terça-feira, 30 de abril de 2024

Boukensha ni Naritai to Miyako ni Deteitta Musume ga S Rank ni Natteta — Volume 11 — Capítulo 148

Capítulo 148: Nas planícies fora da vila

Nas planícies fora da vila, as noites de outono estavam vivas com o eco do canto dos insetos. Sempre que Belgrieve andava com uma lanterna, insetos voadores de todos os tamanhos mergulhavam em busca da luz e acabavam colidindo com seu corpo e rosto. A grama estava coberta pelo orvalho da tarde que umedecia suas roupas a cada passo, e seus tornozelos nus acabavam gelados. Mas sua filha de doze anos não prestou atenção a nada disso enquanto corria pelo campo.

“Ange, é perigoso correr.” avisou Belgrieve enquanto tentava espantar os insetos que zumbiam em seu rosto.

“Hehe...” Angeline riu, virando-se para o pai. Ela correu de volta para ele e agarrou-se. “As estrelas são tão bonitas!”

“Sim, elas são.” Belgrieve afagou a cabeça de sua filha antes de apagar a lanterna, cobrindo-os instantaneamente na escuridão. Porém as silhuetas negras das montanhas seguiam visíveis sob o céu estrelado e claro, e depois que seus olhos se acostumaram, eles puderam ter uma vaga visão da grama ao seu redor.

Angeline apertou a mão do pai com mais força, piscando de espanto diante da paisagem noturna transformada.

“Está ainda mais bonito do que antes...”

“Não é? Quando outras luzes se apagam, aquelas estrelinhas lá fora brilham ainda mais.”

Sem se afastar do céu noturno, Angeline estendeu as duas mãos para Belgrieve.

“Me segure.”

“Hmm? Haha! Lá vamos nós.” Belgrieve inclinou-se um pouco e ergueu Angeline.

Os dois podiam ouvir os vãos sons da festa realizada na vila atrás deles. Os mascates começaram a chegar há poucos dias e logo chegaria a hora do festival de outono. A atmosfera festiva em Turnera aumentaria com cada caravana que chegasse.

Logo sua filha partiria para a cidade de Orphen. Terminadas as festividades, partiria junto com a última caravana — Belgrieve já havia providenciado tudo.

Ele observou Angeline se aninhar em seu peito e sorrir.

“Você irá embora em breve, Ange.”

“Sim…” Angeline ajustou sua posição sem mover o rosto.

Belgrieve deu um tapinha gentil em sua cabeça enquanto caminhava devagar pela grama molhada.

“Você verá todo tipo de coisa e conhecerá todo tipo de pessoa.”

“Sim...”

“Tenho certeza que vai ser divertido. Poderá ver paisagens com as quais nunca poderia sonhar em Turnera.”

“Sim.” Angeline olhou gentilmente para Belgrieve. “Contudo hoje ouvi algo do mascate...”

“Hmm?”

“Ele disse que há um monte de gente má na cidade. São astutos e às vezes te enganam, fazendo-o ser uma pessoa má também. E me disse que preciso ter cuidado.”

Belgrieve sorriu ironicamente enquanto acariciava a cabeça da garota.

“Isso mesmo. Existem todos os tipos de pessoas no mundo. Pessoas boas e pessoas más...”

“O que eu faço se me enganarem? E se me tornar uma garota má...?” o rosto de Angeline ficou angustiado com a perspectiva.

Belgrieve riu baixinho e esfregou as costas.

“Está tudo bem. Isso não vai acontecer. Você é obstinada. Não prometeu ao papai que se tornaria uma aventureira forte e gentil?”

“Prometi.”

“E...”

“E...?” Angeline olhou para seu pai com curiosidade.

O sorriso de Belgrieve não vacilou quando a abraçou um pouco mais forte.

“Não importa que tipo de pessoa se torne, mesmo que o mundo inteiro esteja contra você, o papai sempre estará ao seu lado. Não importa o que aconteça.”

Angeline pareceu considerar o que Belgrieve disse por um momento.

“Ok!” Angeline o abraçou de volta. As estrelas brilhavam intensamente acima deles.


Angeline estava animada desde que decidiu voltar para casa. Os pesadelos que a atormentavam enfim cessaram o ataque e, embora ainda ficasse deitada na cama todas as noites com medo do que estava por vir, acordava na manhã seguinte sem ter sofrido nenhum pesadelo. Depois de alguns dias assim, era como se todas aquelas noites agitadas não tivessem passado de um sonho ruim por si só.

Dessa forma, sua saúde debilitada não poderia mais ser usada como motivo para seu retorno antecipado. No entanto, o plano estava resolvido e agora não havia outro caminho na cabeça de Angeline. Já que estava se sentindo melhor agora, não havia porque não seguir assim. Aproveitando sua saúde recém-adquirida, acompanhou os membros do seu grupo em busca de bons presentes na capital.

Agora que estou recuperada, não terei mais que passar o inverno em Turnera, pensou. Isso significava que Yakumo e Lucille também poderiam retornar após o festival de outono. Talvez esse detalhe tenha ajudado a persuadi-las, já que ambas concordaram em acompanhá-la até Turnera — embora Yakumo não parecesse de todo satisfeita. Sua mensagem também foi passada para Ishmael. Tudo indicava que seria um regresso a casa bastante alegre, no geral. Angeline estava entusiasmada e não podia pedir muito mais. Talvez fosse ainda melhor se Maria viesse junto, entretanto quando fez seu apelo com entusiasmo, a velha maga respondeu dando-lhe um chute.

De qualquer forma, Angeline passou o tempo pulando de várias em várias tarefas até que faltasse apenas um dia para a partida. Tudo estava em ordem e seu ânimo estava elevado. Agora estava descansando na casa de Anessa, Miriam e Marguerite, em vez de dormir em seu próprio alojamento. Ela até envolveu Yakumo e Lucille nesse acordo, insistindo que para se juntarem no dia seguinte seria muito incômodo.

Yakumo estava encostada na parede, gesticulando com uma garrafa de vinho vazia enquanto falava.

“Hmm, vamos embora amanhã. É realmente normal beber tanto assim?”

“Não fale depois de já ter bebido tudo.” retrucou Marguerite, imperturbável como sempre por sua própria bebida. Anessa ainda parecia perfeitamente bem, porém os olhos de Miriam já estavam fechados e balançava para frente e para trás. Lucille cochilou abraçada ao violão.

Angeline abriu uma garrafa nova, com um sorriso sincero no rosto.

“Está tudo bem... Não vamos sair tão cedo de manhã.”

Yakumo deu um sorriso sarcástico.

“É isso mesmo que está em questão aqui...? Bem, tanto faz.” respondeu, enfiando a haste do cachimbo na boca.

Anessa estendeu o copo para Angeline enchê-lo e olhou para a amiga com curiosidade.

“Agora você está com muita energia... Aconteceu alguma coisa?”

“Não sei. Contudo estou bem. Não há nada de errado comigo.” respondeu Angeline enquanto enchia um pouco sua própria xícara, com um pouco de vinho escorrendo pela borda.

“‘Enérgica’ seria uma coisa, no entanto está estranha...” Marguerite lançou um olhar engraçado para Angeline. “Está bêbada?”

“É claro que está bêbada; veja o quanto tomou.” retrucou Yakumo.

“Hah, entendo. Bem, não é a primeira vez que Ange age de forma estranha.”

Angeline engoliu até a última gota de sua xícara e bateu com força na mesa.

“Eu não sou estranha... Isso é apenas uma delícia escorrendo por todos os poros do meu corpo.”

“É o que seria chamado de estranho, em geral.” disse Anessa.

“É um pouco extremo.” acrescentou Marguerite.

Yakumo sugeriu.

“Ange, por que não vai dormir?”

“Gah!” Angeline fez beicinho, frustrada com o discurso das outras três mulheres. Não era sua intenção agir de forma diferente, todavia talvez fosse o que parecesse para elas. O fato de todas a rotularem dessa maneira a fez se sentir um pouco obstinada. Assim, vestiu o casaco, mal-humorada.

“O quê? Onde está indo?”

“Para uma caminhada!” e então, rapidamente saiu. Atrás dela, as outras três se viraram e deram de ombros.

Angeline foi envolvida pelo ar frio da noite no segundo em que saiu. Ela respirou fundo o ar refrescante. Depois de tudo, estou realmente um pouco embriagada.

Angeline não tinha nenhum destino fixo em mente; apenas queria dar um passeio. Toda a sua bagagem já havia sido trazida, então não havia necessidade de voltar para sua casa agora. Elas fizeram todas as compras, então ficar vagando pelas lojas seria inútil da mesma forma. Angeline apenas patrulhou as ruas familiares, suas botas batendo num ritmo sem rumo contra o pavimento de pedra.

As vias principais ainda estavam cheias de pedestres em todos os sentidos, todavia toda aquela agitação desapareceu no momento em que entrou em um beco. Agora que estava sozinha, com nada além da brisa como companhia, a alegria persistente que sentia enquanto bebia com todas começou a diminuir, embora essa atmosfera calma e tranquila também fosse bastante agradável. Haah... Talvez eu estivesse agindo estranha de fato.

A estreita fatia do horizonte que podia ver através dos edifícios altos ao seu redor estava adornada com uma meia-lua minguante. A luz que lançava permitiu-lhe ver o terreno à frente sem luz da rua. Angeline cantarolava uma música enquanto caminhava com passos elásticos.

Não demoraria muito para que partisse desta cidade e, depois que retornasse de Turnera, partiria em uma jornada que a levaria para longe daqui por ainda mais tempo. Pensar nisso dessa forma tornava momentos de silêncio como esses bastante valiosos para ela.

Antes que Angeline pensasse no que estava fazendo, se viu pulando de uma pedra para outra. Quando chegou a Orphen, aos doze anos, costumava brincar assim, tomando cuidado para não pisar em nenhuma rachadura. Naquela época era inverno. Em casa, era normal que todos ficassem trancados em casa durante os meses frios, mas em Orphen, mesmo quando as ruas estavam cobertas de neve, alguém limpava a neve e ninguém era impedido de cuidar de seus negócios. Ambos os lugares ficavam na grande extensão do norte, porém ficou surpresa ao ver como as coisas eram diferentes entre eles.

Seu passeio sem rumo acabou levando-a a estradas que gradualmente se inclinavam para cima, e saiu para uma área aberta — o topo de uma pequena colina com uma bela vista do resto da cidade e nada para se proteger do vento. Já era quase meia-noite e não havia mais ninguém por perto, nem mesmo soldados em patrulha ou tendas de vagabundos. Estava tão quieto que sua respiração parecia alta para ela. Os telhados de todas as casas ao redor refletiam o pálido luar e, ao longe, além delas, podia ver as vastas planícies e as formas nebulosas de montanhas distantes ainda mais distantes. Nuvens ondulantes pairavam sobre esses picos distantes como se ameaçassem esmagá-los.

Com a cabeça mais clara, Angeline contemplou essas paisagens distantes. Ela virou para o norte, na direção de sua cidade natal. Sua família continuava com sua vida cotidiana em Turnera enquanto estava aqui agora. Foi uma coisa curiosa de se pensar.

O nariz de Angeline coçou e um grande bocejo escapou espontaneamente. Sentiu que começaria a tremer se não voltasse a se mexer, então se virou e continuou seu passeio até voltar para a estrada principal, onde ainda havia algumas pessoas. Não era tão povoado como ao meio-dia, é claro, contudo Orphen era grande o suficiente para que sempre houvesse algumas pessoas ativas durante a noite. O interminável desfile de transeuntes lançava uma longa sombra sobre a estrada.

Angeline observou sem dar muita atenção um bêbado à sua frente que cantava músicas desafinadas enquanto caminhava aos tropeções. Ela mesma bebeu bastante, no entanto por incrível que pareça, sua mente parecia cristalina agora. Talvez o frio da brisa noturna em seu rosto a tivesse deixado sóbria.

Sempre que estava com esse humor, parecia um desperdício ir para a cama. Angeline ainda era jovem e imprudente o suficiente para desfrutar de um pouco de tolice, com um corpo forte o suficiente para lidar com as consequências. Queria beber um pouco mais, em outras palavras. Entretanto não tinha esquecido que teria que partir amanhã. Não haveria nada para fazer enquanto estivesse sentada a bordo da carruagem, e ninguém se importaria se dormisse esparramada nos assentos. Mas duvidava que pudesse descansar confortavelmente nos bancos duros de uma diligência típica. Não fazia muito tempo que havia fugido noite adentro, porém Anessa estava certa: era melhor voltar e descansar um pouco.

Um simples fogão de acampamento foi colocado sob o beiral de uma loja ao longo da estrada. Uma chama vermelha estava acesa dentro, e o vapor da chaleira pendurada em cima parecia quase exagerado ao ser expelido no ar frio da noite. Que tipo de loja é essa? imaginou. A primeira coisa que viu ao olhar para a vitrine aberta foi uma estante de livros. Uma livraria, talvez.

Uma mesa e cadeiras foram colocadas ao lado do fogão, aparentemente um convite para os clientes sentarem e lerem. O lojista de meia-idade estava sentado em uma daquelas cadeiras com a cabeça enterrada em um enorme volume.

Que loja estranha, pensou Angeline ao passar. Assim que esse pensamento lhe passou pela cabeça, um cliente saiu da loja.

“Senhor Ishmael?”

“Oh? Que coincidência.”

Na verdade era Ishmael, carregando um livro de aparência antiga debaixo do braço.

O lojista ergueu os olhos de sua própria leitura.

“Então você fez sua escolha?”

“Sim, vou com este.”

Era evidente que encontrou algo para comprar. Ishmael pagou a compra e guardou o livro na bolsa.

“Saindo para fazer compras, hein?”

“Sim, me deparei com um livro que era muito mais interessante do que pensei que seria... Parece que não vou ficar entediado no caminho.” explicou ele enquanto pendurava a bolsa no ombro. “Contudo Srta. Angeline, vamos embora amanhã. Tem algum assunto aqui há esta hora?”

“Não... Estava bebendo com as outras e fui dar uma volta para ficar sóbria. Vou voltar agora. Quer vir também, Ishmael? Yakumo e Lucille estão conosco.”

“Terei que recusar. Estou um pouco hesitante em ficar sozinho em uma sala com tantas mulheres.”

Angeline assentiu. Acho que tem razão.

“Realmente não há nada além de mulheres lá, pensando bem. Por alguma razão, o pai nunca parecia deslocado quando estava conosco.” murmurou Angeline. No entanto o mesmo não poderia ser dito da maioria dos outros homens.

Ishmael riu.

“Sim, pode ser o caso. Afinal, esse homem tem uma propensão maternal.”

“Uh-huh, como esperado do meu pai.” disse Angeline com tanto orgulho quanto alguém que recebe um elogio.

Os dois começaram a caminhar juntos pela estrada. Angeline notou que sua respiração estava saindo como nuvens de vapor branco.

“Já é quase inverno...”

“O plano é voltar assim que acabar o festival de outono, certo?”

“Sim. Então viajarei para o leste... E você?”

“Pretendo retornar à capital eventualmente... Mas a renomada Biblioteca de Elmer está aqui, então, por enquanto, talvez eu deva trabalhar um pouco mais como aventureiro em torno de Orphen.”

Parecia que a biblioteca era sem dúvida um tesouro inestimável para todos os magos. Como Angeline conhecia a natureza de seu dono, nunca mais quis voltar para lá. Ainda assim, estava começando a se envolver na conversa deles, e parecia um desperdício se separar tão cedo. Angeline apontou para um bar que seguia com as luzes acesas e parecia barulhento.

“Que tal uma bebida?”

“Oh? E amanhã?”

“Estamos saindo ao meio-dia, então um pouco não vai doer... Ou já está com sono?”

“Não, não me importo de te fazer companhia.”

Então eles entraram no bar. Angeline nunca tinha estado aqui antes, porém tinha o aroma familiar de qualquer outro bar onde ela já esteve e o mesmo tipo de energia de qualquer estabelecimento desse tipo que ficava aberto até tarde da noite.

Angeline e Ishmael pegaram o assento mais próximo que encontraram e pediram alguns lanches leves e bebidas.

“Deve demorar um pouco para chegar à capital daqui.”

“De fato. Pode demorar até um mês e meio, contabilizando as paradas ao longo do caminho. Se evitasse qualquer desvio e viajasse o mais rápido possível, diria que ainda levaria cerca de um mês.”

“Como imaginei...” Angeline murmurou. Na época em que houve um surto de monstros em torno de Orphen, Lionel mandou chamar Yuri, Edgar e Gilmenja na capital, contudo eles nunca chegaram a tempo de ajudar e a situação foi resolvida sem sua colaboração. Não que estivessem demorando ao longo do caminho — na verdade, era uma jornada muito longa.

Quando Angeline respondeu à convocação do Arquiduque Estogal, a viagem até à cidade de Estogal demorava meio mês. Como aventureira, estava acostumada a viajar, contudo viagens longas seguiam deixando-a bastante cansada. Dado isso, foi bastante surpreendente para ela, em retrospectiva, como sua jornada anterior a levou até o Umbigo da Terra em Tyldes e depois para a capital imperial em seguida.

Angeline encostou-se no balcão com a cabeça apoiada enquanto bebia o vinho que foi servido.

“Você viaja com frequência, Sr. Ishmael?”

“Desde que comecei a reunir meus próprios materiais para minhas pesquisas, já estive em vários lugares. Sabe como é — assim que saio, começo a pensar... ‘Bem, de qualquer maneira, estou fora, então é melhor ir para lá também’. Como resultado, muitas vezes fico longe de casa por longos períodos de tempo. Só planejo pequenas viagens no início, todavia não consigo evitar.”

Angeline deu uma risadinha.

“Você é surpreendentemente espontâneo. Achei que era do tipo que planeja as coisas da maneira bem meticulosa.”

Ishmael coçou a cabeça, envergonhado.

“Hahaha... Bom...” ele tomou um gole de cerveja por falta de resposta à observação incisiva de Angeline.

“Já estive em quase todos os lugares de Orphen...” Angeline disse com a boca cheia de feijão salgado. “Entretanto a última vez que nos encontramos foi a primeira vez que deixei o ducado de Estogal.”

“Também não sou um grande viajante do mundo. Lucrecia é o lugar onde eu costumo ir... E, além dessa, apenas para cidades remotas perto da fronteira.”

Lucrecia era a terra natal de Charlotte, situada ao sul do Império Rodesiano. Ela se lembra de ter ouvido falar que era uma terra temperada abençoada por mares abundantes. As estradas que ligavam as fronteiras do império a Lucrecia eram bem conservadas, tornando a viagem um tanto mais fácil.

“Deve estar muito quente no sul.”

“Sim, e está muito frio no norte. Esta será a primeira vez que irei a algum lugar mais a norte do que Estogal.”

“Está ainda mais frio em Turnera...”

“Soa quase como uma ameaça.” brincou Ishmael, sem jeito.

Angeline sorriu corajosamente. Antes que percebesse, esvaziou sua taça de vinho. Esquecendo-se de que pretendia tomar apenas um drinque, logo pediu outro.

“Você tem todos os tipos de encontros quando está em uma viagem. Alguns deles são bons, no entanto...”

“Existem os ruins também?”

“Sim. Certa vez, cometi um erro bastante doloroso que resultou no que poderia chamar de traição. Havia alguém com quem estive trabalhando para ganhar meu sustento... Era um sujeito muito caloroso e genial, e confiei em seu caráter sem qualquer ressalva.” Ishmael balançou a cabeça.

“Então o que aconteceu...?” Angeline perguntou, bebendo de seu novo copo.

“Estávamos trabalhando juntos. Ele parecia ser muito experiente e tinha jeito com as palavras. Confiei em suas opiniões e confiei nele para gerenciar o trabalho que assumimos. Devíamos dividir nossos ganhos meio a meio, entretanto ele astutamente ficou com uma parcela maior. Só um pouco no começo, e depois um pouco mais com o tempo, e ainda mais... Durou um tempo, e quando percebi que algo estava errado, o sujeito desapareceu junto com minha carteira. Resumindo, trabalhei de graça e fiquei na miséria. Foi bastante terrível.”

“Bleh, que situação desagradável...”

“Consegue se lembra de como estive um pouco cauteloso com o seu grupo quando nos conhecemos em Istafar? Desde aquela época, tenho sido um pouco cauteloso sempre que trabalho com outras pessoas... Bem, sabia que não havia nenhuma maneira de um aventureiro Rank S cometer esse tipo de golpe mesquinho, então abandonei esses cuidados com vocês em pouco tempo.”

“Hmm...” Angeline murmurou com os lábios franzidos, ainda curvada com a cabeça apoiada na mesa. Realmente existem algumas pessoas más no mundo... Quando todo o seu mundo consistia de pessoas boas, chegaria a pensar que o mundo em geral não era tão ruim. Todavia, inevitavelmente, haveria uma certa proporção de pessoas que entrariam em sua vida com maldade no coração. Talvez tenha sido apenas sua sorte nunca ter sido vítima de tais pessoas.

“Nunca conheci ninguém assim... Na minha vida, encontrei quase sempre pessoas boas.” disse Angeline, enrolando um feijão salgado entre os dedos.

“Sim, no pouco tempo que viajei com vocês, experimentei isso em primeira mão. Belgrieve, em particular, tinha uma natureza chocantemente boa... Pra ser honesto, a princípio não pude acreditar que não tivesse segundas intenções. Na verdade, sinto-me mais à vontade perto de pessoas como o Sr. Kasim e o Sr. Percival — o tipo de pessoas cujos olhos estão sempre obscurecidos por um toque de cautela.”

Angeline sorriu com o elogio repentino ao pai.

“É por isso que todo mundo ama o pai...”

“Posso imaginar.” Ishmael terminou sua cerveja. Ele parecia um pouco relutante, porém acabou pedindo outra. “Estou surpreso que não tenha sido usado por pessoas más quando é assim. Seu pai tem um bom olho para o caráter, então talvez apenas evite pessoas que têm más intenções...”

“O pai teve muitos problemas quando era mais jovem... Acho que tem discernimento sobre com quem se associa...”

“De fato... A traição pode ser muito dolorosa. Quanto mais pensa que conhece alguém, mais doloroso pode ser. Pior ainda quando é alguém que ama e em quem confia de todo coração... Um membro do grupo, por exemplo, ou talvez até mesmo da família.”

Será que meu pai poderia me trair? Angeline inclinou a cabeça enquanto tentava imaginar tal cenário, contudo a ideia era sem dúvida impensável para ela. “Nem consigo imaginar.”

“Sim, é muito melhor não tenha que passar por algo assim. Não é motivo de riso... Já ouviu falar de um pássaro chamado cuco?”

“Sim, sei sobre eles... O que tem?”

Ishmael tomou um grande gole de cerveja.

“O ovo de um cuco é posto no ninho de outro pássaro. O filhote de cuco eclode mais rápido do que os outros ovos no ninho e empurra todos os outros ovos para fora da árvore — os ovos dos pássaros que pertenciam ali.”

“Hã... Isso é mórbido...”

“E isso se estabelece na vida que os outros pássaros deveriam ter tido. Os pássaros pais criarão com todo cuidado o cuco e o observarão crescer sem ficarem mais sábios. Não sei se os pássaros são capazes de ter pensamentos conscientes... Contudo considere a perspectiva dos pais: eles criaram um impostor. Pensam naquilo como se fosse seu, regando-o a todo instante com carinho e amor. No entanto não é o seu filho — é o cuco quem matou seus filhos.”

“Sim...”

“A criança que tanto amavam acabou por ser um impostor que assumiu o papel de seus filhos verdadeiros. Bem, tenho certeza de que isso nunca aconteceria com os humanos, mas o que acha? O que aconteceria se acontecesse?”

“Não sei... Nunca pensei a respeito...”

Foi o que ela disse, porém Angeline podia ouvir seu coração começando a bater rapidamente enquanto bebia o vinho. Com certeza seria assustador se acontecesse. Por alguma razão, se viu na imagem do cuco, e a ideia de que aquele não era o verdadeiro filho do pássaro parecia uma adaga atravessada em seu coração.

Contudo seu pai não tinha filhos naturais e Satie realmente a deu à luz. Era diferente de um cuco — havia apenas uma semelhança no fato de ter sido criada por pais diferentes. Angeline balançou a cabeça.

“Estou pensando muito sobre isso...”

“Sério? Acha de verdade isso?”

“Hã?”

“Você estava tendo aqueles pesadelos, não estava?”

“Sim... No entanto não consigo me lembrar deles agora. Até tenho me sentido muito bem nos últimos dias.”

“Srta. Angeline, é mesmo uma tolice iludir-se assim.”

“O quê...?”

“E é um absurdo. Por que ainda não aceitou?” sua voz era tão gentil, entretanto tinha uma nitidez peculiar.

Angeline ficou perplexa.

“O que está errado? Falei algo que te ofendeu de alguma forma...?”

“Não pode se fazer de boba para sempre. Sabe que não há lugar para onde voltar. Ahahaha! Não é verdade? Não é? Não foi por esse motivo que esqueceu?” o rosto de Ishmael, que estava tão sereno há poucos momentos, parecia estar aos poucos se transformando em algo irreconhecível. Angeline não conseguia processar o que estava acontecendo e não sabia como reagir. Todavia mesmo enquanto ria sozinho, Ishmael de repente olhou para a expressão inquieta de Angeline e balançou a cabeça.

“Desculpe. Acho que estou um pouco bêbado.”

“Não, não se preocupe com isso…”

Ele empurrou os óculos para cima, pressionando os dedos nos cantos dos olhos enquanto balançava a cabeça, cansado.

“Ultimamente tenho tido lapsos de memória. Além do mais, meus pensamentos e emoções estão sendo puxados em todas as direções. Acontece de repente, como se alguém estivesse puxando as alavancas em minha mente... Costumava acontecer de vez em quando, mas agora tem se tornado mais frequente. Há momentos em que nem consigo me lembrar do passado recente... Talvez esta terra desconhecida esteja me esgotando.”

“Hmm, você está bem para ir para Turnera...?”

“Deve estar bem. Presumo que esteja acontecendo porque fiquei muito tempo na biblioteca. Uma viagem para o campo pode ser justo o que preciso, se não for um incômodo, é claro.”

Angeline sorriu.

“Não é nenhum problema. O ar de Turnera fará maravilhas pela sua saúde... Devemos ir embora, então?”

“Sim, está ficando tarde.”

Com isso, os dois saíram do bar. Como era de se esperar, o ar da noite ainda estava frio e sua respiração saía como baforadas vaporosas. As estrelas brilhavam no céu, indiferentes às nuvens finas que formavam uma colcha de retalhos sobre o vazio estrelado. Quanto mais claro o céu, mais frio seria; o vento estava diminuindo, porém às vezes ela o sentia no rosto ou no pescoço e a fazia estremecer.

“Vou ir por aqui.”

“Tenha uma boa noite...” Angeline cambaleou sozinha.

Quando por fim voltou para a casa de suas amigas, encontrou Marguerite ainda inclinando o copo para trás com gosto. Miriam e Lucille dormiram profundamente no sofá no canto da sala. Yakumo fumava com uma expressão irritada, enquanto Anessa bebia seu vinho e piscava como uma coruja.

“Oi.” Marguerite disse, levantando sua xícara. “Enfim de volta. Achei que tivesse desmaiado em algum lugar.”

“Foi uma longa caminhada.” disse Yakumo em meio a uma nuvem de fumaça.

Angeline puxou uma das cadeiras e sentou-se.

“Encontrei o Sr. Ishmael por acaso... Conversamos um pouco.”

“Hmm. Ele vai conosco também, certo? Poderia tê-lo trazido pra cá.”

“Ele disse que seria difícil aceitar quando não houvesse nada além de mulheres...”

“Claro que diria. Bem, teremos que nos encontrar amanhã.” Yakumo então soltou um grande bocejo. “Vou para a cama. A bebida me desgastou; não vou resistir por muito mais tempo contra uma grande serpente.”

“O que está insinuando?” Marguerite perguntou curiosamente.

“É assim que chamamos pessoas como você em minha terra natal. Anessa, onde posso dormir?” Yakumo perguntou enquanto esvaziava as cinzas de seu cachimbo.

Anessa, prestes a desmaiar, acordou e esfregou os olhos para tirar o sono.

“Oh, aquele sofá... Ou a cama de Merry, já que está vazia. Aquele quarto ali...”

Marguerite serviu-se de outra bebida, gargalhando o tempo todo.

“Então eu sou uma grande serpente... Essa é nova!”

“Significa um bebedor pesado. Sasha também pode ser uma.” explicou Anessa, cansada. Ela se serviu de um pouco de água com menta em vez de vinho desta vez.

“Entre Sasha e Maggie, quem é mais forte?” Angeline refletiu.

“A última vez que paramos em Bordeaux, as duas ainda estavam fortes depois que todas nós cochilamos.” disse Anessa.

As duas olharam para Marguerite, que ainda bebia o destilado que adorava. A elfa inclinou a cabeça para elas.

“Hum?” murmurou.

Marguerite parecia bem, contudo talvez sua pele estivesse um pouco mais rosada que o normal e seu humor estivesse mais alegre. Era quase fofo vê-la nesse estado, entretanto mesmo assim, não parecia estar nem perto de cair de tanto beber. Depois de esvaziar outra xícara, Marguerite estendeu os braços.

“Phew. Sasha, hein... Quero vê-la de novo. Beber com ela foi muito divertido.”

Quando deixaram Turnera para retornar a Orphen, o percurso as levou além da propriedade de Bordeaux. Sasha e Marguerite pareceram se dar bem imediatamente. Sasha foi às lágrimas no encontro casual com a neta de Graham e ficou emocionada ao saber que a donzela élfica possuía habilidade com uma lâmina que rivalizava com a de Angeline. Como era seu costume, não perdeu tempo em desafiar Marguerite para um duelo.

As habilidades de Sasha cresceram de maneira considerável e Marguerite começou testando com cautela as águas. No início, as lutadoras pareciam equilibradas, no entanto terminou com a vitória de Marguerite. Uma festa com bebidas começou logo depois, e as duas novas amigas continuaram a ir mesmo depois que todas adormeceram, bebendo até tarde da noite.

Anessa serviu-se de outro copo de água com menta.

“Nós a veremos no caminho para Turnera, talvez.”

“Hehehe... Vou trazer algumas dessas coisas para ela como presente.” Marguerite balançou as pernas por baixo da mesa de brincadeira. Ela parecia tão pura e inocente que Angeline não conseguiu evitar o riso. Não fazia muito tempo que sofria os tormentos dos pesadelos rotineiros, mas agora aqui estava, cheia de muita alegria.

Ainda assim, por que Ishmael disse algo assim? Angeline se perguntou. Naquele momento, seu rosto era horrível. Deve ter sido a bebida. Acontece — dizem algo que te irrita, e então qualquer um pode ficar emocionado enquanto está bêbado. Eu deveria apenas atribuir isso à cerveja falando — isso não importava, de qualquer maneira.

Angeline bocejou.

“Já é hora de dormir...”

“Finalmente. Porém antes disso, é hora da limpeza. Ficaremos fora por um tempo a partir de amanhã.”

Anessa falou a verdade, e as únicas três que ficaram de pé fizeram um pouco de limpeza antes de todas dormirem.

Angeline não se preocupou em encontrar uma cama, sentou-se na cadeira e fechou os olhos, sua mente aproveitando a sensação entorpecente que acompanhava a sonolência. Voltar para casa sempre foi uma ocasião de grande alegria para ela, e partir em uma nova jornada também foi um tipo de alegria.

Aos poucos, seus pensamentos conscientes tornaram-se confusos e abruptamente se transformaram em uma série de imagens e palavras que cruzavam sua mente, nunca permanecendo por mais de um segundo antes de serem substituídas por outra coisa. Esse fluxo constante de bobagens logo a levaria à terra dos sonhos.

De repente, teve um vislumbre de um quarto desconhecido para ela, parecia uma pousada, a julgar pela pequena cama, mesa e cadeira. Alguém com cabelo despenteado e óculos estava sentado à mesa. Tudo indicava ser Ishmael. Havia um livro espalhado na frente dele. Talvez estivesse lendo, contudo seus olhos não estavam focados no livro. Na verdade, seus olhos estavam vidrados e ele estava sentado molemente, como se nenhuma força animasse seu corpo. Sua boca estava aberta; não parecia estar se movendo. Era quase como se sua alma tivesse sido arrancada e o que restasse fosse uma casca vazia e sem vida. O quadro mórbido estava além da capacidade de Angeline de entender — e então a cena desapareceu. A sala desapareceu, substituída por outra coisa, e não houve tempo para contemplar o que acabara de ver.

Quando criança, Angeline certa vez testemunhou um pintinho cair do ninho. A imagem passou por um breve instante em sua mente antes que caísse em sono profundo.

***

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