro matá-la a ter qualquer outro homem te levando... Vampiro ou não. Você e esse pequeno idiota de boca grande vão sair dessa vida juntos.
— Pare!
O grito de Doris implorando por sua própria vida foi o último pensamento coerente a passar pela mente de Greco. Alguém atrás dele agarrou a mão com a arma pelo pulso. Embora quem quer que fosse estivesse apenas tocando-o, seu dedo perdeu a força para terminar de puxar o gatilho. Um calafrio sobrenatural se espalhou de seu pulso para o resto de seu corpo. O hálito com o doce cheiro da morte fez cócegas em seu nariz, e palavras geladas e sombrias atingiram seu lóbulo da orelha.
— Teria sido melhor se tivesse me matado quando teve a chance. — o rosto pálido de Larmica eclipsou a nuca morena de Greco.
Congelados de horror, Doris e Dan observaram o rosto de Greco ficar cada vez mais pálido, como se estivesse desaparecendo em uma névoa. Segundos depois, a jovem de vestido preto se afastou do homem e se aproximou da cela. Com um fio de sangue escorrendo do canto pálido da boca, essa beldade que parecia brilhar na escuridão não poderia ser comparada a nada além de um espectro vingativo. Talvez sua sede ainda não estivesse saciada, pois um olhar de seus olhos vermelhos brilhantes abalou Doris e Dan até o fundo de suas almas.
Uma expressão de terror insondável estampada em seu rosto, o corpo de Greco caiu no chão, uma casca vazia drenada da última gota de sangue.
— O que você...
O tremor na voz de Doris era perceptível, porém Larmica apenas disse.
— Vá. — o tom de loucura havia deixado seus olhos e, muito pelo contrário, sua expressão agora parecia tingida de tristeza.
— Hã?
— Fuja. O pai virá em breve. E quando vier, não poderei fazer mais nada.
— Mas... Não podemos sair daqui. Traga as chaves para nós, por favor. — disse Dan, agarrando as barras. Sua mente flexível de oito anos já havia se ajustado a essa vampira como aliada deles.
Ela agarrou as barras de aço com mãos delicadas que pareciam que quebrariam com um vento forte. Que força os vampiros possuíam! Com um bom puxão, as barras de aço de super alta densidade se soltaram do teto e do chão, fazendo parafusos dispararem em todas as direções.
— Inacreditável...
Ainda tentando manter Dan de olhos arregalados para trás, Doris perguntou a Larmica.
— Você está falando sério... Quer mesmo que a gente fuja, não é? Mas por que está nos ajudando?
Um tom de tristeza coloriu o rosto de flor-da-lua de Larmica quando se virou.
— Ele morreu... Porém te defendeu até o fim. Acabaria triste se você caísse nas mãos do pai. Não tenho desejo de causar mais tristeza aos mortos...
Quando Dan pegou a mão dela e a puxou para o corredor, Doris percebera que essa jovem assustadora nutria o mesmo sentimento que enchia seu coração.
— Vo... Você sentiu algo por ele...
— Vá... Se apresse.
Os três entraram no escritório.
Uma figura de preto estava no centro da sala.
— Pai! — Larmica gritou aterrorizada.
— Que diabos, nada ainda? — o carbúnculo cuspiu em desgosto, seu rosto pressionado no peito de D. — Um ferimento de espada ou lança não teria sido tão ruim, contudo depois de levar uma estaca de madeira, seu pequeno coração não está me ouvindo. Bata. Só me dê uma boa pancada, vamos lá e reaja logo.
Fechando a mão que ocupava, se levantou para bater no peito de D o mais forte que pôde, contudo parou no ar.
Algo estava coagulando no céu noturno.
Uma série de membranas brancas e semitransparentes giravam acima da casa, então começaram a se unir para formar uma única massa. Depois de se recompor, a nuvem brilhante desceu em direção à fazenda, órgãos de formato estranho se tornando visíveis através de seu corpo parcialmente transparente. Esta era outra das monstruosidades artificiais geradas pela Nobreza... Uma nuvem noturna. Uma forma de vida capaz de se reformar a partir de organismos unicelulares, durante o dia a nuvem permanecia nos extremos congelantes da estratosfera, e à noite ela volta à terra em forma dispersa para caçar presas.
Assustadoramente, essas malditas coisas são carnívoros perigosos que formam uma única massa quando encontravam uma vítima, envolvendo suas presas de todos os lados para digeri-las e absorvê-las. Elas representam uma grande ameaça para crianças perdidas e viajantes inexperientes e, junto com feras destruidoras de dimensões, faziam com que muitas pessoas desaparecessem de maneira inexplicável. A barreira eletromagnética tinha sido uma dádiva de Deus, pois sozinha os impedia de causar estragos na fazenda de Doris.
A certa altura, a nuvem desceu cerca de 5 metros acima da cabeça de D, todavia pareceu sentir o cheiro de algo e se afastou para um lado, em direção ao celeiro onde os animais estavam estabulados. Parando diante das portas por apenas um segundo, se espalhou como um lençol e deslizou com facilidade por uma abertura entre a parede e as portas. Os gritos estridentes do gado reverberaram, as paredes tremeram duas ou três vezes, e muito em breve tudo tornou a ficar em silêncio.
— Essas coisas comem como porcos. Isso vai voltar em breve. Então comece a bater logo, seu coração nojento e inútil! — o punho queixoso bateu com força contra o peito de D e sugou ar. O corpo não se moveu nem um pouco. — Vamos, seu bastardo!
Se houvesse alguém lá para ver o show bizarro, mas desesperado, que continuou por mais alguns minutos, talvez tivesse rido alto.
E então...
As portas do celeiro se curvaram para fora por dentro e se estilhaçaram, voando para todos os lados. Um segundo depois, uma coisa indizivelmente grotesca apareceu ao luar. Dentro da massa de nuvens semi translúcidas havia uma vaca, se contorcendo em agonia enquanto se dissolvia! Sua pele se partiu, a carne vermelha derreteu e o osso exposto aos poucos se desgastou como bolhas de sabão estourando. Enquanto carne e sangue se misturavam em um tubo estreito que parecia ser uma espécie de esôfago, o líquido girava e a nuvem começou a brilhar mais forte do que nunca. Estava se alimentando. Por alguns segundos, a massa corpulenta se contorceu na entrada do celeiro e então, talvez sentindo outra presa, começou a se arrastar em direção a D. Graças ao peso da vaca meio devorada, seu deslocamento parecia estar em câmera lenta.
— Maldição, já está perto. Vamos lá e comece logo! — o punho deu outro tapa em D.
A nuvem se fechou a 3 metros de D. Perto o suficiente para ouvir a vaca torturada dentro dela.
A um metro de distância. A nuvem subiu no ar e voou direto para D.
Um lampejo de luz varreu através de sua massa translúcida.
A lâmina pareceu passar direto por ela sem encontrar resistência, porém quando a nuvem dividida caiu no chão em dois pedaços, perdeu a cor antes de ter a chance de se dividir em pedaços menores. Exalando um vapor esbranquiçado, encharcou a terra. Apenas os restos da vaca foram deixados para trás.
D se levantou, dispersando raios de luar.
— Bom trabalho. Sabe, você me assustou até a morte, como sempre.
Como se essa saudação um tanto inapropriada para alguém que acabou de ressuscitar dos mortos não tivesse chegado aos seus ouvidos, D perguntou.
— Onde estão os dois?
— No asilo, suponho. Cada aldeia parece colocá-lo na orla da cidade.
Com isso, toda a conversa cessou, e D se levantou de um salto e foi em direção aos estábulos.
As árvores altas espalharam seus galhos como monstros, afastando o luar invasor. A única luz que se podia ver era o brilho fosforescente dos cogumelos de sinalização aqui e ali entre as raízes das árvores, embora não significasse muito diante da massa e densidade da escuridão esmagadora. Mesmo um viajante com alguma fonte de luz teria dificuldade em atravessar esta floresta tarde da noite sem se perder no processo.
Esta era a Floresta Ransylva, onde se dizia que a noite vivia até mesmo ao meio-dia. E por ela, Dan correu em desespero. Ele não estava sozinho. Da escuridão a menos de nove metros atrás, veio o rosnado e os passos de um carnívoro. Sua identidade era clara. O servo do Conde, Garou, o perseguia.
Pego pelo Conde quando estavam prestes a fugir do asilo, sua irmã e Larmica foram colocadas na carruagem, enquanto Dan foi deixado lá sozinho. Decidindo resgatar Doris, correu de volta para a fazenda para se armar. Apesar de sua pouca idade, estava claro para o garoto que seria inútil buscar ajuda de qualquer pessoa na cidade para resgatar sua irmã. E não havia um momento a perder. O caminho mais curto possível seria cortar caminho pela Floresta Ransylva em vez de pegar a estrada. Com apenas sua irmã em mente, fez isso sem um momento de hesitação. Todavia, menos de um minuto depois de entrar na floresta, ouviu o rosnado do lobisomem em sua perseguição.
A maratona mortal havia começado.
Seu pai e sua irmã o trouxeram aqui antes na relativa segurança do dia, e até conseguia se lembrar de brincar sozinho na floresta. Usando todo o conhecimento que tinha, Dan correu pelos caminhos mais sinuosos que conseguiu encontrar, se esgueirou para dentro de árvores ocas e se escondeu no mato na tentativa de confundir seu perseguidor inquietante.
Contudo sempre que parava, ele parava. Se voltasse a correr, a criatura também disparava. Não importava o que tentasse, a distância entre os dois não aumentava nem diminuía.
Dan por fim percebeu que estavam usando-o como entretenimento. No momento em que isso lhe ocorreu, seu senso admirável entrou em colapso e o terror puro e negro se tornou o único ocupante de seu coração. Continuou correndo com tudo o que podia e, ainda assim, o perseguidor às suas costas permanecia os mesmos 9 metros atrás de sempre.
Seu coração estava prestes a explodir e seus pulmões ofegavam por mais ar. Podia sentir o gosto de suas próprias lágrimas salgadas em sua língua. E quando pensou que não aguentaria mais, viu um ponto de luz na escuridão. A saída!
A esperança o encheu de energia. Seus pés batiam no chão em passadas poderosas até que algo de repente os agarrou.
— Waaugh!
Caindo de cara para frente, tentou se levantar de novo, mas foi pego por um par de mãos.
— A mão de um morto!
O luar escasso que mal se derramava através das árvores entrelaçadas mostrou a ele o que era. A mão de um cadáver pálido se estendia do chão, seus cinco dedos se contorcendo de uma forma nojenta. Não, não dedos, e sim cinco flores. Dan estava sendo segurado no chão por uma flor pálida que parecia a mão de um cadáver. Como os vários horrores botânicos semeados pela Nobreza, essas eram plantas um tanto bizarras, porém inócuas... E o fato de Dan saber onde cresciam e ainda assim ter acabado pulando bem no meio desse pedaço dizia muito sobre como o terror que sentia havia apagado todo o resto de sua mente. Contudo quem poderia culpar um garoto de oito anos por tal descuido?
Usando todas as suas forças, Dan tornou a se levantar. A mão do morto ainda pendia de seu pulso, raízes arrancadas e tudo.
Assim que estava prestes a voltar a correr...
— Awoooooooooh!
Um uivo terrível o atacou por trás, enraizando seus pés.
Vendo a saída tão próxima, esse foi o grito de guerra que Garou deu quando decidiu que havia chegado a hora de pôr fim à sua perseguição horripilante. Estava perseguindo Dan porque o Conde o permitiu comer uma pessoa viva pela primeira vez em eras.
Toda a força foi drenada do garoto. Desculpe, mana. Parece que não vou conseguir te salvar. Lágrimas de arrependimento rolaram por suas bochechas.
E então, o uivo parou de repente. Em seu lugar, Dan pôde sentir tremores.
Naquele mesmo momento, Dan ouviu algo. Captou o eco de cascos além da saída, distantes, no entanto se aproximando com força total. Não conseguia ouvir uma voz ou ver uma forma. Entretanto Dan soube em um segundo quem era.
— D! — seu grito esperançoso atravessou a escuridão.
Mais uma vez, um uivo soou de trás, e um redemoinho negro correu pelo seu lado.
— D, cuidado!
Ele correu alguns passos, chutando as flores de mão do homem morto tenaz para fora do seu caminho. Um rugido incrivelmente bestial surgiu além da saída e foi silenciado de súbito.
Caindo de cabeça para fora da floresta, Dan viu um cavaleiro em uma colina à frente, banhado pelo luar. A seus pés estava o lobisomem caído. D galopou até ele, descendo de um cavalo que Dan reconheceu, perguntou.
— O que você está fazendo aqui? Onde está sua irmã?
Dan foi tomado pela emoção.
— Eu sabia que você ainda estava vivo, D. Eu... Sabia que não havia como você morrer... — ele não conseguiu dizer mais nada. Quando Dan por fim se acalmou e explicou a situação, D o pegou sem dizer uma palavra e o colocou no cavalo. Ele não disse ao garoto para ir para casa ou se dispôs a levá-lo de volta para a fazenda.
Olhando para a pradaria no castelo do Conde com um olhar de aço, D perguntou.
— Vai vir comigo? — era a mesma pergunta que havia feito ao garoto nas ruínas uma noite antes.
— Claro!
Não havia razão para esperar qualquer outra resposta do garoto.
Havia uma característica particular dos castelos da Nobreza que combinava com seus lordes vampiros. Embora houvesse lindos aposentos prontos para hóspedes e outros visitantes, não havia nenhum para o lorde e sua família. Estes dormiam em um lugar mais adequado à sua posição, um lugar exaltado que era o material da lenda: em caixões sob a terra.
Em vastas câmaras subterrâneas cheias de minúsculos organismos, onde o fedor da umidade se misturava com o doce perfume do solo antigo, aqui sozinho o verdadeiro passado dormia, livre de controles de computador. O cheiro de tochas há muito tempo sem uso pairava no ar deste lugar especial. Um muro de pedra que parecia ter talvez nove metros de altura estava coberto por um retrato colossal do Ancestral Sagrado. No estrado carmesim à frente estava o Conde em seu traje preto e Doris, vestida com um vestido branco como a neve. Os olhos da garota estavam sem vida.
Ela estava hipnotizada.
À esquerda do estrado estava Larmica, mas seus olhos pareciam atordoados enquanto vagavam pelo espaço, evitando seu pai e sua futura noiva. Isso tinha menos a ver com a reprimenda que recebeu de seu pai por tentar ajudar Doris a escapar e mais a ver com algo que o coração da bela vampira havia perdido.
As núpcias sombrias estavam prestes a começar.
— Olhe. Lá você fará sua cama a partir desta noite.
O Conde gesticulou para um par de caixões pretos laqueados posicionados em uma laje de pedra em frente ao estrado. Abaixo de onde o brasão de falcões e chamas estava esculpido, o caixão da direita tinha uma placa com o nome “Lee”, enquanto o da esquerda já tinha a inscrição “Doris”.
— Eles contêm terra. O mesmo solo orgulhoso em que o castelo da família Lee foi construído. Tenho certeza de que lhe dará sonhos de sangue doce todas as noites. Agora, então...
O Conde pegou o queixo de Doris e inclinou sua cabeça para trás, expondo mais de sua garganta pálida.
— Antes de trocarmos os votos de marido e mulher, devo livrá-la dessa marca repugnante. — ele tirou um pequeno sinete das dobras de sua capa. Em sua face quadrada era esculpida com o mesmo brasão que decorava as tampas dos caixões.
— Primeiro o direito. — fumaça branca surgiu de sua garganta pálida enquanto pressionava o sinete na carne, e Doris tremeu. Realizando o mesmo ato de novo, só que um pouco mais abaixo, o Conde disse. — Agora o esquerdo.
Uma vez terminado, o Conde trouxe sua boca abominável para mais perto da garganta de sua noiva. Embora a fumaça branca ainda pairasse no ar, agora não havia uma marca em seu pescoço virgem, além do par de marcas de mordida que o Conde deixou na primeira vez que se alimentou dela. Um hálito que cheirava a sangue rastejou por sua garganta. A marca da cruz que manteve a garota segura não reapareceu.
— Muito bem. Agora não preciso temer nada quando lhe der meu beijo.
Sorrindo largamente enquanto devolvia o sinete à capa, o Conde virou-se para sua amada filha, em um estupor ao seu lado, e disse.
— Você terá uma nova mãe. Não recitará algumas palavras de parabéns para nós?
Seu olhar vago focou em seu pai. A boca de Larmica se moveu aos poucos.
— Eu... — começou. — Eu, Larmica Lee, sua filha de três mil setecentos e vinte e sete anos, parabenizo meu pai de três mil setecentos e cinquenta e sete anos, Magnus Lee, e minha mãe de dezessete anos, Doris Lang, pela ocasião de seu casamento. — sua voz era insípida, porém o Conde assentiu e aguçou os ouvidos.
O que a princípio parecia ser a voz de Larmica ricocheteando no chão de pedra e no teto tornou-se um canto unificado que reverberou pela câmara subterrânea escura, como os gritos dos mortos se contorcendo surgindo da terra.
— Damos ao Conde Magnus Lee nossos mais sinceros parabéns pela criação desta nova união.
As vozes vinham dos ocupantes de inúmeros caixões presos nas paredes e sob o chão. Vários deles tremeram e chacoalharam um pouco, fazendo o Conde estreitar o olhar.
— Agora é hora... — dizendo isso, enquanto levava os lábios à garganta ainda virada de Doris, o transmissor no bolso de sua jaqueta emitiu uma sirene. — Oh, sua máquina infernal! — o Conde disse irritado e o puxou para fora. — O que é?
A voz metálica do que deve ter sido um computador respondeu.
— Um par de humanos e um cavalo acabaram de chegar ao portão principal. Um dos humanos é homem, com aproximadamente oito anos de idade, o outro é um homem estimado entre dezessete e dezoito anos.
— O quê?
Os olhos do Conde brilharam com luz de sangue.
Larmica se virou em espanto.
— Eles não devem ter permissão para entrar. Não abaixe a ponte levadiça. Abra fogo neles imediatamente.
— Na verdade... — o computador hesitou. — A ponte desceu assim que se aproximaram. Não conseguimos disparar as armas. Acredito que o animal ou um dos humanos possui um dispositivo que interfere nos meus comandos. No momento, todos os armamentos eletrônicos do castelo estão inoperantes.
— Seu miserável... — o Conde gemeu de ódio. — Então o rapaz ainda vive, não é? Contudo como voltou? Nem eu conheço nenhuma maneira de retornar a vida após ter uma estaca de madeira cravada no coração.
— Para alguém como ele... — Larmica murmurou.
— Alguém como ele? Larmica, tem alguma ideia sobre sua identidade?
Larmica não respondeu.
— Muito bem. Essa pergunta pode esperar até mais tarde. Por enquanto, devo matá-lo primeiro. Quando algo interfere assim no meio de uma cerimônia, é costume adiar as festividades até que o incômodo seja resolvido.
— Entendido, pai. No entanto como exatamente pretende lidar com ele?
— Conheço alguém que gostaria muito de reparar um erro.
Quando um azul claro finalmente tingiu o céu oriental, no pátio do castelo D e Dan mais uma vez encararam Rei-Ginsei.
— Não recebi mais nenhum Incenso Enfeitiçador do Tempo. — Rei-Ginsei disse com um sorriso lindo e diabólico. No caminho da fazenda de Doris para o castelo, Rei-Ginsei encontrou a carruagem do Conde enquanto esta voltava da cidade em velocidade perigosa, e acompanhou a carruagem pelo resto do caminho. — Posso entender por que o Conde estava tão chateado. Todavia, se eu te despachar para a próxima vida mais uma vez, tenho certeza de que sua raiva será apaziguada. Por favor, desmonte.
Eles estavam a três metros de distância, assim como estavam na fazenda Lang. Dan se escondeu junto com o cavalo atrás de uma escultura de pedra e esperou a batalha ser decidida.
Mas basicamente era um desafio absurdo. Enquanto não tivesse Incenso Enfeitiçador do Tempo, Rei-Ginsei não tinha como superar D. Por outro lado, quaisquer ferimentos críticos que D pudesse causar seriam devolvidos ao Caçador através da passagem extradimensional no corpo de Rei-Ginsei. E ainda assim, cada um aparentava pensar que tinha uma boa chance de prevalecer e ambos entraram em ação ao mesmo tempo.
— Ugh...
D se dobrou e então caiu de joelhos. Uma chama dançava sobre a vela do Incenso Enfeitiçador do Tempo na mão direita de Rei-Ginsei. Ele havia enganado D. Em um piscar de olhos, uma lâmina de picanço estava zunindo pelo ar.
Porém a razão pela qual derrotou D na fazenda foi porque tinha os componentes de amplificação muscular do traje de combate o auxiliando. Com o rosto contorcido de agonia, D derrubou a lâmina de picanço no ar e saltou.
Foi como uma reconstituição completa do duelo nas ruínas. O que era diferente era que Rei-Ginsei não se esquivou, contudo deixou a cabeça aberta para o clarão prateado. Sua suspeita era de que D estaria mirando em seus membros. No entanto, no instante em que percebeu que a lâmina descendo em sua direção estava inequivocamente apontada para sua cabeça, deixou o portal extradimensional dentro de seu corpo aberto e não tentou correr.
A testa de D se abriu, entretanto era apenas uma fina camada de pele. Um instante depois, sangue vermelho brilhante jorrou do abdômen de Rei-Ginsei. A expressão do jovem arrojado era de estupefação enquanto olhava para a lâmina saindo de sua barriga... A mesma lâmina que deveria dividir a cabeça de D em duas. O Caçador de Vampiros balançou sua espada acima da cabeça e cortou apenas a camada mais externa da pele na testa de Rei-Ginsei, então mudou sua pegada na espada no ar e a enfiou direto em seu próprio estômago. Já ligada pela passagem extradimensional, quando a lâmina entrou no corpo de D, esta se materializou na barriga de Rei-Ginsei. Além de sua habilidade de torcer e conectar pontos no espaço, Rei-Ginsei era um humano normal que não sobreviveria a esse tipo de ferimento. Esse era o tipo de método absurdo de matar que só um dampiro como D seria capaz.
— Dan, apague essa vela para mim.
Enquanto ouvia o garoto correr para a ação, Rei-Ginsei caiu no chão. O incenso deixou sua mão, e seu sangue brilhante manchou a terra.
— Ei, não desmaie ainda. Faça pelo menos uma coisa boa antes que sua vida miserável acabe. — disse Dan, pisando no incenso. Um arrepio tomou conta dele enquanto observava a lâmina saindo do abdômen do caído Rei-Ginsei deslizar suavemente de volta para seu corpo. D estava puxando sua própria espada para fora de si.
— E o que é isso... Uma coisa boa? — perguntou Rei-Ginsei.
— Diga onde minha irmã está.
— Não sei... Procure o contentamento do seu coração... A essa altura, o Conde a fez sua noiva...
Um coágulo de sangue escorreu de sua boca, e os últimos espasmos de morte iminente torceram seu lindo semblante.
— Se eu tivesse sido feito um da Nobreza... — e então sua cabeça caiu para um lado.
— Ele se foi, o maldito idiota. — Dan disse com tristeza. — Se tivesse realmente agido bem em vez de apenas parecer bem, poderia ter vivido um bom, longo tempo...
— Isso mesmo. — D disse, respirando pesadamente. Os efeitos do Incenso Enfeitiçador do Tempo desapareceram no instante em que a chama foi apagada. A razão pela qual parecia estar com tanta dor era o ferimento em seu estômago.
— Onde você acha que eles levaram minha irmã? Este lugar é tão grande que nem sei por onde começar a procurar. — Dan estava à beira das lágrimas, mas D deu um tapinha em seu ombro.
— Você está esquecendo que sou um Caçador de Vampiros. Venha comigo.
Os dois foram direto para a câmara subterrânea. Dan observou maravilhado enquanto portas fechadas se abriam assim que D se aproximava. Nada poderia detê-los. De vez em quando, passavam por pessoas inexpressivas que pareciam ser servos e damas de companhia, porém nenhuma delas sequer tentava olhá-los antes de desaparecerem na escuridão.
— Robôs, imagino. — disse Dan.
— Líderes de uma vida falsa, este castelo cintila na luz da destruição agora. Como a própria Nobreza tem feito por muito, muito tempo.
Descendo uma escada estreita de dois andares, os dois chegaram a uma enorme porta de madeira. Cravejada de pregos de cima a baixo, testemunhava a importância da cerimônia sombria que acontecia além dela.
— É aqui, certo? — Dan estava tenso.
D tirou seu pingente azul e colocou no pescoço do garoto.
— Isso vai repelir os robôs. Fique aqui.
A porta não tinha fechadura nem ferrolho. Parecia pesar toneladas, contudo quando o dedo de D a roçou, as dobradiças rangeram e as portas se abriram para os dois lados. Escadas largas de pedra gastas no centro fluíam para a escuridão. Em algum lugar bem abaixo havia uma luz quase imperceptível. Ao descer a escada, D chegou à câmara subterrânea. Longe, à sua direita, chamas dançavam.
Caixões cobertos de terra, alguns com mãos e pés esqueléticos saindo por buracos nas tábuas meio apodrecidas, outros com cunhas de madeira enfiadas nas tampas... Foi isso que D recebeu na escuridão. Abrindo caminho pelo local de descanso final de fileiras e mais fileiras de mortos, D chegou ao estrado cor de sangue, onde ficou cara a cara com o Conde.
— Estou impressionado com a maneira como conseguiu voltar à vida. E vir aqui. — o tom do Conde foi além do espanto. D virou os olhos para Doris, parada imóvel no estrado. Um sorriso frio cutucou suas bochechas por um instante.
— Parece que cheguei bem a tempo.
Em algum momento, Larmica desapareceu.
— Haverá tempo de sobra para terminar quando você estiver morto. — respondeu o Conde. — No entanto, como a própria Larmica disse, é sem dúvida uma pena matá-lo. Você voltou à vida depois de levar uma estaca no peito... Agora, este é um segredo que eu mesmo gostaria muito de saber. O que me diz? Não vai reconsiderar o assunto uma última vez? Não tem desejo de tomar Larmica como sua esposa e viver aqui no castelo? A alma dela já é de sua posse.
— A Nobreza morreu há muito tempo. — disse D. Por alguma razão, sua voz parecia ter um tom triste. — A Nobreza e este castelo não são mais do que fantasmas esquecidos pelo tempo. Volte para onde pertence.
— Silêncio, rapaz! — o Conde gemeu, rangendo os dentes de raiva. — Nascido de sangue Nobre como é, certamente deve saber o que significa imortalidade. Vida dada até o fim dos tempos... É nosso dever fazer exatamente isso, esmagando os vermes humanos sob nossos pés o tempo todo.
Quando terminou de falar, o Conde franziu a testa. Tinha acabado de perceber que D não estava olhando para ele, seu olhar se dirigia para além, para o retrato atrás.
Se fosse o olhar, não teria prestado muita atenção. O que desencadeou essa surpresa, que na verdade estava mais próxima do horror, foi que viu que o rosto do jovem na luz bruxuleante da tocha era o idêntico ao rosto no retrato que prendia seu olhar.
Ao mesmo tempo, o Conde percebeu que palavras que ouvira duas vezes antes ecoavam nas profundezas de seus ouvidos. Inconscientemente, deixou-as escapar de sua boca.
— Convidados transitórios...
Em toda a orgulhosa e gloriosa história da Nobreza, somente este pronunciamento de seu divino Ancestral Sagrado havia encontrado suspeita e negação de todos os Nobres. A Academia de Ciências da Nobreza havia desenvolvido um método de análise matemática do destino e, depois de cruzarem essas figuras com a importância histórica de todas as civilizações conhecidas, cancelaram todas as apresentações sobre as descobertas de suas pesquisas. Quando foram criticados por essa decisão, foi o Ancestral Sagrado que veio enfrentar os críticos, aparecendo em público pela primeira vez em um milênio para controlar a situação. E essas palavras foram as que deixou escapar então.
O grande rio que fluía eternamente que era história tinha uma civilização temporariamente descansando em sua superfície plácida... O Ancestral Sagrado se referia àqueles que sustentavam a civilização como convidados transitórios. A questão era: ele se referia à Nobreza ou aos humanos?
O emaranhado de pensamentos do Conde ficou mais complicado, e então um único fio de repente se soltou. Um rumor bizarro que havia circulado por algum tempo entre a Nobreza de mais alto escalão sussurrou em seu ouvido mais uma vez. Nosso Ancestral Sagrado, ao que parece, jurou a uma empregada humana... Eles fariam filhos e ele os mataria, mas mesmo depois de matá-los, ainda a faria ter mais. Impossível! O cérebro do Conde foi levado aos limites do pânico e da confusão. Ele não poderia ter... O Ancestral Sagrado poderia ter planejado a união do sangue humano e nobre o tempo todo?
Sem saber o que era verdade ou mentira, o Conde deu um passo à frente, gelado por seus próprios pensamentos.
— Rapaz, farei com que sinta todo o poder da Nobreza antes de morrer.
Quando terminou de falar, sua capa tremulou. O forro estava vermelho e brilhante. O ar uivava ao redor da câmara e cada chama dançava a um passo de ser apagada. Surpreendentemente, a capa se espalhou como uma gota de tinta se dissolvendo na água e tentou envolver D.
D sacou sua espada e cortou a ponta dela em um movimento fluido. Sua lâmina grudou no forro. Esta era a mesma lâmina que D tinha usado para destruir a monstruosidade de bronze, Golem, e matado um lobisomem correndo a metade da velocidade do som!
O forro se enrolou em volta de sua espada, arrancando-a das mãos de D um segundo depois. Contudo, na verdade, o próprio D a havia soltado. Se tivesse resistido, sua própria mão poderia ter sido enrolada e esmagada no processo.
— E agora você está nu. — o Conde riu com malícia, pegando a espada de D em sua mão direita. Sua capa voltou às suas dimensões normais. Fazendo outra grande varredura, o Conde disse. — Isto foi costurado com a pele de mulheres que saciaram minha sede, e foi laqueado com o sangue delas. Graças a técnicas secretas passadas pelo meu clã, é cinco vezes mais forte que o aço mais duro e vinte vezes mais flexível que a teia de uma aranha. E agora acaba de testemunhar seu poder adesivo por si mesmo.
Vários lampejos de luz queimaram o ar. A capa se espalhou. Todas as agulhas de madeira que D havia atirado caíram no chão na frente do Conde.
— Chega de sua tola resistência.
A capa se abriu como as asas de um pássaro escuro e místico e o Conde a lançou para frente.
D saltou para fora do caminho. A manga de seu casaco exibia um rasgo fresco. Isso foi graças à lâmina cortante que a capa havia se tornado.
— Oh, qual é o problema, meu bom Caçador? Poderia ser que esteja impotente agora?
Sua risada sarcástica veio por cima da capa de ataque. A velocidade com que a varreu foi incrível. Incapaz de fechar a lacuna entre o Conde e ele, D se moveu como o vento para escapar dos ataques.
Em algum momento, os dois trocaram de posição, de modo que D agora estava na frente de Doris, protegendo-a.
Os olhos do Conde brilharam. Sua capa uivou pelo ar.
Quando D estava prestes a pular para longe mais uma vez, algo o envolveu por trás. Os braços de Doris!
Um segundo depois, o corpo de D estava entrelaçado na capa. Nessa batalha que exigia a máxima concentração, até ele havia esquecido por um momento que Doris estava sob o domínio do Conde.
Os ossos de D estalaram com a enorme pressão. Seu lindo semblante se contorcia. E, contudo, quem mais teria sido habilidoso o suficiente para empurrar Doris para fora do caminho do perigo uma fração de segundo antes que a capa o engolisse?
A espada de D brilhava nas mãos do Conde.
— Sua destruição virá por sua própria lâmina.
O Conde pretendia cortar sua cabeça. O corpo de D estava envolto em uma capa que sua lâmina não conseguiu perfurar, e a espada cortou o ar com toda a força do Conde, até que de repente parou.
Ao mesmo tempo, a capa se torceu e D saltou para longe das bizarras restrições de tecido. No instante em que a concentração do Conde foi quebrada, o feitiço sobre sua capa também vacilou. D pousou bem diante do Conde. E o que o Conde fez em resposta?
— Ha!
Com uma premonição de seu inimigo firmemente espetado trazendo um sorriso ao seu rosto, o Conde apunhalou a lâmina. A espada foi pega e parada bem na frente do peito de D. Presa entre as palmas das mãos do Caçador. Seus papéis estavam invertidos em comparação ao seu primeiro encontro!
Sem diminuir nem um pouco a pressão indizível que exerceu a 25cm da ponta da arma, D torceu as duas mãos para um lado. O Conde não voou pelo ar, todavia a ponta da lâmina quebrou. Com a ponta quebrada ainda entre suas mãos, D saltou três metros para trás.
— Ora, esse é o mesmo truque...
Foi de fato grandioso o modo como o Conde estendeu sua capa enquanto gritava isso, entretanto a diferença entre ser aquele que fez o truque e aquele que recebeu, neste caso, tornou-se a diferença entre a vida e a morte. A ponta da espada voou das mãos cruzadas de D em um clarão prateado que atravessou com precisão o coração por baixo daquela vestimenta negra.
Por alguns segundos, o Conde ficou imóvel. Então a carne em seu rosto começou a derreter, e seus olhos caíram para o chão, deixando um rastro de nervos ópticos atrás deles.
Meros momentos depois de atingir o chão, sua língua podre e cordas vocais forçaram suas últimas palavras.
— Eu... Tive que implorar ao nosso Ancestral Sagrado para me ensinar esse mesmo truque... Poderia ser... Milorde, você é realmente o seu...
D rapidamente foi até Doris, que estava deitada no chão. Algo estranho estava acontecendo com o castelo. O leve toque do sino de alerta no peito do Conde era prova disso. O ataque mortal do Conde vacilou porque o sino atingiu seu ouvido, desviando-o do caminho da vitória certa para um mergulho no abismo da morte. O chão tremeu.
Um leve toque em sua bochecha foi o suficiente para acordar Doris. Não havia mais vestígios das marcas de presas em seu pescoço.
— D... O que diabos está acontecendo? Você está vivo?
— Meu trabalho está feito. As feridas na sua garganta desapareceram. — D apontou para o outro lado da câmara e para o caminho por onde tinha vindo. — Se subir por aquela escada, encontrará Dan. Vocês dois devem voltar para a fazenda.
— Mas você... Você tem que vir conosco.
— Meu trabalho acabou, porém ainda tenho negócios aqui. Apresse-se e vá. E, por favor, diga a Dan para não esquecer a promessa que fez ao seu irmão mais velho.
Lágrimas brilharam nos olhos de Doris.
— Vá.
Virando-se várias vezes, Doris enfim desapareceu na escuridão. Uma saudação soou da mão esquerda de D, embora talvez nunca tenha chegado aos seus ouvidos.
— Adeus, crianças fortes e doces. Boa sorte!
D se virou. De um lado da câmara estava Larmica.
— Foi obra sua?
Larmica assentiu e disse.
— Eu inverti todos os circuitos de segurança do computador. Nos próximos cinco minutos, o castelo será destruído... Por favor, fuja enquanto pode.
— Por que não viver aqui em seu castelo até o fim dos tempos, com a escuridão como sua companheira?
— Não há mais tempo para isso. E a família Lee morreu há muito tempo. Morreu quando meu pai escolheu uma vida eterna e sem sentido, de nada além de beber sangue humano.
O tremor ficou mais forte, e toda a câmara começou a gemer. Os detritos brancos caindo do teto não eram poeira comum, mas sim pedra pulverizada. As ligações moleculares de todo o castelo estavam se rompendo!
— Então, pretende ficar aqui?
Larmica não respondeu à pergunta, contudo disse.
— Por gentileza, permita-me perguntar uma coisa... Seu nome. D... É D, como em Drácula?
Os lábios de D se moveram.
Os dois ficaram imóveis, com pó branco chovendo. Sua resposta não foi ouvida.
Apropriadamente, o castelo do vampiro virou pó como seu senhor e desapareceu. Com o campo de visão todo tingido de branco pelas nuvens de entulho em pó, Doris e Dan não conseguiam parar de tossir por causa de toda aquela poeira.
Ambos estavam no topo de uma colina a menos de cem metros do castelo.
Enxugando os olhos lacrimejantes, quando Doris por fim levantou o rosto de novo, outro tipo de lágrima começou a fluir.
— Foi embora... Tudo. E ele também não vai voltar...
Colocando a mão no ombro da irmã distraída, Dan disse alegremente.
— Vamos para casa, mana. Temos muito trabalho a fazer.
Doris balançou a cabeça.
— Não adianta... Eu só não consigo mais fazer isso... Não consigo usar um chicote como antes, não consigo cuidar de você ou fazer meu trabalho na fazenda... E tudo porque encontrei alguém em quem podia confiar...
— Deixe comigo. — o menino de oito anos estufou o peito. Sua mãozinha agarrou o pingente de D. — Nós só temos que aguentar por mais cinco anos. Então serei capaz de fazer tudo. Até encontrarei um marido para você, mana. Temos um longo caminho pela frente, então anime-se.
Ele sabia que não era mais apenas uma criança de oito anos.
Doris virou-se para o irmão, olhou-o como se fosse alguém que nunca tinha visto antes e assentiu. Daqui a cinco anos, seu irmão ainda seria um menino. No entanto em dez anos, seria capaz de reconstruir a casa e caçar dragões de fogo. Levaria muito tempo, porém o tempo tinha um jeito de fluir.
— Vamos, Dan.
Enfim recuperando seu sorriso, Doris caminhou em direção ao cavalo.
— Claro! — Dan retrucou e, embora seu coração estivesse quase despedaçado de tristeza, ele sorriu para esconder.
Com os dois nas costas, o cavalo galopou para o leste, onde a luz azul enchia o céu e sua fazenda os aguardava.
D havia cumprido sua promessa.
Agora era a vez do menino.
Posfácio
A maioria dos fãs de cinema extravagante deve estar familiarizada com o filme Horror of Dracula, produzido na Grã-Bretanha pela Hammer Films em 1958. Junto com The Curse of Frankenstein do ano anterior, este clássico ajudou a disparar um boom mundial em filmes de terror e, além disso, serviu como a primeira inspiração para este humilde romancista de terror. Já vi alguns filmes de terror e suspense, todavia nenhum filme antes ou depois conseguiu o que este conseguiu... Me fazer sair correndo do cinema no meio do show. Embora a maioria ache esta informação supérflua, Terence Fisher o dirigiu, Jimmy Sangster escreveu o roteiro e Bernard Robinson foi o designer de produção. Certamente as estrelas do filme, Christopher Lee e Peter Cushing, dispensam apresentações. Todo o incrível confronto entre o Conde Drácula e o Professor Van Helsing, desde a aparição do demônio em silhueta no topo da escadaria do castelo até o final em que a luz do sol e a cruz o reduzem a pó, é algo sobre o qual os fãs de filmes de terror falarão até o fim dos tempos. Espero que seja disponibilizado em vídeo o mais rápido possível.
Atualmente, Kazuo Umezu pode ser considerado o principal homem do mangá de terror no Japão, entretanto até onde sei, o único artista de mangá masculino no passado com um estilo de terror tão distinto (não sei sobre artistas mulheres de mangá) seria Osamu Kishimoto. Contudo em vez de tentar produzir mais do mesmo horror no estilo japonês que o precedeu, esse homem criou um clima gótico na tradição ocidental. Seja uma mansão estranha no estilo ocidental bem no meio da cidade, com caixões descansando em seu porão com paredes de pedra e uma horda de habitantes assustadores, ou a lógica do conflito que percorre todas as suas histórias (como a cruz contra vampiros ou o poder do budismo contra kappas), a maneira como conseguiu dar vida às suas criaturas em um campo como o mangá de terror japonês, onde elas eram tão carentes, foi, em uma palavra, revigorante.
Seria muito injusto se um dia alguém escrevesse uma história do mangá de terror no Japão e descartasse Osamu Kishimoto como apenas mais um autor de mangá de ficção científica e aventura. Até agora fico arrepiado ao lembrar do conto curto sobre o kappa que se transformou em uma linda mulher quando o escoamento de uma fábrica poluiu seu lago, e mais tarde fixou residência na casa de um irmão e uma irmã, assim como muitos outros contos. Ultimamente não tenho visto muito trabalho dele, no entanto espero de coração vê-lo com melhor saúde e produzindo novas histórias no futuro.
Hideyuki Kikuchi
6 de dezembro de 1982, assistindo Horror of Dracula.
***
Para aqueles que puderem e quiserem apoiar a tradução do blog, temos agora uma conta do PIX.
Chave PIX: mylittleworldofsecrets@outlook.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário