Capítulo 145: O aroma suave de uma mistura de ervas
O aroma suave de uma mistura de ervas flutuava alegremente pela cozinha de Anessa e Miriam vindo de uma panela fumegante, fazendo cócegas no nariz de Angeline. Ela estava vigiando o lugar na ausência de suas duas amigas, sentada letargicamente à mesa de jantar, sentindo-se desagradável como se sua cabeça fosse feita de chumbo. Seu corpo permaneceu imóvel apenas porque parecia muito incômodo fazer qualquer outra coisa. Além do mais, era como se um véu tivesse sido lançado sobre sua consciência e tudo parecesse nebuloso e indistinto. Não podia nem dizer que estava com sono, apenas entorpecida.
Angeline sentiu na época que aproveitar o tempo com Marguerite havia restaurado um pouco de seu bom humor, porém assim que se deitou na cama à noite, foi saudada por um daqueles sonhos estranhos outra vez. Quando acordou, descobriu que seu travesseiro estava molhado e frio por causa das lágrimas que derramou durante o sono, e foi tomada por uma profunda tristeza. Sua respiração era pesada e sua garganta estava inflamada. Contudo mesmo com essas reações viscerais, não conseguia se lembrar de um único detalhe do que tinha visto. Apenas as emoções latentes permaneceram em seu coração. Daí sua lentidão e por que não se preocupou em ir ver Ishmael. Em vez disso, se arrastou até a casa das amigas e agora estava fervendo em sua fuga à mesa de jantar.
A porta se abriu com um estalo, permitindo que Miriam entrasse na sala com uma cesta de compras pendurada em um braço. A garota franziu a testa ao ver Angeline ainda naquele estado e correu para dar um tapinha gentil nas costas da amiga. Angeline caiu sobre a mesa mesmo com aquela pequena força.
“Vamos, Ange, controle-se...” Miriam disse enquanto usava os dedos para massagear as costas de Angeline.
“Urrrgh!” Angeline gemeu e se mexeu. “Isso... Na verdade é muito bom.”
“Hã? Sério? Hmm, você deve estar muito cansada.”
Miriam forneceu ervas, nozes e frutas silvestres de sua cesta. A garota parecia interessada em fazer algo para acalmar Angeline em um sono tranquilo. Angeline deu um suspiro profundo e levantou-se para falar com a amiga.
“Merry, você sabe o que está fazendo? Já fez uma poção antes...?”
“Eu sou uma maga, lembra? A bruxa me mostrou o que fazer.”
“Mas em todos os pedidos que fizemos juntas, nunca vi suas poções artesanais...”
“Bem... Vai ficar tudo bem. Tenho uma receita!” declarou Miriam, tirando um livro pesado da estante e abrindo-o sobre a mesa. “Veja, bem aqui. Combinação para uma boa noite de descanso. Isso apagará suas luzes.”
“Será que realmente funcionará? Estou pensando em consultar o Sr. Ishmael...”
“Hmm... Admito, não sou tão boa em preparar poções quanto um mago pesquisador. No entanto sonho em entrar na área algum dia. Não há razão para eu não conseguir fazer, ouviu! Agora, por favor, confie na sua amiga.” Miriam estava fazendo beicinho quando foi até a cozinha pegar os ingredientes. Angeline riu baixinho e colocou o queixo na mesa de novo. Era agradável, fresco e muito confortável ao toque.
São apenas sonhos...
Angeline havia experimentado inúmeras lutas de vida ou morte com monstros poderosos de alto escalão, e ainda assim era algo desse tipo que a estava afetando. Que patético... Por que estou assim? ela lamentou. Sem energia para se recompor, não sabia o que fazer a respeito.
O cheiro que flutuava no ar se transformou em um bastante peculiar. Era desconhecido para ela, mas estranhamente calmante. Sempre que visitava a casa de um mago, na grande maioria das vezes haveria algum tipo de aroma no ar. Aqueles que faziam remédios tinham casas que cheiravam a ervas e bálsamos, enquanto as casas dos magos cheiravam a minérios e madeiras aromáticas. Esse cheiro a lembrou de algumas daquelas casas que visitou antes.
“Como tem estado Maria?” Angeline murmurou.
Angeline não via Maria desde que se separaram na biblioteca de Elmer. A velha maga parecia ter conseguido uma dica, porém depois que começou a lutar com Elmer, o resto do grupo se apressou em se retirar.
Miriam voltou da cozinha com uma panela de barro.
“Ok, isso deve bastar. Prato quente chegando!”
“Hum-hmm.” distraída, Angeline se esquivou enquanto Miriam a colocava sobre a mesa. Havia vapor saindo do topo, e percebeu, apenas pelo cheiro, que era feito de todo tipo de coisa.
“Beba isto e deverá dormir profundamente esta noite.” disse Miriam, e despejou um pouco da mistura em uma xícara. Era de uma cor verde acastanhada, contudo não era turva — era claro o suficiente para que pudesse fazer uma vaga distinção do grão da xícara de madeira.
Angeline experimentou um gole — amargo, no entanto não tão ruim quanto poções baratas. O cheiro não era tão ruim, todavia não ajudava muito no sabor. Estava bebendo com uma expressão azeda no rosto quando Miriam pareceu se lembrar de algo, fazendo-a correr de volta para a cozinha, e voltando com um frasco de mel.
“Se adicionar um pouco de mel...”
“Devia ter trazido mais cedo...” Angeline despejou um pouco de mel no copo, cansada. A doçura compensou um pouco o amargor, o suficiente para que agora fosse mais fácil. Angeline soprou e bebeu devagar, pouco a pouco. Bebidas como essas de fato ajudaram a deixá-la à vontade. Ela se recostou na cadeira, o que fez um barulho estridente.
Enquanto isso, Miriam voltou ao fogão para esquentar um pouco de leite e colocou um pouco em uma xícara com mel.
“Phew, doce e agradável!”
“O seu parece melhor que o meu...”
“Você não pode, Ange, não quer uma boa noite de sono?”
“Acho que leite morno ajudaria...”
“Está dizendo que meu remédio não funcionará? Hummm?” Miriam exigiu, batendo os pés de maneira teatral.
Angeline deu uma risadinha.
“O que quer que eu beba... Ainda é um pouco cedo para dormir.”
“Que tal uma soneca à tarde? Temos uma cama extra.”
“Hmm...” Angeline refletiu sobre essa oferta. Era a hora certa para tirar uma soneca, e se enterrasse a cabeça em um travesseiro fofo agora, sabia que o sono a levaria sem que se desse conta. Poderia se defender contra qualquer monstro Rank S, entretanto sabia que não tinha chance contra um cochilo.
“Vou me abster. Caso contrário, talvez eu não consiga dormir esta noite.”
“Você acha? Bem, sua escolha.” Miriam esvaziou um saco de papel cheio de biscoitos num prato. “Mas, se for assim, parece que vamos passar o inverno em Turnera de novo.”
“Hmm...” Angeline estava preocupada com a possibilidade. Não que se importasse com a ideia — não seria a primeira vez que sonhava com isso — mas também tinha a sensação de que ficar tanto tempo e voltar com tanta frequência iria desvalorizar a sensação especial de seu amado lar.
Talvez eu esteja apenas sendo egoísta aqui... Angeline recostou-se na cadeira e se espreguiçou.
Não importa o que acontecesse, estava sempre ansiosa para voltar para casa. A cama em Turnera era mais áspera e dura do que a que tinha em Orphen, contudo para Angeline era o que lhe dava muito mais paz de espírito. Certamente lá poderia dormir em paz, sem pesadelos.
Dito isso... Angeline não pôde deixar de se perguntar por que começou a ter esses pesadelos de repente. Durante toda a sua vida, não conseguia pensar em nada especial que pudesse ter desencadeado seu início. Angeline cruzou os braços e gemeu enquanto reconstituía suas memórias, no entanto não conseguiu se concentrar por muito tempo antes de se perder na névoa que envolvia suas lembranças despertas.
Estava se recostado na mesa outra vez quando Anessa entrou pela porta. Parecia que tinha saído para fazer suas próprias tarefas.
“Ah, você está aqui, Ange?”
“Sim... Bem-vinda de volta.”
“E quanto a Maggie?”
“Ela disse que iria treinar com o Sr. Ed já que quer manter seu corpo em movimento e como não estamos atendendo a nenhum pedido.”
Anessa largou a cesta de compras.
“Ainda se sentindo mal, Ange?”
“Desculpe... Continuo tendo esses sonhos estranhos e estou cada vez mais cansada...”
“Sonhos, hein...? Mas você não se lembra do que se trata, certo?”
“Não... tenho a sensação de que sonhei em ter encontrado o Sr. Kasim desta vez.”
“Senhor Kasim? Por quê?” Miriam inclinou a cabeça.
Angeline suspirou.
“Como vou saber...? É por isso que é tão incômodo.”
“Não significa que você quer ver o Sr. Kasim?” Anessa sugeriu.
Angeline fez beicinho.
“Não tenho nenhum motivo especial para ir vê-lo. Quero ver o pai e a mãe também.”
“Lá vamos nós de novo.”
“Sim, nesse caso, não seria estranho se o Sr. Bell e a Sra. Satie aparecessem em seus sonhos também.”
“Certo. Meus pais não aparecem neles... Porque estão muito ocupados promovendo seu amor, talvez... Isso também é importante. Merece atenção. Mas seria bom se eles pudessem dedicar um pouco de atenção à filha também...”
“Aw, essa é a Ange de sempre.”
“Porém não é bom que os dois não apareçam em seus pesadelos?”
“Sim... Contudo o problema fundamental é que não quero ter pesadelos!”
“Talvez tenha alguma preocupação por não ter percebido?”
“Oh, Ange, você chegou nessa idade delicada?”
“Cale a boca, Merry. Mostre algum respeito pela sua líder...”
Ainda assim, isso não é nada típico de mim... Não deveria haver nada com que Angeline se preocupasse. Talvez tenha algo a ver com Salomão, então?
Pelo que Angeline aprendeu com Satie, sabia que era um demônio — e mais, que provavelmente era o produto do experimento bem-sucedido de Schwartz. Angeline não se sentiu nem um pouco preocupada com esse fato, no entanto não significava que estava ignorando os problemas que aconteciam bem debaixo de seu nariz.
“Deveríamos ver a vovó em breve.”
“A bruxa? Sobre demônios, quer dizer?”
“Sim. Preciso fazer algumas buscas também.”
Certamente havia alguma informação que Angeline só poderia obter sozinha. Se pudesse compartilhar suas descobertas quando voltasse para Turnera, talvez todos fizessem algum progresso. Não que estivesse muito preocupada, entretanto não podia ignorar a existência de Schwartz. Ele era como uma pedra dentro de sua bota. Angeline não estava interessada nos seus objetivos, todavia também não queria se envolver no que quer que ele estivesse planejando.
Anessa cruzou os braços.
“Os demônios... Em última análise, seguem sendo desconhecidos para nós.”
“E ao que parece Salomão lutou contra os deuses antigos pelo bem da humanidade. Acha que pode ser verdade?”
O olhar de Miriam vagou.
“Hmm, não posso dizer com certeza. Mas de acordo com aquele livro Nica-alguma coisa, Salomão e Viena foram atraídos um pelo outro, porém nunca se uniram, certo? Talvez seja de fato verdade, então.”
Angeline terminou o remédio restante em seu copo de um só gole.
“Phew... É um pouco romântico.”
“Também acha, Ange?”
Duas pessoas atraídas uma pela outra, contudo nunca se encontrando... Parecia algo saído de uma peça. Angeline e Miriam se viraram, rindo.
Anessa coçou a bochecha.
“É uma história ultrajante, no que diz respeito à igreja… Não podemos nem contá-la à irmã.”
“Esse é outro problema...”
“Que tipo de pessoa era Salomão, afinal...?”
“Sim, eu fico imaginando. Falam a seu respeito como se fosse a raiz de todo o mal, contudo duvido que seja tão simples assim.”
“No entanto também não parece que ele era um cara tão bom.”
“Não existem santos perfeitos ou completos vilões por aí. Foi o que meu pai me disse.”
“É verdade.”
“Hmm, se não pudermos atender a nenhum pedido por um tempo, talvez devêssemos dedicar nossas energias à pesquisa.” disse Anessa.
Angeline assentiu. Afinal, era melhor não fazer nenhum trabalho de aventura enquanto estivesse nesse estado. Como não tinha nada melhor para fazer, era melhor encontrar algo para distraí-la. Um passo em falso na batalha contra monstros poderia ser fatal, entretanto a pesquisa não era tão arriscada.
Sim, devemos ver Maria em breve. Se Angeline pudesse consultá-la sobre seus pesadelos, seria como matar dois coelhos com uma cajadada só. Poderia até ver Ishmael também se o momento desse certo. Ele parecia ter bastante conhecimento e ser sociável, poderia ajudá-la a esquecer de seus sonhos.
Tudo bem, está resolvido então. Não há melhor momento que o presente. Naquela manhã, Angeline desistiu de ver Ishmael por causa da letargia, mas agora que tinha alguma vitalidade, era melhor bater enquanto o ferro estava quente.
Porém, mesmo com essa determinação, suas pálpebras começaram a parecer pesadas. Angeline fez uma careta e esfregou os olhos. É porque comi demais no almoço?
Contudo era muito mais forte do que a sonolência que costuma sentir à tarde.
“Estou com sono... Por quê?”
Miriam estava mordendo um biscoito quando pareceu ter algum tipo de compreensão.
“Ah. Tentei misturar um pouco mais forte para você. Já está fazendo efeito?”
“Deveria ter me avisado... Com antecedência...”
“Tudo bem aí? Pode usar uma das camas.” disse Anessa.
Angeline lutou para manter os olhos abertos por um tempo, no entanto foi uma batalha perdida — estava em seu limite. Ela se levantou com as pernas instáveis, cambaleou até uma cama vazia e quase desabou em cima. As cobertas macias e fofas embalaram seu corpo em um estado relaxado. Talvez estivesse muito mais exausta do que pensava. Ela esfregou o rosto no travesseiro e sentiu o cheiro do cabelo de Miriam.
Oh, esta é a cama de Merry, pensou enquanto a força drenava de seu corpo e voltava aos seus sonhos.
○
O céu azul sem nuvens parecia incrivelmente vasto e profundo, e o sol do início da tarde brilhava ainda mais, lançando sombras com contornos nítidos.
Duncan balançou seu machado de batalha com um gemido enquanto Percival se movia para o lado para evitá-lo antes de avançar com grande velocidade e colocar a mão no plexo solar do guerreiro.
“Ah! Admito a derrota!”
Percival riu e acenou com a mão com desdém.
“Haha! Terá que fazer melhor do que isso da próxima vez!”
Duncan, com um sorriso irônico, baixou a arma.
“Minha nossa, você é tão magistral quanto imaginei, Sir Percival. E pensar que não consegui nem fazê-lo desembainhar sua espada!”
“Talvez tenha ficado um pouco fora de ritmo depois de todo o trabalho de lenhador?”
“Hahaha! Sim, é verdade — acostumei-me demais a cortar coisas que não se movem!”
Duncan riu muito e sentou-se com um baque surdo. Percival sentou-se ao lado do homem, olhando para o céu aberto. No azul infinito, um pássaro soltou um guincho audível enquanto voava em círculos.
Depois de ajudar os aldeões mais jovens em seu treinamento, Percival teve tempo para matar e estava vagando pelos arredores da vila quando encontrou Duncan praticando com seu machado de batalha. Ele imaginou que se o homem estivesse treinando de qualquer maneira, eles poderiam muito bem lutar.
A vila estava ocupada se preparando para o inverno e, nos últimos dias, o tempo de Belgrieve estava ocupado conversando com Seren, Hoffman e Kerry sobre vários assuntos, em maior parte relacionados à nova guilda. Como Percival não planejava ter qualquer envolvimento ativo com o gerenciamento da guilda, não tinha intenção de se intrometer nessas reuniões. E Satie, por sua vez, tinha tarefas domésticas para fazer, bem como reuniões com as outras mulheres para se preparar para o inverno, enquanto Graham era encarregado de cuidar das crianças. Percival brincava com as gêmeas de vez em quando, mas Charlotte e Mit começaram recentemente a cuidar delas como irmãos mais velhos, o que não lhe deixava nenhum papel a desempenhar. Por último, ficar preguiçoso com Kasim todas as horas do dia não era uma opção. Em suma, estava entediado.
Duncan largou o machado.
“Contudo agora que todo mundo está falando sobre essa nova masmorra, preciso aprimorar meu conhecimento. Não que a exploração de masmorras tenha sido meu forte...”
“Então vá com Bell. Vai fazer maravilhas por você.”
“Parece sem dúvidas uma ideia maravilhosa. Na época em que aquele desastre aconteceu na floresta, eu me aventurei com Sir Bell.”
“Oh, quando Mit veio aqui pela primeira vez, certo?”
“Correto. Estávamos perseguindo Maggie e Graham, que haviam entrado na nossa frente, porém a floresta estava se transformando em uma masmorra e não conseguia me orientar. No entanto quando pensei que estávamos completamente perdidos, Sir Bell conseguiu descobrir para onde ir e chegamos justo onde precisávamos estar.”
“Esse é o tipo de cara que Bell é. Consegue manter a cabeça fria em tempos de crise — foi essa sua capacidade que nos salvou inúmeras vezes.” disse Percival, sorrindo.
Assim como naquela vez... Seu sorriso era autodepreciativo agora.
Duncan torceu os cabelos da barba.
“Sei que posso estar latindo para a árvore errada, entretanto... Você ainda está fixado naquilo?”
“Sim. Esses sentimentos não desaparecem por conta própria. Mesmo que os cubra com outra coisa, a cor por baixo vaza quando menos espero. Lutei por muito tempo, sentindo que o mundo estava escuro como o inferno — e ainda sinto o mesmo, não importa quão claros sejam meus dias agora. Isso não muda.”
“Entendo...” Duncan refletiu sobre isso.
Percival começou a rir.
“Não fique tão sério. Este é o meu problema, não há necessidade de se preocupar com nada.”
“Ah, talvez eu tenha ultrapassado meus limites.”
“Não, não foi o que quis dizer.” Percival esboçou um sorriso melancólico. Está tão sério como sempre...
Duncan coçou a cabeça.
“Bem, posso ser um tanto grosseiro... Hannah me aponta com bastante frequência.”
“Oh, não a tenho visto ultimamente. A patroa está bem?”
“Ela está muito melhor do que eu. Eu não a mereço.”
“Bom de se ouvir. Ao que parece, uma família está em paz com uma esposa forte.”
“Haha! A dama Satie é forte, pensando bem...”
Percival riu também.
“Bell está superado contra praticamente todo mundo.”
“Hahaha, certamente. Mas essa suavidade dele também é seu ponto forte. Acho que isso se manifesta bem em sua esgrima também.”
“Aposto que... A esgrima dele é o completo oposto da minha.”
“Pensando bem, Sir Percival, você é autodidata?”
“Sim, embora só tenha me desenvolvido assim depois que estive vagando sozinho por um tempo. Depois de atacar sem qualquer prudência um monstro após o outro, foi o que descobri antes mesmo de vir a perceber.”
A boca de Duncan ficou aberta de surpresa.
“Incrível... Pensar que você poderia sobreviver tanto tempo vivendo dessa forma!”
“Bom, quando coloca dessa maneira... Bem, disse ‘sem qualquer prudência’, porém eu corria sempre que achava que meu inimigo estava além das minhas capacidades. Em seguida lançaria uma cortina de fumaça... Apesar de tudo, acho que ainda valorizava minha vida. E...”
“E?”
“Bell sempre foi bom em recuar assim e aprendi a imitá-lo. Sempre que o fazia, era como se seguíssemos lutando juntos. Embora duvido que tenha tido tempo para pensar mais a fundo naquela época.”
“Entendo.”
“Não hesite em fugir de alguém que não pode vencer. É o que diria. É irônico... Quando estava em um grupo, fui o cara imprudente, contudo quando fiquei sozinho, de repente tive que me recompor.”
“No entanto foi por causa disso que vocês conseguiram se reunir, certo?”
“É... O que me acordou do meu delírio foram as lembranças do tempo que passei com todos eles. Até nos reunirmos, mesmo isso foi um flagelo para mim.”
“Foi difícil para você... E aqui estou, impressionado por você ter aperfeiçoado sua arte a este nível, apesar da dor.”
Com Duncan olhando-o com admiração aberta, Percival de repente começou a se sentir envergonhado e coçou a bochecha sem jeito.
“Droga, falei demais. Hey, mantenha essa história em segredo dos outros. Ainda mais do Kasim — aquele idiota sempre leva as coisas longe demais.”
“Hahaha! Entendi. Se precisar de alguém para ouvi-lo, pode vir até mim a qualquer hora.”
“Não, hoje foi só... Tanto faz! É hora da segunda rodada.”
“Muito bem. De qualquer forma, vou guardar esse segredo para mim mesmo.”
Os dois se enfrentaram mais uma vez. Percival estava novamente com as mãos nuas contra Duncan e seu machado de batalha, cada um deles procurando com cautela a oportunidade de se aproximar. Da última vez, Duncan tomou a iniciativa, e o tiro saiu pela culatra; ele foi um pouco mais cauteloso desta vez, entretanto Percival transformou sua hesitação em outra oportunidade. O espadachim se aproximou num piscar de olhos e prendeu o braço de Duncan antes que este pudesse balançar o machado.
“Grah! Trabalho esplêndido...”
“Apesar de tudo, sou um Rank S. Não vou perder tão fácil.” disse Percival com uma risada seca.
Duncan sorriu de forma autodepreciativa e ergueu de volta o machado.
“Preciso treinar mais... Você vai se estabelecer em Turnera, Sir Percival?”
“Não, pretendo fazer uma viagem um dia desses. Bem, estarei por aqui até que a masmorra e a guilda sejam estabelecidas, pelo menos.”
“Hmm... Vejo que é um aventureiro nato, se esforça para isso.”
“Bom, é aquilo... Mas há algo que preciso matar, não importa o que aconteça.”
Duncan encarou-o com curiosidade.
“Está se referindo... A criatura que tirou a perna de Sir Bell?”
“Sim. Nossa vida agora é muito boa, não me interprete mal... Porém não suporto a ideia de que aquela coisa ainda esteja por aí, vivendo sem nenhuma preocupação. Bell não está muito interessado nisso, todavia é algo que não vou desistir. Fui eu quem fez com que tudo acontecesse, então tenho que ser aquele a acertar as contas.” Percival cerrou o punho antes de suspirar profundamente e expulsar a tensão de seu corpo com aquele suspiro exalado. “Embora seja um futuro distante.”
E também estou curioso sobre o aviso da Dama do Inverno, pensou Percival, bocejando.
Duncan cruzou os braços.
“Falando por mim... Não consigo nem imaginar ter algo que detesto tanto.”
“Haha... Está melhor assim. Muito mais feliz também. Agora, então, preciso voltar. A propósito, Hannah não lhe disse para fazer alguma coisa?”
Os olhos de Duncan se arregalaram de repente com o lembrete.
“É mesmo! Devo voltar e ajudá-la a lixar! Perdoe-me!” ele gritou, já fugindo.
Percival riu.
“Parece que todos os homens casados estão muito ocupados... Agora, então...”
Era hora de Percival voltar também. Se eu não cuidar pelo menos de cortar a lenha, Kasim vai me provocar e Satie vai me atacar também. Ou posso brincar com as crianças...
Percival valorizava esses momentos, no entanto, por trás de tudo, sua obscura fixação na vingança seguia ardendo. Sabia que nada de bom poderia resultar desse sentimento, mas não tinha coragem de deixá-lo de lado — não depois de tantos anos lutando por nada mais que encontrar e matar aquele demônio. Entretanto, por enquanto, era hora de se preparar para o inverno. Não poderia executar sua vingança se morresse congelado primeiro.
A capa de Percival ondulava atrás dele com a brisa que soprava da montanha sobre seu corpo enquanto seguia seu caminho.
○
Angeline ficou com os olhos arregalados e alarmada ao ser submetida ao calor escaldante de uma súbita rajada de vento. A paisagem escarpada ao seu redor estava iluminada por uma luz vermelha, porém era noite e o céu estava escuro. A fonte de luz parecia ser fendas na terra através das quais a luz vermelha era visível.
Ela ouviu um som bizarro, como um cruzamento entre o estrondo de um terremoto e um rugido. A fumaça subia abaixo dos penhascos íngremes de cada lado seu. Os vapores nocivos expelidos da terra pareciam monstruosos sob a luz vermelha vinda de baixo, permanecendo no ar sem se dissipar e obscurecendo sua visão.
Angeline sentiu uma forte sacudida vinda de baixo, que ressoou dos dedos dos pés até o topo da cabeça. Seu olhar foi atraído para cima outra vez — além da luz vermelha e da fumaça escura, podia ver algo se movendo. Sua mão foi em direção à espada, contudo não estava presa ao cinto. Seus pés avançaram através da fumaça, com o coração disparado. Com cuidado, estendeu a mão para tatear o caminho ao longo do penhasco rochoso ao lado, apenas para recuar em estado de choque — o que pensava ser um penhasco era na verdade o cadáver de um pequeno dragão, suas escamas pretas brilhando na luz vermelha.
Olhando mais de perto, percebeu que toda a área estava repleta desses cadáveres — cada um deles pequeno, todavia inconfundivelmente um membro da espécie que estava perto dos níveis mais altos de todos os monstros. Cada cadáver apresentava ferimentos de espada; suas escamas, que deveriam rivalizar com pesadas armaduras de placas, foram rasgadas sem qualquer piedade ou perfuradas e esmagadas de forma brutal. Não havia sinais de que magia ou flechas de longo alcance estivessem envolvidas.
Mesmo Angeline nunca havia enfrentado esse número de dragões de uma só vez. Não achava que perderia contra um dragão, contudo ainda havia força nos números — seria perigoso se baixasse a guarda por um segundo sequer contra tantos inimigos. Abrindo caminho entre os dragões mortos, avançou com bastante cautela. Quanto mais avançava, mais próximos os cadáveres ficavam amontoados, e começou a ver cadáveres visivelmente maiores. Por um segundo se perguntou se havia algum sobrevivente — não parecia ser o caso.
De repente, um rugido percorreu o ar, forçando-a a cobrir os ouvidos. Uma rajada de vento quente soprou toda a fumaça que encobria sua visão para revelar um enorme dragão. Todo o seu corpo estava coberto de escamas pretas e seus olhos brilhavam vermelhos.
Diante dele estava um homem de constituição sólida, com cabelos loiros e encaracolados que balançavam ao vento. Era Percival. Assim que o olhar de Angeline caiu sobre o homem, se encheu de imenso desamparo, raiva, tristeza e ódio, fazendo com que cruzasse as mãos sobre o peito. Essas emoções não são minhas, ela percebeu. Isso significa que as emoções de Percival estão me inundando?
“Não será... Você também não...” Percival murmurou baixinho.
Um olhar mais atento mostrou que Percival havia passado por uma situação difícil. Um fio de sangue escorreu de sua testa, sua capa foi arrancada e sua armadura estava amassada; seu braço esquerdo estava dobrado em uma direção que não deveria, e mais sangue escorria das pontas dos dedos.
“Por que nenhum de vocês pode me matar? E você, então...?” Percival apontou para um dragão com a espada na mão direita. O dragão estava sem um olho e havia cortes em seu corpo. O sangue vazou dos locais onde várias de suas escamas haviam sido quebradas. A fera parecia enfurecida.
Angeline estremeceu. Por que tem que lutar até que seu corpo quase desmorone?
“Já chega... Vamos acabar com tudo. Isso já é... Ah, caramba. Essas feridas não são suficientes...” Percival estalou a língua em amargura.
O dragão uivou de angústia. Como um ser de poder absoluto, talvez nunca esteve em uma situação tão difícil antes. Não parecia compreender ao todo sua situação, mas seu olho restante brilhava de raiva.
O dragão mostrou suas presas e se lançou contra Percival, que não recuou um único passo — em vez disso, avançou para enfrentá-lo. Espada e presa colidiram com uma explosão massiva de mana. Percival não tentou se defender — usou o braço esquerdo torto como se não estivesse ferido enquanto corria em sua ofensiva cruel. O dragão foi sendo empurrado aos poucos para trás por seus ataques tempestuosos, aparentemente com medo de se deparar com um homem que tinha tão pouca consideração por seus próprios ferimentos. A espada de Percival não deveria ser nada mais do que um palito de dente para tal fera, mas cortou sem dificuldades suas escamas, carne e ossos impenetráveis. Esta não foi uma batalha entre dragão e homem — foi uma luta entre um dragão e um monstro disfarçado de homem.
Angeline não sentia nada quando lutava contra monstros — era perfeitamente natural para ela e algo que já havia feito muitas vezes. Porém uma luta como essa era apenas miserável e lamentável de se testemunhar.
Percival desferiu golpes sobre seu inimigo. O dragão estava sendo cortado ao mesmo tempo em que atacava Percival com garras e presas e o queimava com seu sopro de fogo. Cada vez que Percival era atingido, Angeline sentia como se estivesse sendo esfaqueada no peito e entendia que esse era o sofrimento que Percival sentia. Ele luta enquanto suporta essa dor? Seu coração estava batendo forte.
Após algum tempo, o dragão negro foi derrubado. O chão tremeu quando seu corpo maciço desabou, e então tudo ficou ameaçadoramente silencioso, exceto pelos ecos estrondosos da morte da fera. A respiração pesada de Percival foi amplificada pela súbita quietude.
Ele lutou sozinho contra um dragão e venceu. Este deveria ter sido o tipo de triunfo que os bardos cantariam, contudo não havia um pingo de alegria em seu rosto. Na verdade, parecia desapontado. O homem sentou-se ao lado do corpo do dragão e respirou fundo. Sua exaustão e desespero lançaram seu rosto nas sombras, e parecia mais sozinho do que nunca.
“Não importa quantos eu mate...”
De repente, sua mão pressionou o peito. Ao ter um ataque de tosse, enfiou sua mão no bolso da camisa para tirar o sachê e enfiá-lo no rosto. Por um tempo, repetiu esse tratamento respiratório difícil e depois cuspiu no chão. Havia sangue misturado com sua saliva.
Percival ansiava pela salvação, no entanto era o seu próprio coração que lhe negaria isso. Essa dissonância interna resultou em nada além de sofrimento. A dor de Percival continuou a invadi-la e ela entendia tudo muito bem. Podia até senti-la em sua garganta.
Angeline tentou dizer alguma coisa, mas nenhuma palavra saiu. Tentou se aproximar, porém suas pernas não se moviam. Havia apenas dor e sofrimento em seu coração. Gradualmente, a escuridão se aprofundou em uma escuridão impenetrável, obscurecendo toda a visão. A última coisa que viu foi o punho cerrado de Percival tremendo.
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