domingo, 7 de abril de 2024

Boukensha ni Naritai to Miyako ni Deteitta Musume ga S Rank ni Natteta — Volume 11 — Capítulo 144

Capítulo 144: As paredes da mansão do governador

As paredes da mansão do governador eram pintadas em um lindo tom de branco que era quase ofuscante à luz do verão do início da tarde. O carpinteiro-chefe, que dava os últimos retoques no exterior da mansão, estava claramente orgulhoso do que havia sido realizado. Dito isto, o interior ficou um pouco aquém do que seria esperado de uma mansão nobre. Os carpinteiros, partindo do que observaram na arquitetura de Bordeaux, aplicaram todas as suas habilidades na empreitada. Mesmo assim, só construíram casas no campo, e os detalhes mais sutis estavam um pouco além deles.

Porém, Seren veio da Casa Bordeaux, que mantinha um relacionamento próximo com o povo comum, e não parecia nem um pouco incomodada com esses detalhes. Na verdade, eram suas criadas e servas que reclamavam do que faltava aqui ou do que dificultava o trabalho ali. Seren já havia viajado várias vezes entre Turnera e Bordeaux, transportando documentos e ferramentas para a nova mansão em cada viagem. Essas viagens tinham sido cansativas no início, contudo agora estava levando tudo com calma e terminando os preparativos para se estabelecer em Turnera como ajudante do chefe. Embora fosse apenas sua assessora, o verdadeiro chefe, Hoffman, parecia mais do que disposto a se aposentar e entregar seu cargo.

Seren guardou um maço de documentos em sua estante e depois se virou para seu convidado.

“Phew... Isso deve bastar.”

“Esse é o último?” Belgrieve perguntou.

Seren sorriu.

“Sim, felizmente... Demorei muito para escolher o que levaria comigo.”

“Afinal é bem menor que a sua mansão em Bordeaux...”

“Ah, não, na verdade eu estava examinando todos os tipos de documentos que achei que poderiam ser úteis para o meu trabalho aqui... Por sorte, a sala de referência permaneceu intacta naquele incidente.”

É mesmo? Belgrieve acariciou seu queixo. Parecia que Seren estava avaliando a situação em Turnera e depois voltando a Bordeaux para procurar quaisquer documentos relevantes — daí todas as viagens de volta. Ela explicou como examinou todos os registros antigos, do mais antigo ao mais recente, então deve ter demorado um pouco. Ele tinha ouvido falar que Seren tinha talento para assuntos burocráticos, talvez devido à sua natureza séria e trabalhadora.

Um pesado tapete de lã fora colocado sobre o piso de madeira polida do escritório. A sala foi mobiliada com uma estante, uma escrivaninha e uma mesa com cadeiras para receber visitas. Não era chique, entretanto era prático.

“Acredito que as pessoas estão falando sobre eu me tornar a próxima chefe.” disse Seren depois de se sentar.

“Sim, ouvi a respeito.”

“No entanto não há garantia de que permanecerei em Turnera no futuro próximo, por mais que lamento dizer isso.”

Naturalmente... Belgrieve assentiu. Não seria sensato manter alguém com o talento de Seren escondida nesta vila remota para sempre. Assim que a masmorra — e tudo o mais — tomasse forma, é provável que a garota fosse enviada para uma cidade maior ou se casasse com alguém de família nobre proeminente.

Seren cruzou as mãos sobre a mesa.

“Além do mais, acho que o chefe deveria ser alguém da vila. Posso ser irmã da condessa, mas ainda sou uma estranha — não guardei na memória as tradições de Turnera e o trabalho sazonal, como o Sr. Hoffman fez.”

“Entendo.”

“Portanto, acho que tudo será mais tranquilo se eu continuar sendo uma governadora temporária enviada de Bordeaux. Claro, pretendo fazer minha parte no trabalho como assessora do chefe também.”

“De fato... Pode ser o melhor. Tornaria mais fácil para você operar. Presumo que viajará entre Bordeaux e Turnera com muita frequência para fazer o trabalho de chefe.”

“Sim. Porém, parece que o Sr. Hoffman pretende passar seu título para mim...”

“Haha! Ele também pode ser estranhamente sério... Vou tirar um tempo para conversarmos. Contanto que demos uma boa explicação, acho que ele entenderá.”

“É bom saber...” Seren fechou os olhos, aliviada. Ela tinha talento, com certeza, no entanto ainda era uma garota que só trabalhava sob a orientação da irmã mais velha. Sem que se desse conta, ansiava por alguém em quem pudesse confiar.

Seren provou o chá que uma empregada trouxe e sorriu.

“Hehe... Estou feliz por ter decidido resolver esse assunto com seu apoio, Sir Belgrieve.”

“Posso não ser o mais experiente, todavia sinta-se à vontade para me consultar a qualquer momento.”

“Obrigado. Em casa, muitas vezes consulto Ashe, mas não consegui trazê-lo aqui...”

“Sir Ashcroft está bem?”

“Sim. Sash tem o arrastado junto nos últimos tempos para caçar monstros. Ele está ficando mais forte.”

Eles conversaram um pouco mais antes de Belgrieve se despedir. De vez em quando, Seren consultava-o sobre vários assuntos. Ao que parecia, Helvetica planejava estacionar alguns soldados em Turnera, então também precisariam considerar a construção de quartéis. Quando inevitavelmente tivessem um afluxo de viajantes, era esperado que trouxessem consigo problemas de segurança pública. Alguma medida de dissuasão seria necessária.

Belgrieve voltou para casa com os braços cruzados, pensativo. Tantas coisas estavam acontecendo, e sentiu como se estivesse sendo empurrado pelo fluxo dos acontecimentos. Foi interessante ver tudo começar a tomar forma, mas isso trouxe consigo certa ansiedade também. Não que houvesse algo que pudesse fazer neste momento, a não ser continuar pensando a respeito a cada passo do caminho — não havia como parar agora.

Quando chegou à praça, encontrou Kasim, que ensinava magia a alguns aldeões mais jovens.

“Hey, não seja impaciente. Se não se concentrar o suficiente, sua mana irá se dispersar.”

Cada um de seus alunos tentava se concentrar à sua maneira, alguns mantendo os olhos fechados, enquanto outros olhavam para um único ponto fixo. Aqueles com talento estavam cercados por mana rodopiante que fazia suas roupas ondularem como se fossem apanhadas por uma forte brisa.

Kasim virou-se para Belgrieve quando este se aproximou.

“Oh, já terminou de ajudar Seren?”

“Sim. Parece que você está progredindo aqui.”

“Hehehe... Eles estão muito entusiasmados com o treino. Porém já é hora de encerrar. Se eu os mantiver aqui por muito tempo, seus pais não ficarão felizes.”

Belgrieve riu e assentiu. O auge do verão havia passado e o outono estava no horizonte; as folhas das árvores começaram a mudar de cor e a vila estava ocupada se preparando para o inverno. Com a masmorra chegando, não havia nada de errado em treinar para lutar, contudo não fazia sentido em fazê-lo se atrapalhasse a preparar provisões suficientes para o inverno.

Kasim bateu palmas.

“Tudo bem — aula encerrada! Já os ensinei o básico, então descubram o resto sozinhos. Depois que dominarem o manejo com sua mana, posso lhes ensinar alguns feitiços mais difíceis.”

Seus jovens alunos aplaudiram com entusiasmo antes de voltarem para casa para trabalhar. Belgrieve acariciou a barba.

“Você acha que eles estão prontos para lutar?”

“Nem todos. Contudo quando adquirem um pouco de experiência, posso ver muitos deles alcançando posições mais altas.” Kasim riu. “Talvez seja graças aos ensinamentos do Ogro Vermelho?”

Belgrieve sorriu ironicamente.

“Não me lembro de alguma vez tê-los ensinado magia... Bem, estou feliz que poderão ajudar.”

“Os fundamentos são importantes, no entanto precisam de conhecimento prático. Mesmo se lhes ensinasse magia complexa, esse conhecimento seria inútil se entrassem em pânico no calor da batalha... Bom, o pessoal aqui lutou com sua cota de monstros, então pode não ser um grande problema.”

“Haha... Tudo está avançando...” disse Belgrieve.

Kasim assentiu.

“É, de fato. É como se estivéssemos construindo o futuro agora. Não há mais necessidade de se preocupar tanto com o passado.”

“Você... Já seguiu em frente, certo? Entretanto Percy...”

“Hmm... Bem, é verdade. Não sou tão obcecado quanto Percy, mas também desprezo aquele demônio sombrio. Gostaria de matá-lo se tivesse a chance.”

“Entendo...” Belgrieve murmurou, coçando a bochecha sem jeito.

Kasim sorriu.

“Não faça essa cara. Não vou largar tudo para procurar aquela coisa.”

“Hmm... Eu me sentiria melhor se o mesmo pudesse ser dito de Percy.”

“Esse é o problema dele, e tem que resolvê-lo sozinho... Ainda assim, ele suavizou um pouco enquanto ensinava os jovens aqui.” Kasim refletiu enquanto se exercitava. “Não é legal? Nunca houve ninguém para nos ensinar. Acabamos por ter de aprender por tentativa e erro — mais pelo erro, a menos que eu esteja me lembrando mal.”

“Não está errado. Contudo tentativa e erro também podem ser bons professores.”

“Talvez... Porém de vez em quando, não posso deixar de me perguntar o que poderia ter acontecido se houvesse um adulto como você por perto naquela época. Sei que fiz minha cota de travessuras.”

“Todos vocês passaram por muitas dificuldades.” disse Belgrieve se desculpando. Kasim deu um tapinha em suas costas.

“Foi você quem teve dificuldades. O resto de nós éramos muito descuidados para o nosso próprio bem. Só estou me perguntando como as coisas poderiam ter sido diferentes, nada mais. Para o bem ou para o mal, os pirralhos costumam ter uma mente focada.”

“Admito, também penso nisso às vezes...”

“Todavia, no final das contas, acho que está tudo bem como tudo acabou. De certa forma, se não tivéssemos seguido caminhos separados, não teríamos Ange, e há muitas pessoas que não teríamos conhecido sem ela.”

“Acho que sim...” Belgrieve fechou os olhos.

“Não faça essa cara de novo... Está tão sério como sempre, não está?” Kasim perguntou, coçando a barba, confuso.

“Oh, desculpe. Sei que é incômodo pensar demais nessas coisas.”

“Hehehe... Bem, essa também é a sua força, Bell.”

As nuvens finas foram desenhadas no céu pelo vento. O sol estava começando a se pôr e as montanhas ocidentais lançavam sombras sobre a vila.

“É quase outono, hein...”

“O tempo voa. Por volta desta época, no ano passado, estávamos em Tyldes, não estávamos?”

“Acho que sim... Então já faz um ano.” o tempo parecia estar voando. Angeline insistia muito em comer mirtilos-vermelhos frescos, então sem dúvida voltaria para casa desta vez. Mas era seguro presumir que estava ocupada agora, já que não havia enviado nenhuma carta ultimamente. Belgrieve não tinha ideia se iria passar o inverno em Turnera de novo ou partiria para Orphen depois que o festival terminasse.

Os dois voltaram para casa juntos. Era hora de começar a se preparar para o inverno que se aproximava.

A visão de Byaku apreendendo as gêmeas, que brincavam com os vegetais secando no quintal, fez Belgrieve abrir um leve sorriso.


Nos últimos dias, Angeline vinha tendo alguns sonhos bastante peculiares. Eles eram terrivelmente vívidos e pareciam quase reais. As pontas de seus dedos ficavam dormentes depois que acordava desse sonho e, às vezes, um leve cheiro permanecia na parte de trás do nariz.

Porém assim que se livrasse da sonolência matinal, essas sensações desapareceriam, literalmente, como um sonho. Quando trocou de roupa e lavou o rosto, nem conseguia se lembrar do que eram os sonhos. Tudo o que sabia era que não eram muito agradáveis e que se sentia mal mesmo sem ter uma lembrança clara. Com o passar dos dias, por fim acordou várias vezes na calada da noite. Seu corpo estava coberto de suor e sua garganta seca. Sabia que estava tendo pesadelos terríveis, contudo não tinha ideia do que se tratava. Naquelas ocasiões, descobria que não conseguia dormir por um tempo, ainda quando se deitava outra vez e fechava os olhos — e mesmo quando o fazia, não passavam de pesadelos de novo. Então o sol nasceria e ela sentiria como se não tivesse conseguido dormir.

Com uma noite sem dormir após a outra, Angeline estava se sentindo exausta. Quando estava privada de sono, demorava mais tempo do que o normal para acordar e as manhãs ficavam difíceis para ela.

Não era como se seu corpo estivesse exausto — estava dormindo, pelo que valesse a pena dizer. Em vez disso, parecia que quanto mais dormia, mais cansada ficava. Acabou por sentir-se indisposta e tudo o que fazia começou a parecer uma luta para fazer qualquer esforço.

O golpe de Angeline foi defendido, arrancando a lâmina de sua mão e deixando-a desequilibrada e esticada demais.

Marguerite, que estava a enfrentando, tinha uma expressão estranha no rosto.

“O que diabos está fazendo? Você mal tem resistido.”

“Sim, eu sei.” Angeline franziu a testa e coçou a cabeça. Como não podia dar tudo de si, começou a perder para Marguerite em seus treinos. No entanto Marguerite sabia que algo estava acontecendo e não sentia satisfação com vitórias tão vazias.

Marguerite embainhou seu florete e encolheu os ombros.

“Vai acabar sendo ferida por um monstro nesse ritmo.”

“Ugh...” Angeline fez beicinho enquanto recuperava sua espada caída. “Perder para pessoas como Maggie... Que humilhante.”

Marguerite bocejou.

“Hoh, olha quem está falando. Bem, é bom que ainda esteja bem o suficiente para ser sarcástica.”

Angeline bufou, entretanto uma parte sua sabia que estava apenas fingindo ser forte. Ela se sentiu impotente; sabia que ficaria inquieta se não fizesse algo para se manter ocupada, mas se sentia cansada demais para fazer qualquer coisa.

O verão estava chegando ao fim. Cada vez que pensava no outono que se aproximava, Angeline desejava que tudo se apressasse para que pudesse ir ver o pai. Desde que seu grupo retornou a Orphen, o trabalho delas as deixou maltrapilhas. O número de monstros diminuiu drasticamente em comparação com o tempo em que um demônio agitou as coisas. Todavia, havia muitos trabalhos que apenas aventureiros Rank S poderiam realizar, e quando elas foram trazidos diante dela, Angeline hesitou em recusá-los — portanto, estava colocando sua espada para trabalhar bastante.

Por mais ocupada que estivesse, começou a pensar em sair de férias mais cedo. Esse desejo foi temperado pelo medo de que fazer isso seria como ceder à sua própria fraqueza, e não conseguia aguentar a ideia. Assim foi a espiral descendente da saúde de Angeline. Não tinha trabalhado nos últimos dias. As garotas se reuniram na guilda hoje, porém Angeline seguia estando em um estado terrível e, portanto, não aceitaram nenhum pedido. Ela havia enfrentado Marguerite na esperança de que suar iria levantar seu ânimo, mesmo que apenas um pouco. Infelizmente, não havia nada que pudesse fazer a respeito da crise em que se encontrava. Tudo o que conseguiu foi confirmar que estava presa a uma rotina. Com isso estabelecido, as duas deixaram o campo de treinamento.

O fim do verão se aproximava, contudo o sol batia ainda mais forte, e a forte luz solar ardia nos olhos de Angeline. Era pouco antes do meio-dia e Orphen estava coberta de poeira. Como sempre, incontáveis multidões iam e vinham, e o som de suas vozes, do tráfego de pedestres e tudo mais resultava em um clamor ensurdecedor. Era o mesmo cenário de sempre, entretanto Angeline achava-o estranhamente frustrante agora.

Marguerite cruzou as mãos atrás da cabeça.

“Pensei que faríamos mais alguns trabalhos antes de voltarmos para Turnera, para ser sincera.”

“Podemos fazê-los se quiser...”

“Não há como colocar você na linha de frente assim, estúpida.”

Angeline ficou irritada ao ouvir o bom senso saindo da boca de Marguerite, no entanto não teve energia para responder. Angeline suspirou, com os ombros caídos. Marguerite bateu nas suas costas, desequilibrando Angeline e fazendo-a tropeçar.

“Oof!”

“Tsk... Não faz sentido competir com você quando está desse jeito. Vamos lá. Vamos tomar uma bebida ou alguma outra coisa.”

“Ugh...” Angeline não estava com disposição para beber, mas também não tinha vontade de ir para casa dormir. Começou a odiar dormir, e se era o que a cansava, não via sentido em fazê-lo. Talvez pudesse beber até ficar tão estupefata que pudesse desfrutar de uma noite de sono sem pesadelos.

“Entendi... Vamos lá.”

“Assim está melhor. E quanto a Anne e Merry?”

As outras duas estavam sozinhas hoje — elas seguiram caminhos separados na guilda sem dizer o que estavam fazendo. É provável que estivessem no orfanato ou fazendo um trabalho simples que poderiam fazer apenas com as duas. De qualquer forma, Angeline e Marguerite não foram informadas de antemão e seria difícil encontrá-las agora.

Dessa forma, Angeline e Marguerite foram para o bar de sempre. Ainda não era meio-dia, então não estava muito ocupado, e talvez não estivesse até a chegada da hora do almoço.

As duas garotas sentaram-se lado a lado no bar. O barman olhou para elas, tão estoico como sempre.

“Tem certeza de que não quer uma mesa? Suas amigas irão se juntar a vocês, não é?”

“Não, somos só nós duas hoje... Um pouco de vinho, por favor.”

“Quero a coisa mais forte que tiver — algumas salsichas, uma batata cozida no vapor e uma xícara de ensopado. E você, Ange?”

“Estou bem. Não tenho apetite.”

“O que está falando? Você tem que comer quando puder, ou não terá energia quando precisar. Nesse caso — pato refogado e picles, por favor.”

Sempre que Angeline via Marguerite tão enérgica, sentia como se tivesse perdido de alguma forma. Tentou usar esse sentimento para se motivar, contudo era como tentar soprar ar em um saco furado — sua alegria escaparia antes que pudesse inflá-lo. Ainda assim, se acalmou um pouco depois de beber três taças de vinho. Marguerite estava perfeitamente bem mesmo depois de beber a mesma quantidade de bebida destilada ao mesmo tempo.

“Então, no final das contas, continua não conseguindo se lembrar do que se tratavam esses sonhos?”

“Sim... E não consigo me livrar do sentimento ruim dos sonhos. É isso que o torna tão irritante.”

“Hã... Isso cheira a problema.” Marguerite disse antes de dar uma mordida em sua salsicha e pedir outra bebida.

Foi o fato de Angeline não conseguir se lembrar dos sonhos que a deixou de mau humor. Se soubesse do que se tratava, poderia pelo menos reclamar do conteúdo dos sonhos; talvez Marguerite risse e chamasse aquilo de idiota e absurdo, e Anessa e Miriam a consolassem com sorrisos nos rostos. Sem dúvida seria um fardo para sua mente — todavia aqui estava ela, desprovida até mesmo daquele mínimo de alegria.

Angeline apoiou o cotovelo no balcão e levantou a cabeça.

“Já passou por algo assim antes, Maggie...?”

“Como o quê?”

“Tendo um sonho terrível do qual não consegue se lembrar.”

“Bem, não me lembraria se fizesse isso, não é? Teria só esquecido por completo.”

Angeline suspirou. Quero dizer, sim...

“Sabia, era inútil te perguntar...”

“O que é isso, idiota? Você é a desesperada aqui.”

Por falta de algo a dizer em sua defesa, Angeline cuidou cansadamente do vinho.

Marguerite parecia um pouco desapontada — era óbvio que estava procurando uma boa briga, para a qual Angeline costumava estar disposta.

“Meu Deus, precisa ser assim o tempo todo? Está se sentindo deprimida porque continua se preocupando com isso! Que tal pensar em outra coisa para variar?”

“Por exemplo?”

“Qual é a primeira coisa que fará quando voltar para Turnera? Vai colher mirtilos-vermelhos, certo?”

“Sim...” Angeline recostou-se na cadeira, fechou os olhos e lembrou-se dos outonos em casa.

A grama das planícies está começando a desbotar, no entanto a floresta no sopé da montanha está pintada em vermelhos e amarelos lindamente brilhantes. Há nuvens sobre o cume da montanha, mas o céu está limpo em todos os outros lugares, e a fumaça das chaminés ao redor da vila apenas desaparece em sua extensão infinita. Na floresta, o ar está repleto da fragrância da terra úmida e das folhas secas. Uma trilha de animais que se inclina aos poucos atravessa a floresta, passando por uma cobertura de árvores cada vez mais rala até se abrir em um afloramento rochoso onde o sol bate na medida certa. Entre as pequenas folhas verdes desta clareira, os mirtilos-vermelhos maduros e brilhantes aguardam...

Angeline soltou um suspiro.

“Eu quero ir para casa...”

“Você está quase lá. Só mais um pouco. Então não ceda a esses pesadelos.” Marguerite repreendeu, sorrindo, antes de beber outro copo. “Esses mirtilos-vermelhos são bons. Eles são doces, porém azedos — poderia comê-los para sempre.”

“Hã... Quando os comeu?”

“Bem, já sabe, foi quando você foi para o Estogal e sentimos sua falta em Orphen. Eu estava em Turnera bem no final do festival de outono, então subi a montanha com Bell e as crianças da vila. É bastante raro encontra mirtilos em território élfico, sabia? Fiquei muito animada quando vi tantos.”

Angeline caiu sobre a mesa de novo.

“Não consegui comer um único mirtilo fresco da última vez.”

“Hum, sério? Quanto tempo faz desde a última vez que comeu um?”

“Não comi nenhum... Desde que tinha doze anos.”

Angeline comeu o suficiente no banquete que foi oferecido para ela pouco antes de partir para Orphen para se tornar uma aventureira — e foi isso. Embora tivesse conservado mirtilos e geleia desde então, era o sabor dos frutos recém-colhidos que estava tão vívido em suas memórias. Contudo não voltou para casa sempre que estavam na temporada desde então, dessa forma a oportunidade nunca mais apareceu.

“Wow, é muito tempo. No entanto, não tornará ainda mais gratificante emocionalmente quando enfim conseguir comer desta vez?” Marguerite perguntou com a boca cheia de pato assado.

“Hmph... Não quero ouvir isso de alguém que já comeu sem mim.”

“O quê, você está de mau humor? Hehehe! Olhe aqui, vamos.” Marguerite cutucou a bochecha de Angeline, sorrindo.

Como resposta, Angeline passou o braço em volta dos ombros de Marguerite, agarrou uma bochecha com cada mão e puxou.

“Você está ficando muito arrogante... E por que sua pele é tão macia?”

“O que está fazendo?” Marguerite tentou gritar, mas as palavras saíram distorcidas. Ela começou a puxar as bochechas de Angeline também. As duas ainda estavam lutando uma com a outra quando o barman colocou uma garrafa de vinho fresco no balcão com um baque forte.

“Sem brigas no bar.”

“Desculpe...”

“Foi mal, foi mal.”

Elas se soltaram, porém não sem mostrarem a língua uma para a outra. A violência ajudou a distrair um pouco Angeline, que tomou um gole de vinho sentindo-se um pouco aliviada, enquanto Marguerite pedia mais bebidas destiladas.

Marguerite ficou bastante satisfeita ao ver que Angeline havia retornado ao seu estado normal.

“Hehe... É assim que tem que ser, ou não é divertido.”

Angeline enfiou um pedaço de carne de pato agora fria na boca.

“Mmm... Munch munch...” ela se sentiu um pouco envergonhada por ter Marguerite cuidando-a daquele jeito, embora soubesse que teria tolerado melhor se fosse Anessa ou Miriam.

O bar estava ficando mais lotado e a sala de jantar estava cada vez mais barulhenta, com talheres barulhentos e vozes tagarelando. O vento que soprava pela porta sempre que se abria não era tão quente como no auge do verão. Não faz muito tempo que o calor estaria tão forte que Angeline teria começado a suar só por estar em uma sala lotada, porém aquela temporada já havia passado. Ela bocejou — o vinho estava afetando-a, contudo não de um jeito ruim.

“Posso pegar um pão achatado com queijo ralado por cima, por favor?”

“Maggie, como ainda tem espaço para comida depois de beber tanto?”

“Hã? O álcool não te enche, certo? E você? Coma alguma coisa, vai te animar.” com isso, Marguerite pegou um pedaço de carne de pato e enfiou na boca de Angeline.

“Agh!” Angeline mastigou e engoliu com a ajuda de um pouco de vinho, depois soltou um suspiro profundo.

“Bem, no final, acho que está cansada de todo o trabalho. É lógico que estará melhor quando retornarmos a Turnera.”

“Sim...”

Foi como Marguerite disse — não demoraria muito para que Angeline estivesse voltando para casa. Apenas teria que fazer o seu melhor até então. Trabalho (e Salomão) ainda tomaria sua atenção, mas por enquanto, sentiu que seria bom se entregar a algumas reflexões nostálgicas. Pensar em Turnera e em Bell acalmava seu coração melhor do que qualquer outra coisa.

Porém, não conseguia se livrar da terrível sensação de que seria atormentada por aqueles sonhos estranhos no momento em que adormecesse. Não estou exigindo luz do sol e arco-íris quando durmo, contudo, pelo menos, existe alguma maneira de dormir sem nenhum sonho?

“Eu deveria perguntar a Ishmael...”

Felizmente, havia algum feitiço ou remédio que a deixaria dormir em paz. Miriam aprendeu magia para se tornar uma aventureira, então não era versada em feitiços não combatentes. E, por sua vez, Maria parecia ocupada em investigar Salomão. Ishmael era talvez a sua melhor aposta.

Outra rajada de vento soprou pela porta que se abria. Várias folhas foram sopradas para dentro, farfalhando pelo chão.


As visões diante de Angeline de repente tornaram-se distintas. Ela piscou os olhos e balançou a cabeça. Estou sonhando ou isso é realidade?

Ela estava lá fora, em algum lugar escuro — parecia ser noite. A rua estava repleta de prédios de madeira em ruínas e cabanas de madeira acabadas. Pareciam as favelas.

No entanto estas não eram paisagens familiares para Angeline. A lama negra estava espalhada por tudo que podia ver, e pesadas nuvens escuras no céu depositavam uma chuva fina quase indistinguível da névoa. A atmosfera pesada e deprimente pesava sobre seu ser.

Angeline olhou para suas mãos. Elas eram as mesmas de sempre; as palmas das mãos estavam calejadas por segurar a espada, e os dedos, embora delgados, também eram duros e ásperos.

O chão lamacento estava pontilhado de poças de água. Era possível ver que o chão estava cheio de galhos quebrados de árvores e do que parecia ser o cadáver de um cachorro que ninguém se preocupou em descartar. A brisa morna assaltou seu nariz com cheiro de decomposição.

Angeline pensou que havia cochilado na cama momentos antes, entretanto agora estava em algum lugar completamente desconhecido. Foi uma sensação bastante estranha.

O ar estava nebuloso por causa da chuva torrencial, e isso, somado à escuridão, tornava a visibilidade terrível. Embora o vento estivesse morno, por algum motivo, sentiu um calafrio através de seu corpo, e se abraçou para conter os arrepios.

Eu não quero estar aqui... Ainda assim, por algum motivo, as pernas de Angeline não se moviam. Estava imobilizada, como se sua vontade não pudesse mais ser imposta ao seu corpo. De repente, houve um barulho alto — um prédio desabando em um beco próximo, pelo som. O som dos escombros caindo era característico, mesmo naquela neblina.

Angeline estremeceu subitamente, cheia de pavor.

Podia ouvir o som de alguém correndo pela lama, todavia assim que pensou ter visto uma sombra começar a emergir da névoa, um raio de luz irrompeu.

“Urgh!” a figura caiu no chão lamacento — era um homem de meia-idade com cabelos castanhos encharcados e com manchas brancas grudadas no rosto ossudo.

“Agh...” o rosto do homem se contorceu de dor quando ele pressionou a mão contra o ombro. Era óbvio que havia sido perfurado por magia pelas costas. Seu manto de cânhamo estava manchado de sujeira e sangue.

Ainda outra figura apareceu por trás do homem.

“Pensou mesmo que iria fugir?” perguntou o homem barbudo com chapéu de abas largas.

Os olhos de Angeline se arregalaram. Embora parecesse um pouco mais jovem que o homem que conhecia, era inconfundivelmente Kasim.

“E-Espere, por favor... Estou te implorando, me deixe ir! Finja que não me viu! Tenho esposa e filho esperando que eu volte para casa!” o homem implorou com desespero.

Kasim riu.

“Hehehe… Poupe-me das desculpas convenientes agora. É um pouco tarde para isso. Não depois de todas as coisas desagradáveis que você fez.”

“Mas... Mas eu já lavei as mãos de tudo isso! Não vou causar nenhum problema para o seu grupo, pode acreditar em mim!”

“Agora olhe aqui — alguma vez poupou alguém que implorou por sua vida desse jeito? Não acha um pouco injusto ser o único que deveria receber tratamento especial?”

O homem olhou para Kasim com desespero. Kasim riu como sempre, porém não havia alegria em seus olhos frios e penetrantes — os mesmos olhos que tinha quando ela o conheceu na propriedade do arquiduque.

Você não pode, Sr. Kasim! Angeline queria dizer, contudo nenhuma palavra saiu de seus lábios em movimento. Ela tentou correr, no entanto suas pernas não se moviam.

“Eu não faria isso se fosse você.”

Um feixe de luz saiu da ponta do dedo de Kasim no segundo em que o homem tentou se mover. Perfurou a perna do homem, provocando gritos de dor que ecoaram pelo beco.

“Grahhh...”

“Você não é páreo para mim. Agora, se for um bom menino e vier, não terei que matá-lo.”

“Não... Não mexa comigo! Você sabe o que vai acontecer comigo se eu voltar!”


Kasim encolheu os ombros.

“O que quer que aconteça com você não é da minha conta. Ah, certo, eles provavelmente já mandaram alguém atrás daquela sua esposa e filho. Já deve estar ciente de que eles nunca perdoariam alguém que os traísse.”

“Você... Ao menos tem um coração...?” o homem parecia estar nas profundezas do desespero.

Kasim soltou um suspiro profundo e abaixou o chapéu.

“Ter um coração... Nada mais é do que dor.” Kasim apontou lentamente o dedo para o homem.

Não! A voz de Angeline não saía.

O feixe de luz derrubou o homem, levantando água lamacenta enquanto ele desabava. Angeline queria gritar, mas era como se alguém estivesse apertando sua garganta. Suas lágrimas fluíram desimpedidas e, quando ela caiu de joelhos, pôde sentir a lama espirrando.

***

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